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Lahire, Bernard - Sucesso Escolar nos meios populares as razões do improvável final

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Prévia do material em texto

136 
BERNARD LAHIRE 
SUCESSO ESCOLAR 
NOS MEIOS POPULARES 
As razões do improvável 
Traduçãu 
Ramon Américo V:l.squcs 
Sonia GolJfeJcr 
Editor 
Miriam Gold(eder 
Editor~assistente 
Claudcmir D. de Andrade 
Preparação de texto 
Maria de Fátima Mendonça Couto 
Revisão 
F,hima de Carvalho M. de SOllz::t (cllord.) 
Isa ías Zilli 
Paginação eletrônica 
G&C Associados 
Laura Sanae Dlli 
Capa 
1,,;t hl,1 C lrh:tl1p 
Impresso nas oficinas da 
Gráfica Palas Alhena 
1.9 Sl!ud/uallunard, Paris, 19Y5 
Título orlg-ina l: Tableaux de familles - HeuTs el malheuTS scolaires 
cn milieux populaires 
ISf\N 2 02 02>911 O 
ISBN 8508 06601 5 
1997 
Todos os direitos reservados pela Editora Ática 
Rua Barão de Iguape. 110 - CEP 01507-900 
Caixa Postal 2937 - CEP 0 1065-970 
São Paulo - SP 
TeL (0 11) 278-9322 - Fax: (011) 277-4146 
Internet: http://www.atica.com.br 
e-mail: editora@atica.com.br 
SUMARIO 
Prelúdios ... I I 
\. O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO. 17 
• A estrutura do comportamento e da personJlidade da criança 17 
• Os traços pertinentes da leitura sociológica 19 
As formas fami li ares da cultura escrim, 20 Condições c dispo~ 
siçõcs econômicas, 24 A ordem moral doméstica, 25 As (ormas 
de autoridade familiar 27, As formas (mniHares de in ... cstimcn~ 
to pedagógico, 28 
• A pluralidade dos estilos de "sucesso" 29 
• Singularidade e generalidade 31 
Contexrualizar, 32 Ext'mplos caricaturais. 34 A «ucstãn lia 
equiva lência, 36 A estruturação de objetos singubrcs, 37 Por 
um procedimento experimental , 40 
2. uFRACASSO" E "SUCESSO" . 
• A população pesquisada 
• A percepção escolar dos alunos 
A orJl!m cSClllar das qualidades, 54 Sobre a autonomia e a dis-
ciplina,58 
3. PERFIS DE CONFIGURAÇÕES .. 
• Vari<lções sobre o mesmo tema 
• A elucidação das palavras: à procura de indícios 
O elo impossível 
Perfil I : A distância em relação aos universos objetivados, 79 Per-
fil 2: Uma prisão familiar, 88 Perfil 3: Uma ruptura radical, 97 
A herança difícil 
Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo. 106 Perfil 5: As 
más condiçõcs de herança, 115 Perfil 6: Dois capitais culturais 
indisponíve is, 124 Perfi l 7: Uma perturbada divisão sexual das 
[arefas d()m~sticas . 131 
47 
47 
53 
71 
71 
74 
77 
104 
DlI indisciplina à autodisciplina 
Perfil 8: Recusa às coerções c "bloqueio" em r .... b çãtl ~I tsc ri la, 143 
Pt:rfil 9: A mo nll, a aucoridade e a escola, 155 Perfil 10: A "cscrc-
vinhadora" disciplinaJa , 164 
Sentimento de inferioridade, sentimenw de superioridade 
P .... rfil 11 : U m s .... mimtnto de "inferioridade culntral", 173 Per-
fi l 12: U ma rcencamação sucia l, 181 Ptrfil1 3: Vigi lânc ia moral 
e auxílio 1l1ÚCUO famil iar, 190 Pcrfil14: Um afável confinamen -
to simlx'J lico, J97 
Configurações familiares heterogêneas 
Perfil 15: As conrraJições, 208 Perfil 16: Entre inquisiçij() c indul -
gência, 219 Pt.:rfi I1 7: Uma relação de forç a cultural, 227 
A criança no cemro da famma 
Perfil 18: Uma situação com dupla facc, 234 Perfil 19: A crian-
ça-rc i num rcinll mlxlesto, 244 
Inves timento familiar positivo ou negativo 
Perfil 20: Um superinvestimento esco lar paradoxa l, 258 Perfil 
21: Os limites da ... Icspesa familiar, 268 Perfil 22: O invt~tillle n · 
LO escolar. 277 
Os "brilltanres" sucessos 
Perfil 23: Aqui, tudo é ordem e rcgularidaJc .. ,288 Perfil 24: 
Um,1 vigi lância regular e sistemática, 296 Perfil 25: U m caso 
"ideal", 303 Perfil 26: Uma mili tância f<lmiliar, 313 
CONCLUSÕES .... 
• O mito da omissão parenta I e as relações famíHas,escola 
• As modalidades da transmissão 
O h::mpo e as opurtuniJades dc socialização, 338 Tmnsmissão 
ou cons(T\lçiio!, 340 U m patrimônio cultural mo rto, 3 42 A 
integração soc ial c simbúlica da experiência esco lar, 343 Capi , 
tal escolar e experiênc ia escolar, 344 A const ituiç5o das iJt!n-
{iJaJcs ~exllab, 345 Contrad ições e instabilidades, 346 
141 
171 
207 
233 
256 
285 
334 
334 
338 
• Uma antropologia da imerdependência 348 
A inct:rJt:pcndênc ia. 348 Das estruturas objetivas às est ruHlras 
mcmais, 350 O "interior" e o "exterior", 352 
BIBLIOGRAFIA . 359 
A CRADECIMENTOS 
Agradeço antes de tudo às faml1ias que me confiaram uma /)arte de 
sua exJ)eriência. Espero que es te trabalho, ao evocar situações sociais sem 
nenhum sentimenlO de desprezo nem piedade, /)ossa devolver a cada uma 
delas a dignidade que raramente lhes é atribuída. 
Meus agradecimentos dirigem-se também ao Grupo de Pesquisa so/n-e 
a Socialização (URA 893, CNRS), que contribuiu para a publicação 
deste trabalho nas melhores condições possíveis. A Daniel Thin , que fez 
uma grande parte das entrevistaS comigo , a todos os que participaram 
da pesquisa , a Roger Chartier, Daniel Fa/n-e , Ylles Grafmeyer, Claude 
Grignon , Jean-Claude Passeron, Jacques Revel e Guy Vincent, por 
suas observQ{ões, e, finalmente , a Régis Bemard e Yane Golay, que ama-
lIelmente acompanharam a passagem da relatório de pesquisa inicial 
(Les raisons de I' improbable. "Heurs" e "malheurs" à l'école élémen-
ta ire d'enfanrs de milieux po pulaires - As razões do improvável. 
"Alegrias" e "tristezas" na escola primária de crianças de classes popu-
lares) à re~ão deste livro. 
P enso, :llkb, comu VOCl-!>, q uc I,) qUI! deve 
sohretudo solicitar n os!>a atenção ~iio (l!'> 
!-,'1l1nJc!> I'rublcma~ do mundo c d :l cii!nc i:l. 
Mas, mUll .. ~ "C:;:C', de 11.Ida ~r"c form ular 
o :.imple::. proJl..'lII de ~leJ i car-.,c à 1Il\'cstlJ.!aç:io 
de~ Oll d"tJude gr:lndc prohlema. ~llS ne m 
!oCmpn~ ,,< Ihemm para onde dcvem()~ (IrkntM 
U~ p:l~.,(I~. É ~cmr re 1ll:11S r:lC.lmal. em um 
tr:lha lhn clen tí(icl), lIll'rgull \:l r naqul1u ql!!: 
te mos J i.mle de nú~, nus ubje to::. que sc 
oferece m por ... i nW!>Il\l.l!> ~ nÜ:.:.iJ 1't'~lI Ul ~ :l . 
Se o (I:ermo::. com ~crkJade . ::.clll Idé l.!:. 
rrecom .. c h.J<I~ . !oC 1ll expcct<lIIV,h ex,l~('r:lll:h . 
e:.c ti verm tJ!> Il .. ..lrl c, pode acnlll eü'r que, 
gmç"~ "tJ~ d t~ q llC Ilg<lm llldo a tudo. 
u pequeno : 11 1 gr:tnde , il traba lho que 
C\ 1Il11..~~. ,1 tl1 ( 1~ ~etll nenhum:l prctenSãtl :Ihr:! 
ca rninlw :lll c~t Lldo de gr:mdell proh l t' Ill : I ~ 
(Sigmund Frl.!uJ, llll rudllCtlon li la 
/l5)chmwl)'5i!, p. 17). 
Enrl .... lanlU .. no ... 11\1 gdn 1..·-"'.:(,rh:g:<lJUJ onde 
a frlcçãu t'~I,í :lL1loentc. c onde, portanto • 
.. 110 CUn;..I I~~C ...... !> 1l:'i\1 Ide:l l~ em um certo SCIltLJ,I, 
tIl,l:>, (Imle. e m tme .. , e cau ...... "l disso, n:111 
1l( }t,.le m ().~ ca mmh:lr. ()m, queremo..\'> " ll11mh' lr; 
prec i ~,lml)~, rnrmmo, de fricç flo. VulleUlus 
,)" 1l{)1" llspcrn! (LUJWlg Wlllt..:en~ ll'lIl, 
fllt !f.mgatiom /)hllmfJphlf/H<'s, p. 164.) 
PRELÚDIOS 
su t.'X I ~ I t.' UIll.! fllrTlM dI.' .'0.: d wg.1 1' :lll lllll\'cr ... al: 
O hSCf\'iI T (! Pilrll t.'u l,lr, n;jn .'ulx·rflcmlmentc m,IS 
mmllL I(I",tlll ... 'lltc c e m lk·l:llh ... ·~'. 
P,lr,t t.'llIl1prccndcr 1:.1,1 .Ic Inlxkl mal:> d.l1\\ pr\.'o 
l:1s,"mlo:..lall ll)aqu l Cl1nlOCIU I númcl\~ r.:. I:O:l!<lan,~· 
li)gJl. .. , l:nmtdcrm ,I:> P:trt lt.'Lll.!riJ,t ... k,:. do. ... prtX ... ~· 
:;0:': !l/flor IlUlb J.: /)Cltl) lllJ.Ul' t:!> l ;Í 'ICI"lIl ICl.cndo!, 
Souyla está cursando a 2" série do I" grau. Seu pai, ex-operário 
ua construção c ivil, não-qualificado, está aposentado. Ele e su" 
mulher, dona-de-casa , são analfabetos, dominam com dificuldades a 
língua francesa e têm um conhecimento bastante restrito do sistema 
escolar (de seu funcionamento cotidiano, do desempenho de seus filhos, 
das classes que freqüentam ... ). O casal teve onze filhos e vive na peri -
feria de uma grande cidade . Souyla está indo muito bem na escola. 
Esta descriçiío sumária de uma situação soc ial e escolar, que pode-
ria ser a verbalização de algumas informaçõesextraídas de uma das 
inúmeras fichas de an~í li se de uma pesquisa estatística que tenta 
"explicar" a melhor Oll pior situação escol}1r de crianças de 2i! série 
do I Q grau, segundo um conjunto de indicadores "objetivos" (níveis 
de formação, situações profissionais, lugar onde moram os pais, grau 
de conhec imento do sistema escolar e acompanhamento da escola-
ridade dos filhos, número de filhos na família .. . ), não é ficção, ainda 
que apresente algo de inesperado. O quauro descritivo, por seu aspec-
ro arípico -como, pode,se questionar. uma família que acumula ta.n-
TaS "deficiências" poderia levar uma criança a ter "sucesso" na esco-
la' - pergunta o sociólogo, em busca de maiores explicações. 
Porérn, ao procurar compreender, esse sociólogo confunde-se ainda 
mais. Comparando algumas famílias a partir do conjunto dos atri-
butos ou dos recursos dos quais "objetivamente!> dispõem, não con-
seguirá chegar a nenhuma conclusão: famílias não totalmente IIdes-
providas de recursos", sobretudo do ponto de vista do capital escolar, 
possuem filhos com enormes dificuldade escolares, ao passo que 
outras, cujas cclracterísticas objetivas levariam a pensar que a eSCQ-
11 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
l. ridade dos filhos poderia ser custosa, possuem c ri anças com boa 
e mesmo muito boa situação escolar. Há, portanto, para o soció l o~ 
go, em relação ao que conhece sobre o funcion::unento provélvel do 
mundo socia l a partir de dados estatísticos, como que um mistério 
a ser elucid"do. As pistas parecem, ao menos no início, confusas, e 
a tentativa uc compreensão de situações atípicas, que não nos mO$# 
tram aquilo que poderíamos esperar, constitui um verdadeiro desa# 
fio socio lógico. 
A qucst;;o centra l que moveu nossa pesquisa diz respeito à com-
precnsiío das diferenças "secundárias" entre famílias populares c ujo 
nível de renda e nível escolar são bastante próximos. Semelhantes 
por suas condiçôcs econômicas e cu lturais - consideradas de forma 
grosseira <1 parri r da profissão do c hefe de família -, como é possí-
vel que configurações familiares engendrem, soc ia lmentc, crianças 
com níveis de adapt"ção escolar tão diferentes? Q uais são as dife-
renças inrernas nos meios popu lares suscetíveis ue justificar V;:Jfli:1# 
ções, às vezes consideráveis, na escolaridade das criêlnçêls! O que pude 
esclarecer o fato de que uma pane del"s, que tem probabi lidade muito 
grande de repetir o ano no cu rso primclrio, consegue escapar desse 
risco e até mesmo, em certos casos, ocupar os melhores lugares nas 
c lassificações escolares? Essas são as questões para as quais rentare# 
mos e ncon trar respostas, tcn tando compreender as posições esco# 
lares de c ri anças da 2a série do 12 grau em relação ~ sua si tuação, 
~o cruza mento de configurações familiares específi cas e do espaço 
escolar. Paro se rmos mais precisos. o objeto central de nosso traba-
lho são os fenômenos de dissonâncias c de consonâncias entre COI1# 
figurações familiares (relativamente homogêneas do ponto de vista 
de SUB posição no se io do espaço social em seu conjunto) e o lIni ~ 
verso cscolar que registramos através Jo Jesempenho e comporta~ 
mento escolares de uma criança de cerca de 8 anos de idade. 
A maneira pela qual os professores primários classificam os "fra-
cassos" escolares, ou seja, atribuem a esses acontecirnentos um c()n~ 
texto interpretativo , é re lat ivamente d iferente quanuo julgam ind i# 
vidua lmente os a lunos de uma classe ou quando ju lgam as "causas 
gerais" do fenômeno. Quando os professores fa lam de uma fonua muito 
genérica, as "grandes causas sociais" ton1am~se predominantes. Pro# 
12 
PRElUDIOS 
cedem assim, de cerra forma, à man eira dos soc itS logos que manipu~ 
Iam categorias macrossocio lõgicas. Viveríamos em lima sociedade na 
qua l os pais não "conversam mais com seus filhos", não têm "rnais 
tempo" oll"ma is vontade" por causa de suas ocupações profissionais, 
onde os círculos familiares se tornam "cada vez ma is instáveis", com 
mães solteiras, famílias "implodidas" pelos divórcios, sepamções e situa-
ções econômicas "preCêlrias" (desemprego, salário mínimo de inser# 
ç~o* ... ). Os filhos, em tais situações, "perdem todos os pnrâmetros", 
"não uescnvolvem sua linguagern" e "são abandonados a si pró# 
prios". Quanto aos Pilis, estes deixam de ser "verdadeiros pa is": não 
Jescmpenham -ou não desempenham mais - seu "papel", "omi# 
rem#se" e "não cuidam mais Jos filhos". 
No entanto, quando é preciso evocar esse ou aquele aluno da clas~ 
se, com suas d ificuldades e suas capacidades específicas, seu modo de 
compnrtml1ento e seu desempenho escolar, os professores não man-
têm mais o mesmo discurso. As explicaçf">es se tomam menos segmen# 
radas, menos caricaturais, menos evidentes. Confrontados com algu~ 
mas crianças específicas, apresentam questões premenres: como fazer 
para modificar ou "dcsbloquear" uma situação difícil? Por que tal aluno, 
que era um "perfeito vagabundo", um belo dia começa a Hfuncionar 
melho r", lia intercssar#se mais", ao passo que nunca conseguimos 
fazer n aela por aquele outro? 
Os professores (sobretudo aqueles que estão menos h abituados a 
manipular categori as sociopolíticas) resistem na maior parte das vezes 
às explicaçcles sociológicas em termos de categorias sociais, de gru-
pos ou de classes, de causas sociais ou determinantes soc iais. E res is-
tem, sem dúvida, por algumas (boas) razões. De um lado, encontram 
com regu laridade casos que não se encaixam nos modelos que lhes 
são propostos: "desempenhos" exemplares em meios populares (às vezes 
é o seu próprio caso particular), ou, inversamente, "ciltásrrofes esco# 
laresl1 em meios hurgucses. Por outro lado, além do caráter excepcio~ 
nal de certos casos encontrados, a vida escohu os lev<l ~l tratar os alu~ 
* O"ll,im, IIIlnllll~l .. k· .""",n,.II) (em fr, mc':"~. r .. 't\,lIl1l11l1UII1Um d'llt~'flU/I1.n R~'II ) é 4li;lIlt" g.lIlh.1 
um l.k:!>CUll'n:\.:.li.ltl UlllltJ "'ltírl(H.k"t.-'mrrq.;", (tu t:111,1c, cr.. IIltI.vidlKb tnt;llm~llIt: Ill<lr\.:lfl.lli -
:ad'h do ~"tt:l1l.1 dt: unh:llhtl n.1 Fran~~i.I. El~ !!Ilíl t:1II rurno Je ':;00 J,\IMt:!>. (N.T.) 
13 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
nos caso por caso (com nome e sobrenome), nunca totalmente s imi ~ 
lares entre si, apanhados em um contexto de classe particular, com 
pais, desempenhos e um comportamento escolar si ngu lares. 
O ra, nós, aqui, apostamos que a sociologia (por causa de seu modo 
de pensar relaciona I e por ev itar a absolut ização de certos traços 
sociais, por sua capacidade específica de distanciamento em rela~ 
ção a realidades de interdependência, que, normalmente, provocam 
sobretudo atitudes de engajamento ') pode ajudar a compreender casos 
específicos (não especia lmente no sentido de I'cxcepcionais") sem 
Jispersar as razões ou disseminar as causas ao infini to . Notemos que 
encontramos aí um belo exemplo de elo entre senso comu m e saber 
científico, q ue, dados os problemas epistemológicos, metodológi-
cos e teóricos levantados pe la pesquisa, comp lica de maneira s in ~ 
gu iar o debate sobre o tema. 
Q uando queremos compreender "singu laridades", ucasos parti~ 
culn res" (mas não necessariamenre exemp lares), parece que somos 
fatalmente obrigados a aba ndonar o plano da retlexão macrossoc io-
lógica fundada nos dados estatísticos para navegar nas águas da 
descri ção etnognlfica, monográfica. E, gera lmente, a questão do elo 
o u da articulação entre estas duas perspectivas não se coloca nem 
àqueles que, etnógrafos ou estatísticos convictos, fa lam do mundo 
de modo diferente, mas com o mesmo sentimento de dar conta do 
essencia l. O ra, em vez de fazer de conta que a compreensão de 0 1-
50S s ingulares acontece po r si só, co locando~nos de imediato e in ~ 
genuamente do lado daqueles para quem a questão da representa-
ção ou da generalizaçãon}'io causa nenhum problema, optamos, no 
quadro de uma antropologia da interdependência, por estudarexpli-
c itamente uma série de q uestões (singularidade/generalidade; visão 
etnográfica/v isão estatística; microssociologi:l/macrossociologia; 
estruturas cognitivas individuais/estruturas objetivas ... ) a respeito 
de um objeto singular e limitado. E, sobretudo, questionar a práti-
ca - muito criticada nos estatísticos - que consiste em juntar, em 
uma mesma categoria, realidades consideradas diferentes, e que, log i ~ 
camente, implica sncrificar sua singularid ~lde. 
Além disso, durante um percurso de pesquisa que acentuava as 
modalidades concretas da socia lização familiar, encontramos múl-
14 
PRElUOIOS 
1 iplos exemplos que possibilitaram compreender como o capital cu l-
tuml parenta I (ou de forma mais ampla , familiar) podia ser trans-
mitido, o u, ao contrário, não conseguia encontrar condições para 
ser transmitido. Ou ainda, como, na ausência de capital cultural ou 
na ausênc ia de uma ação vo luntária de transmissão de um capital 
cu ltural existente, os conhecimentos escolares podiam, apesar de 
ruJo, ser apropriados pelas c rianças. Mas, afinal de contas, as pró-
prias noções de "capital cultural" e de "transm issão" Oll de liheran, 
ça" - metáforas úteis quando comentamos quadros que cruza m 
v(Hilíve is - deixam de ser pertinentes quando, ao mudar a escala 
de observação, voltamo- nos para a descrição e análise das modali-
dades da socia lização familiar ou escolar, no âmbi to de uma soc io-
logi" dos processos de constituição das disposições sociais, de cons-
trução dos esquemas mentais e comportamentais. 
A título de aviso ao leitor, gostaríamos de ressaltar a escolha, urll 
pouco particular, de determinada escritura sociológica. Após termos 
precisado o pontO de vista do conhecimento adotado, descrevendo 
em seguida a população analisada. e antes de propormos algumas con-
clusões a serem extraídas da exploração sociológica feita, apresenta-
mos uma série de "perfis familiares" que constituem o corpo principal 
deste livro. O perfil, como gênero científico livremente inspirado no 
gênero literário, comporta duas ex igêncirls fundamenta is: de um lado, 
baseado em "dados" e preocupado com a crítica dos contextos de sua 
produção, é a pintura, diferente portan to do discurso literário, de um 
modelo particular existente na realidade. Por outro lado, deve deixar 
transparecer claramente a maneira específica de pintar. O ponto de vista 
a partir do qual o pintor observa e explicita o mundo. 
Exceto suas ambições científicas principais, a qualidade deste tra-
balho, se existe, reside primeiro e antes de tudo no cuidado dispensa-
do a cada uma das diferentes fases pnlticas da pesquisa. Nossa amllise 
não somente apoia~se em dados ricos e suscetíveis de serem cnlz~Klos 
(entrevistas com 26 famílias em suas casas e notas emognificas sobre 
cada um dos contextos das entrevistas, fichas com infonnaçóes esco~ 
lares, caden10s de avaliação, entrevistas nas escolas com cada uma das 
15 
SUCESSO ESCOLAR NOS ME IOS POPULARES 
27 crianças, entrevistas no começo e no final do ano escolar com os 
7 professores envolvidos, entrevistas com 4 diretores de escola), mas 
cada etapa dessa pesquisa foi conduzida com a preocupação particu-
lar de se fazer uma grande reflexão sociológica em cada relatório. Às 
vezes, quando estes relatórios deviam ser dados "às cegas", suas con~ 
seqüências sobre o trabalho eram medidas logo em seguida para com-
preendermos o que havia sido feito, ainda que não o soubéssemos sem-
pre no próprio momento. O conhecimento sociológico só pode ser cria-
do através de um trabalho permanente de retorno aos protocolos 
anteriores da pesquisa, a partir de aquisições progressivas, gmças aos 
protocolos de pesqu isa que se seguiram. Trata-se neste caso de um avan-
ço através de um retomo reflexivo sobre os momentos passados do tnl~ 
balho, sendo que as diferentes etapas da pesquisa não estavam jamais 
separadas, como nos esquemas hipotético-dedutivos escolares. Tudo 
é válido, a qualquer momento do trabalho, para compreender melhor 
o que foi feito em qualquer outro momento. 
Portanto, estamos inclinados a pensar que a qualidade princi~ 
pa i do sociólogo não pode ser a de "intérprete" final, mas sim uma 
qualidade de artesão, preocupado com os deta lhes e com o ciclo 
completo de sua produção, introduzindo sua ciência nos momen~ 
tos menos "brilhantes" mas mais determinantes da pesquisa: cons~ 
tituição da popu lação a ser entrev istada, construção da ficha de entre-
vista, qualidade da relação de entrevista, trabalho de transcrição 
da entrevista, notas etnogr:'íficas sobre o contexto ... Em vez de refle-
tir assim que acabar a pesquisa, o sociólogo deve fazê~lo a cada ins~ 
rante e, particularmente, naqueles momentos banais, aparen temen~ 
te anódinos, em que tudo leva a crer que não há nada a se pensar. 
NOTAS 
16 
E. Durkhell11, " L1 .~ciellcc posilivl' de la mllr:11c en AlIclll.lgrll''', in Tl'Xres . 1975, p. 333. 
L. Willgcn~ (,.'m, hl1'l:sugmion., phi/oslj/,nu/ucs, 1986, ]1 . 141 . 
N. Élra ... , EngagCnll.'1l1 1.' 1 di.Hancia/lrm .. .• 199 3. 
1 O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO 
A ESTRUTURA DO COMPORTAMENTO 
E DA PERSONALIDADE DA CRIANÇA 
A CHrulUnt c fi form:l du CQml'l<,rra mcnt o de um 
indivfduo ,k'pcnJclll dn C,lrulllt<'1 de suas rcb-
çc1cs com os nlllms m~livídllo:;-, 
A personalidade da criança, seus "raciocínios" e seus comporta~ 
mentos, suas ações e reações são incompreensíveis fora das relações 
sociais que se tecem, inicialmente, entre ela e os ou tros membros 
da constelação familiar, em um universo de objetos ligados às for-
mas de relações socia is intrafamiliares. De fato, a criança constitui 
seus esquemas comportamentais, cognit ivos e de ava liação através 
das formas que assumem as relações de interdependência com as pes-
soas que a cercam com mais freqüência e por mais tempo, ou seja, 
os membros de sua família!. Ela não "reproduz", necessariamente e 
de maneira direta, as formas de agir de sua família, mas encontra 
sua própria modalidade de comportamento em função da configu-
ração das relações de interdependência no se io da qual está inseri-
da. Suas ações são reações que "se apóiam" relacionalmente nas ações 
dos adul tos que, sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de com-
portamentos e de representações possíveis para ela. 
Se, por um lado, temos tendência a reificar os comportamentos 
das crianças em traços de caráter ou de persona lidade, a sociologia 
deve lembrar, por outro, que esses traços não aparecem em um 
17 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
ncnte ,IS c rianças em situação de .. fr.Ka. ... '>I.J" , l'I idade mó.liil de enrr.IJil no maternal é de 
.1 :ml~ e I) meses. "Os a lunos que se Il\!ncfid~·u",lm de lima escolariJ<tJe ma is longd no 
mmem al uhlêm melhores rcsuhl'ldos~ubucs no finoll da pri·t:';l.Cllla", escrevem A . Min· 
gl.lar c M. RII,:h arJ, E' -t./{lla rion tWs ac:til.li ris J.... rt'~duratioll ... , I 'NO, p. 49. Isto 1'\<10 sil,'I1i-
fic;) nccC~<;;'lri<lmCn l e I.{lJe ;l escOL.1 rn:.ltt"rnal i: (aus:! de um mc:lh" r ":.UCe.'ill(l" ('scolar. A 
('ntr..ua no maternal pode.ser também um ioJit::aJ nr da reb çào dos ['<I is cClIn ~I escola e 
si~nifkat 4UC suas práticas s..x:i .. lizadnnl." j:\ .s:.'\n I r.lhalhnda.~ tendo como preocup'lçiio a 
t"S(olil. Porem, em uma .série de [X'rfis, consratnnwl.'; que a frC4íiência IllI escnb maternal 
dumnle ao menos 2 anos permite à c ri:mça travar cunhcci mentu com : L~ 1'CS!õ.lS de com-
pt\rtamentu, (Um um;, política disciplinar, com prátic<ls ôc Iinl,'lIa~cm, etc., pouco comulti 
na f.uuília, e niiu ~rJer tempo na pré-escll la arr\"ndemJo esses h.tbitos e:'<':lllarcs. 
I I P. Fmu.:onnct , "L'ccuvre pedagogi4ue de Émilc Durkhcim", 1989, p. 26. 
II G . Vincent. L'éco/e primairi! françnise , 1980, r.164. Seria ncc('ss~do dCi'iCnv\)lvcr aqLli ns dos 
protllnJos enrre " conSTituição dt) E~tadL) ffiCldcmo, li monorôlkl cSTaml da vinlcncia k'gí-
tima, a Jominaç~ ll lcgill r"tcional, .. s regras impe;.'iO.1isc o.~ rn)(,;es.~us Je intcritlri %.'\Ção do con-
Ir'1l le Jas eulOÇÕt:S 4UC pcw.lemos esrabelecer atta .. ,'é; das (lhr .... ~ J e Ml.IJ( Wchcr e Nurhe" Élias. 
1I DI.) mesmo modo que Rngcr Charrier It'nra f(.·comliluir I) Ic iTtlr c :l Idtuõ.l implid ros, 
insc ritos mlS estruturas materiais dos livro...: da "Bihlim heque Bleu" e visados re los ooi. 
lores (fuian!)s a partir do século XVII. Cf "Du livre au li re", 1985, p. 62-88. 
14 EoollulrUm à 1'(II(rc!i! ou CEl.. ., liNI, p. 6. 
IS Ihid., p. 20. 
16 M. Wd~r, Éwnomie e'1 sociéré, 1971 , r. 2]1. 
17 IbiJ., p. 225. 
18 Évaluation lI. 1't.'TItrée au CE2 .. , p. 20. 
19 Ele niiu ~e reduz ,l isto. É i).,(ualmeme um aluno que sabe não ultrarasstl t () lempo que: 
lhc é daJ(), qu\,' reconhece <lS expres.o;tjcs wrbais J o tempo, distinl;:lJC os texttJs rc10s rndi-
ccs formai .~, ."!lhe. curiar exatamente um text!), concordar ~ujeilO e verbll, eXImir uma 
n .. 'grn a p.artir Jllllhsc.rv'lçfKI de um exemplo. ele . QuiSl'mtll>, ptlrém, i n., i ~tir S(.lbre os aspec-
tos menos .... isfvc is. 
lO L. S. V."golski , Pt'Jtséeedangage, 1985. p. 281. 
11 B. bhire. C U(luTe écrirc er inégalüés .scolaires ... 
lZ Uma pro(cnnf;\ Jll lona de Educação Prioritária da ciJ atl l! de Brun-P;ui\ty. 
1 ~ As nt,....:L .. lil~'l.Ií~t'OS pcdaJ..lÓgica~ chegam a forçar um rrofessor a corril,tir-sc: !.I:U<lndn durnn-
tI." uma entre .... ista a p<llavm "rel,,'Ta" lhe escapa ..:omo num lart:iu: "O respe ito us regrJs, 
inslruçf>es. se vocês nãn l)uefl!m dizer regras, pois !ltÜJ tU.'W .~ dh.l'T 'n.·~r.ls·. É uma pala-
vra fora de moda, dcv\!mus Jiz~r instruçflc:s, li respeitu à;o; instruçiks". 
70 
3 PERFIS DE CONFIGURAÇOES 
VI\HI I\<;ÕES SOBRE O MESMO TEMA 
( :"mo obtivemos os perfis que vamos mostrar adiante? Como 
i< ,,.a111 reconstru ídas essas configurações familiares nas quais esta-
V,IIII inseridas as crianças? Se o perfil sociológico, como gênero de 
,·.".,. i,a c ientífica, trata de uma realidade social e realmente visa-
l IIIHO discurso não .. literário que se apóia nos dados e se preocupa 
, " 111 " crítica dos contexros de sua produção - a uma verdade rela-
"va, também deve deixar aparecer a maneira específica, o estilo do 
"desenhista". Neste trabalho de construção, esforçamo-nos, portan-
' '', para organizar sociologicamente, a partir de uma construção par-
,ir " l"r do objero, o material oriundo da observação de realidades sociais 
n·lmi~amente singulares. Com isso produzimos texros de configura-
.JIl'S singulares; textos que, no entanto, não são isolados entre si por 
dllas razões ao menos: por um lado, trabalham com as mesmas 
orientações interpretativas, e, por outro, o texto de cada perfil 
,bempenha um papel no texto de todos os outros perfiS'. 
Dessa forma, fizemos com que o trabalh o soc iológico progre-
,lisse com avanços e recuos, o que nos permitiu, finalmente, aban-
.lunar o gênero monográfico puro. Na realidade , nossa forma de 
proceder n ão negligenciou a singularidade de cada si tuação, mas 
sobretudo não se contentou em fazer descrições ideográficas puras, 
sem comparações, que traem a ausência de uma orientação inter-
pretativa claramente definida. O que procuramos são invariantes 
nu invariânc ias através da análise de configurações singulares t ra-
radas como variações sobre os mesmos temas. 
Ao escolher a forma científica do texro, qu isemos ultrapassar as 
aposições teoria/empirismo, interpretação/faros ... e apresentar à lei-
rura fatos - teoricamente - construídos. Dessa forma, procura-
mos encarnar nesses perfis a nossa lei tura sociológica das situações 
sociais, para demonstrar claramente que os casos particulares na-
71 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
tados não passam de sínteses orig inais de traços (ou características) 
igualmente genéricas. Evitar a explicação unilateral através de um 
facor, ou, de modo mais geral, de um tema predominante não sig, 
nifica, na realidHde, que nos percamos em um nevoe iro de causas. 
Trata-se somente de, ao centralizar o o lhar sobre objetos mais pre-
cisos, tentarcontextualizar o efei to de ptopriedades ou de traços per-
tinentes de amllises absolutamente gerais, exatamente os que encon, 
tramas nas pesquisas estatísticas. 
Se ti véssemos abordado separadamente troços, terfmnos perdido 
de vista o que nos parece o mais importante a destacar, o u seja, que 
esses traços (características, temas) se co mbinarn entre si e só têm 
sentido sociológico, para nosso objeto, se inseridos na rede de seus 
entrelaçamentos concretos. Ao contrário do que se poderia pensar 
costumeiramente, é exatamente nos perfis de configurações e não 
em aná lises que desenredassem o que tínhamos, conscienc iosamen, 
te, enredado que encontraremos a interpretação dos fatos. Nossa preo-
cupação foi a de não destruir demais as lógicas práticas com suas múl-
tiplas coerções simultâneas e embaralhadas (lógicas nas quais somos 
constantemente surpreendidos quando precisamos adotar essa ou aque-
la orientação, fazer uma "escolha" e não outra ao longo de nossa vida 
cotidlana)l, e não a de fazer uma le itura da rea lidade socia l na tin, 
guagem das variáveis e dos fatores explicativos. 
O fato de os diferentes membtos das famílias contextualizadas 
ag irem COlllO agem, de seus filhos serem o que são e comportarem, 
se como tal nos espaços escolares não é fruto de causas únicas que 
agiriam poderosamente sobre eles. Na verdade, estão envolvidos num 
conjunto de estados de fatos, de dados cujos comportamentos práti-
cos cotidianos não passam de tradução: traduzem o espaço potencial 
das reações possíveis em função do que ex iste em tennos inter~huma~ 
nos. Qualquer modificação da constelação de pessoas (e portanto 
dos traços familiares, das propriedades objeti vas ou das dispoSições 
incorporadas), da estrutura de coexistênci a, pode leva r a uma 
transformação do comportamento da criança. Mas nenhuma carac, 
terística em si explica este componamento. Ao contrário da com, 
preensão descontextualizada das causas do "fracasso" ou do "suces, 
50", a reconstruçiio das pressões socia is re lacionais concretas que 
72 
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES 
' (- (,:xcrcem sobre as crianças singulares procura rest ituir os deter, 
1111 11!"mOS sociais re lacionais de forma mais próxima da Illaneira como 
' tO .Iprc~c ntam a e las. 
t :()mo observaremos várias vezes nos diferentes perfis, os profes' 
'1IrL.·~ tendem, quando falam de casos particulares, a reter apenas um 
II , IÇO, um elemento da vida da criança (ser canhoto, ter sido ope-
I.ld" '111'" vez, ter um problema de saúde ... ) ou da família (família 
IlHll1t1pmenral, pais desempregados que vivem com a aj uda mínima 
d" Estado ... ), para convertê- lo em causa do seu problema escolar. 
( :ll l'l rr,l esras visões espontaneamente isolac ioniscas e absolutistas que 
"l' kcionam um traço - às vezes físico -, o isolam do contexto no 
qua l desempenha um papel e lhe conferem, de forma mágica, o 
pOl..ler exclusivo de explicação, quisernos afirmar a pril11:lZia do todo 
.... uhre os e lementos, das relações entre as características sobre as 
l-aracterísticas per se. E mais uma vez evocaremos Norbert Élias, 
qU<lndo defende o procedimento sintét ico (ou sinóptico) que con-
"Jcra a especificidade das relações complexas entre diferentes ele-
mentos, contra os proced imentos exageradamente ana lít icos e ato, 
lIli,w·· . Nes(;l segunda via, elementos considerados em configurações 
\Ir relações mútuas "são abordados como capazes de conservar suas 
parricuh-uidades distintivas quando são examinados isolada e inde, 
pcndentemente de qUê'llquer outro contexto"!. 
É pteciso, conseqüentemente, ressaltar o fato de que o agrupa-
mento dos perfis porremas - que parece vir contrariar a lógica das 
va riações sobre os mesmos temas - operou,se com a tinica preo, 
cupação de dar ao le itor uma pausa para respiração. Assim sendo, 
optamos por uma mane ira particular, entre outras poss íveis, de jun, 
tar os perfis. Mais ou menos como nas experiências pSicológicas com 
unnge n , em que, dependendo do o lhar, " indi víduo pode distin-
guir rostos ou um vaso, um jovem ou uma vclha senhora, etc" nosso 
agrupamento é apenas uma entrada possível na realidade das COIl' 
figurações fa miliares singulares sociologicamente coru,rruídas. Reun i-
mos casos na med ida em que distingu imos neles, particularmente 
hem , certos traços ou conjuntos de traços, mas isso n~o significa que 
estes estejam ausentes dos outros perfis. Além disso, ce rtos aspec-
tos prese ntcs na primeira parte (por exemplo , as pní.ticas de escri , 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
ta) são tratados apenas no interior dos perfis e nossas conclusões 
evidenciarão outros tipos de relações entre as diferentes configura-
ções famili ares (por exemplo, as diferenças segundo o sexo do 
aluno). 
A ELUCIDAÇÃO DAS PALAVRAS: À PROCU RA DE INDíCIOS 
NJ(ll'XI~tem C(Ib.; I.~ Itnpurt,IIllC:' 'Ille, em \..t·rta:. 
CIIllJI~~ I)c., e Ctn ccrtn~ n U HlICnrll~, tll .tnifl'lll:lm-
~c :ll'e n :l~ por Ml\flis mui to (rac'I~! 1 ... 1 E, cnqu:-m-
h ) JUIZ,:'In f; ,: .. ' r Ull lot invc.~flW1Ç;iu ',uhrc um aS1>as-
1>l n,lr(l , vod: ""rera o 4U~! Que o ;L .... ~,b.'>IIlU lenha 
JCIX .• JIl ~U,I fOlOgrafltl c seu cnJcrq;(1 no lugar 
do lrUlIe, ou VllLê dcve ~ cnmCnt ,lr, I)«el>.."t-
n.unentc. p.ui1 JCl>cohnr .1 iJcIltIJ •• dc du t.:rnni -
110M). Lom mdíclll" em ~cr.11 milito fr:ígcl!l c 
in" lg lllfll.;;mt~ ! N.11I dc~pre:emC\'l , pt.lrl .mto, U~ 
Jl!..""'ILlcn,\', llin.lls: ele .. I"-Idem Ilt.b colnC.lr n" I n -
Ih,1 de I,;OIS.\,) nloll~ IInptl rt .lIltC:'\ 
Antes de tudo é necessário lembrar que a e ntrevista não deixa 
transparecer uma infonnação que existiria previamente, em uma fonna 
fixa, como um objeto, antes da própria entrevista. Entre o sociólo-
go e o "discurso da entrev ista" não existe a mesma relação que entre 
o historiador e os arquivos. As palavras não esperam (na cabeça ou 
na boca dos entrev istados) que um soc iólogo venha recolhê -Ias. Só 
puderam ser enunciadas, formuladas, porque os entrevistados pos~ 
suem disposições cu lturais, esquemas de percepção e de interpreta-
ção do mundo social, fru tos de suas mélltiplas experiências sociais. 
No entanto, suas formas, seus temas, seus limites de enunciação 
dependem também da própria forma da relação social de entrevis-
ta, que, neste caso, desempenha o papel de um filtro que permite tor-
nar enunciáveis certas experiências, mas que impede o surg imento 
de outras que implicam certas formas lingüísticas e desestimulam sis-
tematicamente outras ocorrências, etc. Como escreve Norbert Élias, 
"o comércio com os outros desperta no indivíduo [ .. . J pensamentos, 
convicções, reações afetivas, necessidades e traços de caráter que lhe 
pertencem, que constitue m seu 'verdade iro' eu e através dos quais o 
74 
PERfiS DE CONfiGURAÇÕES 
I~cido das relações do qual emerge e no qua l se inscreve se expri-
me";. O traba lho sociológico consiste, portanto, em tentar recons-
I r\lir as formas de relações sociais que estão na origem da produção 
,Ie informações liberadas no âmbito de uma forma de relação social 
e~pec ia l : a enrrevista. 
O utra questão central: teríamos acesso, através da e ntrevista, à 
práticas, ao real, à verdade destas práticas? Para nós é evidente que 
só a observação direta das práticas permite cons ide rá~ l as com a 
Imagem que o pesquisador fornece ou que produz por sua própria 
presença (problem>\ tica teórica, ficha de observação das práticas, 
condições da observação, o papel do observador na produção dos 
comportamentos observados ... ). A partir tio mo mento ern que esta~ 
mos tratando de discursos, não podemos pretender ter acesso às pró-
ncas. lsso porque, primeiro, existe aquilo que temos o hábito de cha-
mar, hoje , de "efeitos de l egitimidade'~. Q uando estamos diante de 
um objeto ou de uma prática cultura l que aconrece em um IInive r~ 
Ml cu ltura l diferenciado e hierarquizado (onde alguns produtos são 
n,"is legítimos que outros); quando, além disso, a pessoa que res-
ponde a lima pergunta referente a esses objetos ou prát icas partici ~ 
pa mais o u menos desse universo, com uma consciência mais ou 
menos clara da dignidade ou da indignidade cu ltural de certos obje-
tos, de certas práticas, podemos estar, então, diante de efeitos de 
legitimidade. O entrevistado corre o risco de subestimar (ou de não 
mencionar) as pnhicas que percebe como menos legítimas, e de supe-
r~stima r as práticas que considera mais legítimas_ O risco aumenta 
quando - e é o caso desta pesqu isa - a situação de entrev ista, pela 
maneira como os entrevistados foram avisados (através de um bilhe-
te enviado por intermédio da escola), pelos temas abordados (lei-
tura, escrita ou escolaridade das c riançasL coloca os entrevistados 
em uma situação de tensão em relação ao que consideram como nor~ 
mas legítimas. Para muitos pais, fomos identificadns comn profes-
sores preocupados em conhecer o meio social nnde vive a criança . 
Da meSll13 forma, muitas c rianças entrevistadas querem agradar ao 
e ntrevistador, e apresentam~se com todas as qualiJaues possíveis. 
É necessário, assim , decodificar a e ntrev ista como ° resultado de 
um processo de construção, pela criança, de uma imagem de si e de 
75 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
sua família que e la pensa ser, socialmente, a mais conveniente pos-
sível aos olhos de um adul to estranho que veio entrevistá- los den-
tro da escola, com a autorizaçãn do professor e do diretor. 
Como enfrentar uma situação desse tipo? Devemos considerar 
que a pesquisa é deturpada em princípio e que não poderemos 
nunca aringir a verdade social dos entrevistados? Na verdade, as coi-
sas não são tão simples assim. Antes de tlldo, lima parte do traba-
lho (da profissão) do entrevistador consiste justamente em limitar 
o máxi mo possível os efeitos de legitimidade através de sua parti-
cipaç iio ativa na entrevista e ofuscando sua pessoa em prol da pala-
vra e da experiência dos entrev istados. Isso implica não colocá-los 
em sinmção de humilhação cultura l e, ao contrário , isentar de culpa 
o~ que se autocensuralTI durante a entrev ista por expressões do tipo: 
"E verdade que eu dev ia ter feiro isso", "Não sOu muito evo luído". 
ou com entonações que demonstram que eles "se sentem diminuí-
dos" diante das perguntas. E também os entrev istados nem sempre 
estão na defensiva durante a entrevista; nem sempre estão preocu-
pados em mostrar uma boa imagem ou falar a coisa certa. E mesmo 
quando chegam a fazê-lo, isso nos fornece uma importante infor-
mação sobre sua relação com a cultura legítima e com a escola. Mas 
uma entrev ista nunca é ho mogênea. e mesmo o entrev istado mais 
preocupado em dar o que considera como "respostas corretas" mos-
tra-se mais eloqüente a respe ito de certas práticas (o que denota que 
contro la certas práticas melhor do que o utras, que é mais ou menos 
apaixonado por esse a Li aquele tema), pode parecer dizer "branco" 
pe lo discurso e "negro" pela entonação e as mímicas que faz quan-
do enunc ia "branco". Para aquele que quer vê .. las, mil pequenas co i-
sas trilem os graus de fabulação dos entrevistados sobre os diferen-
tes pontos abordados'. 
Além disso, não raro há outras pessoas presentes durante a entre-
vista. Marido e mulher, mãe e irmã, marido e cunhado, pais e filhos 
podem estar juntos durante um certo tempo, em seguida alguém sair 
durante a entrevista, etc .. e as variações do discurso, dependendo da 
presença desse ou daquele protagonista da cena familiar, deixam 
transparecer as contradições, as fabulaçõcs,as o missõeS'. Finalmente, 
e mui to importante, nos outorgamos a possibilidade de cruzar as 
76 
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES 
m/armações oriundas dos professores, da criança (entrevistada sozi-
nha na escola) e das famílias: a multiplicidade dos índices e das 
Informações comparáveis permitiu reconstruir pacientemente con-
lextos sociais e razõcssocia is pertinentes para as quais o efe ito de legi-
r imidade funcionou em determinados momentos. 
Como conclusão, fica claro que o problema não é, definitivamen .. 
te. saber se os entrevistados disseram ou não a "verdade", mas tentar 
reconstruir relações de interdependência e dispos ições sociais prová-
vt.:! i~ através das convergênc ias e contradições entre as infonnações ver-
hrlis cle uma mesma pessoa, entre as informações verbais do pai e as 
tê lrncciJas pela mãe Oll pela criança, entre as infonnações verbais e as 
pi-lnlvcrbais, Contcxtuais ou estilíst icas. etc. Com objetivos bem dife-
rentes, o método de trabalho do sociólogo comporta, no entanto, 
certa analogia com o do detetive que busca indícios, "detalhes reve-
Lldores", confronta-os. testa a pertinência de uns em re lação aos 
llutrOS, para conseguir reconstruir lima realidade social ... . Portanto, é 
L'nfrentanclo a questão da entrevista como discurso não-transparente 
que poderemos ter uma oportunidade de reconstruir as práticas efeti-
vas. Ou melhor, as disposições sociais efetivas que estão no princípio 
dos discursos proferidos. 
O elo impossivel 
Havia i llg(l d"'l~~1 r:lnh\\ illdl;;'iCrit rvcl. lIm;) ror .. [ 
dCMlTIl'n l :I\,':il 1'1' . 
Nos perfiS familiares aqui reunidos, que demonstram um elo 
Impossível entre o universo fam iliar e o uni verso escolar. os pais são 
originários de países estrangeiros e têm lima relação difícil com a 
língua francesa. Porém, a origem estrangeira e o frágil domínio do 
francês não são suficientes para expl icar as situações delicadas dos 
fi lhos ( ver os Perfis 13,14 e 23, onde estas duas características não 
impedem o bom desempenho escolar) . Os trabalhos sociolingüís-
ticos estabelecem bem que não existe uma relação de casualidade 
simples entre "língua" e "d ificuldades escolares". Como escreve 
John Gumperz para o caso dos Estados Unidos, 
77 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
... se se tratasse apenas de diferenças lingüíst icas, poderíamos espe~ 
rar que crianças de cultura chjncs~l e japonesa tivessem maiores difi~ 
cu Idades, dada a diferença enorme entre seu sistc ma gramatica l e 
o ing lê~. Mas não é o caso. As estat ísticas COncernentes aos desem~ 
pcnhos escolares most!am que os imigrantes chine~es que chega-
ram recenremente da Asia conseguem, em geral. se &'l ir melhor que 
os que nasceram nos Estados Unidosll . 
Quando falamos de língua ou de cultura, passamos imeuiata -
mente a impressão de que existem fronteiras intransponíve is 
entre as diversas línguas e cu lturas. Mas é preciso lemb rar, con-
tra o empiri smo . que os esquemas soc iais mentais, as formas 
socia is o u os processos sociais mais fundamentais (por exe mplo, 
os processos de objetivação, de codificação, de teorização, de 
formalização, de racionalização, de burocratização, de escolari-
zação ... ) transparecem, na maior parte das vezes, nas línguas, nos 
costumes. nos traços culturais próprios aos grupos soc iais. sobre~ 
tudo quando estes são soc ialmente definidos " . Dessa forma, dois 
seres sociais escolarizados em sociedades muito diferentes sob o 
::lngulo de suas tnldições nac ionais, culturais, lingüíst icas, políti~ 
cas, religiosas, e tc. estão mais próximos entre si do ponto de vista 
cognitivo que os membros não~esco l a rizados de suas respectivas 
sociedades". 
A articulação das configurações familiares e do universo esco-
lar, nesta série de perfis, é difícil de se realizar por conta da grande 
disrilncia cultural ("cultural" deve se r entendido aqui no sentido 
dos processos, das formas sociais ou dos esquemas sociais mentais) 
que os separa. Os pais, às vezes. estão vivenciando uma rupwra em 
relação aos universos ocidentais da escrita (escola, burocracia admi -
nistrativa ... ). Podem, como reação a seu universo soc ial atual, opor 
uma legitimidade familiar (moral, religiosa) à legitimidade da ins-
tituição escolar (a família e seus valores podem inclusive tomar-se 
a única referência em relação a um mundo exterior julgado mau e 
hostil em sua globalidade), operando dessa maneira um fechamento 
da famíli a sobre si mesma. Podem, finalmente, por um trabalho 
de interpretação de um universo cujos fins e intenções lhes pare-
cem incompreensíveis e ao mesmo tempo hostis, esta r desenvol~ 
78 
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES 
vendo uma concepção maquiavélica do funcionamenro da escola 
francesa considerada deliberadamenre segregacionista em relação 
aos filhos de estrangeiros. 
É mais difícil inserir rodas estas configurações familiares, enquan-
to redes de relações de interdependência, nas formas sociais legíti-
mas, do que as famílias mais despossuídas, mas que não são oriun-
tias da imigração. As experiências sociais anteriores vividas pelos 
adultos em universos culturais religiosos, administrativos. po líticos, 
econômicos muito diferentes não as ajudam a se orientar com faci-
lidade nas novas formas de relações sociais. Estes percursos de imi-
gração são casos dolorosos de desemaizamento ou de adaptação difí-
cil a novas situações soc iais. Revelam muito particularmente o que 
escapa ao olhar comum quando tudo parece ser ev idente, ou seja , 
as condições históricas necessárias para que as formas de vida social 
possam ser vividas sem tantos choques. 
• Perfi l I : A discância em relação aos universos objerivados. 
Mehdi M .. nascido nas ilhas Comores, ÁfriCll, com três anos de atraso na 
escolaridade (chegou recencememe à França) , obcC\le 3,4 7UC avalillfão. 
Quando fomos marcar a entrevista, o pai nos recebeu vestido com 
calça social e camisa branca. Muito cordial, parecia estar a par do 
bilhete que lhe encaminhamos por intermédio da escola. Não sabe 
° nome do professor, só o do diretor ua escola. Na casa ressoava uma 
música reggae, razoavelmente alta. 
No dia da entrevista fomos recebidos pelo pai na presença de 
Ulll amigo que assist iu a toda entrevista sem intervir. O pai estava 
tomando conta dos dois filhos mais novos da família. Durante a emre-
vista, chegou um cunhado que era professor primário nas ilhas 
Comores e que fa lou muito, a pedido do senhor M., a princípio ("Ele 
va i explicar ma is melhor qui eu"), e, em seguida, cortando- lhe 
oportunamente a palavra. Fo i mais difícil obter a palavra uo senhor 
M. enquanto seu cunhado esteve presente. Na verdade, muitas pes-
soas passaram pe lo apa rtamento durante a entrevista, entre as quais 
um amigo, o cunhado e uma vizinha que entrou diretamente sem 
tocar a campainha, dizendo: "Oi, pessoa l!". Quando a mulher do 
79 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
senhor M. vo ltou (estava em um curso de alfabetização), fi cou um 
pouco conosco e depois, rapidamente, fo i para a cozinha preparar 
a comida. (Estavam no período de ramadã*- ) 
Esta família é originária das ilhas Comores. O pai freqüentou 
durante 3 anos a escola maometana e somente por 3 anos a esco, 
la comum onde se ens inava o francês (uma das duas línguas inter-
nacio nais, junto com o inglês), pois o trajeto entre sua casa e a 
escola era lo ngo demais e os me ios de transporte , precários. Seu 
cunhado observa que "ele se vira mui to bem", ainda que sua pouca 
escolarização seja "uma desvantagem para ele poder ajudar os 
filhos". Seu pai é operário especializado na França, lê apenas árabe, 
sua mãe nunca trabalhou e s6 lê árabe. 
O senhor M. fala correntemente a língua comoriana e se expri-
me em francês com grande dificuldade nas construções de frases e 
no vocabulário. Lê maio francês (sobretudo do ponto de vista da 
compreensão), lêa língua comoriana escrita com a ajuda J o alfabe-
to francês ou árabe, e lê o árabe li terário, sobretudo o Alcorão. 
Aprendeu nas ilhas Comores a profissão de alfaiate, mas não possui 
diploma profissional. Na ocas ião estava desempregado, depois de ter 
traba lhado aqui e acolá para "dar de comer" a seus cinco filhos. Tra-
balhou em vários lugares como "trabalhador braçal", "aux iliar de 
pedreiro" ou "lavador de pratos no Novotel durante 18 meses". Às 
vezes trabalhava apenas 1 mês, outras 15 dias, alternando períodos 
de desemprego e de pequenos empregos. Está na França elesde J 984. 
A mãe de Mehdi só freqüentou a escola maometana (por cerca 
de 4 anos) . Sabe ler o árabe mas nem sempre compreende o que lê. 
Isso parece ser conseqüência do ensino maometano, que insiste mais 
na organização e recitação que na compreensão dos textOs lidos. Tem 
também dificuldades para escrever, pois na escola aprendeu primei-
ro a ler e depois a escrever. Estava freqüentando, na ocasião, um curso 
de alfabet ização em uma escola próxima, para onde seu marido disse 
[ê,la "enviado", o que caracteriza o tipo bem distinto de divisão sexual 
dos papéis domésticos no casal. Ela veio, parece, das ilhas Comores 
.. Período Jo ano c(lnsi dcr:ldo "ól}!r.ldo pcltl:- mllç lllm ,m.l~ , duf,mt .... I) lllJ.ll W Jl'Jll, ' d t.:.:.i.l~ (I 
.11l\tlnheCl'r até ti ptJr-J'l-:'OJ. (NT) 
80 
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES 
cm J9890u 1990, com Mehdi, seu filho mais velho de 13 anos. N unca 
trabalhou, nem nas Como res nem na França, mas disse estar à pro~ 
cura de um emprego. A mãe da senhora M. vive na França, não tra-
balha e lê árabe. Seu pai faleceu há muito tempo e ela não sabe qual 
era sua profissão. O casa l tem cinco filhos (quatro meninos e uma 
menina), dos quais dois são a inda bebês. Os mais ve lhos têm 13 anos 
(Mehdi, na 2" série) , 9 anos (na J" série) e 8 anos (na pré-escola). 
Os M. são antes de tudo um caso de família que não possui um 
gmnde número de práticas "oc identais" de escrita. Através de uma 
rrajetória de imigração, esta família vive um embate entre univer~ 
sos objetivados de culturas, e se encontra tota lmente desprepara-
da, pela sua situação de origem, para apropriar-se deles. E n80 é por 
acaso que, para o senho r M. e seu cunhado , parece importante 
exp licar bem, além das perguntas que lhes fazemos, como as coisas 
acontecem nas ilhas Comores, do ponto de vista da organização da 
vida social e econô mica. Esse é um ponto cen tral da entrev ista, que 
revela lima oposição ("Tem muitas coisas que não são nada pareci~ 
das") entre dois universos culturais mais ou menos escolarizados, buro, 
cratizados, mais o u menos tecidos por formas sociais de escrita. 
O senhor M. e seu cunhado (que tem um diploma técnico e fo i 
professor primário nas ilhas Comores) insistem mui to em dar o tes-
remunho de seu espanto e de sua confusão diante do conj unto de 
documentos que é preciso ter na França. N este aspecto estão viven-
do uma diferença radical entre seu país e a França. Qualificando 
scu país como "subdesenvolvido", no estágio de "Idade Méd ia" , 
sem estradas asfa ltadas, sem eletricidade nem telefone (exceto nas 
"grandes cidades"" ressa ltam a fraqueza da administnlção e, con, 
seqüentemente, os poucos documentos que circulam. 
Descrevem seu país como bem menos burocratizado, menos 
codificado e, ao mesmo tempo, bem menos organizado por práticas 
de escrita e dos documentos oficiais (diploma, hollerirh, cartei ra de 
trabalho, certificado de nacionalidade, certidão de nasci mento, 
recibo, talão de cheques, cédula de identidade, carte ira de seguri-
dade social, quitação de conta de luz, prova de residência ... ), muito 
mais ligado à palavra dada, ao engajamento puramente oral e pes-
soa l: "Num tem nenhuma instituição nos Comores onde você vai 
8 \ 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
e eles vão te pedi uma prova de residência, eles sabem que ocê é 
comoriano, ocê é comoriano. Você diz que é de tal cidade, que é de 
tal cidade e pronto"; "Num te pedem cédula de identidade , só se 
você vai no banco, num têm certificado de nacionalidade: ocê é 
comoriano , ocê é cmnoriano. (Risos.)" 
Da mesma forma, o senhor M. compreendeu rapidamente que 
o fato de não possuir um diploma reconhecendo ofi cialmente suas 
competências era faral na França , enquanto o diploma não tem o 
mesmo papel determinante em seu pars nata l. O senhor M. apren-
de u uma profissão na prática (vendo fazer), nas formas socia is orais 
práticas e não em formas escolares de relações de aprendizagem, e 
nos uh que é capaz. de mostrar que "sabe fazer", mas que csnl cons .. 
ciente ele que isso não é suficiente na França: "O diploma é quan-
do temos a profissão. Se alguém me pediu para fazer alguma coisa , 
se me pedissem: IOcê va i tirá as medida e fazê uma ca lça', eu faço, 
ou camisas, ou coisas assim, mas não tenho certificaJo". 
A língua comoriana não é cod ificada, o u seja, não passou por 
toelo um trabalho histórico de dicionarização, de pesqu isas grama-
ticais, como explica o cunhado do senhor M.: "Não é nem mesmo 
uma Irngua, porque não teve de fato estudos sobre ela, sobre sua gra-
mática, conjugação, tudo isso. Tem gente como vocês que são, sei 
lá, sociólogos, franceses que chegam a fazer estudos desta Irngua. Acho 
que parece que, recentemente, ouvi falar que um francês publicou 
um dicioná rio francês .. comoriano , mas antes não tinha isso. Se 
você queria escrever para sua mãe ou sua família, você escrevia no 
dialeto comoriano com as letras ... ". 
O senhor M. declarou que é ele (sua mulher está fazendo atual-
mente um curso de alfabetização) que se encarrega dos documen-
tos, mesmo que isso consista e m pedir ajud;:l (I amigos ou vizinhos, 
quando não compreende certos documentos que deve preencher ou 
quando precisa escrever cartas, preencher cheques ... Tirando os 
documentos obrigatórios, o senhor M. não utiliza de forma alguma 
a escrita, pelas razões expostas acima, em SlIa vida cotidiana. Não 
possui um caderno de contas (e para que um caderno quando esta· 
mos desempregados e sempre em situação econômica precária?), não 
escreve lembretes, listas de coisas para fazer ou lista de compras ("Às 
82 
PERfiS DE CONFIGURAÇÕES 
vezes vou até a loja e assim que entro ela me diz" (sua mulher): 'Ah, 
tem nada. alguma coisa" mas é tarde demais" (riSOS)), não tem 
.lgenda, não marca nada no calendário ("N ão. eu tento me lembrar"), 
não anota recados no telefone, e nunca teve um diário. Escreve só 
algu mas cmtas em comoriano, usando o alfabeto francês ou árabe. 
Seus diferentes documentos administrativos ficam guardados em pas-
tas mas em uma ordem, sem dtlvida, não muito rigorosa, pois o senhor 
M. explicou que passa muito tempo procurando um documento: "Jogo 
em qualquer lugar"; "Se continuar a aumentar, em todo can to, até, 
se você for ver, no armário, [em algumas vezes, se alguém pediu nos .. 
50S documentos, e u se i que vou, o documento está lá , mas não sei 
unJe botei, procuro e m tudo quanto é canto o J iC:l inteiro, mas é 
difícil". Dado o grau de racionalização da atividade soc ial c econõ-
mica do universo de origemH , compreenderemos que as técnicas de 
e~crita que permitem gerir de forma mais racional as at ividades 
Jomésticas se mostram como a última preocupação do senhor M., 
que parece ITIui m espantado ao saber que o e ntrev istador faz listas 
de compras. A reação de incompreensão de Mehdi quando lhe per-
guntamos se escreve bilhetes a seus pais para dar-lhes algum reca-
do mostra que essa não é uma forma habitual de intercâmbio nO 
inte rior de sua família. 
O senhor M. lê melhor o árabe que o francês . Raramente com-
pra, portanto, algum jornal, pois não compreende tudo o que está 
escrito
l 
ainda que use interesse muito pelo noticiário". Nunca lê revi s~ 
ras, ne m as de programas de televisão, e dela só ass iste ao noticiá~ 
rio ea alguns filmes. Não lê históri as em quadrinhos, nem roman-
ces, Oll livros práticos, e não possui uma estante (seus livros estão 
num armário). Q uando perguntamos ao senhor M. se ele ou sua 
mulher lêem histórias para seus filhos, começou a rir, mostrando com 
isso que essa forma de interação pais-filhos, rotineira em muitas famr-
I ias fra ncesas, lhe era totalmente estranha. 
De fato, o senhor M. lê textos ligados a práticas militanres, reli-
giosas ou polrticas. Possu i livros rel igiosos em árabe e lê "quase 
todos os dias" o Alcorão, que consegue compreender (seu cunha .. 
do esclarece: "Leio o Alcorão, mas não compreendo. Mas ele, isso 
ele até compreende") . Parece ter lido muitos livros "socialistas" ou 
83 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
"comunistas", segundo seus próprios termos (Lenin, Marx, Engels, 
Mao Tsé-tung), e define-se como um militante político: "Sou um 
homem de esquerda"; \fÉ um verdadeiro militante", diz seu cunha~ 
do. Lutou. muito jovem, enquanto membro do Partido Social ista 
das ilhas Comores; pela independência de seu país, e passou onze 
meses na prisão: "E o primeiro partido de oposição das Comores. é 
o partido socialista das Comores. isso foi antes, ele foi criado em 
1968. e existiu até 75. e aí até a independência das Comores". Sua 
mane ira de pensar se mostra inteiramente estruturada por estes 
dois aspectos de seu engnjamento: um engajamento muçulmano, que 
o leva a ensinar o A Icomo aos domingos à tarde a um grupo de jovens 
(que incluem seu filho Mehdi) e adultos, e um engajamen to polí-
tico voltado para o marxismo. O senhor M. é um t ipo de autod ida-
ta que passou pelo militantismo religioso e político e que Sustenta 
um discurso no qual se mpre se misturam referências livrescas sobre 
seu país - históricas ("Ele é realmente capaz de te contar a histó-
ria de Castro ou de qualquer outra pessoa do mundo, mais do que 
pessoas como nós. que sabem ler o noticiário") e políticas- e expe-
riências pessoais. Fora da entrev ista, o senhor M. nos contou sobre 
a associação dos comorianos que acaba de criar (e da qual é presi~ 
dente) para ajudar seus compatriotas e seus filhos a use darem bem" 
na escola ou em o utras at ividades, mostrando dessa forma que está 
adaptando seu militantismo de origem à situação presente. 
Os pais exercem sua ação educativa essenc ialmente no campo 
do controle uo comportamento mora l, que tem primazia sobre qual-
quer outra dimensão. O pai não é, portanto, particularmente seve~ 
ro em questões estritamente escolares, ainda que não ignore as difi~ 
culdades de seu filho em francês e em matemática. Ficou bravo 
quando soube que o próprio Mehdi assinava os cadernos em seu lugar 
para evitar sua raiva e as surras que os maus resultados pudessem pro~ 
vocar. No entanto, disse que não toma nenhuma atitude especial quan~ 
do constata que as notas não são boas. Evenrualmente faz uso da pro-
messa de um presente como forma de encorajar o filho: "Não vou 
bmer nele. ta lvez depois, eu digo que precisa fazer um esforço para 
aprender, às vezes digo que vou trazer bicicleta o u coisas assim, para 
encorajar ele a estudar". As crianças fazem sozi nhr1s as lições de 
84 
PERfiS DE CONfiGURAÇÕES 
casa, e o pai confessa calmamente que não sabe se realmente fazem 
ou não: "Não sei se estão fazendo outra coisa, não sei nada, de ver, 
dade ... " Aliás, o professor de Mehdi nos diz: "Tenho a impressão que 
de não faz mais as lições em casa ... Ele aprende muito pouco das lições". 
O pai justifica que não ajuda os filhos, porque tem medo de ajudar 
"mal". Mehdi fica na escola até às 18 horas*". salvo no período do 
ramadã. Quando tem dificuldades para fazer as lições, pede ajuda ao 
rio. uA gente pergunta pro meu tio porque às vez meu pai sai, não 
está, saiu," Durante as férias, as crianças ficam em casa ou brincam 
pelo bairro, e o senhor M. diz que só fazem lições se a escola pede 
(mostrando assim que não conhece todos os pressupostos tácitos da 
competição escolar, que estima, caso a escola não dê deveres duran~ 
te as férias escolares de verão, que seja "bOIl1", por exemplo, com~ 
prar cadernos de férias para as crianças). 
O investimento escolar do pai é portanto bem fraco . Ainda que 
consciente de que a escola e sobretudo o diploma (que ele não pos-
sui) sejam imporrantes para se ter uma boa profiss~o na França, suas 
práticas efetivas indicam mais uma preocupação moral de conjunto 
do que uma preocupação especificamente escolar. No entanto. gos-
taria que seus fi lhos não fossem como ele e que prolongassem os estu-
uos, deplorando ao mesmo tempo sua incapacidade de ajudá-los a nível 
escolar: la escolal "Ah. é, muito importante. porque, fico muito cha-
teado. Tenho muita pena de não poder ir aprender na escola . Porque 
hoje eu vejo, a gente precisa ajudar as crianças na escola, senão não 
consegue nada. Sem as escolas, não podemos ter médicos, cientistas. 
co isas assim. Acho que as crianças conseguem aprender alguma coisa. 
assim não vão ser corno a gente. Não somos nada, não quero que as 
crianças fiquem como eu. Espero que ele aprenda uma profissão, se as 
cri::mças têm alguma coisa, é bom". 
Deixa o filho assistir à relevis"o quando volta ua escola e só a proí-
be por razões de saúde ou morais (e não por razões escolares, classi-
camente evocadas pelos pais atentos à hora de dormir em função das 
au las). Se o senhor M. não gosta que Mehdi assista durante muito 
* N,. França. CX1:. tC a r(l,~d" ljdaJc de as o..:TI<m~<b (H.:an:m n.1 ,,:>4.:01,. al'tÍ\ ,1:0. . lU!.b num.1 all -
\"KbJc ch:un.ld,\ "hunírio Jt· c:.tudo:o.livrt's", ondt' (,1:1;'111 , I:' I,,;i'l'~ l' rllOt.lc lll '>t.: r "J lId .lLl.l" 
l·n· lltu"l mcllll· por ,dgulll a:.::. .:. tl'ntc do prn(c~"(lr ou C.~ t.I!!I ~ ri,1. (N.T.) 
85 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
tempo à televisão é porque, segundo ele, faz mal para os olhos (e le 
nos diz que é desde que estão na França que um de seus filhos preci-
S" IIs"r óculos, e "ssocia o faro à prática de ver relevisão). O senhor 
M. também limita a prática televisiva de seus filhos por razões morais: 
não podem assistir a filmes ou programas onde se vêem cenas upor~ 
nográficas" ou violentas. Ele próprio e sua mulher não vêem filmes 
Umeio fortes", mas às vezes vêem filmes violentos. Da mesma forma, 
se as crianças descem para brincar e mbaixo, perto do prédio, a mãe 
nilo gosta mui to, porque não quer que sigam "maus exemplos" (quc~ 
brar, roubar, cusp ir nas pessoas ... ). O senhor M. também não gosta 
que seus filhos sa iam muito para brincar porque não pode ver com 
quem estão. Insiste também no fato de que as crianças não fazem muitO 
baollho no apartamento, e explica que andam descalços para não fazer 
barulho quando pulam. Ao ressaltar por várias vezes a questão dos 
comportamentos "corretos" ou "incorretos" de seus filhos, o senhor 
M. prova sua profunda ligação com a inculcação de um ethos. 
Insiste bastante também no faro de que as crianças devem se cur-
var à vontade dos pais (UAqui, entre os franceses, dizem que a partir 
dos 18 anos as crianças podem fazer o que quiserem. Entre nós não é 
assim, pois mesmo eu, meu pai, estou sob as ordens de meu pai, num 
posso fazer alguma coisa que ele não quer"), e que não cabe a eles "deci-
dir fazer alguma coisa". Reconhece ficar atenro pam que eles não que-
brem nada, não roubem, não façam mal a ninguém, "não joguem 
pedras", etc. C hegou até a pedir a um professor do materna l para 
"bater" no pequeno se ele cuspisse nos seus colegu inhas ou no profes-
sor, pois o viu fazê~lo lima vez em casa. É sempre com a preocupação 
de manter sua autoridade que o pai deixa de hrincarcom os filhos, por 
medo deperder o "respeito" deles. Quer ser levado a sério e inspirar 
medo ("E do medo que vem um cerro sentido de respeiro") quando 
diz algul1"1a coi&1, e a brincadeira 050 se presta, segundo ele, para 
demonstrar sua autoridade:"Pois se estão acostumados a brincar, se 
um dia você diz para ele 'Pare defa,er isso!', ele diz, 'Eu não paro'. Por 
exemplo, a mãe pode 'inventar lima história' para eles irem dormir, 
mas ele não, porque, explica, 'se e les não tiverem medo de mim não 
ir"o se deitar' ". Ele só pode brincar com os mais velhos (que já "com-
preenderam" sua autoridade), mas não com os menoresl~ . 
86 
PERfiS DE CONFIGURAÇÕES 
Um fraco grau de escolarização, práticas de leitura essencialmen-
te lig'ldas ao Alcorão, que pouca relação têm com a leitura escolar 
('em dúvida, não é por acaso que o professor nota que Mehdi lê "cor-
rc r .. lInente", oralmente, mas que tem dificuldades "assim que pas~ 
:"Iam para a parte de compreensão"), fracas práticas domésticas da 
língua escri ta e um débil processo de racionalização das atividades 
domésticas (o filho "esquece os cadernos. não sabe onde estão", segun~ 
Jo o professor), uma v igi lância parental mo ral e não cspccificamen ~ 
te escolar, SitwlÇão econômica instávei e modesta, um precá rio 
domínio da língua francesa pe los pa is, chegada recente ao territó-
rio francês de Mehd i (agosro de 1990), que tem dificuldades em se 
exprimir claramente durante a entrevista l/' - o conjun to combi~ 
nado dessas dificuldades (do ponto de vista do universo escolar) per-
mite-nos entender o "fracasso" de Mehdi, visro na escola como um 
aluno "d ifíci l de se entender", "desinteressado", "que não estuda em 
casa'\ e U com problemas de lógica e de compreensão em leitura". 
A descrição fina da configuração familiar da criança permite real-
mente ver que o ufracasso escolar" de lima criança não está neces~ 
sariamente associado à "omissões dos pais", mas, neste caso preci~ 
so, a uma distância grande demais em re laçHo às formas escolares 
de aprendizagem e de cu ltura. 
No entanto, o faro de ter um pai militante e que leu bastante, 
de ter uma mãe que freqüenta um c urso de ;l lfabet ização e um tio 
que foi professor, em um contextO em que o controle do compor-
tamento m Orri I desponta como re lat ivamente estrito , em que a l uci~ 
dez concem ente à importânc ia da esco la no futuro profissional foi 
adquirida e em que a frustração escolar e profissional dos adulros os 
leva a projetar as esperanças sobre os filhos (cf. o que disseram 
sobre o futuro dos filhos, mas igualmente a vontade associativa de 
ajudar as crianças comorianas a use darem bem"), deixa entrever a 
possibilidade de cond ições mais favoráveis de "êxiro" na escola pri-
mária para os dois irmãos mais novos. A configuração familiar de 
socializaç:io não se fanua nunca definitivamente. e as diferentes crian~ 
ças oriundas de uma imigração nunca estão codas na mesma posi~ 
ção. O faro de ser o mais velho, como Mehdi, não favorece eviden-
temente seu destino escolar. 
87 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
comece a trabalhar", "É preciso ficar atrás dele", "Consegue devol-
ver uma folha em branco sem se importar", O conjunto destas apre-
ciações ressnlta a pouca implicação que N'Dongo tem em relação ao 
trabalho escolM, Evidentemente, dizem que ele não é "escolar", que 
esquece de pedir para ass inarem seus caJernos, que esquece Ou perde 
o material, que o material está sempre em desordem ou então que "não 
é capaz ou não tem vontade de se organizar", E não é por acaso que 
é no domínio mais próximo das prÁticas que lhe são mais comuns 
(N'Dongo vai sempre fazer compras para a m8e), a numeração , que 
obtém "boas notas", enquanto os "problemas", ao contrário, fazem 
com que "decaia", Descrito como alguém "apagadoll no conjunto da 
classe, os professores esclarecem que "no recreio não tem esse tipode 
comportamento", Acontece que a fratu ra entre a configuração fami-
liar e as formas escolares de vida é tal que, na escola, N'Dongo só pocle 
estar com a IIcabeça na lua", 
A herança difícil 
A tcndi-m:ia J u patrimônio (e, nc~ t c $Cnt iJu, 
dl'luJ,[.1 C~l ru l ura !)O(. I,I I) em pen;cvcmrelll~U 
M:r:>(; podo: !te re.lh:ar ~ ,\ hcr,m~' ,1 hl'nl. , () her-
dc,r\" '>C, JlI,r tntcrllléJLt)d:14Uck'~ que ri::1ll pnl-
v,,,nrl ,II,wntc ti cl,cargu l' que Jc\'cm rt-"scgur,l r 
!tU:I.llIICC1t.,\:ll', "o mu rtti ( o u ~j<i , a I'mpricd •• dc) 
:l1'0dcr:J-:.c du v iVI) (ml ~CJ,I, um prurrkdrin 
dbI XJ~ I ~ ll' :11'1 0 .1 hl,'rJ,Ir)" ~~ , 
Como herdamos? Quais são as condições sociais, relacionais, para 
que lima disposiçãu cultural possa ser "transmitida" ou, em todo caso, 
passada, de uma maneira ou de outra - ;:. força de se incu lcar, Je 
forma expressa ou difusa, direm ou indireto, etc. -, de um corpo 
soc ia lizado a um outro corpo socializado? As más condições de 
herança que descobrimos em certas condições familiares nos for-
çam a colocar questões que as heranças que deram certo c as tr(1n s~ 
missões fe lizes tendem a escamotear, 
Dado que o "capita l cultural" está condenado, de um lado, a viver 
em estado incorporado, sua "transmissão" ou sua "herança" Jepen~ 
dem da situação de seus portadores: de sua relação com o filho, de 
104 
PERFIS DE CONFIGURAÇÕES 
.,,'" capacidade, (socialmente constituída) de cuidar de sua educa-
ção, de sua presença a se u lado, ou, fina lmente, de sua disponibili-
Jade de transmitir à criança certas disposições culturais ou acom-
panhá-Ia na construção dessas disposições. 
De fato, os indivíduos que detêm as disposições culturais mais 
compatíveis com as exigências do universo escolar nem sempre são 
- por conta da distribuição dos papéis familiares ou do tempo de 
que dispõe - aqueles que estão em contato com a criança com mi-lis 
freqüência e de maneira mais duradoura, 
Acontece que o tempo de socialização é uma condição sine qua 
non para a aquisição certa e duradoura dessas disposições, das manei-
ms de pensar, de sentir e de agir, Ao contrá rio do patrimônio IlHlte~ 
rial que pode ser transmitido instantaneamente, sem prazo (o que 
não garante, no entanto, de forma alguma a capacidade socia lmen-
te constituída do proprietário de fazer uso dela, f, mais que isso, de 
ti rar dela o melhor partido possível), as disposições, os esquemas men-
tais sociais só podem ser adquiridos ou construir-se através de rela-
ções sociais duní.veis (versus efêmeras, ocasionais) H, É isso o que 
demonstram, de n1aneira caricatural, as matrizes de socialização 
"to tais" (convento, caserna, prisão, internato, escola ... ): através do 
isolamento dos seres sociais durante um longo período de tempo em 
um espaço fechado e isolado do exterior, pela grande promisc uida-
Jc entre esses seres sociais e pela coerência e sistematicidade da orga~ 
nização das ativ idades, tornam possíveis os efe itos de socialização 
coerentes e duráveis, É por essa mzão também que, ainda que os soció-
lugos nunca tenham abandonado completamente o estudo das rela-
ções efêmeras, ocasionais, preocuparam~se muito mais em analisar 
as relações mais freqüentes, duráveis, estabilizadas, cristalizadas e 
IllUiti:1S vezes institucionalizadas, pois o exame dessas relações per~ 
mite compreender as disposições sociais mais características e cons~ 
titutivas dos se res sociaisZ4. 
Os perfis que veremos aqui (bem como os de número 8, 9 e L2) 
mostram bem que as IIheranças" - com "sucesso" ou fracassadas-
não são nunca processos mecânicos, mas cfetuam~se sempre, para 
a criança, nas re lações concretas com outros membros da configll~ 
ração familiar, que não se reduzem às figuras, normalmente sacra-
105 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
lizadas e reificadas, do Pai e da Mãe. A economia das relações afe-
tivas no se io da família, objeto de pesquisa de psicólogos e psica-
nalistas, nunca trata de seres c uj a única caracte rística seria ocupar 
uma ou outra posição em uma estrurura familiar abstrata (Pai, Mãe, 
Filho). Essa economia efetua-se entre seres sociais com múltiplas 
facetas sociais e cognitivas, formando entre si uma configuração social 
particular; e paracuja apreensão é necessário que se passe de um 
modelo de relações entre figuras abstratas, desencamadas (despro-
vidas cle corpos socia lizados) de um modelo sociológico de relações 
de interdependênc ia entre seres soc iais que ocupa m lugares em 
configurações sociais e possuem capitais Ou recursos ligados a esses 
lugares, bem como à sua socia lização anterior no seio de outras con~ 
figurações sociais. 
• Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo. 
Ryru1 B, I nascido em L)'on, com 1 ano de atraso escolar (repetiu a pré~ 
esco/a) , obteve 3,5 na a'valiação . 
Chegamos ao encontro por volta das 14 horas de um sábado. Um 
homem, jovem, abre a porta. Explicamos que havíamos marcado 
um encontro com Nora, a irmã de Ryad. Ele pede para esperar. Logo 
depois, deixa~nos entrar. Nora nos cumprimenta. Estava descansan-
do por causa do ramadã, que a deixa cansada, O homem é seu irmão 
mais velho, de 29 anos. Entramos e ela diz para senmrmos em uma 
cadeira, na sala de jantar. 
Seu pai estava donnindo em um cõmodo contíguo à sala de jan-
tar, separado apenas por uma cortina, Não o vimos mas o ouvimos ron~ 
car ligeiramente. A mãe vai se levantar durante a entrevista. Nós a 
cumprimentaremos, Ela não se mostrará nem espantada nem parti~ 
culamlenre interessada em nossa entrevista. Durante toda a conver~ 
sa Ryad estará numa festa anual regional. que acontece em lima praça 
não muiro longe de sua casa, com seu irmão de 17 anos, A entrev is--
ta decorre normalmente, sem barulho. Nora parece estar intereSS>lda 
na conversa e espera sinceramente que Ryad vá melhor na escola. 
Os avós de Ryad morreram, menos a avó materna, As famílias, 
tanto do lado paterno quanto materno, eram argelinas, agricul[o~ 
106 
PERFIS DE CONfiGURAÇÕES 
ras c analfabetas. Os pais de Ryad, que nunca foram à escola, ram-
hém são analfabetos tanto em francês quanto em árabe. O pai veio 
".z inho da Argélia com 19 anos aproximadamente, e fez cursos de 
lurmação profissional que o capacitou a operar máquinas eletrôn i ~ 
" .. Je concreto, uma profissão qualificada ("Num é fácil fazer fun-
tionar uma máquina de concreto nas obras püblicas"). Ele tem 57 
,1Il0S e faz cerca de 37 anos que está na França. Atualmente está 
dese mpregado, pois sua empresa atravessou problemas financeiros, 
c tem dificuldade para encontrar trabalho. A mãe, de 49 anos, veio 
pnra a França com os filhos em 1971 (há 2 1 anos), e nunca traba-
lhou, Repetem muitas vezes que entem muito não ter freqüenul~ 
,-lo a escola e não saber ler nem escrever. Para eles "faz uma falta 
enorme": uÉ, é, eles falam sempre: 'Que pena, eles não sabem ler, 
n~o sabem isso, não sabem aquilo"', 
Ryad, o mais novo da família, tem 5 irmãos e I irmã (Nora): um 
irmão de 29 anos que fez um curso técnico de soldador e está tra-
halhando nisso, outro de 28 anos que não conseguiu terminar um 
curso profissio nalizante de mecânica geral e que está atualmente 
fazendo estágios na Agência Nacional para o Emprego (ANPE), um 
,'litro de 25 anos que fez um curso técnico de 12 grau (BEP)" de 
Pllltorde paredes, uma irmã de 2Z anos, Nora, que respondeu a nos-
sas perguntas e que esul fazendo um curso técnico de secretariado 
após ter concluído O 22 grau em nível F8" , um outro irmão de 19 
anos, excepcional, que está em uma esco la especializada, e um 
Irmão de 17 anos, que atualmente está na 7" série de um curso téc-
nico de 12 grau, depois de um percurso escolar difícil (está com 4 
anos de atraso). Vivem ainda com os pais Nora, Ryad e seus dois 
irmãos de 17 e 29 anos. 
Ryad, que entrou para a escola maternal quando tinha 4 anos e 
2 meses, foi rapidamente considerado como uma criança "inadap-
t::lda" em re lação 8S exigências escotares, "Cri::lnça medrosa, pouco 
à vontade na classe", que "fica sozinho'\ "muito pouco maduro para 
aprender a ler", se mostrava "superprotegido" pelos pais, U o queri, 
dinho", "começou a saber ler em voz alta aos 7 anos e I O meses". 
Ryad é a única criança de nossa amostragem que foi indicada para 
seguir aulas de recuperação no final da 2" série. Seus dois professo-
107 
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES 
res O consideram difícil de ser "entendido", com "enormes proble~ 
mas de compreensão) mesmo na comunicação co loquial" , e "que se 
deixa levar pelas brincadeir:olS dos ourrosH , 
Vive em uma família na qual foi uma menina quem se deu 
melhor na escola de maneira flagrante, conseguindo obter o d iplo-
ma de 22 grau, e que depois foi fazer um curso profissiona lizante. 
Não é por acaso que é e la quem responde a nossas perguntas em uma 
fum ília na qual é a responsável pela gestão administrativa e pelo acom-
panhamento esco lar de Ryad. Tudo repousa sobre ela, o que pode 
explicar em grande parte a dificu ldade escola r de Ryad. 
Ainda que os pais sejam analfabetos e tenh am O Alcoriio como 
um objeto sagrado que não é lido, Ryad não vive em um universo 
totalmente desprov ido de qualquer prát ica de escrita. É, sem délvi-
da, sua irmã Nora que representa O pólo mais instruído da fa rníl ia 
de imigrantes argelinos ana lfabetos: compra o jornal de duas a três 
vezes por semana (Le Progri!s ou Lyon Matin), foi assi nante durante 
do is anos da revista L' Étudiant, e pede emprestados com freqüênc ia 
livros na Biblioteca Municipal de Lyon ou às amigas (romances, "h is-
tó rias verdadeiras, antigas"). Mas seu irmiio de 29 anos também lê 
"livros sobre a atua lidade", e seu irmiío de 17 lê romances policiais 
e revistas em quadrinhos. Ryad, de vez em quando, folheia h istórias 
em quadrinhos, mas sua irmã acred ita que não leia as histórias, con~ 
tentando-se em olhar as imagens: "Ele o lha, mas não lendo a histó-
ria, seguindo toda a história do começo ao fim. Lê, o lha as imagens 
assim ou então uma página, depois de ixa o livro de lado, nel!, 
Nora é a responsáve l por tudo que se relacione com os documen-
tos escri tos, e isso desde a idade de 14-15 anos: "Da correspondência 
ou para responder RS cartas, sou eu quem me encarrego", Ela diz que 
isso não Ué um sacrifício de forma alguma" e que gosta disso: "Tem 
meus irmãos, que lêem a correspondência, mas como sabem que sou 
eu quem va i)ogo responder ou preencher os papéis, então deixam pra 
mim, né?". E ela quern redige as cartas administrativas, quem preen~ 
che a declamç;10 de imposto, que seu pai assina, quem preenche os 
documentos para a escola e quem classifica por ordem cronológica, 
em pastas, os documentos da família, para poderem encontrá- los 
facilmente quando precisam deles: "Faço uma triagem par" que seja 
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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES 
I,ic il de achar quando preciso. Coloco os papéis do seguro-desempre-
go de lado, ou o envelope com os hollerichs, quando ele estava traba-
lhando, em outra parte, assim fica bem c1assificadon , Nora copia as 
receitas de cozinha e coloca num caderno, e é ela também que tem 
condições de fazer anotações antes de dar um telefonema, pois é a encar~ 
regada dos documentos administrativos da família: "Faço uma peque-
na lista pra num ter de telefonar muitas vezes". É ela também quem 
f~1Z a lista de compras, Mas, em contrapartida, é seu pai quem contro~ 
h1 as contas, discutindo com a mulher, a partir do extrato de lima cader~ 
neta de poupança. Esta não é uma tarefa pam N ora, que é mais do 
gênero mulher~administradora que mlllher~execlltiva17, Finalmente, 
mantém um diário pessoal e se corresponde bastante com os primos, 
primas Oll a avó, que vivem na Argélia, e (em também uma corres~ 
pondente americana. Ryad vive, portanto, rodeado de membros de 
~lIa família que lêem, de uma irmã que organiza a vida familiar C0l110 
umél segunda mãe de fa mília. mais escolarizada e racional que sua pró-
pria mãe. No entanto , não basta estar "rodeado" ou "cercado" para 
conseguir construir concretamente suas competências culturais, 
É ainda Nora quem responde pe lo acompanhamento escolar de 
Ryad . Não tem

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