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Clássicos Liberais P a r t e I n t e g r a n t e d a R e v i s t a B a n c o d e I d é i a s n º 5 0 A Lei e a Ordem por Roberto Fendt Ralf Dahrendorf A LEI E A ORDEM4 ÍNDICE PRÓLOGO ..................................................................................... 5 1. O CAMINHO PARA A ANOMIA .................................................... 5 2. BUSCANDO ROUSSEAU, ENCONTRANDO HOBBES ....................... 8 3. A LUTA PELO CONTRATO SOCIAL ......................................... 11 4. A SOCIEDADE E A LIBERDADE ................................................. 15 A LEI E A ORDEM 5 PRÓLOGO título desse pequeno livro, A lei e a ordem, parece téc- nico. Ele sugere uma questão crimi- nológica, assim como parece sugerir um componente básico para a plata- forma política da direita. Não obs- tante, o argumento do livro não é de ordem técnica. Seu ponto de partida é o terror em nossas ruas e as brigas nos campos de futebol. Ele aborda também questões como a desorien- tação da juventude, o desemprego e as fissuras no sistema partidário. Em outras palavras, este é um livro sobre ordem social e liberdade. Páscoa de 1985 1. O CAMINHO PARA A ANOMIA s lutas de classe tradicionais não não representam mais a expres- são dominante da sociabilidade insociável do homem. Pelo contrário, o que encontramos são manifesta- ções mais individuais e mais ocasio- nais de agressão social; entre elas, as ocorrências mais frequentes são as violações da lei e da ordem pública por indivíduos, bandos e multidões. Do ponto de vista de motivos e idéias, o declínio da eficácia da lei pode ser descrito como uma das contradições da modernidade, onipresente no mundo atual desde o Welfare State, que na verdade cria uma nova pobreza, até a ameaça nuclear, que nos recorda diariamente da ambivalência da razão humana. Queríamos uma sociedade de cida- dãos autônomos e criamos uma sociedade de seres humanos ame- drontados ou agressivos. Buscávamos Rousseau, e encontramos Hobbes. Assim sendo, nossa tese é de que a lei e a ordem representam o objeto principal de conflito nas sociedades desenvolvidas no mundo livre. Que isso possa ser assim é o resultado aparentemente paradoxal de um século de expansão de direitos da cidadania e iluminismo aplicado. O que queremos dizer quando nos referimos a uma erosão da lei e da ordem nos dias de hoje? Será que existe realmente um processo desse gênero? E, em caso positivo, será que ele conduz necessariamente à anomia? Não poderia isso ser uma aberração temporária ou, de qual- quer forma, uma tendência rever- sível? Estas perguntas são impor- tantes. Elas exigem respostas claras, que tentaremos dar. Nesse contexto, coloca-se a im- portante questão do tipo de governo que desejamos: será que desejamos um Estado social brando, que per- mita que o crime escape do controle — ou, então, um Estado mais duro, que reprima o crime e mantenha os mais necessitados ocupados numa luta darwiniana pela sobrevivência econômica? Ou será que existe uma A O A LEI E A ORDEM6 terceira alternativa? Talvez o “Estado mínimo” de Robert Nozick, que, pelo menos em seus domínios, não é um “Estado vigia”? Os fatos são complexos, embora, em última análise, sem ambiguidade. Em muitos países, desenvolvidos e em desenvolvimento, houve um aumento substancial dos crimes violentos contra a pessoa desde meados da década de 50 e, de forma ainda mais dramática, desde os anos 60. O aumento nos crimes contra a proprie- dade é ainda mais expressivo. Durante o mesmo período de 30 anos houve provavelmente um au- mento considerável do número de pessoas que vivem do crime. A isso acresce dizer, de forma mais signi- ficativa, que a prosperidade trouxe consigo novas categorias de crimes, tais como furtos do interior de carros e dos próprios carros. Acima de tudo isso sobrepõe-se a crescente impor- tância das drogas e do crime relacio- nado com drogas. Qual a natureza do problema de lei e ordem? Estaremos dentro dos limites da normalidade ou o pro- blema da lei e da ordem reside no fato de que atos contrários às nor- mas permanecem sem punição? Se as violações de normas não são pu- nidas ou não são mais punidas de forma sistemática, elas se tornam, em si, sistemáticas. Assim, atingimos rapidamente o campo traiçoeiro, porém fértil, da anomia. Sabemos que o termo anomia foi introduzido nas ciências sociais mo- dernas por Emile Durkheim, em sua tentativa de classificar, e talvez explicar, o suicídio. Seria a anomia não um estado de espírito, mas um estado da sociedade? Como pro- curou mostrar Robert Merton, em seu famoso ensaio sobre “Estrutura social e anomia”, “a anomia é concebida como uma ruptura na estrutura cultural, ocorrendo especialmente quando houver uma aguda disjunção entre, de um lado, as normas e os objetivos culturais e, de outro, as capacidades socialmente estru- turadas dos membros do grupo em agirem de acordo com essas normas e objetivos”. * * * Os conceitos correlatos de norma, sanção e autoridade não apenas ajudam a descrever a sociedade. A variedade dos mesmos também ajuda a identificar sociedades abertas e totalitárias, tradicionais e modernas, bem como ordem e anomia. As cren- ças morais das pessoas acrescentam um elemento de moralidade à validade das normas. Em outras palavras, as normas são válidas se e quando elas forem eficazes enquanto morais, isto é, quando elas forem (julgadas) reais e (julgadas) corretas — há, portanto, uma relação entre essa terminologia e os conceitos de legalidade (a eficácia positiva das normas) e de legitimidade (a coinci- dência entre eficácia e moralidade). Nesse sentido, a anomia é uma con- dição onde tanto a eficácia social A LEI E A ORDEM 7 como a moralidade cultural das nor- mas tendem a zero. Muitos anarquistas bem-inten- cionados sonham com um mundo onde não haja nenhuma autoridade, embora poucos aceitem que este tam- bém seria um mundo sem normas. O sonho anarquista é um sonho de normas autoaplicadas, sem prisões, polícia e nem políticos. Mas normas, sanções e poder estão ligados de forma indissolúvel. Seria bom viver num mundo de lei e ordem sem as instituições de lei e ordem. Bom, porém impraticável, é como a anar- quia poderia ser descrita. Há quem argumente que a ano- mia não pode durar. A anomia traz “distúrbios, dúvidas e incertezas sobre tudo”. As normas parecem não mais existir ou, quando invocadas, resul- tam sem efeito. Isso, por sua vez, refere-se ao desaparecimento do poder ou, mais tecnicamente, à re- transformação da autoridade legítima em poder arbitrário e cruel. Se os homens não podem viver permanentemente em anomia, po- dem viver a caminho da anomia, a condição de algumas sociedades contemporâneas. O caminho da anomia seria um caminho ao longo do qual as sanções iriam sendo progressivamente enfraquecidas. A impunidade tornar-se-ia quotidiana. Essa é a hipótese. Resta buscar sinais convincentes desse processo de declínio das sanções. Existirá uma decomposição sistemática das sanções em áreas consideráveis da vida social? Existirão, por assim dizer, “áreas de exclusão”, tanto no senso físico como no social, onde tudo pode acontecer e onde reina a anomia? Os sinais disso são visíveis: a expansão da economia paralela; as pessoas tomando a lei em suas próprias mãos; o sistema de sanções associado às normas esmore- cendo de forma significativa e, numa certa medida, sendo com- pletamente abandonado, no caso dos jovens; os sinais de que as áreas de exclusão estão se espalhando; a generalização da contratação de guardas particulares e a formação dos grupos de justiceiros por conta própria — os “vigilantes” — muitas vezes sob a denominação eufemística de autoajuda comunitária; em es- colas situadas em áreas em processo de deterioração, sãoàs vezes os professores, em vez dos alunos, que vivem num estado de medo; em muitas organizações, uma combi- nação de legislação de proteção ao emprego com uma política conci- liatória do empresariado torna virtual- mente impossível a utilização de sanções como expulsão ou despe- dida de pessoas. A tudo isso é preciso acrescentar outro conjunto de fatores. Se a extensão das violações de normas tornou-se suficientemente vasta, a aplicação de sanções, na mesma medida, torna-se extremamente difícil e, por vezes, impossível. Motins de ruas, tumultos, rebeliões, revoltas, insurreições, demonstrações vio- A LEI E A ORDEM8 lentas, invasões de edifícios, piquetes agressivos de greve e outras formas de distúrbios civis desafiam, de certa forma, o processo de imposição de sanções, dirigido essencialmente a indivíduos e pequenos grupos identificáveis. Quando é que o distúrbio é um motim e quando é que ele é uma revolução? Ou, em outras palavras, quando falamos de anomia e quando de mudanças, embora utópicas? Os motins são atos individuais de protesto maciço; as revoluções são autênticas manifestações coletivas de uma exigência de mudança. Os mo- tins são essencialmente destrutivos, as revoluções possuem um elemento construtivo de sustentação. Nesse sentido, os motins cabem no contexto da anomia, as revoluções no das mudanças. Cabe observar que a frequência de incidentes que demonstram a tibieza das sanções legais contribui para o sentimento de que é possível ficar-se impune na delinquência co- letiva; há dúvidas sobre a eficácia, e talvez mesmo sobre a legitimidade, das normas e autoridades prevalecentes. Por fim, o crime organizado é um dos fenômenos que, em algumas sociedades, lançam sérias dúvidas sobre o monopólio da violência pelo Estado. O terrorismo reivindica um apoio considerável, operando na fronteira frágil entre crime e mu- dança, motim e revolução. Concluindo, o aumento conside- rável nos crimes sérios nos últimos 30 anos mostra que eles não constituem fatores conjunturais singulares, mas resultam de um processo de sanções enfraquecidas, com todas as decor- rências de um tal processo, não somente para a eficácia da ordem social, como também para a legiti- midade da autoridade. As principais tendências sociais, sobre as quais não pode haver dúvidas sérias, confirmam a expansão rápida da impunidade. Nesse sentido, encontramo-nos a caminho da anomia. 2. BUSCANDO ROUSSEAU, ENCONTRANDO HOBBES urante um longo tempo, muitos dos que buscavam a melhoria das possibilidades de vida humana foram guiados por uma imagem de homem que é tão tocante quanto inútil. Eles supunham que bastava que as pessoas fossem liberadas das restrições impostas pela cultura e pela sociedade para que pudessem viver felizes e em paz, para todo o sempre. Mas sabemos que essa imagem do homem é um dos marcos principais no caminho para a anomia. Rousseau escreveu que “o homem nasce livre e, no entanto, jaz acor- rentado”. A ampliação de opções para um número crescente de pes- soas foi uma das mudanças funda- mentais da História. Foi e é o processo que denominamos modernidade. Os estágios do processo são muitos, incluindo a descoberta inicial e hesitante do indivíduo na teoria D A LEI E A ORDEM 9 filosófica e na prática constitucional, através do estabelecimento do princípio do livre contrato de be- nefícios da modernidade, tais como a mobilidade, a participação e um nível decente de vida para a maioria. Todavia, esses aumentos maciços nas possibilidades de vida e liberdade tiveram seu preço na possibilidade de previsão e de ordem. A liberdade sempre tende para a anarquia, e vimos que pode haver uma força no sentido da anomia nas sociedades modernas. Mas essa força é autodestrutiva. A anarquia e a anomia não reforçam a liberdade. Pelo contrário, quando os efeitos secundários tornam-se maiores que o fator principal e os fatores exó- genos não mais podem ser inter- nalizados, a liberdade está em pe- rigo. Em algum ponto existe um limite, além do qual o custo da mo- dernidade começa a ultrapassar seus benefícios. O custo do aumento de opções envolve, primeiramente, a estrutura normativa da sociedade. A liberdade de escolha significa, quase por de- finição, ausência de coerção normativa sobre nossas ações. De fato, a redução dessa coerção tem sido um processo longo, complexo e, na opinião de muitos, incompleto. Embora isso possa parecer paradoxal, o processo teve início com o domínio da lei, ou seja, com o desenvolvimento e a genera- lização de coerções normativas. A legalização tem sido acom- panhada pela legislação, com o domínio do direito, através de uma pletora de leis, regulamentos, despa- chos e sentenças. Todavia, isso tem contribuído pouco para a eficácia das normas, ou mesmo para sua legitimidade: poderá até ter ocorrido o inverso. A torrente irresistível da moder- nidade, de alteração de uma força pela liberdade para uma força pela incerteza e anomia, foi agravada por uma consequência parcialmente intencional da extensão das opções. Um dos aspectos históricos fas- cinantes na expansão de opções é a forma como esse processo se intro- duziu em relacionamentos que pa- reciam imunes ao universo da es- colha. A transformação da religião de um liame inquestionável num acessório opcional foi claramente uma parte integrante do que chama- mos, comumente, iluminismo. Com a mobilidade crescente, os liames sociais gerais e locais tornam-se também disponíveis, em vez de outor- gados. O universo de opções que emer- gem em decorrência de tais tendên- cias aumentou a liberdade, mas também levantou um curioso con- junto de novas questões. Por que seria desejável ser diferente se a diferença em si foi abolida? O que as escolhas significam, se tudo se torna igual- mente válido? Um mundo com ligaduras muito enfraquecidas é um mundo desorien- tador e desconcertante. A solidarie- dade, a autoridade, a fé e um senso A LEI E A ORDEM10 histórico não são elementos fáceis de ser substituídos. Se a contração da estrutura normativa da sociedade caminha passo a passo com a destruição dos liames culturais, nós nos aproximamos perigosamente não somente da anomia, como também da fantasia mais brutal de um estado da natureza. Alguns, como Maihofer, defendem a noção de homem “como um ser socializado”. Essa noção traz conse- quências óbvias para as questões correlatas de responsabilidade e punição. Atualmente, a responsa- bilidade também é individualizada. Mas a consciência e os julgamentos morais são um produto da sociedade. De acordo com essa visão, portanto, torna-se necessário descobrir se os infratores estiveram alguma vez em condições de absorver distinções “socialmente adequadas” entre o bem e o mal. Em termos de punição, esta no- ção do homem como um “ser socia- lizado” significa que todas as penas que efetivamente “dessocializam” as pessoas são questionáveis. Isso implica, evidentemente, que a deten- ção deverá ser a exceção rara, mais que a regra. O efeito pretendido pelos autores que defendem essa ordem de idéias é precisamente o enfraquecimento das sanções até o ponto da impu- nidade, que foi por nós descrito como o problema real da lei e da ordem. Maihofer argumenta que a imagem do homem como pessoa autônoma e capaz de discriminar entre o bem e o mal tem de ser substituída pela imagem do “homem socializado”, ou seja, o produto de forças fora de seu controle. A imagem do homem por trás dessa descrição é a de seres essen- cialmente bons. Seja o que for que eles façam de errado, a culpa é das forças sobre as quais não possuem nenhum controle e que têm um caráter am- plamente social. Habermas é Rousseau em mais um sentido, este mais profundo. No- vamente, encontramos uma imagem notável do homem. Trata-se da bondade natural e da deformação social e,portanto, da necessidade em se dis-socializar o “homem socia- lizado”, para trazer para fora sua boa índole: é o Emile. De forma bastante interessante, o autor do artigo sobre Hobbes na grande Encyclopédie contrasta “o filósofo de Malmesbury” com “o filósofo de Genebra”: “A filosofia do Sr. Rousseau de Genebra é quase o inverso da de Hobbes. Um crê que o homem é bom por natureza; o ou- tro, que ele é mau . . . Foram as leis e a formação da sociedade que aperfei- çoaram o homem, se seguirmos Hobbes; e que o depravaram, se se- guirmos o Sr. Rousseau”. De fato, acrescenta o autor, uma terceira abordagem seria a correta: as “vicis- situdes perpétuas” da condição hu- mana são devidas ao fato de que o homem tanto é bom como mau. Qual será então a falha nos argu- mentos de Werner Maihofer sobre A LEI E A ORDEM 11 crime e castigo? Maihofer argumenta que o crime, essencialmente, é um erro da sociedade e que o remédio que deve, portanto, substituir o cas- tigo tradicional é uma questão de política social. O que ocorre nesse raciocínio é uma confusão fascinante, mas alta- mente explosiva de direito e política social ou, como preferimos dizer, de direito e economia. Certos tipos de comportamento são excluídos como contrários à lei, e, portanto, punidos, ou não. Existem, portanto, boas ra- zões para o antigo princípio, judex no calculat. Por outro lado, oeconomicus semper calculat. A economia en- quanto ciência (ou, se preferirem, arte) da escassez gira invariavelmente em torno do a mais ou a menos, das quantidades e relações. Tudo o que importa aqui é a existência de uma abordagem para o que as pessoas fazem, que se pergunta se está certo ou errado, e de outra abordagem, que se pergunta em que medida, mais ou menos, aquilo é adequado para certas finalidades. Isso também significa que existem certas ações que nos conduzem à esfera do crime e castigo, e outras que exigem uma política econômica (social). No mundo moderno, a confusão entre as duas é generalizada; um tipo de confusão surge quando algumas questões que parecem pertencer à esfera da economia são redefinidas como questões de direito. Dois exem- plos típicos são as tentativas de definir um “direito ao trabalho” e um “direito a um meio ambiente não poluído”. Em conclusão, argumenta-se que sem a fraternidade não existirá a sociedade. Mas a verdadeira fraterni- dade é difícil de obter no mundo moderno. Será bom manter-se o raciocínio frio, em vez de se deixar levar por alguma das ilusões român- ticas em oferta em nosso tempo. Argumentamos também que sem a sociedade a liberdade não poderá existir ou, melhor dizendo, começa- mos a discutir esse ponto, ao qual retornaremos mais adiante. Não iremos ficar livres a não ser que aceitemos as instituições sociais como proteção e oportunidade para a sociabilidade insociável do homem. Portanto, o contrato social, as san- ções e o resto são uma condição para a liberdade. Mas antes de completarmos essa discussão, temos que analisar o terceiro painel do tríptico da Revolução Francesa: a igualdade. 3. A LUTA PELO CONTRATO SOCIAL s países da Europa e América do Norte vivenciam um longo período de paz, pelo menos interna- mente. Eles passaram por uma revo- lução econômica que trouxe níveis de prosperidade sem precedentes para um número sem precedentes de pes- soas. Eles viram a expansão quase ilimitada de suas oportunidades de bem-estar social e, de forma geral, O A LEI E A ORDEM12 das possibilidades de vida. Eles encontraram a estabilidade política sob a forma da “luta democrática de classes” entre partes que se alternam de forma pacífica, apre- sentando suas plataformas ligei- ramente divergentes a um eleitorado ligeiramente interessado. Mas, ao longo de tudo, os países do mundo livre continuaram capazes de resolver tais solicitações sem co- locar em risco sua prosperidade nem sua liberdade. Qual é então o pro- blema, se é que ele existe? Talvez seja útil começarmos com o histórico do processo político, ao qual também retornaremos, pois ele é expressão e força reguladora das mudanças que estão ocorrendo. À luz da História, há algo ilusoriamente moderado na noção de uma “luta democrática de classes”, que supõe que os partidos políticos expressam os conflitos sociais subjacentes. Na verdade, o processo que conduziu à emergência de um con- flito democrático de classes foi longo e penoso. Quando os economistas políticos do século 18 e início do século 19 descobriram a moderna noção de classe e que uma aguda cisão entre os interesses políticos e as posições sociais era endêmica nas sociedades industrializadas, eles previram ameaças consideráveis “ao sistema”, resultantes desse conflito. Marx deu a essa perspectiva uma in- flexão própria, fundindo a economia política escocesa com uma filosofia histórica suábia, como só ele poderia fazê-lo. O conflito de classes para ele não representava meramente a luta entre interesses divergentes. Era uma luta cujo sentido e resultado eram determinados por forças históricas mais profundas. A história mostrou que esse quadro não refletiu a realidade. Em todos os casos, os determinantes não classistas do comportamento político borraram as linhas nítidas da figura. Além disso, uma das con- dições necessárias para o capitalismo industrial, o direito de estabelecer contratos livres de trabalho, revelou- se uma força de mudanças. A igual- dade perante a lei precedeu ou acompanhou a Revolução Industrial. No século seguinte, o campo de batalha mudou-se do domínio político para o legal. Teve início a luta pela extensão dos direitos de cidadania à participação política, notadamente sob a forma de sufrágio universal. Pelo menos à margem, a economia foi substituída pelo direito. A “cidadania democrática” assim criada torna as distinções de classe quase irrelevantes. Essa luta demo- crática de classes foi, para sermos exatos, tanto causa como efeito do processo de extensão dos direitos de cidadania. Sem a liberdade de asso- ciação não existiriam os partidos socialistas, sem o sufrágio universal eles não poderiam vencer eleições. Nesse ponto parece-nos útil esclarecer um pouco o conceito que utilizamos até aqui de maneira um tanto informal, embora ele possua A LEI E A ORDEM 13 uma pesada carga de histórico intelectual: o conceito de contrato social. O contrato social significa o acordo implícito de obedecer a certas normas elementares e aceitar o monopólio da violência em mãos de um poder comum estabelecido para proteger essas normas. O processo de extensão dos direitos da cidadania em resposta à luta de classes dos últimos dois séculos pode ser visto como uma alteração do contrato social. Se aplicarmos essa noção à his- tória das classes na sociedade industrial fica ressaltada uma cir- cunstância. Nos conflitos modernos de classe o contrato social não era a questão. O edifício da sociedade capitalista ou burguesa era o contexto aceito da luta. É claro que as forças de mudança desejavam destruir o interior desse edifício e reformá-lo de alto a baixo, de acordo com suas próprias opiniões. E, de fato, é o que eles fizeram, a tal ponto que nem “capitalista” nem “burguês” descrevem as sociedades modernas. Naturalmente, conforme conti- nuava o processo de reforma, e os ricos e os pobres do ano findo começavam a cooperar para tornar habitável seu edifício comum, os seus conflitos perderam intensidade e violência. Seguiu-se a luta demo- crática de classes. À custa, em grande parte, da velha classe trabalhadora, emergiu a “nova classe média”, aquela categoria social amorfa, mas de crescimento rápido que, embora não sendo a sede do poder, apresentava uma diferença clara em relação ao antigo prole- tariado. As lutas de classes e os conse- quentes conflitos políticos conver- teram-se, em grande parte, em competição individual.A mobilidade social tornou-se a nova expressão dos antagonismos da sociedade. Em consequência disso, declinou a fidelidade partidária ou de classe. Dois terços, possivelmente três quartos de todos os cidadãos das sociedades livres modernas possuem um interesse comum na manutenção de instituições políticas que garantam o crescimento econômico e a paz social; seus interesses divergentes são comparativamente menores; além disso, tais diferenças não acarretam a formação de classes e partidos ba- seados em classes. Se “o velho problema social entre empregadores e trabalhadores está, em princípio e em termos institu- cionais, sob controle”, não é o que ocorre com o Novo Problema Social, existente entre os que estão organi- zados (ou seja, os produtores) e os que não o estão (ou seja, os consu- midores) – ou, se olharmos sob outra perspectiva, entre os “grupos de pobreza” e a classe majoritária da sociedade, entre a “classe inferior” e a classe majoritária. Essa “classe inferior” não é pro- priamente uma classe, ou seja, ela não possui o potencial de organi- zação resultante da força de uma A LEI E A ORDEM14 onda do futuro, na crista da qual esteja navegando. Não é uma classe, mas um lumpenproletariat. A questão principal sobre essa categoria é que seu destino é percebido como sem esperanças. Os membros da “classe inferior” são um exército de reserva para demonstrações e manifes- tações, incluindo violência no futebol, brigas raciais e batalhas de rua com a polícia, mas não são uma força revolucionária. Eles não são a favor de nada, mesmo que possam estar contra tudo. Com a mesma velo- cidade com que se reúnem, também se dispersam; suas reuniões não duram, da mesma forma que suas ações não têm futuro nem passado. Elas podem ser eficazes enquanto durarem, mas são sem significado se comparadas com a luta de classes do século 19. * * * Podemos agora combinar a análise cultural do capítulo anterior com a análise social deste capítulo para lançarmos alguma luz sobre o problema descrito inicialmente de lei e ordem. Se as sociedades tendem ao enfraquecimento das normas, pela generalização da impunidade, e ao afrouxamento dos liames que ex- pressam a sociabilidade da natureza insociável do homem, e se elas deixam uma parcela bastante grande de seus membros potenciais isolada dos direitos e benefícios de partici- pação, num espaço social des- protegido, então o clima estará pro- pício para o crime. Motins e rebelião, e outros fenômenos de massa que escapam às sanções sociais, repre- sentam uma faceta dessa condição; mas a outra é a delinquência direta individual, crimes contra a proprie- dade e contra a pessoa. Este é o ponto crucial sobre o processo de marginalização: ele torna o contrato social a questão dominante. De forma contrária à luta de classes, o antagonismo incon- gruente entre uma classe majoritária razoavelmente organizada e uma “classe inferior” amorfa, que surge aqui e ali, desafia todos os métodos tradicionais de contenção e institucio- nalização. E como a classe majoritária reage a essa difícil situação? Numa primeira etapa, a reação da classe majoritária é cerrar fileiras. Muitos dos pontos de rigidez descritos como características das sociedades modernas podem ser entendidos nesse contexto. Mas o cerramento de fileiras dos cidadãos não é tudo. A maioria deles desaprova a emergência de uma nova “classe inferior”. Eles não gostam da pobreza, acham o desem- prego uma violação de seus próprios valores subjacentes de trabalho e realização, e abominam o crime. Essas opiniões não podem ser descartadas tão rapidamente como alguns gostariam, embora argumen- temos que, enquanto o caminho para a anomia é preparado pela impuni- dade, não basta tentarmos restabe- A LEI E A ORDEM 15 lecer as sanções, pura e simples- mente, num mundo em que a anomia possui tantas causas concomitantes. As respostas a essas observações diferem. Numa extremidade do es- pectro, os partidos socialistas tradicionais ficaram cada vez mais divididos entre, de um lado, aceitar o fato de seus partidários haverem também se tornado cidadãos, membros da classe majoritária, e, de outro, a inclinação a adotarem a causa dos que estão à margem, ou mesmo a “classe inferior” em si, por ser a “classe inferior” um coquetel de interesses. Na outra extremidade do espectro os partidos conservadores, em grande maioria, representam ainda a parte superior da classe majoritária. Seus partidários preferem operar “no interior da direita”, mais do que na esquerda. Eles combinam o desejo de manter a economia em movimento com a crença segundo a qual a cooperação entre os grupos sociais constitui a base para a estabilidade, sendo assim uma forte defesa de um estado social possível. Espero que ninguém esteja que- rendo que eu defina o programa de um liberalismo radical, ao fim de uma análise complexa e, pelo menos em intenção, bastante imparcial. É evi- dente que certos princípios libertários permanecem válidos. A aplicação deles a minorias, sejam elas étnicas ou de outro tipo, continua sendo um objetivo primordial. Também é evi- dente que um liberalismo radical teria de ser orientado para o futuro. Ele não pode, e não deveria, resistir a mudanças tecnológicas que estão entre as poucas forças que prometem nos ajudar a arrancar as travas do cativeiro moderno. Ele não pode, e não deveria, resistir ao novo desejo de descentralização, embora o equilíbrio entre descentralização e centralização, entre as necessidades locais e internacionais, possa bem representar uma tarefa especifica- mente liberal. Seria bom ver os liberais na vanguarda na inovação. 4. A SOCIEDADE E A LIBERDADE resposta ao problema da lei e da ordem pode ser colocada numa única expressão: construção de instituições. Não se trata de nenhum remédio exclusivo, mas cons- titui uma resposta liberal e, talvez, a única que merece esse nome. So- mente através de um esforço cons- ciente para construir e reconstruir as instituições podemos esperar garantir nossa liberdade em face da anomia. Seriam as “instituições” apenas uma outra palavra para normas e sanções, talvez normas e sanções “válidas”? Afinal de contas, as Institutiones de Justiniano foram o manual de seu corpus juris, um conjunto de leis e penas em benefício dos estudantes e, é provável, também de juízes. John Locke, ao traçar seu caminho para o contrato social, fez duas A A LEI E A ORDEM16 coisas. De um lado, definiu certas relações privilegiadas — uma com as pessoas, a integridade física do indivíduo, e a outra com as coisas, a proteção da propriedade. Por outro lado, ele se esforçou muito em tentar explicar por que as normas e sanções relacionadas com a violência física e os furtos são importantes. Mesmo no estado de natureza, argumentou, “todo homem tem o poder de matar um assassino”, “um poder” implicando não apenas em capacidade, mas também em direito. Na medida em que se refere à propriedade, esta é fruto do trabalho humano, o qual, por sua vez, é ordem de Deus, e “ele, que em obediência a esta ordem de Deus subjugou, lavrou e semeou qualquer parte da [Terra], anexou assim a ela algo que era de sua propriedade, sobre a qual nenhum outro tinha direito, nem poderia sem ofensa tirá-la dele . . .” Isto nos parece um tanto antiquado, mas o âmago do raciocínio per- manece útil para o entendimento das instituições: define-se um “poder” ou um “direito”; a noção deveria ser restrita a certas normas privilegiadas e, entre elas, seguramente, as que dispõem sobre a proteção da pessoa e certos aspectos da propriedade; e essas são normas para as quais podem-se apresentar razões sobre os fundamentos da ordem social. É importante ressaltar que se trata aqui da proteção das instituições, mais do que de pessoas ou coisas. Trata-se da proteção das normas relacionadascom os fundamentos da ordem social. As normas nos ajudam a entender a noção de construção de instituições. A construção das insti- tuições é a criação e, com frequência, a recriação de normas significativas a partir de seus princípios. Por que valeria a pena defender- se as instituições assim definidas, para não falarmos de sua cons- trução? A resposta é simples: em razão da sociabilidade insociável do homem. As instituições nos protegem da ânsia indomada, de coisas e poder, dos outros. Acima de tudo, elas fornecem a moldura básica onde o “antagonismo” que motiva grande parte da ação humana pode se transformar numa força de pro- gresso. Não podemos ser livres sem as instituições, e a liberdade significa construí-las de acordo com nosso entendimento. Isso ainda nos deixa a questão: quais instituições? Uma política de lei e ordem, acima de tudo? O mínimo que podemos aprender com a penalística moderna é uma abor- dagem cuidadosa dos aspectos práticos da prevenção do crime, penas e correção. Em segundo lugar, não advogamos a extinção de uma abordagem individualizada, compas- siva e psicológica dos infratores, nem a restauração dos princípios formais e do cumprimento estrito da lei. Nosso pleito é por um terceiro ele- mento no processo de concessão de sanções, um sentido de continuidade institucional. A LEI E A ORDEM 17 A construção de instituições cons- titui, é claro, não apenas uma abor- dagem do sistema penal. O próximo passo devolve-nos às “áreas de exclusão”, que descrevemos como características do caminho para a anomia. Uma primeira “área de exclusão” refere-se aos casos em que a lei perdeu seu caráter plausível institucional, por deixar de ser apli- cada. Uma segunda “área de exclusão” é a juventude. Uma socie- dade que leva os direitos dos cidadãos a sério deve envidar todos os esforços para incluir seus futuros membros, mesmo que isso tenha um custo, aliás, de preferência com um custo. Relevantes também são as insti- tuições da democracia. Por um lado, tem havido uma tendência no sentido da “democratização”, como é enten- dida uma maior participação de todos em tudo. Essa tendência foi uma clara extensão lógica dos avanços da cidadania. Mas, como muitas outras extensões de um pro- cesso desejável, produziu contra- dições que tendem a opor-se ao seu objetivo original. Quando uma participação geral é levada além de um certo ponto ela resulta em imobilidade e até na incapacidade de se mover o sistema político. Uma parte da rigidez das sociedades contemporâneas é resultado direto dessa “democratização”. A construção das instituições, nesse sentido, deve se iniciar por dois princípios. A democracia refere-se à busca do progresso num mundo de incertezas. Sua constituição deve tornar possíveis as mudanças e retirá- la dos atos arbitrários de poucos. Isso significa que ela deve criar condições não tanto para a iniciativa como para o controle, e ambos devem se rela- cionar com os direitos e os interesses dos cidadãos. Mas voltemos às “áreas de exclusão” da lei. Existem, em terceiro lugar, as características, distritos e organizações e também ocasiões com áreas de exclusão, que parecem estar fora do alcance das forças da lei. Eles nos levam por uma última vez à questão importante da evolução da comunidade. Aqui, como em muitos aspectos, o liberal andará numa corda bamba e estará sempre em risco de cair de um lado ou de outro. Discordamos de uma abordagem “comunitária” que sustente, contra a falta de leis e de ordem, a idéia de que “uma extensão da participação e atividade democráticas deve ser buscada e encorajada, já que o caos e a repressão são as alternativas pouco atraentes, porém prováveis”. A participação através de “fóruns comunitários” nas “células primárias” da sociedade, visando à educação e à criação de uma “ética comunitária”, assim sem espera, atinge as raízes do crime. O provável é que não o fará. Entregará as tarefas da lei e da ordem em mãos de autoridades subinstitu- cionais. Apoiando-se por demais sobre a sociabilidade do homem, permanecerá exposta aos atos in- sociáveis de poucos, e talvez nem tão A LEI E A ORDEM18 poucos. O resultado será a repressão centralizada — um medo que parece certamente justificável — ou então o uso do poder privado, que é a guerra de todos contra todos, incluindo grupos independentes de justiceiros contra bandos de criminosos. Quem deseja a liberdade precisa ter a coragem de buscar uma terceira via. Esta também poderá iniciar-se no nível da comunidade. Certamente, dever-se-ia buscar tanta descentra- lização quanto possível. Mas nada disso faz sentido sem formas efetivas de policiamento, incluindo, é claro, uma ligação estreita da polícia com as comunidades locais e, acima de tudo, sem uma abordagem da lei e da ordem. Por fim, surgiu a difícil “área de exclusão” dos tumultos de rua. Ela é difícil porque esses tumultos esca- pam, na natureza do caso, à nossa capacidade de lidar com eles. Na realidade, todas as formas de atos incontrolados da massa são um lembrete da vulnerabilidade das instituições. Não devemos, portanto, ter ilusões; não há formas de impedi- los, nem um método para interrompê- los de forma rápida, com exceção de um terror inaceitável vindo de cima. Mais que outros desafios à lei e à ordem, os motins de rua exigem um senso institucional calmo e seguro. Há muitas coisas que não podem ser feitas pela construção das ins- tituições. Por exemplo, ela não pode atingir resultados rápidos. O pro- cesso não substitui também a política econômica e social. A construção de instituições não é tampouco um substituto para o Estado de Direito. O Estado de Direito, no sentido de um conjunto de direitos formais para todos e o devido processo para defendê-los, é uma das grandes aquisições da História humana. É uma aquisição liberal, não no sentido partidário, mas no sentido de pro- gresso da liberdade. A LEI E A ORDEM 19
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