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Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 34 Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes Dhiego de Moura Mapa (UERJ) RESUMO: O presente artigo procura tecer algumas considerações sobre a política externa do governo Lula a partir de dois aspectos: de um lado as propostas de governo segundo formuladas por seus condutores e, por outro lado, a forma como essas propostas são percebidas pelos analistas de relações internacionais. Em meio à abordagem proposta será possível perceber que a implementação de uma estratégia de inserção internacional que reorienta os rumos tomados pela gestão anterior, tem forte conotação ideológica que se insere no debate sobre hegemonia no sistema internacional e gera um debate entre perspectivas difusas que enriquece e amplia o entendimento sobre a diplomacia do governo Lula. PALAVRAS-CHAVE: Governo Luis Inácio Lula da Silva; Política Externa; Inserção Internacional. ABSTRACT: This article seeks to make a few remarks about the Lula government foreign policy from two aspects: on one hand government proposals formulated by his second drivers and, secondly, how these proposals are seen by analysts of international relations. Amid the proposed approach will be possible to realize that implementing a strategy of international insertion that reorients the direction taken by the previous administration, has a strong ideological connotation which fits into the debate on hegemony in the international system and generates a diffuse debate between perspectives that enriches and expands the understanding of the diplomacy of the Lula government. KEYWORDS: Government Luis Inacio Lula da Silva; Foreign Policy; International Insertion. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 35 Atualmente, muito se tem discutido sobre os rumos da política externa brasileira. Analistas, especialistas, cientistas políticos, sociólogos, pesquisadores acadêmicos, jornalistas e amplos setores da sociedade brasileira têm se ocupado de acompanhar e emitir opinião interpretativa e parecer crítico sobre as ações e perspectivas do atual governo, no campo das relações internacionais. Esta inovadora atenção dada, por parte de diferentes setores da intelectualidade brasileira, à política externa no governo Lula se deve, por um lado, às expectativas geradas pela ascensão ao poder de um grupo político que sempre combateu as proposições do neoliberalismo e, por outro, aos impactos (internos e externos) gerados pela formulação e execução da política externa deste governo, que se pretende inovadora e de rompimento com algumas tendências do governo anterior. As diferentes análises produzidas sobre a atual condução da política externa brasileira têm, por vezes, alcançado conclusões divergentes, que podem ser organizadas em três níveis: os defensores, os opositores e os observadores apartidários. Enquanto os dois primeiros se posicionam pró ou contra a atuação externa do governo atual, os últimos procuram colocar na balança os erros e acertos dessa atuação, sem tomar partido da situação. No intuito de esboçar as diretrizes da política externa do governo Lula, partiremos das diferentes visões que se têm lançado sobre ela, a fim de apreender suas especificidades. Antes, porém, procuraremos expor como os responsáveis pela formulação da política externa do atual governo caracterizam a mesma, observando nesse sentido, a existência de uma percepção ideológica do sistema internacional muito próxima ao conceito gramsciano de hegemonia. Após efetuar essas considerações, procuraremos argüir sobre os diversos Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 36 olhares que se lançam sobre a política externa proposta pelo governo em questão. 1. COM A PALAVRA, O GOVERNO Dentre os formuladores e executores da política externa do atual governo brasileiro, destacam-se as figuras do presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, do chanceler, embaixador Celso Luis Nunes Amorim, do secretário-geral das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães e do assessor especial para assuntos internacionais da presidência, professor Marco Aurélio Garcia. Na medida em que o primeiro e o último têm maiores ligações com as propostas partidárias do grupo petista que assumiu o poder, os outros dois são vinculados ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), como embaixadores de carreira. Esse fato em si, já denuncia a característica dúbia de implementações de novas posturas e perspectivas aliadas à busca de objetivos já antigos ao interesse nacional, na atuação brasileira no exterior, em um misto de continuidade e ruptura, política de governo e política de Estado, pois, se é verdade que o presidente e seu assessor especial para assuntos internacionais estão atrelados aos compromissos partidários e de campanha, não se pode negar, por outro lado, que a presença de Celso Amorim como Ministro de Estado das Relações Exteriores – que já havia exercido a mesma função durante o governo Itamar Franco, em 1993, tendo tido importante atuação desde então – confere continuidade aos aspectos mais importantes da ação brasileira no cenário internacional. Por se tratar de um governo ora em andamento, a forma de captar as propostas e objetivos em política externa se dá através das declarações Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 37 à imprensa, discursos, entrevistas, eventuais artigos e/ou obras publicadas que demonstram o posicionamento político em determinadas questões – sendo este último, o caso de Samuel Pinheiro Guimarães –. Portanto, procurar-se-á, aqui, relatar como que a equipe formuladora da política externa do governo Lula expõe as diretrizes brasileiras contemporâneas no campo das relações exteriores. Logo após a vitória no pleito eleitoral de 2002, o presidente recém eleito Lula fez um discurso no qual salientou promessas de campanha de âmbito social (combate à fome, geração de empregos, fomento à exportação, crescimento sustentável, etc) e, em política externa, demonstrou comprometimento com a integração sulamericana, pelo Mercosul, no qual disse: "Queremos impulsionar todas as formas de integração da América Latina que fortaleçam a nossa identidade histórica, social e cultural", além de reafirmar o compromisso brasileiro com o fortalecimento de organismos internacionais, principalmente a ONU1. A prioridade ao Mercosul e a defesa do multilateralismo foram pautas reforçadas durante o discurso de posse ao cargo de presidente, em 2003, em que falou sobre a defesa dos interesses nacionais no cenário internacional. Ao inaugurar sua gestão, o presidente afirmou que “a ação diplomática do Brasil” seria “um instrumento do desenvolvimento nacional”, que se daria “por meio do comércio exterior, da capacitação de tecnologias avançadas, e da busca de investimentos produtivos”, sempre pautado na luta contra o protecionismo e no aumento da exportação nacional. Na ocasião, afirmou que o Mercosul era um “projeto político” 1 Discurso do Presidente Eleito Luiz Inácio Lula da Silva, "Compromisso com a Mudança". São Paulo, 28/10/2002. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discurso. Acessado em: 19/05/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 38 necessário à meta de “construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida”, expondo ainda uma preocupação com as “dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração”2. Todavia, o ponto chave de sua proposta de ação internacionalse encontra na delimitação do espaço geográfico de atuação brasileira no exterior: Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Européia e os seus estados- Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão. Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros.3 Percebe-se aí, a idéia de um diálogo igualitário com o governo norte-americano, a fim de combater as assimetrias existentes e, ao mesmo tempo, a compreensão de que o relacionamento com os países desenvolvidos deve ser ampliado. Porém, o que chama atenção é a importância dada à necessidade de se “aprofundar” as relações com países de peso internacional proporcional ao brasileiro. A preocupação em estabelecer maiores vínculos e articulações com países em desenvolvimento transparece na reafirmação que faz dos “laços profundos que nos unem a todo o continente africano”. Trata-se, portanto, de uma perspectiva de ampliação e diversificação da área de atuação brasileira no exterior, tanto com países desenvolvidos, como com aqueles em desenvolvimento, para melhor defender os interesses 2 Discurso do Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na Sessão de Posse, no Congresso Nacional. Brasília, 01/01/2003. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos. Acessado em: 19/05/2009. 3 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 39 nacionais na arena internacional, onde o combate às assimetrias é o cerne, conforme fica patente na defesa que faz do multilateralismo: “Defenderemos um Conselho de Segurança reformado, representativo da realidade contemporânea com países desenvolvidos e em desenvolvimento das várias regiões do mundo entre seus membros permanentes”4, dentre os quais o Brasil, que postula um assento permanente no Conselho. A busca da integração sulamericana a partir do fortalecimento do Mercosul, a percepção de que a política externa é um elemento integrante do projeto de desenvolvimento nacional, o combate às assimetrias, a defesa do multilateralismo – principalmente da reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas –, o estabelecimento de parcerias estratégicas com países com níveis de desenvolvimento (ou que possuam interesses) semelhantes ao brasileiro e a não ruptura do relacionamento com países desenvolvidos, conforme delimitados no discurso de posse presidencial, seriam as linhas gerais defendidas pelo governo ao longo de seu mandato, conforme se evidencia na declaração à imprensa, em 2005, feita por ocasião da visita do então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, ao Brasil: Tenho dito, com freqüência, que nossa política externa não é apenas um meio de projeção do Brasil no mundo, mas também um elemento fundamental de nosso projeto nacional de desenvolvimento. Nestes 34 meses de meu Governo busquei uma forte aproximação com nossos irmãos sul- americanos. Aprofundamos as relações bilaterais com todos os países da região, ampliamos e reforçamos o Mercosul, criamos a Comunidade Sul-americana de Nações, mantivemos um excelente relacionamento com os países do Caribe, da América Central e da América do Norte, impulsionamos uma política ativa em relação à África [...] O Brasil abriu-se igualmente para o mundo árabe e o principal 4 Ibidem. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 40 resultado desta abertura foi a Cúpula América do Sul – Países Árabes. Fortalecemos nossas relações com grandes países emergentes, como a China, a Índia, a Rússia, a Coréia e a África do Sul. Não hesitamos em abrir novas fronteiras. As conseqüências dessa abertura foram os incrementos sem precedentes de nosso comércio exterior, a atração de investimentos e a internacionalização de nossas empresas. Mas esta busca de novos horizontes não comprometeu nosso relacionamento com grandes países desenvolvidos como: os da União Européia, Japão e, obviamente, Estados Unidos.5 Ao longo de seu mandato, o presidente Lula, nos diversos discursos pronunciados nas várias cerimônias e eventos oficiais em que participou, ao redor do mundo, procurou pontuar, claramente, que um dos objetivos de seu governo dizia respeito à tentativa de configurar uma “nova geografia econômica e política mundial”, principalmente pelo fortalecimento e ampliação da “cooperação Sul-Sul”. Esse posicionamento é bem delimitado em um discurso que proferiu durante uma sessão de debates da XI UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), em 2004: Como aponta a UNCTAD, a participação do Sul nos fluxos globais, tanto comerciais quanto financeiros, cresceu extraordinariamente nas duas últimas décadas. Esse fluxo não tem uma direção exclusivamente Norte-Sul. Está surgindo uma “nova geografia” econômica, em particular do comércio mundial, resultante, entre outros fatores, do aumento das trocas comerciais entre os países em desenvolvimento [...] Essa “nova geografia” não se propõe substituir o intercâmbio Norte-Sul. O Norte desenvolvido continuará sendo parceiro valorizado e indispensável. Temos plena consciência de sua importância como destino para nossas exportações e como fonte de investimentos e tecnologia de ponta. Queremos, porém, criar novas oportunidades e encorajar parcerias que explorem as complementaridades entre as 5 Declaração à imprensa do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por ocasião da visita oficial ao Brasil do Presidente dos Estados Unidos da América, George W. Bush. Granja do Torto, Brasília, 06/11/2005. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos. Acessado em: 19/05/2009. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 41 economias do Sul. A intensificação do comércio Sul-Sul ilustra as possibilidades que se abrem.6 Trata-se de uma estratégia econômica que busca, por um lado, ampliar o comércio de exportações pelo estabelecimento de parcerias com países de economias complementares à brasileira, e por outro, fortalecer a capacidade de barganha dos países do “Sul”, como um bloco, durante negociações de caráter comercial em órgãos multilaterais, como é o caso da luta contra os subsídios agrícolas, na OMC. Em discurso afinado com o da presidência, o ministro de Estado, embaixador Celso Amorim, tem enfatizado, de igual forma, que a política externa teria por metas o combate às assimetrias internacionais e o auxílio ao desenvolvimento nacional, conforme explicitou, em 2003, em seu discurso de posse ao cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores: [...] Coerentemente com os anseios manifestados nas urnas, o Brasil terá uma política externa voltada para o desenvolvimento e para a paz, que buscará reduzir o hiato entre nações ricas e pobres, promover o respeito da igualdade entre os povos e a democratização efetiva do sistema internacional. Uma política externa que seja um elemento essencial do esforço de todos para melhorar as condições de vida do nosso povo [...] 7 6 Discurso do Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na sessão de debate da XI UNCTAD "A nova geografia do comércio: Cooperação Sul-Sul em um mundo cada vez mais interdependente". São Paulo, 14/06/2004. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos.Acessado em: 19/05/2009. 7 Discurso proferido pelo Embaixador Celso Amorim por ocasião da Transmissão do Cargo de Ministro de Estado das Relações Exteriores. Brasília, 01/01/2003. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos. Acessado em: 19/05/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 42 Essa afinidade com o presidente seria patente, ainda, durante as eleições de 2006, em que Lula se candidatava à reeleição, ocasião em que, durante uma entrevista concedida ao “Jornal do Brasil”, o embaixador Celso Amorim, ao ser perguntado sobre os candidatos à presidência, afirmara que o “Presidente Lula está preparado porque conhece os temas de política externa”, enquanto os “outros não têm sido muito felizes quando buscam criticar”8. Na mesma oportunidade, quando argüido, fez o seguinte balanço da política externa do 1º mandato do governo Lula: Houve o fortalecimento do Mercosul e a inclusão da Venezuela no bloco. Construímos a Comunidade Sul- Americana de Nações e aconteceu a integração com a África, países árabes e outros países em desenvolvimento. Essa integração não ocorre só em termos formais mas em termos materiais. Houve aumentos espetaculares no comércio. As pessoas se esquecem de dizer que o comércio aumentou mais onde colocamos ênfase na política externa.9 Apesar de se tratar de um ataque às críticas lançadas contra a política externa durante sua gestão ministerial, sua fala demonstra a continuidade de objetivos e propostas quanto à posição brasileira no plano externo. No mesmo período, a “Agência Reuters” publicou uma entrevista com o ministro, cuja pauta seria seu engajamento na campanha de Lula à reeleição, no qual declarara que “política externa é de Estado, mas é po-lí-ti-ca, ou não estaria nas plataformas de cada candidato” e, na mesma publicação, se acrescentou: 8 Entrevista concedida pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, ao Jornal do Brasil. Brasília, 24/10/2006. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos. Acessado em: 19/05/2009. 9 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 43 O resumo dessa política seria, segundo o chanceler, a defesa dos interesses nacionais em negociações comerciais, buscando a integração da América do Sul e a aproximação com países de dimensões semelhantes (Índia, África do Sul, China), e maior contato com a África e Oriente Médio, sem perder a interlocução com os Estados Unidos e a União Européia.10 Logicamente que a defesa da atuação brasileira no plano internacional durante o 1º mandato do presidente, por parte do ministro, se trata da busca de continuidade ao trabalho realizado. Ademais, deve-se perceber a importância atribuída pelo ministro Celso Amorim ao fortalecimento e ampliação da cooperação Sul-Sul, conforme expresso na entrevista supracitada, o que coaduna, por assim dizer, com as propostas de governo do atual presidente. Entretanto, o posicionamento de Celso Amorim é anterior ao governo Lula, tendo sido delimitado ainda durante sua gestão à frente do MRE, no governo Itamar Franco. Nos idos da década de 1990, ao colocar a política externa do governo Itamar Franco em perspectiva, Celso Amorim a caracterizou como autônoma e voltada ao interesse nacional, cuja inserção internacional se daria em várias vertentes – seja o globalismo, regionalismo, universalismo ou autonomismo, conforme conviesse ao desenvolvimento nacional – e, dessa forma, as prioridades brasileiras em sua atuação no estrangeiro seriam, em ordem de grandeza: a integração sulamericana pelo fortalecimento do Mercosul; busca de parcerias com países africanos devido a “afinidades naturais” (definidas como geográficas, históricas e culturais); intensificação e diversificação das 10 Entrevista concedida pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, à Agência Reuters. Brasília - DF, 13/10/2006. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos. Acessado em: 19/05/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 44 relações com países desenvolvidos, tanto por sua importância em termos de investimento e mercado quanto pela necessidade de combater o protecionismo e as restrições de acesso à tecnologia de ponta; compromisso com o desarmamento em prol da segurança internacional, desde que não se afete a soberania nacional; estabelecimento de intercâmbios e acordos estratégicos com países que possuem “dimensões e peculiaridades” semelhantes à brasileira (como Índia, Rússia e China); reforço do multilateralismo e, por fim, procurar exercer a chamada “diplomacia pública”11. Percebe-se então que, os mesmos objetivos traçados à política externa brasileira, desde o início da década de 1990, permanecem no governo atual. Ao caracterizar a diplomacia do governo Lula, o ministro Celso Amorim entende que esta surgiu em face dos problemas gerados pelas “limitações do modelo neoliberal, centrado na fé cega na abertura de mercados [...] e retração do papel do Estado” e, estando envolta pela idéia da busca do “desenvolvimento com justiça social”, seria orientada para funcionar como “instrumento de apoio ao projeto de desenvolvimento social e econômico do País” e, ao mesmo tempo, almeja promover a “cooperação internacional para o desenvolvimento e para a paz”12. Essa perspectiva teria por ação estratégica prioritária o esforço de integração da América do Sul a partir do Mercosul, pautada na busca de benefícios mútuos, convergência política, integração física (infra-estrutura em transporte, comunicação e energia) e crescimento 11 AMORIM, Celso L. N. “Uma Diplomacia Voltada Para o Desenvolvimento e a Democracia”. In: JÚNIOR, Gelson Fonseca e CASTRO, Sergio Henrique Nabuco de. Temas da Política Externa Brasileira II. Vol. 1. Brasília: FUNAG, Paz e Terra, IPRI, 1997, p. 16-19. 12 AMORIM, Celso L. N. “Conceitos e estratégias da diplomacia do Governo Lula”, Diplomacia, Estratégia, Política. Brasília: ano I, nº 1, out-dez 2004, p. 41-48. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 45 econômico, conforme demonstrado pelos avanços obtidos nesse sentido, palpáveis nos acordos comerciais firmados entre o Mercosul e os países da Comunidade Andina e no projeto de constituição da Comunidade Sul- Americana de Nações (CASA), que teriam o objetivo mais amplo de fortalecer os países da região frente a outros países e blocos (como os EUA e a União Européia), principalmente nos fóruns de negociação comercial multilateral, a exemplo da criação e consolidação do G-20, na OMC13. O G-20, aliado à criação do foro IBAS (Índia, Brasil e África do Sul) e da Cúpula América do Sul-Países Árabes, demonstra, de outra forma, a segunda linha de ação prioritária da diplomacia do governo Lula: o estabelecimento de parcerias estratégicas com países em desenvolvimento, com destaque para os países africanos de língua portuguesa14. Neste particular, segundo o ministro Celso Amorim, reside a peculiaridade da política externa do atual governo: Privilegiados os contatos com o nosso entorno geográfico, o Governo Lula distingue-se pela vocação para o diálogo com atores de todos os quadrantes e níveis de desenvolvimento. A participação do Presidente da República nos Foros de Porto Alegre e de Davos, em seu primeiro mês de governo, refletiu, a um só tempo, as convicções democráticas do Governo e o desejo de influir nos grandes debates internacionais emdefesa de uma globalização não excludente.15 Percebe-se então uma atuação diplomática que, não se submetendo às assimetrias geradas por certas restrições e imposições comerciais das nações de maior potencial econômico, político, e tecnológico, procura 13 Ibidem. 14 Ibidem. 15 Idem, p. 44. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 46 costurar alianças e acordos alternativos com países e blocos econômicos de interesses e estrutura semelhantes aos brasileiros, sem perder o canal de comunicação e intercâmbio com os países e blocos de países desenvolvidos, naquilo que o ministro denominou de diplomacia “altiva e ativa”. O aumento da pauta e volume de exportações brasileiras, principalmente nas rotas alternativas de comércio buscadas no governo Lula, além dos avanços obtidos em importantes negociações, como a Alca, demonstrariam os acertos desta postura, segundo o próprio ministro Celso Amorim16. A terceira linha de ação estratégica da diplomacia do governo Lula se pauta na defesa e fortalecimento do multilateralismo, principalmente pela reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, no qual o Brasil articula um assento permanente. Curiosamente, essa linha de ação parece ser orientada pelas propostas do atual secretário-geral das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em seu ensaio “Quinhentos Anos de Periferia”, escrito em 1998. Nesta obra, Guimarães defende a idéia de que o mundo estaria organizado pela lógica das estruturas hegemônicas, segundo a qual os países centrais (capitalistas desenvolvidos) estabelecem as regras do jogo imposto aos países periféricos (menos desenvolvidos), no sentido de manter as formas de influência hegemônica17. No contexto do pós-Guerra Fria, os EUA, na condição de superpotência no centro das estruturas hegemônicas, manteria uma frente de atuação política, militar, econômica e ideológica, em especial na América Latina e no Brasil, a fim de ampliar e aprofundar 16 AMORIM, Celso L. N. “Política Externa do Governo Lula: os dois primeiros anos”. Observatório Político Sul-Americano/IUPERJ, nº 4, março 2005. Disponível em: http://observatorio.iuperj.br/artigos_resenhas.php. Acessado em: 27/03/2009. 17 GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Quinhentos Anos de Periferia: uma contribuição ao estudo de política internacional. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Ed. da Universidade/UFRGS/Contraponto, 1999, p. 25-39. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 47 sua capacidade de influência internacional, no intuito de elevar ainda mais seu poder econômico e político, de forma altamente assimétrica18. Enquanto as estruturas hegemônicas procuram sua própria “preservação e a expansão”, os grandes Estados periféricos – dentre os quais, o Brasil – teriam por objetivo “participar dessas estruturas hegemônicas – de forma soberana ou não subordinada – ou promover a redução de seu grau de vulnerabilidade diante dessas estruturas”19, devendo, para isso, unir forças com seus pares, em acordos estratégicos, a fim de combater a condição de periféricos e impotentes. Guimarães aponta que o momento oportuno para isso se dá pela necessidade de reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, defendido pelas estruturas hegemônicas a fim de beneficiar potências econômicas como Japão e Alemanha, que carecem de poder político internacional de fato; é nessa brecha que deveriam atuar os grandes Estados periféricos, garantindo que a reforma proposta, ao cabo, congregue entre seus membros permanentes representantes das regiões periféricas, assegurando, pelo menos em tese, um sistema internacional mais justo20. Nesse aspecto, Guimarães advoga que a candidatura do Brasil a um assento permanente no Conselho é fundamental para sua inserção internacional e a defesa de seus interesses nacionais, na medida em que se tornaria sujeito internacional ativo e não apenas de condição periférica, subordinado às determinações diversas geradas pelas estruturas hegemônicas, obtendo um poder político que nunca lhe foi atribuído21. 18 Ibidem, p. 73-102. 19 Idem, p. 135. 20 Idem, p. 108-115. 21 Idem, p. 115-118. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 48 O pensamento de Guimarães traduz a percepção de que o cenário internacional mais benéfico aos interesses brasileiros seria o do mundo multipolar, conforme deixou claro em seu discurso de posse ao cargo de secretário-geral das Relações Exteriores, em 2003: A sociedade brasileira tem de enfrentar quatro desafios. Reduzir as disparidades de natureza econômica, de natureza social, de natureza étnica e de gênero. Desafio secular, agora inadiável [...] Eliminar as vulnerabilidades externas que constrangem o nosso desenvolvimento econômico, político e social é igualmente tarefa inadiável, inclusive para poder executar políticas públicas que reduzam com eficácia aquelas disparidades. Essas vulnerabilidades são econômicas, e sua síntese é o elevado déficit em transações correntes; são tecnológicas, e se expressam pela necessidade de importar tecnologia devido à reduzida geração de inovações; são de natureza política, pela ausência do Brasil dos principais centros de decisão mundial, como o Conselho de Segurança da ONU e o G-8; são de natureza militar, diante da imensidão do território e da instabilidade do cenário mundial.22 Percebe-se, na fala de Guimarães, um forte posicionamento anti- hegemônico, que tem, de certa forma, influenciado a diplomacia brasileira atual, que ruma em direção à África, Oriente Médio e Ásia, sem tirar os olhos dos EUA e da Europa, e tem procurado fortalecer o bloco regional de sua preponderância. Acrescente-se que, essa preocupação, principalmente em termos de fortalecimento do bloco regional, vão ao encontro das propostas de caráter mais partidário do governo, em relação à política externa, conforme fica claro em uma entrevista concedida pelo assessor da presidência, Marco Aurélio Garcia, 22 Discurso Proferido pelo Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães por ocasião da Transmissão do Cargo de Secretário-Geral das Relações Exteriores. Brasília, 09/01/2003. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos. Acessado em: 19/05/2009. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 49 à agencia de notícias “Carta Maior (Brasil)”, em 2006, da qual foi extraído o seguinte trecho: Carta Maior – Que avaliação o senhor faz da política externa do governo Lula? Marco Aurélio Garcia – Acho bom o desempenho na área internacional. Nosso objetivo fundamental era articular a América do Sul, num primeiro momento, para criar uma solidariedade regional. Numa conjuntura adversa, tentamos mudar a correlação de forças internacional. Pode parecer pretensioso, mas ou se aceita passivamente a correlação de forças, ou se tenta alterá-la. Nós interviemos para mudar significativamente a região. Penso que tivemos sucesso. Hoje há um grande número de governos de esquerda e de centro esquerda que, embora distintos entre si, buscam pontos de convergência. Mesmo administrações mais conservadoras foram empurradas para essa diretriz geral de unidade sul- americana [grifo do autor].23 Desta maneira, pode-se constatar que a implementação de um projeto de integração sulamericana amplo, que procure congregar governos de esquerda e centro-esquerda da região, ao invés de excluir ou de afastar-se dos mesmos, atende, ao mesmo tempo, aos anseios da base de apoio políticoao grupo que chefia o governo federal e aos objetivos que fazem parte da agenda de política externa brasileira há longa data. Entretanto, a particularidade da atuação internacional do governo Lula se encontra nos rumos da conduta diplomática, que se deslocaram dos eixos vertical e diagonal, e tem se intensificado na direção horizontal, na busca de parcerias e acordos estratégicos com países da “periferia”, a fim de contornar as desigualdades geradas pelas “regras do jogo” arquitetado pelas “estruturas hegemônicas”. Esse posicionamento, implícito ou 23 Entrevista concedida pelo assessor especial para assuntos internacionais da presidência, Marco Aurélio Garcia, à Agência de Notícias Carta Maior (Brasil). Caracas, 07/06/2006. Disponível em: http://www.voltairenet.org/article139857.html. Acessado em: 19/05/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 50 explícito, pode ser compreendido como uma transposição ao campo das relações internacionais do conceito gramsciano de hegemonia, conforme proposto por Robert W. Cox24. 2. HEGEMONIA E CONTRA-HEGEMONIA O conceito gramsciano de hegemonia pode ser definido como o controle político e ideológico de uma classe social economicamente privilegiada (por exemplo, a burguesia, detentora dos meios de produção e que é beneficiada pelas relações de produção capitalista). Essa hegemonia, baseada no consenso e na coerção, é hegemonia de uma classe dominante e não se deve confundir com o governo (a hegemonia está na sociedade civil e não no Estado), já que Gramsci apresenta uma concepção alargada de Estado, incluído na visão clássica de Estado (o governo, o sistema administrativo) a “estrutura política da sociedade civil” que influem na constituição da hegemonia (“a Igreja, o sistema educacional, a imprensa”25 e outras instituições do gênero). Dessa forma, o aparato de exercício da hegemonia da classe dominante está tão arraigado na sociedade civil, que é na sociedade civil que se deve efetuar a “guerra de posição” a fim de que uma posição “contra-hegemônica” (de classes subordinadas) consiga alcançar uma mudança na estrutura social (a revolução). A hegemonia, portanto, ocorre quando os interesses de um grupo (enquanto construção de instituições e formulação ideológica) se tornam dominantes em dada organização social; é a junção entre Estado e 24 COX, Robert W. “Gramsci, hegemonia e relações internacionais: um ensaio sobre o método”. In: GILL, Stephen (org.). Gramsci, materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007. 25 Ibidem, p. 104. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 51 sociedade civil, a que Gramsci nomeia de “bloco histórico”, que é um grupo coeso pela consciência de classe e fortalecido pela organização social e política (institucional e ideológica), podendo, ainda, o “bloco histórico” ser hegemônico ou contra-hegemônico.26 Apesar de não ter tido maiores preocupações com o estudo do sistema internacional, é profícua a percepção de Gramsci da dicotomia entre “centro e periferia” nas relações entre estados. Nessa perspectiva, os grupos sociais hegemônicos dos países que compõem o centro do sistema capitalista mundial, exerceriam influxo sobre as elites cooptadas dos países periféricos – a idéia de países dependentes e de busca da autonomia no sistema internacional.27 Diante da complexidade do sistema internacional, Cox pondera que nesse plano, o conceito de hegemonia se assenta na idéia de uma “ordem global”, que “não se baseia apenas na regulação dos conflitos interestados, mas também numa sociedade civil concebida globalmente, isto é, num modo de produção concebido globalmente”. A hegemonia, na ordem global, portanto, é exercida pelas potências e, assim, a “hegemonia mundial é, em seus primórdios, uma expansão para o exterior de uma hegemonia interna (nacional) estabelecida por uma classe dominante”. A hegemonia no sistema internacional, nesse sentido, seria “uma ordem no interior de uma economia mundial” que afeta a estrutura social, política e econômica dos países que a compões, motivo pelo qual, na relação entre centro e periferia, a hegemonia é coerente no centro e gera contradições na periferia.28 26 Ibidem, p. 111-113. 27 Ibidem, p. 114-115. 28 Ibidem, p. 118. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 52 Nesse sentido, hegemonia não seria o mesmo que imperialismo, mas seria algo ligado à idéia de domínio, ou de períodos de domínio exercido por uma potência que garantiria o equilíbrio do sistema internacional (o período hegemônico) em oposição a períodos em que o domínio seria compartilhado ou não definido (multipolaridade; o período não-hegemônico). Assim, desde a década de 1960, apresenta-se um período de indefinição, marcado por três tendências (a hegemonia, a não- hegemonia e a contra-hegemonia dos países do em desenvolvimento). A relação entre centro e periferia (ou entre os componentes do sistema) é regulada pelas organizações internacionais (ONU, OMC, OIT, OCDE) que, de forma análoga às instituições que constituem o aparato da estrutura de dominação política e ideológica das classes dominantes dentro dos estados, tais organizações se constituem na forma institucional de legitimação do domínio do sistema internacional pelos países do centro do sistema hegemônico global, ou seja, são “mecanismos de hegemonia”. Como resultado da forma como se estrutura a ordem global hegemônica (os organismos internacionais), Cox constata que a estratégia de luta contra-hegemônica (efetuada pelos países periféricos, ou em desenvolvimento) nos moldes da guerra de posição, redundaria em fracasso (ou na revolução passiva caracterizada pelo “transformismo”29), pois essas instituições (as superestruturas do sistema internacional) estão 29 Nas sociedades (européias) em que a hegemonia burguesa ainda não havia se estabelecido de fato, ocorreu o que Gramsci caracterizou como “revolução passiva”, que podia ser de dois tipos: o cesarismo (quando surge um “homem forte” para ser o árbitro entre as forças progressistas e regressistas, sempre pendendo para um dos lados) e o transformismo (uma ampla coalizão de interesses, marcada pela cooptação de possíveis oposições organizadas); este último, marcado pela assimilação de forças revolucionárias, acaba arrefecendo uma transformação social ampla. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 53 diretamente “vinculadas às classes nacionais hegemônicas dos países centrais”.30 Portanto, acompanhar a visão gramsciana ao estudo das relações internacionais, conforme proposto por Cox, nos possibilita perceber que o modelo de inserção internacional proposto pelo governo Lula, ao advogar o combate às “estruturas hegemônicas” através do estabelecimento da cooperação Sul-Sul, como forma de reorganizar a geografia econômica mundial, tendo como arena de luta espaços de negociação multilateral (como a OMC e a luta contra o protecionismo europeu, ou ainda o esforço em lograr um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU), ao que parece, apresenta um voluntarismo em empenhar-se em um movimento “contra-hegemônico”, onde os países da periferia do sistema (da cooperação Sul-Sul, que forma blocos estratégicos de negociação e parceria) formariam um “bloco histórico”. Nesse aspecto, a dificuldade em alcançar resultados favoráveis em algumas negociações em órgãos multilaterais também pode, ainda, serexplicada pela idéia da “revolução passiva”, onde as forças anti-hegemônicas seriam assimiladas pelo sistema. Ademais, essa conotação ideológica existente na formulação de política externa do atual governo tem gerado interpretações divergentes por parte dos analistas da diplomacia do governo Lula, que demonstram a pluralidade de percepções entre a intelectualidade nacional acerca do papel internacional do Brasil. 3. PERSPECTIVAS CONTRADITÓRIAS: A VOZ DOS ANALISTAS 30 COX, op. cit., p. 120-121. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 54 Desde o início do governo Lula, alguns especialistas em relações internacionais de matriz diversa têm feito projeções analíticas em torno das propostas de política externa apresentadas. Os diferentes olhares lançados sobre a conduta diplomática do atual governo, de uma maneira geral, têm procurado traçar perspectivas comparativas entre os governos Lula e FHC, no sentido de captar rupturas e continuidades, avanços e retrocessos, ou, de outra forma, têm por objetivo averiguar a coerência entre as intenções anunciadas e as ações efetivas em política externa, ao longo do mandato presidencial, a fim de traçar as características da conduta diplomática brasileira contemporânea. Nesse processo, proliferam interpretações divergentes, que abarcam posições favoráveis, contrárias ou apenas analíticas sobre a diplomacia do governo Lula. Um dos defensores das tendências apresentadas pela política externa contemporânea é Amado Luiz Cervo, editor da “Revista Brasileira de Política Internacional”, periódico acadêmico que tem congregado pesquisadores universitários que há algum tempo se ocupam do estudo das relações internacionais do Brasil. Ao traçar comparações entre a política exterior de FHC e Lula, Cervo se posiciona claramente vinculado ao pensamento de esquerda, na medida em que critica os rumos da diplomacia de Cardoso que, envolta pelo “idealismo kantiano da paz e cooperação [...] de um mundo ideal, regulado com legitimidade pelas instituições multilaterais”, em uma espécie de “fé” numa “ordem global feita de regras transparentes, justas e respeitadas por todos”, acabou transformando a década de 1990 na “década das ilusões”31. A 31 CERVO, Amado Luiz. “Editorial - A Política Exterior: de Cardoso a Lula”. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 46, nº 01, jan-jun 2003, p. 5-11. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v46n1/a01v46n1.pdf. Acessado em: 23/05/2009. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 55 confiança excessiva na “boa vontade” dos países ricos em instituições (G7, FMI e Banco Mundial) e órgão multilaterais (Gatt-OMC) responsáveis pelo controle dos fluxos financeiros e regulação do comércio internacional, a prioridade secundária conferida à integração regional da América do Sul, a relação de privilégio com os EUA e a busca de aproximação com a Unia Européia, demonstram que a política externa de Cardoso coordenou esforços em direção ao Primeiro Mundo, o que, para Cervo, significou o rompimento com “a tradição democrática e universalista da ação externa brasileira”, que só seria recuperada com o governo Lula32. Essa opção pelo Primeiro Mundo, por parte do governo FHC, transformou o comércio de “promotor da produção interna” e de “capital para os serviços da dívida”, em “variável dependente da estabilidade dos preços”, o que provocou o aumento do fluxo de capitais e da dependência financeira, além da dependência empresarial e tecnológica, altamente maléficas para a economia nacional. Cervo entende que essa estratégia faz parte da cartilha neoliberal estabelecida pelo “Consenso de Washington”, que determina a abertura econômica e a redução das atribuições do Estado, e aponta que Cardoso implementou uma “abertura como estratégia sem estratégia de inserção interdependente”, o que acirrou a vulnerabilidade externa brasileira33. Por sua vez, o governo Lula apresenta uma mudança de modelo de inserção internacional, a partir de “quatro linhas de força”: a) recuperação do universalismo e do bilateralismo, em uma diplomacia que procura maiores interlocuções com países africanos, asiáticos e árabes, se comparado ao anterior; b) 32 Ibidem. 33 Ibidem. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 56 prioridade estratégica à integração dos países da América do Sul; c) combate às dependências estruturais e instrumentalização da política externa em prol do desenvolvimento nacional; d) manutenção do acumulado histórico, principalmente o compromisso com a “ideologia desenvolvimentista”34. Ao tratar da questão do modelo de inserção internacional, Cervo trabalha com a idéia de transição de paradigmas e política externa brasileira, desde o “paradigma liberal-conservador” – que predominou, no Brasil, da independência até a Revolução de 1930 –, até o “paradigma logístico”, que caracteriza o governo Lula35. O “paradigma logístico” seria uma espécie de associação entre liberalismo e desenvolvimentismo, cujo foco consiste em “dar apoio logístico aos empreendimentos, o público e o privado, de preferência o privado, com o fim de robustecê-lo em níveis comparativos internacionais”36. De acordo com Cervo, o “governo Lula se afasta da fé na capacidade do livre mercado de prover por si o desenvolvimento”37, e tem, por isso, avançado no sentido de fortalecer o Mercosul, aproximar-se de países emergentes como Índia, Rússia, China e África do Sul, apresentando positiva, embora lenta, progressão no sentido de internacionalização econômica das empresas nacionais, como Vale do Rio Doce, Gerdau e Petrobrás38, com o objetivo de diluir a vulnerabilidade externa, superando as assimetrias internacionais, buscando “elevar o patamar nacional ao nível das nações avançadas”. 34 Ibidem. 35 CERVO, Amado Luiz. Inserção Internacional e Política Externa: formação dos conceitos brasileiros. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 67. 36 Ibidem, p. 86. 37 Ibidem, p. 88. 38 Ibidem, p. 89. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 57 Assim como Cervo, Paulo Gilberto Fagundes Vizentini, procura traçar um parâmetro entre as políticas externas de Lula e de FHC, e pontua que a política externa do governo Lula apresenta três dimensões: “uma diplomacia econômica, outra política e um programa social”39. A primeira dimensão se caracteriza pelo desejo de cumprir os compromissos internacionais (dívida externa), a fim de não gerar rupturas no plano internacional. A segunda dimensão é mais ousada, sendo marcada pela defesa dos interesses nacionais dentro de um projeto de desenvolvimento, de caráter empreendedor. A última diz respeito ao engajamento particular do governo Lula no combate à desigualdade social que, em ações efetivas, se traduz na campanha contra a fome mundial em órgãos multilaterais. Para Vizentini, todas essas dimensões denotam o protagonismo do Brasil na cena internacional. Ainda mais incisivo, no que tange à defesa da conduta diplomática do governo Lula, é o posicionamento de José Flávio Sombra Saraiva que, ao advogar um programa de ação internacional voltado para o continente africano, efetua duras críticas à atuação externa do governo FHC, que acabou se afastando dos paises africanos40. Saraiva entende que o Brasil “parece ter transitado entre parâmetros confusos, em política externa, nos anos 1990”, cometendo“equívocos de substância” – abertura econômica e políticas monetaristas como “vetores de política externa”, além da retirada do caráter empreendedor do Estado – e “equívocos de meios – 39 VIZENTINI, Paulo Fagundes. “De FHC a Lula: uma década de política externa (1995-2005)”. Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 5, n. 2, jul-dez 2005, p. 381-397. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/viewFile/9/1602. Acessado em: 23/05/2009. 40 SARAIVA, José F. S. “Política exterior do Governo Lula: o desafio africano”. Revista Brasileira de Relações Internacionais. Vol. 45, nº 02, jul-dez 2002, p. 5-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v45n2/a01v45n2.pdf. Acessado em: 23/05/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 58 como a crença kantiana e idealista da diplomacia de Cardoso nos foros multilaterais”41 –. Dessa forma, para Saraiva, o programa de relações internacionais formulado pela equipe do governo Lula parte da percepção da “necessidade de rever o padrão de inserção internacional do Brasil”, tendo sempre em perspectiva os “novos desafios gerados pela globalização, pela interdependência global, [...] pelo protecionismo das potências avançadas, pelos Estados Unidos em sua inclinação unilateral e imperial”42. Nesse panorama, a atenção conferida a regiões periféricas, como a África, [...] não seria apenas um ato de fé, mas o resultado de dois cálculos: um político e outro econômico. Politicamente, ela serve para reforçar a idéia de que o Brasil ainda tem um projeto cooperativo Sul-Sul, mas em outras bases, a engendrar alguma liderança nas novas rodadas de negociação de temas globais, na reformulação do Conselho de Segurança das Nações Unidas [...] Além disso, uma política africana bem concertada com seus parceiros do outro lado pode constituir instrumento de barganha na vontade de reorientação do eixo diplomático de temas como o terrorismo para outros temas, mais construtivos e de interesse mútuo do Brasil e do continente africano, como o desenvolvimento sustentável e a cooperação Sul-Sul.43 Apesar das críticas endereçadas à política de FHC, há, entre os defensores da diplomacia do governo Lula, aqueles que apontam continuidades entre a atuação externa brasileira durante os dois governos. Este é o caso de Alcides Costa Vaz que, no intuito de averiguar as especificidades da diplomacia do governo Lula, compreende que esta mantém os objetivos e características da política externa brasileira do governo FHC, diferenciando-se apenas no que tange às estratégias 41 Ibidem. 42 Ibidem. 43 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 59 implementadas para o alcance dos mesmos, como é o caso da prioridade conferida à integração sulamericana e a “atuação mais assertiva e pró- ativa na defesa de interesses nacionalmente definidos”44. Entretanto, há alguns pesquisadores que, de forma oposta, colocam em xeque as inovações propostas pela equipe formuladora da política externa brasileira do atual governo, como é o caso de Eduardo Viola e José Augusto Guilhon Albuquerque. Partindo da constatação de que no mundo contemporâneo prevalece o “sistema internacional de hegemonia da democracia de mercado”, Eduardo Viola entende que “a ascensão dos países no sistema internacional está correlacionada com o aumento da interdependência com os centros mais dinâmicos da economia mundial” devido à “superioridade do modelo explicativo liberal-neoclássico” sobre o “modelo marxista-dependentista”45. Nesse sentido, seria preciso que o Brasil completasse seu processo de modernização política e econômica, a fim de tornar-se uma “democracia de mercado consolidada”, adequando- se, assim, às realidades do mundo contemporâneo; tal concepção encontra entraves “epistemológicos e culturais” que estão enraizados em setores da sociedade brasileira, como, por exemplo, o antiamericanismo, o superdimensionamento do papel do Estado em detrimento do papel do mercado na organização sócio-econômica e a delimitação do interesse 44 VAZ, Alcides Costa. “O Governo Lula: uma nova política exterior?”. In: BRIGADÃO, Clóvis e PROENÇA Jr., Domingos (Org.). O Brasil e a conjuntura Internacional – Paz e Segurança Internacional. Rio de Janeiro: Gramma: Fundação Konrad Adenauer, 2006, p. 85-96. 45 VIOLA, Eduardo. “A diplomacia da marola”. Primeira Leitura, nº 50, abril 2006, p. 90-93. Disponível em: http://www.imil.org.br/artigos/a-diplomacia-da-marola/. Acessado em: 23/05/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 60 nacional a partir de preceitos mais normativos que realistas46. Imbuído dessa compreensão, Eduardo Viola argumenta que A política externa do governo Lula é um desvio com relação à convergência com as democracias de mercado consolidadas do governo FHC e expressa os obstáculos culturais acima enunciados para completar a modernização da política externa brasileira: prioridade regional para América do Sul, China, África, Rússia, Índia e o mundo árabe; negligência das relações com as democracias de mercado (NAFTA, União Européia e Japão); concentração no objetivo irrealista e de limitado valor de tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, em vez de prosseguir o objetivo realista e consoante com o interesse nacional de tornar-se membro da OCDE [Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico]; rejeição da ALCA e apoio aos regimes antiamericanos de Cuba e da Venezuela, com incursões esporádicas numa retórica antiamericana; e constantes declarações irrealistas da intenção de mudar a geografia econômica e comercial do mundo e liderar a luta contra a fome. A política externa do governo Lula é dissonante com o lugar do Brasil no mundo, como democracia de mercado em consolidação.47 É nítido que, para Eduardo Viola, a inserção internacional brasileira deve, antes, buscar acomodar-se ao sistema internacional dominado pelas “estruturas hegemônicas”, do que tentar articular uma correlação de forças com países em desenvolvimento a fim de superar as assimetrias existentes, o que contrasta diretamente com as propostas de política externa formuladas pela equipe do governo Lula. Por sua vez, José Augusto Guilhon Albuquerque propõe que o governo Lula, ao formular a política externa brasileira, procura atender às “demandas de setores internos da coalização governamental” em detrimento da mudança sistêmica ocorrida no contexto internacional. 46 Ibidem. 47 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 61 Exemplo disso seria a recusa governamental em corroborar a resolução da OEA que caracteriza as FARC como movimento terrorista, pois as “relações privilegiadas do PT com o movimento guerrilheiro e a ojeriza dos setores nacionalistas das Forças Armadas com relação à política americana consubstanciada no Plano Colômbia”, seriam mais relevantes do que as transformações no contexto internacional geradas pelo impacto dos ataques terroristas do 11 de setembro, que redimensionaram o combate mundial ao terrorismo48. Da mesma forma, a proposta de obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU atenderia apenas a setores governistas, pois, segundo Albuquerque, não tem razão de ser devido à “capacidade residual de ação sistêmica” e à “escassa capacidade de mobilização de recursos para projeção externa de poder”, inerentes ao Brasil, só passível de ser explicada, talvez, devido ao voluntarismopresidencial, o que leva Albuquerque à hipótese de que o governo Lula desconsidera “o contexto internacional na formulação dos objetivos, na escolha dos meios e na execução das ações de política externa”49. Além de setores da comunidade acadêmica, a conduta diplomática do governo Lula tem suscitado críticas de representantes (ou formadores) da opinião pública, como, por exemplo, o jornalista Carlos Alberto Sardenberg que, em um artigo publicado na revista “Exame”, em 2005, intitulado “As más alianças de Lula”, teceu considerações mordazes com relação à proposta de estabelecimento da cooperação “Sul-Sul”, pelo governo, como estratégia de desenvolvimento e incremento da pauta de 48 ALBUQUERQUE, José A. G. “O governo Lula em face dos desafios sistêmicos de uma ordem internacional em transição”. Carta Internacional, vol. 01, nº 01, março 2006, p. 13-21. Disponível em: http://www.usp.br/cartainternacional/modx/assets/docs/CartaInter_2006-01.pdf. Acessado em: 23/05/2009. 49 Ibidem. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 62 exportações50. Sardenberg utiliza dados estatísticos para comprovar que os países ricos (EUA e Europa), são o maior destino de exportação e fonte de dinamização econômica e, por outro lado, os países em desenvolvimento têm uma participação irrisória na pauta comercial brasileira em termos globais. Acrescentando-se a isso o fato de que a convergência de interesses entre países periféricos é menor do que a competição por mercados e a tendência protecionista, o jornalista conclui que “se o objetivo da diplomacia brasileira é melhorar a posição do país na geografia mundial, então deveria concentrar-se na Alca e no acordo com a União Européia, pois estaria aí envolvendo quase 70% das exportações brasileiras”, motivo pelo qual protesta: “política externa não é para amadores nem para ideólogos do Sul. Estes partem de um equívoco central: acham que, reunindo um pobre, dois pobres, três pobres, isso forma um rico”51. Dentre os opositores à política externa do governo Lula, destaca-se Celso Lafer, que foi Ministro das Relações Exteriores do governo FHC, cujas opiniões tem sido veiculadas por meios de imprensa, como o jornal “O Estado de São Paulo”. Em uma de suas declarações veiculadas pelo referido periódico, por ocasião das eleições de 2006, o ex-ministro caracterizou a diplomacia do governo Lula como cheia de erros e equívocos, pois “tem se dado com sobreposição dos aspectos ideológicos do Partido dos Trabalhadores, sobre o enfoque de inserção econômica do Brasil” como, por exemplo, o “afastamento do Brasil dos Estados Unidos 50 SARDENBERG, Carlos Alberto. “As más alianças de Lula”. Exame, São Paulo: nº 843, 25/05/2005. Disponível em: http://portalexame.abril.com.br/degustacao/secure/degustacao.do?COD_SITE=35&CO D_RECURSO=211&URL_RETORNO=http://portalexame.abril.com.br/economia/m00 44101.html. Acessado em: 23/05/2009. 51 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 63 e a aproximação ao governo da Venezuela, de Hugo Chavez”52. Em artigo publicado em 2007, no mesmo jornal, Lafer fez um balanço das ações diplomáticas do governo Lula, concluindo que “uma das graves falhas da diplomacia da Presidência Lula é a inadequação e falta de sincronia com que os seus operadores manejam relevância, protagonismo e liderança”53. Para Lafer, ao definir a agenda de política externa, um governo deve tomar cuidado com o risco de superestimar-se ou subestimar-se devendo, para isso, diferenciar bem relevância (capacidade de influir sobre um tema da agenda internacional), protagonismo (atuação pró-ativa no cenário internacional) e liderança (potencial de articulação no sentido de convergir interesses de atores internacionais em ações estratégicas)54. Nesse aspecto, faz a seguinte constatação: [...] O Brasil, por suas características, é relevante no campo do meio ambiente e da mudança climática. Não tem sido nem protagônico nem exercido liderança nesta matéria [...] O Brasil tem sido protagônico no empenho em buscar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e em promover a conclusão da Rodada Doha da OMC. Não logrou, até agora, comprovar a sua relevância no campo da segurança, para obter o almejado assento permanente. O protagonismo no âmbito da OMC não redundou, até o presente momento, numa liderança apta a conciliar os interesses nacionais e os do G-20 com os interesses dos demais numa visão estratégica apta a levar a bom termo a Rodada Doha [...] O mesmo vem ocorrendo no âmbito regional sul-americano, outro tema central da Presidência Lula. Neste âmbito o Brasil é relevante, tem tido protagonismo, mas não logrou uma liderança de cunho estratégico capaz, nas difíceis condições atuais, de construir 52 O ESTADO DE SÃO PAULO. Reeleição de Lula aprofundará erros em política externa. São Paulo: 21 jun. 2006. Cidades. Disponível em: http://www.estadao.com.br/arquivo/nacional/2006/not20060621p58192.htm. Acessado em: 25/05/2009. 53 LAFER, Celso. “Novas variações sobre política externa”. O Estado de São Paulo. São Paulo: 16 dez. 2007. Opinião. Disponível em: http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20071216/not_imp96655,0.php. Acessado em: 25/05/2009. 54 Ibidem. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 64 uma noção de interesse sul-americano compatível com o interesse nacional [...]55 Percebe-se, nas colocações de Lafer, que seus ataques se direcionam, a um só tempo, ao posicionamento ideológico e à atuação do governo Lula em relações internacionais. Assim como Lafer, os analistas apartidários, procuram contrapor as intenções declaradas com as ações e/ou possibilidades de ação no cenário internacional sem, contudo, defender ou atacar o governo, da mesma forma que o fazem os apologistas ou opositores declarados. Essa percepção da multiplicidade de opiniões expressa nos trabalhos dos analistas da diplomacia brasileira atual, é dada pelo diplomata Paulo Roberto de Almeida, que sistematiza essas posições contraditórias em três grupos: as “vozes autorizadas”, os “aliados ou simpatizantes” e os “independentes ou críticos”, no qual se inclui56. O último grupo é formado tanto pelos opositores declarados – que acusam o governo de “terceiro-mundismo” tardio – quanto pelos “acadêmicos neutros” – que expõem os obstáculos da realidade do cenário internacional aos propósitos “mudancistas” do governo –; nessa dinâmica, Almeida identifica que a grande inovação da política externa do governo Lula seria o fato de que “pela primeira vez na história da diplomacia brasileira, a palavra e a ação governamental nesse campo já não recolhem consenso da sociedade e da própria diplomacia 55 Ibidem. 56 ALMEIDA, Paulo Roberto de. “Uma nova ‘arquitetura’ diplomática? – Interpretações divergentes sobre a política externa do Governo Lula (2003-2006)”. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 49, nº 01, 2006. Disponível em: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1603arquitetdiplom.pdf. Acessado em: 21/04/2009. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 65 profissional”, conforme ficou nítido na campanha à sucessão presidencial de 2006, que colocou a atuação internacional brasileira em debate57. A falta de consenso social e diplomático sobre as proposições de inserção internacional do governo se deve, em grande medida, ao fato de coexistir, no interior do Itamaraty, duas correntes que possuem concepções próprias sobre o modelo de inserção internacionala ser implementado pelo Brasil: a corrente autonomista (ou nacionalista), que prevalece de forma hegemônica no MRE atualmente, e a corrente liberal, que prevaleceu na equipe ministerial do governo FHC, conforme demonstra Miriam Gomes Saraiva: A primeira defende uma projeção mais autônoma do Brasil na política internacional; tem preocupações de caráter político-estratégico dos problemas Norte/Sul; dá maior destaque à perspectiva brasileira de participar do Conselho de Segurança das Nações Unidas; prioriza as relações de cooperação Sul-Sul e busca maior liderança brasileira na América do Sul [...] A segunda, sem abrir mão das reivindicações da primeira, procura dar maior importância ao apoio do Brasil aos regimes internacionais em vigência. Defende a idéia de uma inserção internacional do país a partir de uma soberania compartilhada [...] busca na América do Sul uma liderança mais discreta.58 Entretanto, o fato de que uma ou outra corrente se tornou predominante entre este ou aquele governo, não deve ofuscar o fato de que, tanto atualmente quanto outrora, ambas as posições convivem no Ministério das Relações Exteriores e no governo. É no limite entre essas 57 Ibidem. 58 SARAIVA, Miriam Gomes. “O segundo mandato de Lula e a política externa: poucas novidades”. Carta Internacional, vol. 02, nº 01, março 2007, p. 22-24. Disponível em: http://www.usp.br/cartainternacional/modx/index.php?id=70. Acessado em: 27/03/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 66 duas posições que parece se situar o pensamento de Paulo Roberto de Almeida. Participante ativo do debate acadêmico e governista sobre a inserção internacional brasileira, Almeida procura apreender, de forma crítica, os desdobramentos e possibilidades da diplomacia brasileira contemporânea, colocando, por vezes, os dois modelos de inserção apresentados em perspectiva, apontando que enquanto FHC colocava as prioridades econômicas antes de tudo, “o novo governo assume suas prioridades políticas em primeiro lugar”, diferenciando-se do “conformismo” do governo anterior que aceitava o mundo tal qual ele se apresentava59. De aspecto “voluntarista”, o governo Lula deseja mudar o mundo, não se opondo à participação nacional na ordem global, desde que seja preservada a soberania nacional. Entretanto, ao fazer um balanço dos resultados alcançados pela diplomacia ao longo do primeiro mandato da presidência de Lula da Silva, Almeida chama atenção para o fato de que esta pode ser delimitada por duas linhas de ação: a configuração de uma “presença soberana no mundo” e a construção de “forte integração continental”, que possuem o agravante de serem objetivos auto-excludentes, de difícil conciliação, na medida em que “a busca de maior integração regional se contrapõe, na prática, à preservação da soberania nacional, uma vez que aquela implica, ipso facto, a diminuição desta”60. Por essa razão, a atuação externa 59 ALMEIDA, Paulo Roberto. “Uma política externa engajada: a diplomacia do governo Lula”. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 47, nº 01, Jun. 2004, p. 162- 184. Disponível em: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1260PExtLula.pdf. Acessado em: 21/04/2009. 60 ALMEIDA, Paulo Roberto de. “A diplomacia do governo Lula em seu primeiro mandato: um balanço e algumas perspectivas”. Carta Internacional, vol. 02, nº 01, março 2007, p. 03-10. Disponível em: http://www.usp.br/cartainternacional/modx/index.php?id=70. Acessado em: 27/03/2009. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 67 brasileira, na atual gestão governamental, tem alcançado poucos resultados e lentos avanços em pautas de sua agenda, como a reforma do Conselho de Segurança da ONU, o reforço do Mercosul e a integração regional (devido à dificuldade de convergência de interesses entre os países sulamericanos), e o combate às assimetrias econômicas em foros multilaterais de negociação, como a OMC (onde o G-20, ao coordenar ações brasileiras com paises como China e Índia, pode tornar as posições nacionais defensivas e restritivas, o que seria ruim) e as negociações entre o Mercosul e a União Européia (que tem encontrado dificuldades no protecionismo europeu “em matéria de agricultura”)61. Entretanto, Almeida não deixa de registrar o protagonismo presidencial em buscar traçar alianças estratégicas com países periféricos (como China, Rússia, Índia, países africanos e árabes) e movimentar vários países e órgãos multilaterais em prol da resolução de problemas sociais de nível internacional (como o programa mundial de combate à fome)62. Outra figura vinculada ao ofício diplomático, que tem analisado a conduta internacional do governo Lula, desde seu início, é Luiz A. P. Souto Maior. Em seu prognóstico, Souto Maior tem procurado demonstrar até onde as concepções diplomáticas brasileiras são coerentes com o cenário internacional vigente, sempre apontando alternativas viáveis ao alcance dos objetivos brasileiros em política externa. Observando as atitudes e intenções do governo Lula, Souto Maior afirma que “a política externa do atual governo optou por uma linha de defesa ativa dos interesses e da soberania nacionais, o que implica trabalhar também por uma ordem internacional mais justa e eqüitativa” (consubstanciado na defesa da reforma do Conselho de Segurança da 61 Ibidem. 62 Ibidem. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 68 ONU e nas negociações comerciais em órgão multilaterais), além do empenho em integrar a região sulamericana com marcada liderança brasileira63. Em um mundo caracterizado pela oscilação entre a adoção de um sistema unipolar liderado pela potência hegemônica (os EUA, principalmente em termos militares e, em certo aspecto, políticos) e do sistema multipolar (beneficiado pela ausência de hegemonia internacional em termos econômicos), o Brasil, na condição de “potência média”, integra um grupo que “busca transformações que levem, pelo menos, ao multipolarismo do poder e ao multilateralismo das decisões”, o que leva à constatação de que a diplomacia brasileira optou “por uma política externa de potência emergente”, que entra em choque com os anseios hegemônicos norte-americanos e dos países que vêem benefícios nesses anseios64. Partindo dessa premissa, Souto Maior aponta três problemas possíveis: 1º - o perigo de, ao alinhar-se de forma estratégica às reivindicações de países de mesmo porte internacional, chocar-se com os interesses da potência hegemônica e de seus aliados; 2º - a dificuldade em conciliar os interesses dos países do Cone Sul em torno da integração regional e da liderança brasileira na região, de forma aceitável; 3º - o risco de a proposição de liderança regional e de defesa do sistema multipolar atrair a oposição norte-americana aos interesses nacionais65. Essa situação tem levado, em grande medida, os EUA a deixarem um pouco de lado a proposta de criação da Alca, devido ao impasse à sua 63 SOUTO MAIOR, Luiz A. P. “Desafios de uma política externa assertiva”. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 46, nº 01, jun. 2003, p. 12-34. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v46n1/a02v46n1.pdf. Acessado em: 23/05/2009. 64 Ibidem. 65 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 69 implementação efetiva, adotando a estratégia de estabelecer acordos bilaterais com países da região, em termos semelhantes à Associação de Livre Comércio ofertada,fato que, conjugado com a divergência de interesses e percepções entre o Brasil e seus vizinhos, acabaria minando a possibilidade de a integração sulamericana, nos moldes estabelecidos pelo Mercosul e a Comunidade Sul-Americana de Nações, alcançar grande êxito; o que leva Souto Maior a propor que o governo brasileiro adote postura semelhante à norte-americana e fortaleça os acordos bilaterais com os países de seu entorno, a fim de garantir certa liderança regional e a defesa de seus interesses66. Essa concepção de “potência emergente” ou “potência média”, é tratada de forma semelhante por Maria Regina Soares de Lima, que trabalha com a idéia de “país intermediário”, termo que só alcança legitimidade e aplicabilidade a partir de seu “significado social”67. Mais complexo do que a questão da potencialidade e recursos ou aspiração e autoprojeção de uma nação como “país emergente”, o “significado social” diz respeito ao “reconhecimento por parte dos outros estados, tanto dos mais poderosos, como dos semelhantes”, da condição de um país como “emergente/intermediário” no cenário internacional68. Nesse sentido, é possível compreender o protagonismo brasileiro em chefiar a missão de paz no Haiti, coordenar o foro IBAS, atuar de forma engajada na OMC a partir do G-20, levantar a bandeira da cooperação Sul-Sul, 66 SOUTO MAIOR, Luiz. A. P. “O Brasil e o regionalismo continental frente a uma ordem mundial em transição”. Revista Brasileira de Política Internacional, vol. 49, nº 02, dez. 2006, p. 42-59. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbpi/v49n2/a03v49n2.pdf. Acessado em: 23/05/2009. 67 LIMA, Maria Regina Soares de. “Brasil como país intermédio: imprecisión conceptual y dilemas políticos”. In: J.G.Tokatlián (comp.), India, Brasil y Sudáfrica. El impacto de lãs nuevas potencias regionales. Buenos Aires, Libros Del Zorzal, 2007. p.169-190. 68 Ibidem. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 70 empenhar-se no fortalecimento do Mercosul e na integração regional, defender o estabelecimento do acordo entre Mercosul-União Européia, aprofundar contatos com países africanos, integrar o G-4 (Brasil, Alemanha, Japão e Índia) em prol da reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas; essas medidas e outras semelhantes dar-se-iam no sentido de obter o “reconhecimento” externo da condição de “país intermediário”. De igual forma, a dificuldade em se alcançar o status de “país intermediário” de forma inconteste, no caso brasileiro, se dá devido aos seguintes fatores: desconfiança, por parte dos países da América do Sul, com relação às pretensões brasileiras em destacar-se como líder regional; as pretensões norte-americanas na região sulamericana, que vão de encontro aos objetivos das propostas de integração tal como elaboradas pelo Mercosul; a falta de consenso com a Argentina nas propostas de reforma do Conselho de Segurança da ONU; o “crescente protagonismo de Hugo Chavez” na América do Sul. Além desses fatores externos, Lima destaca que são necessárias duas “condições domésticas” para a configuração da situação de país intermediário: “a existência de uma aspiração nesse sentido e a capacidade das elites governamentais de mobilizar recursos para esta finalidade”69; conforme o exposto até aqui, estas duas características integram a formulação da conduta diplomática em questão. Esta perspectiva de conjugação entre política externa e situação doméstica está presente, ainda, no balanço que Lima faz da repercussão que a política externa do governo Lula causou nos debates eleitorais de 2006, em que foi acusado pela oposição de privilegiar o relacionamento 69 Ibidem. Inserção Internacional no Governo Lula: interpretações divergentes 71 com países em desenvolvimento em detrimento das relações com países ricos: De certo modo, a polêmica eleitoral em torno da direção da política externa esteve fora do lugar. As relações com o mundo desenvolvido não foram abandonadas em razão da ênfase conferida aos países do Sul. O que não se observou de fato foi a busca de exclusividade ou aliança preferencial com um lado ou com o outro, até porque há muito a política externa abandonou a idéia de alianças preferenciais ou automáticas, exatamente pelas características estruturais da distribuição equilibrada do comércio do País com as quatro macrorregiões: União Européia, América do Norte, Ásia e América do Sul. O que, sim, ocorreu foi um esforço em incentivar o relacionamento com os países do Sul e mesmo de retomar relações tradicionais, praticamente abandonadas no governo anterior, como com a África, por exemplo.70 Essa percepção é reforçada por Ricardo Seitenfus em seu diagnóstico sobre as relações internacionais do Brasil. Na condição de defensor da atuação externa do governo Lula, Seitenfus destaca o “equilíbrio do atual relacionamento externo brasileiro”, perceptível no aumento da pauta e volume de exportação brasileira no período de governo da presidência Lula da Silva e, principalmente, na atenção conferida pela “diplomacia presidencial” de Lula a todos os quadrantes do mundo – e não apenas aos países desenvolvidos ou do entorno regional – naquilo que configura como sendo a “dimensão mundial da política externa brasileira” pois, o protagonismo presidencial junto a países em desenvolvimento, não significou descaso com os países 70 LIMA, Maria Regina Soares de (2006). Decisões e Indecisões: um balanço da política externa do primeiro governo do presidente Lula. Rio de Janeiro, Observatório de Política Sul-Americana/Iuperj. Disponível em: http://observatorio.iuperj.br/artigos_resenhas.php. Acessado em: 27/03/2009. Revista Política Hoje, Vol. 19, n. 1, 2010 72 industrializados e os da região sulamericana71. Conclusão semelhante apresenta Cristina Soreanu Pecequilo ao tratar do tema, pois, de acordo com esta, a política externa de Lula não se caracteriza pela aproximação de países emergentes e pelo afastamento de países com quem o Brasil mantém relações tradicionais (EUA, países europeus), conforme protestam os seus opositores, mas sim, destaca-se pela capacidade de “combinação dos eixos horizontal e vertical” que, entre outros fatores, apresenta a vantagem de aumentar o “poder de barganha frente ao eixo vertical e os EUA” em negociações estratégicas, e conclui: “essa coadunação dos eixos tem se provado essencial para a recuperação do status como potência média emergente, permitindo revitalizar tradições e encontrar espaços diferenciados de atuação”72. A busca por “espaços diferenciados de atuação”, seria aquilo que Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni denominaram de “autonomia pela diversificação”, termo definidor da diplomacia de Lula, caracterizada como sendo [...] a adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais (China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio, etc.), pois acredita-se que eles reduzem as assimetrias nas relações externas dos países mais poderosos e aumentam a capacidade negociadora nacional.73 71 SEITENFUS, Ricardo. “O Brasil e suas relações internacionais”. Carta Internacional, vol. 02, nº 01, março 2007, p. 11-21. Disponível em: http://www.usp.br/cartainternacional/modx/index.php?id=70. Acessado em: 27/03/2009. 72 PECEQUILO, Cristina Soreanu. “A política externa do Brasil no século XXI: os eixos combinados de cooperação horizontal e vertical”. Revista Brasileira de Política