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MATHEWS FRANCISCO RODRIGUES DE SOUZA DO AMARAL CONSTITUCIONALIDADE OU SUPRALEGALIDADE? A QUESTÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL À LUZ DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA E DA EC N.º 45. Monografia apresentada como requisito para a conclusão do curso de bacharelado em Direito do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) Professora: Carolina Lisboa BRASÍLIA 2010 MATHEWS FRANCISCO RODRIGUES DE SOUZA DO AMARAL CONSTITUCIONALIDADE OU SUPRALEGALIDADE? A QUESTÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL À LUZ DO PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA E DA EC N.º 45. BRASÍLIA 2010 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................................5 1. HIERARQUIA DA ORDEM NORMATIVA.................................................................6 1.1 O sistema hierarquizado da ordem normativa, proposto por Hans Kelsen.....................................................................................................................................6 1.2 A posição do direito internacional no escalonamento normativo proposto por Kelsen.................................................................................................................................16 1.3 Teorias atuais relacionadas à solução de eventuais conflitos que se estabeleçam entre o direito internacional e o direito interno........................................................................17 1.4 O posicionamento da sociedade internacional e o posicionamento individual dos estados.............................................................................................................................20 1.5 Os procedimentos que vinculam o Estado brasileiro aos tratados............................27 1.6 A inovação trazida pela Emenda Constitucional n.º 45...........................................30 2. SUPRALEGALIDADE OU CONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS QUE VERSEM SOBRE DIREITOS HUMANOS.....................................................................33 2.1 O posicionamento brasileiro sobre a incorporação dos tratados e a sua hierarquia no ordenamento jurídico interno................................................................................................33 2.2 O caso concreto que modificou o paradigma jurisprudencial com relação à prisão do depositário infiel...................................................................................................................37 2.3 A supralegalidade dos tratados que versam sobre direitos humanos..........................40 2.4 A constitucionalidade dos tratados que versam sobre direitos humanos...................46 2.5 A inaplicabilidade da prisão civil do depositário infiel.............................................50 3. CONCLUSÃO.................................................................................................................54 REFERÊNCIAS .................................................................................................................61 RESUMO O presente trabalho objetiva um maior aprofundamento nas questões que circunscrevem a temática constitucional atual e a sua relação com o direito internacional público e as matérias relacionadas aos Direito Humanos. Em 2008 a Suprema Corte brasileira se manifestou sobre uma questão que vinha sendo discutida tanto por constitucionalistas quanto por internacionalistas: haveria a impossibilidade de prisão civil do depositário infiel calcada na aplicabilidade do Pacto de São José da Costa Rica? O posicionamento foi no sentido de que não mais seria admissível tal medida constritiva de liberdade, ainda que prevista no próprio corpo da Carta Magna. O entendimento foi o de que, ao ser incorporada ao ordenamento interno, a norma internacional que afastava a possibilidade dessa prisão civil adquiriria patamar de norma supralegal. Todavia, parcela do Supremo Tribunal Federal enxerga nos tratados de direitos humanos que não tenham sido aprovados pelo quorum qualificado previsto no §3º do artigo 5º da Constituição Federal um outro status, ou seja, o de norma constitucional. Este estudo, portanto, tem por objetivo um aprofundamento na discussão sobre o nível hierárquico dessas normas internacionais. A metodologia utilizada foi a corrente de pensamento dialética e o método monográfico de pesquisa com a análise do Recurso Extraordinário 466.343/SP, de registros e posicionamentos do Supremo Tribunal Federal e outros Tribunais, o estudo de artigos publicados em meio eletrônico, e, especialmente, de material doutrinário de juristas e especialistas em Direito Constitucional e Internacional Público. Palavras-chave: supralegal, Emenda constitucional n.º 45 de 2004, tratados sobre Direitos Humanos, constitucional. 5 INTRODUÇÃO. Atualmente, o Estado brasileiro é parte em diversos tratados, acordos ou convenções internacionais, que compõem o que se costuma chamar de instrumentos internacionais, seja ratificando-os ou simplesmente aderindo a eles. Conforme o entendimento vigente, em regra, para a incorporação de um desses instrumentos à ordem jurídica interna do país, deverão se submeter a um processo no qual haja a ratificação e a promulgação mediante decreto editado pelo Chefe do Poder Executivo Federal. O corrente pensamento jurisprudencial atribui a esses instrumentos, uma vez incorporados, força de lei comum. Como exceção a essa regra, os tratados e acordos internacionais que apresentem tema de direitos humanos e que se submetam ao processo previsto no §3º do art. 5º da Constituição Federal equiparar-se-ão às emendas constitucionais, por atenderem à forma prevista na própria Constituição. Esses instrumentos, todavia, não existem isoladamente, mas coexistem com outras normas jurídicas, advindas da legislação interna. Diante desse fato, é preciso limitar a extensão de cada norma, fixando a sua situação perante as demais. O presente trabalho busca, dessa forma, o estudo dos patamares normativos tanto das normas internacionais que tratem de assuntos de Direitos Humanos que atenderam ao quorum qualificado previsto no art. 5º, §3º da Constituição quanto daquelas que foram incorporadas sem atender a essas exigências formais. 6 1. HIERARQUIA DA ORDEM NORMATIVA 1.1 – O sistema hierarquizado da ordem normativa, proposto por Hans Kelsen. Dentre as muitas contribuições para o estudo do Direito, Kelsen defendeu a tese de que o Direito regula a sua própria criação, já que uma norma jurídica só poderia existir quando outra norma assim determinasse, podendo estabelecer, em muitos casos, o próprio conteúdo da norma a ser criada.1 Assim, sempre haveria uma “norma superior” que fixaria a criação de uma “norma inferior”, estando a criação dessa norma superior condicionada a uma norma ainda mais superior, constituindo o que definiu como um regressus até a chamada norma fundamental, que fundamenta a validade de todo o ordenamento jurídico.2 Segundo esse entendimento, “a ordem jurídica, especialmente a ordem jurídica cuja personificação é o Estado, é, portanto, não um sistema de normas coordenadas entre si, que se acham, por assim dizer, lado a lado, no mesmo nível, mas uma hierarquia de diferentes níveis de normas”.3 Como nível mais elevado dessa hierarquia,encontraríamos a constituição material de um país, partindo da premissa de que ela reflete a idéia de norma 1 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.103. 2 Ibidem, p. 103. 3KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 3ª Ed. São Paulo. Martins Fontes. 2000, p. 181. 7 fundamental. É a constituição em seu sentido material4, i.e., “as regras que regulam a criação das normas jurídicas gerais, em particular a criação de estatutos”, determinando os órgãos, o processo de legislação e até o conteúdo (positivo ou negativo, ou seja, que deve ou não deve ter certo conteúdo) das leis a serem formuladas, e não em seu sentido formal, ou seja, o documento solene que traduz um grupo de normas jurídicas modificável ante a observância de prescrições especiais que objetivam dificultar essa modificação normativa.5 Para ele, a constituição no seu sentido formal não é indispensável, ou seja, aquela forma especial conferida às leis constitucionais, a forma constitucional é prescindível. Por outro lado, as normas que regulam a criação de normas gerais e, para o Direito moderno, as normas que determinam os órgãos e o processo de legislação, ou seja, o conjunto normativo que compõe a chamada constituição material se apresenta como um elemento essencial a todas as ordens jurídicas.6 Entende, ainda, só ser possível a existência da constituição formal (em especial os dispositivos pelos quais a modificação da constituição se torna mais difícil que a modificação de leis ordinárias) se houver uma constituição escrita, se houver uma constituição com caráter estatutário. Assim, não há que se falar em constituição formal nos casos em que haja constituição material com caráter de Direito consuetudinário.7 4 Para José Afonso da Silva, por materiais entendem-se as normas costumeiras ou escritas que regulam a organização dos órgãos e a estrutura do Estado, bem como os direitos fundamentais. Nesse sentido, v. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª Ed. São Paulo. Malheiros editores LTDA. 2005, p. 40 e 41. 5 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.103 e KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 3ª Ed. São Paulo. Martins Fontes, 2000, p. 182. 6 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 3ª Ed. São Paulo. Martins Fontes. 2000, p. 182. 7 Ibidem, p. 183. 8 No nível imediatamente inferior ao ocupado pela Constituição material estariam as normas gerais criadas pelo costume e pelo processo legislativo. São normas aplicadas tanto pelos magistrados quanto pelas autoridades administrativas quando do exercício de sua competência ou atribuições e que têm o escopo de determinar os órgãos que aplicarão o Direito, bem como o processo que eles deverão observar quando dessa aplicação, além de determinar os atos judiciais e administrativos desses mesmos órgãos, de modo a criarem as normas individuais que regularão as situações que se apresentarem no caso concreto.8 Nos casos daqueles ordenamentos jurídicos não consuetudinários, aqueles que adotam a lei escrita, positiva, cuja origem histórica remonta o Civil Law, de tradição romanística, enquanto à Constituição restaria regular o procedimento de criação das leis, pouco se manifestando acerca do conteúdo que nelas se encerram, à legislação restaria a produção e o conteúdo dos atos judiciais e jurídicos.9 Isso se conclui quando diz que a ordem jurídica não é um sistema de normas de Direito coordenadas, colocadas ao lado umas das outras, por assim dizer, mas uma série escalonada de diferentes zonas normativas, que, em esquema, podemos apresentar da forma seguinte: o grau supremo de uma ordem jurídica estatal é formado pela Constituição, cuja função essencial consiste em determinar os órgãos e o processo da criação das normas jurídicas gerais, quer dizer, da legislação. O grau imediato é constituído pelas normas gerais criadas pelo processo legislativo, cuja função consiste não só em determinar os órgãos e o processo, mas também, em essência, o conteúdo das normas individuais, criadas ordinariamente pelos tribunais e autoridades administrativas. 10 8 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.104. 9 Ibidem, p.104. 10 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de Fernando de Miranda. São Paulo: Acadêmica, 1939, p.67, apud, HORTA, Raul Machado. Direito constitucional. 4ª Ed. Ver. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 132-133. 9 No caso brasileiro, em regra, a elaboração das leis é de atribuição do Poder Legislativo, com sanção pelo Executivo. Em se tratando de matéria federal, compete ao Congresso Nacional essa feitura, com suas duas Casas, quais sejam, Câmara dos Deputados e Senado Federal, além da sanção do Presidente da República. Em se tratando de matéria a ser regulada pelos Estados, caberão às Assembléias Legislativas e, em se tratando do Distrito Federal, da Câmara Legislativa, com respectiva sanção pelo governador do Estado ou do Distrito Federal. Sendo matéria relativa ao processo legislativo municipal, caberá às Câmaras dos Vereadores essa função, cuja sanção deverá ser de responsabilidade do prefeito municipal. Nos termos da atual Carta Constitucional (art. 59), como resultantes do processo legislativo se entendem as emendas à Constituição, as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias (embora com severas críticas quanto à sua alocação, haja vista não resultar do processo legislativo em si, mas de edição pelo Presidente da República)11, decretos legislativos e resoluções. O nível hierárquico subseqüente ao que se encontra a legislação e o costume apresenta as decisões judiciais e os atos jurídicos. Ao decidir judicialmente, o magistrado não apenas aplica a norma geral trazida pela legislação ou pelo costume, mas cria uma norma individual que regulará aquele caso concreto. Não só aplica, mas também cria Direito.12 11 Neste sentido, José Afonso da Silva em seu Curso de Direito Constitucional Positivo. 24ª Ed. São Paulo. Malheiros editores LTDA. 2005, p. 524. 12 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.106-107. 10 Da mesma forma, os atos jurídicos criam e aplicam o direito sempre observando as normas gerais que os tornam possíveis. Por ato jurídico se entende o termo genérico que, no âmbito do direito privado, tem como característica essencial ser um ato volitivo, apto a gerar efeitos no mundo jurídico. Nas palavras de Washington de Barros Monteiro, “adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos, eis, em poucas palavras, em toda a sua extensão e profundidade, o vasto alcance dos atos jurídicos”13. Mesmo que porventura não se alcance o objeto (adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos), isto não descaracteriza o ato jurídico, já que o seu núcleo consistena manifestação de vontade naquele sentido, e não na concretização de sua especificidade.14 Como espécie do gênero “ato jurídico” temos o negócio jurídico, cuja idéia primordial “reside na declaração de vontade dirigida no sentido da obtenção de um resultado perseguido pelo emitente”15, diferente do que ocorre com o ato jurídico, cuja noção é a simples idéia de que a manifestação da vontade está de acordo com o ordenamento jurídico. É a conseqüência jurídica buscada pela parte que os distingue, estando ausente em um e presente no outro. Outra espécie de ato jurídico é o ato administrativo, i.e., “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob regime de direito público, vise à produção de efeitos jurídicos, com o fim de 13 Curso de Direito Civil, vol. I, p.175, apud, CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro. Editora Lúmen Júris. 2006. 14 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.107-108. 15 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro. Editora Lúmen Júris. 2006, p. 87. 11 atender ao interesse público”16, que não se confunde com o negócio jurídico porque a vontade aqui emitida decorre de lei. O agente da Administração emite a vontade de acordo com a lei, e não com anseios pessoais no sentido de que se alcance ou não o fim a que se destina tal emissão. Diante desse escalonamento, enxergamos que as normas jurídicas que se encontram num nível superior ao de outras serão fontes do Direito para estas. Toda norma jurídica que esteja num nível superior ao de outras será fonte para elas, já que poderá determinar tanto o órgão e o processo adotado por esse órgão para que crie a norma tida como inferior quanto o próprio conteúdo da norma a ser criada.17 Destarte, os costumes e a legislação terão como fonte de Direito a Constituição nacional; as decisões judiciais e atos jurídicos terão como fonte os costumes, a legislação e a própria Constituição (por ser fonte de Direito dos costumes e da legislação); e o dever que se impõem à parte mediante decisão judicial ou ato jurídico terá como fonte a Constituição, os costumes ou a legislação e a decisão judicial ou ato jurídico.18 Conclui-se, postas essas premissas, que o Direito não encontra em algo externo, independente de si mesmo, a sua fonte. A fonte do Direito é sempre o próprio Direito, conforme o pensamento kelseniano, e não normas morais, princípios políticos, doutrinas jurídicas, etc, por não terem estas idéias força de obrigatoriedade. Portanto, fonte de 16 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 16ª Ed. Rio de Janeiro. Editora Lúmen Júris. 2006, p. 87. 17 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.105. 18 Ibidem, p. 105-106. 12 Direito de uma norma jurídica será a norma jurídica que se encontre num nível superior segundo o escalonamento proposto. Mas nem sempre isso é observado e é possível que as normas que estejam em níveis hierárquicos distintos conflitem entre si. Uma norma de grau inferior poderá estar em dissonância com o determinado por uma norma de grau superior quanto ao seu processo de formação ou quanto ao seu conteúdo. É a norma inferior que vai de encontro à norma superior, o que resulta numa contradição lógica e que põe em questão a unidade do sistema normativo lógico e fechado quando tanto a norma superior quanto a norma inferior contraditória àquela são consideradas válidas. Para ser considerado válido um estatuto ou uma regra de Direito consuetudinário, o único fundamento de validade exigido é ter sido criado em conformidade com o processo previsto pela Constituição.19 Deste modo, quando se fala em “lei inconstitucional”, por exemplo, pretende-se dizer que aquela lei, anulável ordinariamente por outro estatuto (atendendo ao princípio lex posterior derogat priori), poderá ser anulada de outra forma que não a ordinária. Quando essa lei tida como inconstitucional tiver conteúdo diferente do prescrito pela Constituição ou criada de forma distinta da prevista, deverá ser considerada válida desde o momento de sua edição até o momento em que for anulada (segundo processo regulado pela própria Constituição) pelo órgão competente, como um Tribunal 19 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.102-103; 109-110. 13 Constitucional, de última instância ou Suprema Corte. Não será considerada nula, mas seus efeitos se estenderão, como norma válida que é, até o momento de sua anulação.20 Cumpre ressaltar, no que concerne ao conteúdo da lei, que não é a contradição lógica de per se, existente entre a Constituição e a norma inferior desconforme àquela, que se denominará “inconstitucionalidade”. A inconstitucionalidade só será assim admitida quando condição estabelecida pela preliminar de um processo, processo este de revogação da lei ou de punição de determinado órgão (nos termos do que se segue).21 A unidade formada pelos preceitos constitucionais relativos à criação e ao conteúdo das leis encontra neles um caráter de prescrições alternativas, cujas partes alternativas (produção legislativa e conteúdo das leis) são valoradas desigualmente. Ou seja, aquilo que a Constituição dispõe como processo de elaboração das leis e conteúdo legal é visto como partes de uma mesma unidade. Porém, essas partes recebem uma valoração distinta, desigual, quando comparadas entre si. Não podem ser igualmente valoradas.22 Esta desigualdade reside na desqualificação do conteúdo das leis em face da produção normativa, porque a lei que carrega em si um conteúdo desconforme à norma superior, embora tenha atendido a produção legislativa prevista, será considerada anulável pela Carta Constitucional (para os casos dos ordenamentos que não prevêem a revogação das leis inconstitucionais, se contentando com a responsabilização pessoal dos órgãos competentes pela aprovação de tais leis sem cessar a validade delas, ao invés 20 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 110. 21 Ibidem, p 110. 22 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.111. 14 de considerar anulável a norma inferior em contradição, será esta “declarada punível por causa de um órgão”).23 Nesse sentido, ao se referir aos preceitos constitucionais relativos à produção e ao conteúdo das leis, considerando que ambos os preceitos formam uma unidade e que tais preceitos relativos à legislação constitucional revelam o caráter de prescrições alternativas, Kelsen leciona que a diferenciação acontece no sentido de uma desqualificação da segunda alternativa diante da primeira. E essa desqualificação se traduz pelo fato de que a lei correspondentenão ao primeiro mas ao segundo preceito alternativo, justamente por causa dessa sua qualificação, é considerada anulável pela Constituição ou declarada punível por causa de um órgão. Nisso, porque a norma ‘antinormativa’ possa ser revogada, ou porque um órgão seja punido por causa dela, reside aquilo que se designa melhor como ‘antinormatividade’ (‘inconstitucionalidade’, ‘ilegalidade’), ou como a ‘falta’ ou “deficiência’ da norma”.24 Em se tratando de atos judiciais e jurídicos que vão de encontro ao disposto pela legislação, o mesmo entendimento deverá ser aplicado. Ao invés de se falar em inconstitucionalidade, passa-se a falar em ilegalidade. Assim como a Constituição determina a produção e o conteúdo das leis, a lei determina o modo de criação e o conteúdo dos atos judiciais e jurídicos, bem como estipula que um ato judicial ou jurídico produzido de forma destoante à prevista por ela ou com conteúdo diverso deverá manter a sua validade até que seja anulada pela instância competente, obedecendo-se ao processo devido.25 23 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.111. 24 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.111. 25 Ibidem. 15 Este processo a ser observado quando da anulação do ato judicial ou jurídico, em não havendo sua previsão ou se estiver se esgotado, implicará o crescimento em força jurídica da norma inferior ante a norma superior, ou seja, permanecerá válida, mesmo tendo conteúdo que afronta a lei, por ter se operado o chamado instituto da coisa julgada.26 Só se pode afirmar a contradição de uma norma inferior em face de outra superior quando da sua anulação por quem competente. A antinormatividade, citada por Kelsen, de uma norma supostamente válida, se manifesta pela sua revogação, pela sua anulação mediante a edição de outro ato judicial ou jurídico ou pela negação como norma validamente reconhecida, expurgando a sua aparência de norma juridicamente válida.27 O que não se permite é que haja uma contradição entre duas normas de níveis distintos do escalonamento proposto. Não se cogita qualquer contradição lógica que venha a comprometer a unidade no escalonamento do ordenamento jurídico. Para tal, utiliza-se de meios que possibilitem a anulação ou nulidade (nos casos em que haja tal previsão) dessas normas eivadas de inconstitucionalidade ou ilegalidade, como se depreende do que se segue: a “inconstitucionalidade” ou ‘ilegalidade’ de uma norma que, por um motivo ou outro, tem de ser pressuposta como válida significa, assim, ou a possibilidade de esta ser anulada (do modo ordinário, se for uma decisão judicial, de outro modo, que não o ordinário, se for um estatuto), ou a possibilidade de ser nula. Sua nulidade significa a negação da sua existência pela cognição jurídica.28 26 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito. Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.111. 27 Ibidem, p. 112. 28 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução de Luís Carlos Borges. 3ª Ed. São Paulo. Martins Fontes. 2000, p.233. 16 1.2 - A posição do direito internacional no escalonamento normativo proposto por Kelsen. Utilizando-se de uma análise de proporções mundiais, conclui-se pela existência de tantos ordenamentos jurídicos quantos sejam os Estados soberanos. Verificando-se a não existência de um único ordenamento jurídico vigente em escala global, mas uma multiplicidade deles que coexistem respeitando certas condutas que têm como fundamento viabilizar essa coexistência coordenada, atribui-se ao direito internacional a coadunação desses ordenamentos, delimitando de forma recíproca a validade jurídica de cada um deles. Nesses termos, o jurista aloca o direito internacional em um nível hierárquico, dentro do escalonamento normativo, acima dos ordenamentos jurídicos nacionais, ou seja, acima das próprias constituições dos países soberanos, por considerar o direito internacional como reflexo de uma comunidade jurídica universal. Defende, em sua “Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito”29 , que se se aceitar que não existe apenas um único ordenamento jurídico estatal, mas que existe uma pluralidade deles, coordenados e com a validade juridicamente delimitada, em plena vigência, reconhece-se – o que será mostrado adiante – que é o direito internacional positivo que realiza essa coordenação dos ordenamentos jurídicos únicos e a delimitação recíproca de seus âmbitos de validade, então deve-se conceber o direito internacional como acima dos ordenamentos jurídicos pertencentes a uma comunidade jurídica universal; com isso, a unidade de todo o direito é assegurada num sistema escalonado consecutivo. 29 Tradução de J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.109. 17 1.3 - Teorias atuais relacionadas à solução de eventuais conflitos que se estabeleçam entre o direito internacional e o direito interno. Embora perfilhada por muitos países e defendida por muitos adeptos, a teoria kelseniana que aloca o direito internacional com primazia sobre os ordenamentos nacionais não se revela de unânime aplicação pelos Estados soberanos. Buscando solucionar a questão apresentada quando normas de direito internacional e de direito interno se chocam, duas teorias se sobressaíram, sendo de corrente estudo ante a sua larga utilização e importância. A teoria dualista (ou dualismo) prega a independência entre o direito internacional e o direito interno. Seriam ordens jurídicas distintas e separadas, que de forma alguma se confundem. De um lado, a relação é entre os Estados. O direito internacional é a manifestação coletiva de vontade dos seus sujeitos de direito, ou seja, os Estados, sem que haja um órgão que lhes seja superior, seguindo essa ótica. De outro, a regulamentação é da relação entre indivíduos. O direito interno encerra a vontade unilateral do Estado, que se apresenta como algo superior aos indivíduos, sujeitos daquele direito.30 Em face dessa dicotomia que se apresenta, segundo esse entendimento, o direito internacional só se torna fonte de obrigações para os indivíduos quando suas normas se transformam em direito interno. O direito interno não encontra aplicação direta na ordem internacional. O mesmo ocorre com o direito internacional, que, por si só, não se 30 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva, 2008, p. 211 e JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 161. 18 aplica imediatamente aos ordenamentos internos dos países, de forma direta, mas deverá, para que haja a sua aplicabilidade, ser recebido conforme o estabelecido pelos procedimentos legais adotados pelos Estados. A internalização do direito internacional na ordem nacional atenderá à formula que prevê não apenas a sua introdução, mas também a sua transformação nos termos trazidos pelos procedimentos legais nacionais.31Com a transformação do direito internacional em direito interno, as normas internacionais passam a ser normas internas e, portanto, passíveis de revogação por uma lei interna posterior ou de hierarquia superior. Esse raciocínio implica dizer que não se pode falar em conflito entre normas internacionais e internas, mas de normas internas com normas originadas no direito internacional e que se transformaram em normas internas. O conflito que se estabelece, no fim das contas, é entre norma interna e norma interna.32 Por serem ambas normas internas, uma norma originariamente interna posterior ou de escalão hierárquico mais elevado não poderia ser anulada por ser contraditória à norma interna que tenha origem no direito internacional, remanescendo, para o Estado que não obedeceu ao compromisso internacional ao qual se dignou apenas a sua responsabilização internacional.33 Diferentemente, a teoria monista (ou monismo) refuta a tese de que existem duas ordens jurídicas distintas e independentes, quais sejam, direito internacional e direito 31 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva, 2008, p. 211 e JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 161. 32 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 161-162. 33 Ibidem, p. 162. 19 interno. Concebe a idéia de que há um único direito, sem distinguir sua origem como internacional ou interna.34 Partindo dessa premissa, dois alinhamentos surgiram: um apregoa que o direito interno prevalece ante o direito internacional, o outro apregoa a posição de superioridade do direito internacional em face do direito interno. A esses dois alinhamentos denominaram-se, respectivamente, tese do primado do direito interno e tese do primado do direito internacional.35 A idéia central da tese do primado do direito interno é a de que os Estados são independentes e detentores de soberania absoluta e, por isso, o direito internacional é meramente uma parte, a ser utilizada nas relações internacionais, que integra o direito interno.36 Já a tese do primado do direito internacional tem como cerne a idéia de que o direito internacional representa um fundamento jurídico de elevação superior que regula a relação de convivência entre os Estados independentes e soberanos, devendo, portanto, em casos de conflito, prevalecer em relação ao direito interno. Esta tese encontra inspiração primeira nas explanações kelsenianas acerca do tema, como se depreende do defendido em seu Teoria pura do direito: introdução à problemática científica do direito, como já mencionado em momento pretérito (item 1.2).37 34 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva, 2008, p. 211 35 Ibidem. 36 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 162. 37 Ibidem. 20 1.4 - O posicionamento da sociedade internacional e o posicionamento individual dos estados. A tese encabeçada por Kelsen sobre a primazia do direito internacional tem sido adotada pelas Cortes internacionais, não se atrelando às disposições constitucionais que cada Estado nacional propõe38. Se no âmbito interno o Estado, por meio de seus órgãos competentes, declara a inconstitucionalidade ou a revogação do Tratado por lei superveniente, esse ato só repercutirá internamente. Não revogará o Tratado em si, apenas acarretando efeitos domésticos, sem prejuízo de sua responsabilização internacional, quando o Estado que se sentir lesado poderá, pelos devidos meios internacionais, pleitear a reparação dos prejuízos decorrentes do inadimplemento das obrigações não cumpridas, a ser fixada na exata medida dos impactos sofridos em seu território nacional. Essa tomada de posição visa manter e proteger as bases de convivência internacional e tem se manifestado em diferentes momentos no decorrer do tempo. A Declaração de Direitos e Deveres dos Estados (de 1949) traz em seu 13º artigo que “todos os Estados devem cumprir, de boa-fé, as obrigações oriundas de tratados e de outras fontes do direito internacional, e não podem recorrer à Constituição ou às leis para se livrar da execução das obrigações internacionais”. A Convenção de Viena sobre o direito dos tratados (1969) traz disposições no sentido de que todo tratado haverá de ser cumprido de boa-fé pelos Estados-partes (art. 38 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 164. 21 26)39, de que esses mesmos Estados não podem invocar as disposições de seu direito interno para justificarem o não cumprimento do tratado a que se obrigaram (art. 27)40 e excepciona a regra de direito interno de importância fundamental como única causa de nulidade a ser invocada em face de tratado ao qual tenha aderido o Estado (art. 46)41. Em parecer datado de 1930, a Corte Permanente de Justiça Internacional propôs o seguinte preceito: “é princípio geralmente reconhecido, do direito internacional, que, nas relações entre potências contratantes de tratado, as disposições de lei interna não podem prevalecer sobre as do tratado”42. Seguindo essa linha de raciocínio, um Estado não poder se valer de uma norma ou lacuna do seu direito interno para se escusar de cumprir suas obrigações internacionais. Esse posicionamento, todavia, não implica a automática invalidação da norma ou decisão interna contrária ao direito internacional. Pelo contrário, poderá manter a sua validade e vigência dentro do território nacional, o que não significa que sanções não serão impostas ao Estado que as edite ou prolate, pois a hipótese do não reconhecimento da validade dessas normas ou decisões pelos outros Estados será acompanhada da possibilidade de responsabilização internacional.43 39 Art.26: “Pacta sunt servanda - Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”, disponível em meio eletrônico em http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acessado em 13/04/2010. 40 Art. 27: “Direito Interno e Observância de Tratados – uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado. Esta regra não prejudica o art. 46.”, disponível em meio eletrônico em http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acessado em 13/04/2010. 41 Art. 46: “Disposições do Direito Interno sobre Competência para Concluir Tratados - 1. Um Estado não pode invocar o fato de que seu consentimento em obrigar-se por um tratado foi expresso em violação de uma disposição de seu direito interno sobre competência para concluir tratados, a não ser que essa violação fosse manifesta e dissesse respeito a uma norma de seu direito interno de importância fundamental. 2. Uma violação é manifesta se for objetivamente evidente para qualquer Estado que proceda, na matéria, de conformidade com a prática normal e de boa fé”, disponível em meio eletrônico em http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm, acessado em 13/04/2010. 42 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva. 2008, p. 211. 43 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p.108. 22 Conquanto assim entenda a sociedade internacional genericamente considerada, faticamente se vislumbra uma desparametrização na adoção pelos Estados individualmente. A Holanda, por exemplo, traz expressamente a superioridade do direito internacional ante a ordem interna (no caso deste país, equipara os tratados à própria Constituição. O sistema constitucional daquele Estado possibilita que a vinculação a um instrumento internacional acarrete a modificação da própria Constituição)44. Outros países, como a Alemanha, a França e a Itália, encontram no bojo de suas Constituições que o direito internacional haverá de ser aplicado com status inferior ao constitucional45. Além deles, há ainda aqueles países que não encontram em suas cartas constitucionais qualquer manifestação acerca do tema, restando como uma incógnita. Como se não bastasse, ainda se pode observar que muitos Estados misturam os conceitos das teorias monista e dualista em suas formas puras, criando um misto entre elas, limitando e alargando alcances e adequando aos seus anseios como Estados soberanos. Como comenta Hee Moon Jo, “algumas obrigações internacionais entram em vigor no território nacional sem o processo de implementação específica, e outras obrigações internacionais exigem a implementação via legislação nacional”.46 A lógica aqui aplicada, a sua prima ratio, é a de que os Estados logram defender os interesses nacionais como uma unidade centralizada juridicamente reconhecida, não necessariamente buscando a solução teórica ou acadêmica mais adequada. 44 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p. 33 45 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 175. 46 Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p.163. 23 A filiação a uma ou outra corrente, em suas formas puras ou a uma modalidade mista, não refutará a possibilidade de situações em que haja conflito entre tratados e a Constituição nacional, ou entre tratados e lei ordinária. Havendo conflito entre tratado e Constituição, caberá ao órgão nacional competente, seja Tribunal ou juiz singular, resolver a lide verificada no caso concreto em conformidade com o sistema constitucional do Estado a que pertence. É nele, sistema constitucional nacional, que constará a opção pela superioridade do tratado em face da Carta Constitucional e conseqüente revogação das disposições contrárias àquele, a sua equiparação no mesmo nível de hierarquia ou a assunção do tratado como situado num patamar hierárquico inferior a ela e, portanto, submisso aos seus ditames. É questão a ser tratada internamente pelo próprio Estado e que enseja uma pluralidade de posições a serem seguidas. Embora reconhecidas as considerações supramencionadas, no que tange ao entendimento das cortes internacionais, qualquer conflito que envolva tratados celebrados, seja com a Constituição ou com a lei, surtirá o mesmo efeito de responsabilização internacional se houver o descumprimento das obrigações trazidas pelo tratado pactuado. Não se pode afastar a inteligência da disposição da Convenção de Viena sobre o direito dos tratados que impede os Estados de se utilizarem de suas normas internas para se escusarem pelo inadimplemento das obrigações internacionais às quais se comprometeram.47 47 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 173. 24 O possível conflito a ser criado entre tratado e Constituição encontra em certas Constituições a sua previsão, bem como a busca por solucionar a eventual situação conflituosa. É o caso da Constituição holandesa, que traz em seu art. 91, §3º que nenhum preceito de tratado que conflite com a Constituição ou que leve a conflitos com ela será aprovado pela Câmara do Parlamento, salvo se aprovado por pelo menos dois terços de votos a seu favor.48 Também a Constituição francesa, em seu art. 54, diz que se o Conselho Constitucional determinar que um acordo internacional contém uma cláusula contrária à Constituição, a ratificação ou aprovação desse acordo não poderá ser autorizada até que a Constituição seja revista.49 O problema surge quando a Constituição é omissa quanto à questão, ou seja, quando não explica a posição hierárquica do tratado no escalonamento jurídico daquela determinada ordem. Objetivando evitar esse tipo de situação, os Estados devem apurar a constitucionalidade da norma internacional antes de sua introdução no ordenamento nacional. Assim, recomendável se revela a atuação dos Poderes Executivo e Legislativo antes de se decidir pela vigência do tratado internamente.50 Se o conflito se der não entre tratado e Constituição, mas entre tratado e lei, não menos diversificadas se encontram as posições aderidas pelos Estados. Em determinado 48 “Any provisions of a treaty that conflict with the Constitution or wich lead to conflicts with it may be approved by the Chambers of the Parliament only if at least two-thirds of the votes cast are in favor”, disponível em meio eletrônico em http://www.servat.unibe.ch/icl/nl00000_.html, acessado em 13/08/2009. 49 “If, upon the demand of the President of the Republic, the Prime Minister or the President of one or other Assembly or sixty deputies or sixty senators, the Constitutional Council has ruled that an international agreement contains a clause contrary to the Constitution, the ratification or approval of this agreement shall not be authorized until the Constitution has been revised”, disponível em meio eletrônico em http://www.servat.unibe.ch/icl/fr00000_.html, acessado em 13/08/2009. 50 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 174. 25 momento, prevaleceu o entendimento de que tratado e lei interna receberiam tratamento similar. Tratado com vigência superveniente a lei nacional a revogaria, atendendo ao princípio de que lei posterior revoga anterior (lex posterior derogat priori), não ocorrendo o mesmo com lei posterior a tratado, pois o princípio de que os Estados cumprirão aquilo a que se obrigaram (pacta sunt servanda) seria invocado de modo a garantir que um impacto internacional viesse a ser ocasionado.51 Atualmente, há Estados que conferem aos tratados um nível de inferioridade em relação às suas leis, onde haveria a primazia da regra interna sobre o direito internacional, alinhando-se à tese do primado do direito interno. O direito internacional é aplicado subsidiariamente à lei nacional e apenas quando não conflite com ela. É o que ocorre nos Estados Unidos da América com relação aos chamados “acordos executivos” (executive agreements), ou seja, os acordos celebrados fora do processo constitucional, que são entendidos como acordos não auto-executáveis, precisando de lei nacional que venha a executar o seu conteúdo52. Diferente dos acordos celebrados conforme o processo constitucional, esses acordos não são hierarquicamente situados no mesmo patamar das leis federais, mas abaixo delas, não estando no rol ilustrativo da “lei suprema do país”53. Existem Estados que equiparam a força dos preceitos contidos nos tratados à dos trazidos pelas leis nacionais. Partindo dessa premissa de que tratado é igual a lei interna, aplicam o princípio de que lei posterior revoga pretérita. É o que os Estados Unidos 51 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional.2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 175. 52 Ibidem, p. 177. 53 O art. 6º da Constituição estadunidense aduz que a “Constituição e as leis dos Estados Unidos que se façam em seu cumprimento e todos os tratados celebrados ou que se celebrem sob a autoridade dos Estados Unidos serão a lei suprema do país, e os juízes em cada um dos Estados estarão sujeitos a ela, sendo nulas as leis de cada um dos Estados ou as suas Constituições que, em qualquer caso, sejam contrárias a eles”. 26 aplicam quando os acordos que são celebrados em consonância com o processo constitucional estão em situação de conflito com a lei nacional (lá conhecido como later-in-time statute principle).54 Há, ainda, os Estados que entendem pela primazia do direito internacional sobre o direito interno, salvo a Constituição nacional. Tratados são, conforme esse alinhamento, superiores hierarquicamente às leis nacionais, mas inferiores hierarquicamente à Constituição. Essa é a posição de Estados europeus como o alemão e o italiano, entre outros. Nesse sentido, expõe a Constituição italiana, em seu artigo 10, que o sistema legal italiano se conforma, se adéqua, aos princípios reconhecidos pelo direito internacional e que a situação legal dos estrangeiros é regulada pela lei em conformidade com as regras internacionais e tratados55. Dentre os países sul americanos, a Constituição argentina traz em seu artigo 75 que tratados e acordos têm uma hierarquia maior que as leis56, salvo aqueles taxativamente discriminados pelo seu inciso XXII, que terão hierarquia constitucional. 54 JO, Hee Moon. Introdução ao direito internacional. 2ª Ed. São Paulo. LTR, 2004, p. 176. 55 “Art. 10. [International Law] (1) The legal system of italy conforms to the generally recognized principles of international law. (2) Legal regulation of the status of foreigners conforms to international rules and treaties.”, disponível em meio eletrônico em http://www.servat.unibe.ch/icl/it00000_.html, acessado em 13/08/2009. 56 “Art. 75.- Corresponde al Congreso: 22. Aprobar o desechar tratados concluidos con las demás naciones y con las organizaciones internacionales y los concordatos con la Santa Sede. Los tratados y concordatos tienen jerarquía superior a las leys. La Declaración Americana de los Derechos y Deberes del Hombre; la Declaración Universal de Derechos Humanos; la Convención Americana sobre Derechos Humanos; el Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales; el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos y su Protocolo Facultativo; la Convención sobre la Prevención y la Sanción del Delito de Genocidio; la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial; la Convención sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación contra la Mujer; la Convención contra la Tortura y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes; la Convención sobre los Derechos del Niño; en las condiciones de su vigencia, tienen jerarquía constitucional, no derogan artículo alguno de la primera parte de esta Constitución y deben entenderse complementarios de los derechos y garantías por ella reconocidos. Sólo podrán ser denunciados, en su caso, por el Poder Ejecutivo nacional, previa aprobación de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara. Los demás tratados y convenciones sobre derechos humanos, luego de ser aprobados por el Congreso, requerirán del voto de las dos terceras partes de la totalidad de los miembros de cada Cámara para gozar de la jerarquía constitucional.”, disponível em meio eletrônico em http://www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/cuerpo1.php, acessado em 13/08/2009. 27 Postas essas considerações, afere-se a distinção qualitativa dada aos tratados e acordos internacionais pelos Estados nacionais, que não necessariamente apresentam qualquer subsunção ao trazido pela Convenção de Viena sobre o direito dos tratados, de 1969. 1.5 - Os procedimentos que vinculam o Estado brasileiro aos tratados. O caminho perseguido para que haja a vinculação do Estado brasileiro a tratados e acordos internacionais requer, como condição inerente e indispensável, a atuação conjunta de dois Poderes, senão Executivo e Legislativo. Simbolizando os dois Poderes em âmbito federal, institui a Constituição como competência privativa do Presidente da República “celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional” (art. 84, VIII) e como competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional” (art. 49, I). Valendo-se da discricionariedade atribuída ao caso, ou seja, fazendo um juízo quanto à conveniência oportuna de celebração daquele tratado, é atribuído ao Presidente da República, que, na qualidade de chefe de Estado, está investido dos poderes que conduzem a manutenção das relações internacionais, a iniciativa do processo legislativo de apreciação do tratado internamente. 28 Essa iniciativa se manifesta quando do envio de mensagem ao Congresso Nacional, submetendo à apreciação de suas Casas e integrantes os textos dos tratados por ele celebrados em nome do Estado, dos tratados multilaterais que ele julgue merecer apreciação legislativa para possível adesão (mesmo que sem a participação do Brasil no ato inicial de sua celebração) e dos tratados advindos de organizações internacionais.57 Submetido o tratado ao Congresso Nacional, a sua aprovação se materializará mediante a edição de decreto legislativo, que representa a autorização para a ratificação ou adesão ao tratado pelo Presidente da República. A diferença entre ratificação e adesão está no fato de que enquanto a ratificação decorre da participação formal do Estado no trâmite que envolve a feitura do tratado, cuja solenidade se manifesta quando da sua assinatura, na adesão o Estado não presta esse apoio formal, não apõe sua assinatura ao tratado, não confirmando nenhum ato anterior ocorrido na gênese do tratado.58 A aprovação pelo Congresso Nacional se fará tendo em observância a adoção de quorum de maioria simples (também conhecida como maioria relativa), ou seja, cada uma das Casas do Congresso Nacional deverá aprovar o tratado pelos votos da maioria dos parlamentares presentes nas sessões deliberativas designadas, desde que os presentes totalizem, pelo menos, a maioria dos integrantes da respectiva Casa. É a “maioria da maioria absoluta”. Importante se mostra ressaltar o fato de que o quorum de aprovação é o mesmo utilizado para a aprovação de projeto de lei ordinária, nos termos do art. 47 da Constituição Federal, diferente do utilizado para a aprovação de projeto de lei complementar, que, à luz do art. 69, será aprovado por maioria absoluta. 57 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p. 89. 58 Ibidem, p. 90. 29 A aprovação pelo Congresso Nacional viabiliza a consumação da relação surgida em âmbito externo, já que habilita o Chefe do Executivo federal a realizar o ato de ratificação ou adesão. Essa ratificação ou adesão será instrumentalizada por correspondência oficial a ser endereçada e enviada ao Estado ou organização internacional responsável, i.e., o incumbido na condição de depositário do texto pactuado pelos Estados.59 Finalizado esse procedimento interno com posterior ratificação ou adesão e já estando o texto convencional em vigor internacionalmente,o Presidente da República procederá à promulgação do texto objeto de acordo internacional por meio de decreto, que será o instrumento apto à produção de efeitos na ordem interna.60 Resumindo esquematicamente esse processo, Cachapuz de Medeiros leciona que pode transcorrer de duas formas: a) inicia com a negociação e a adoção do texto, prossegue com a avaliação interna de suas vantagens ou inconvenientes e, no caso de ser aprovado, ocorre a manifestação da vontade do Estado em obrigar-se pelo tratado, o aperfeiçoamento jurídico- internacional dessa vontade e a incorporação do texto do tratado à ordem jurídica interna (negociação – assinatura – mensagem ao Congresso Nacional – aprovação parlamentar – ratificação – promulgação); b) o Executivo solicita ao Congresso autorização para aderir a um tratado. Concedida a autorização, é remetido o instrumento de adesão à autoridade depositária do tratado, que leva ao conhecimento das partes a decisão do Brasil de também assumir as obrigações do tratado. Entrando o ato de adesão em vigor no plano internacional, o tratado é incorporado à ordem jurídica interna (mensagem ao Congresso – autorização parlamentar – adesão – promulgação).61 No que concerne à promulgação, embora ainda resista algum entendimento em contrário, é majoritário o de que a publicação de seu decreto presidencial induz à 59 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p. 90.. 60 Ibidem. 61 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados – competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados, à luz do direito internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor. 1995, p. 458, apud DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva. 2003, p.91 30 vigência do tratado na ordem interna, tendo o seu início na data de publicação ou na que constar expressamente em seu texto, se houver disposição nesse sentido. Independente de haver ou não essa publicação pós-ratificação ou adesão, o Estado permanece responsável internacionalmente pelo seu cumprimento.62 Não se confunde a impossibilidade da exigibilidade das normas no plano interno, trazida pela não publicação do decreto presidencial de promulgação, com a obrigação trazida pela ratificação ou adesão do tratado. O Estado que ratificou ou aderiu ao tratado só se livra de tal responsabilização quando se vale do meio institucional apto à extinção do contrato, senão a sua denúncia.63 1.6- A inovação trazida pela Emenda Constitucional n.º 45. No ano de 2004, a Emenda Constitucional n.º 45 – também conhecida como a Emenda da “reforma do Judiciário” – acrescentou ao art. 5º (que trata dos direitos e deveres individuais e coletivos) o seu parágrafo 3º, cuja redação assim trouxe que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Essa inovação seguiu a tendência global de atribuir às matérias versadas nos tratados sobre direitos humanos uma diferenciação em relação às outras, devido à sua importância. Não apenas os Estados passaram a trazer em suas Constituições essa maior 62 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p. 97-98. 63 Ibidem, p. 100. 31 preocupação com relação a esses tratados como a doutrina, que já vinha apelando por comportamentos nesse sentido, celebrou esse novo posicionamento. No Brasil, Antônio Augusto Cançado Trindade, que há muito advogava a idéia de conferir aos tratados internacionais sobre direitos humanos um status de superioridade em relação aos demais, já ensinava que os tratados de direitos humanos beneficiam diretamente os indivíduos e grupos protegidos. Cobrem relações (dos indivíduos frente ao poder público) cuja regulamentação era outrora apanágio do direito constitucional. E diversas das Constituições modernas, a seu turno, remetem expressamente aos direitos consagrados nos tratados de direitos humanos (cf. supra), a um tempo revelando nova postura ante a questão clássica da hierarquia normativa dos tratados internacionais vigentes assim como concebendo um tratamento especial ou diferenciado também no plano do direito interno aos direitos e garantias individuais internacionalmente consagrados (cf. supra). Regendo a mesma gama de relações, dos indivíduos ante o Estado, o direito internacional e o direito interno apontam aqui na mesma direção, coincidindo no propósito básico e último de ambos da proteção do ser humano.64 Portanto, passou a existir uma nova classe de tratados, erigida ao nível constitucional. Sua cessação de efeitos internos não mais se dá por meio de denúncia, mas mediante a edição de nova emenda constitucional que, por sua vez, se torna inviabilizada por violar cláusula pétrea, conforme previsão exposta no art. 60, §4º, IV da Constituição.65 Entretanto, a referida Emenda nada mencionou quanto àqueles tratados adotados pelo Brasil antes de sua edição, restando omissivamente inerte a solucionar a questão que se travou acerca do status que teriam tais tratados. 64 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume I. Porto Alegre. Sérgio Antônio Fabris Editor. 2003 (2ª. Ed.), p. 542. 65 O primeiro tratado aprovado pelo Congresso Nacional mediante procedimento previsto no §3º do art. 5º da Constituição Federal foi a Convenção sobre o Direito das Pessoas com Deficiência, no ano de 2008. 32 Manteriam eles o nível de lei ordinária, como até então era o entendimento prevalecente no país, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal? Haveria equiparação entre os tratados internalizados anteriormente à edição da Emenda e os tratados que atendessem ao processo previsto pela Constituição a partir do ano de 2004? Também teriam força constitucional? Outras incógnitas também restaram sem solução prevista pela Emenda. Como ficaria a questão da promulgação pelo Presidente da República prevista no processo de adoção de tratado, haja vista a edição de Emenda Constitucional prescindir tal ato pelo Executivo? No caso de Emenda Constitucional, o Poder competente para a promulgação é o Legislativo, nos termos do art. 60, §3º, da CF. Como já foi dito anteriormente, a aprovação parlamentar autoriza a ratificação ou adesão ao tratado, promovendo-se, após isso, a sua promulgação pelo Presidente da República (essa é a regra, como já explicado no item I.v, de questionável aplicação no caso de Emenda Constitucional, já que a promulgação é feita pelo próprio Legislativo, nos termos do art. 60, §§2º e 3º, da Constituição Federal). É a ratificação que determina o início da vigência do tratado e vinculação do Estado brasileiro no plano internacional. Essa comunicação aos demais Estados pactuantes sobre a aceitação interna é de competência do Chefe do Executivo federal, constituindo-se uma afronta ao sistema de separação de Poderes repassá-la ao Poder Legislativo, para um grupo de autores. Sobre o tema, dizem ACCIOLY, NASCIMENTO E SILVA e CASELLA : a questão da promulgação é outro ponto de interrogação, uma vez que as emendas constitucionais não são promulgadas pelo Chefe do Executivo, mas 33 pelo Congresso. Ante a ausência da promulgação, resta saber como o Chefe do Executivoprocederá à ratificação do tratado. A ratificação constitui ato imprescindível para determinar o início da vigência, vinculando o Estado brasileiro no plano internacional. Somente o Presidente da República tem o poder de celebrar tratados, de forma que se inclui a comunicação aos demais países da aceitação interna. Não se coaduna com a separação dos poderes, essencial em estado de direito, passar essa função ao Congresso, que não mantém relações diplomáticas nem representa o País no exterior. Constata-se que a EC n. 45 deixou esse ponto em aberto. 66 Somente com a apreciação do caso concreto é que o Judiciário poderá se manifestar sobre o tema e uma solução se apresentar à problemática ora instaurada. Progressivamente essas questões serão levantadas e respostas até então não dadas pela Emenda serão aventadas. 2. SUPRALEGALIDADE OU CONSTITUCIONALIDADE DOS TRATADOS QUE VERSEM SOBRE DIREITOS HUMANOS. 2.1 - O posicionamento brasileiro sobre a incorporação dos tratados e a sua hierarquia no ordenamento jurídico interno. No caso brasileiro, não se pode falar que houve aplicação das doutrinas monista ou dualista em sua forma natural, pura. Novas interpretações lhes foram conferidas, amoldando-se à realidade e aos anseios de nossa experiência jurídica. Dessa forma, novas expressões foram criadas para indicar a diferença dessas doutrinas enxergadas em sua forma pura e as suas novas modalidades. O dualismo puro passou a ser chamado dualismo radical pela doutrina brasileira, mantendo em sua essência a necessidade de edição de lei específica que permita a incorporação do tratado ao ordenamento nacional, como encabeçado originariamente pelos teóricos do dualismo 66 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva, 2008, p. 222. 34 puro, enquanto a sua forma modificada, derivada, foi chamada dualismo moderado, segundo a qual não se mostra necessária a edição de lei para a incorporação do tratado, sendo bastante um procedimento complexo caracterizado pela aprovação do Congresso Nacional acompanhada da promulgação pelo Executivo federal.67 Ao monismo puro foi conferida a classificação de “radical”, mantendo a sua característica de defender a superioridade do tratado ante o ordenamento interno, ao passo que a sua forma modificada, derivada, recebeu a classificação de “moderada”, por equiparar hierarquicamente o tratado à lei ordinária, subordinando-se à Constituição e perdendo a sua efetividade por norma superveniente.68 A discussão gerada sobre a relação entre normas internas e internacionais ensejou a sua análise em duas partes. A primeira parte, cuja apreciação é requisito para a da segunda (hierarquia dos tratados), diz respeito à incorporação dos tratados à ordem interna. A incorporação, que se efetiva no momento da publicação do decreto presidencial de promulgação do tratado, é que permite às normas originariamente internacionais produzirem efeitos na ordem interna, criando direitos e deveres aos particulares. 69 Ao prescindir de lei específica para incorporar tratado, mas procedimento complexo que envolve o decreto legislativo que autoriza o Presidente da República a ratificá-lo ou aderi-lo, o Brasil se filia ao chamado dualismo moderado (para uma 67 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva, 2008, p. 212. 68 Ibidem, p. 213. 69 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p. 102. Nesse sentido, ainda leciona que a incorporação não se confunde com o início da vigência do tratado no território do Estado, que poderá ocorrer na data da publicação do decreto presidencial de promulgação ou em data posterior trazida no próprio texto desse instrumento. 35 parcela da doutrina, como Hildebrando Accioly, Nascimento e Silva e Paulo Borba Casella)70. Esses dois momentos distintos, incorporação e posição hierárquica dos tratados, foram abordados pelo Supremo Tribunal Federal nos idos da década de 1970, quando da decisão proferida no RE 71.15471, onde se concluiu pela discussão da hierarquia do tratado em face de lei nacional somente após a sua internalização. A própria noção de dualismo moderado foi primeiramente abordada pelo Ministro Celso de Mello na Carta Rogatória 8.279 baseando-se naquele acórdão.72 A segunda parte, como já mencionado anteriormente, trata da hierarquia dos tratados em face de lei nacional. Ainda na década de 1970, mais precisamente em 1º de junho de 1977, com a decisão proferida no RE 80.004, cuja matéria se tratava de conflito entre a Lei Uniforme de Genebra sobre Letras de Câmbio e Notas Promissórias (LUG) e o Decreto-Lei 427/69, o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento no sentido da recepção plena de tratado internacional sem lhe atribuir status superior ao de lei nacional. Esse entendimento foi classificado como de monismo moderado pela doutrina, como ensina Accioly, Nascimento e Silva e Casella: o STF, ao decidir o RE 80.004, teve esse julgado, classificado pela doutrina, como exemplo de monismo moderado, momento, inclusive, do surgimento dessa terminologia. Nesse caso, decidiu o STF que lei interna superveniente 70 Existe uma corrente doutrinária que prega que, por não terem natureza jurídica de lei em sentido estrito, decretos presidenciais não podem criar direitos e obrigações. Apenas tratados podem instituí-los quando equiparados às leis nacionais, no caso brasileiro. Para essa corrente, só poderia ser entendido como dualista a sua forma pura, com a promulgação de tratado mediante lei, e não decreto presidencial, ignorando a existência do chamado “dualismo moderado”. Assim expõe Pedro B. A. Dallari (Constituição e tratados internacionais. São Paulo. Saraiva, 2003, p. 107). 71 Na ementa, consta que “(...) Aprovada essa Convenção pelo Congresso Nacional, e regularmente promulgada, suas normas têm aplicação imediata, inclusive naquilo em que modificarem a legislação interna. (...)”,disponível em meio eletrônico em http://www.stf.jus.br, acessado em 13/08/2009. 72 “Sob tal perspectiva, o sistema constitucional brasileiro – que não exige a edição de lei para efeito de incorporação do ato internacional ao direito interno (visão dualista extremada) – satisfaz-se, para efeito de executoriedade doméstica dos tratados internacionais, com a adoção de iter procedimental que compreende a aprovação congressional e a promulgação executiva do texto convencional (visão dualista moderada).”, fls. 14 e 15 do voto em apreço, disponível em meio eletrônico em http://www.stf.jus.br, acessado em 13/08/2009. 36 poderá afetar tratado em vigor, com exceção daqueles referentes a matéria tributária, em face do que dispõe o art. 98 do CTN. Passando o tratado a integrar a legislação interna, depois de sua incorporação, encontra-se este em igualdade de condições às demais leis, e todas as incoerências que apresentar serão analisadas da mesma forma que aquelas surgidas em relação às demais leis.73 Encontrando-se o tratado nesse patamar hierárquico, subordina-se tanto ao critério de temporalidade (norma mais recente) quanto ao de especialidade. Dessa maneira, tratado que seja dotado de especialidade se sobrepõe à lei interna que trate de matéria geral. Se o contrário se perfizer, i.e., se o tratado é que dispuser sobre matéria de abrangência gerale lei interna sobre matéria especial, esta prevalece em face daquele. Tratando da mesma matéria, a norma superveniente (seja tratado ou lei interna) prevalece em face da outra, respeitando o critério de temporalidade. Possuindo natureza jurídica de contrato, onde os Estados celebrantes atuam como partes, não se cogita da revogação do tratado por lei interna superveniente, mas do afastamento da sua efetividade por esta lei. Embora soe estranha à lógica do Direito Internacional, que não admite a sobreposição de norma interna sobre internacional, essa foi a teoria adotada pela Corte Suprema brasileira, tendo em observância a incapacidade de tratado sofrer revogação. Essa foi a regra aplicada até que se fez urgente resolver a questão dos tratados que versam sobre Direitos Humanos, ainda mais após a edição, em 2004, da Emenda n.º 45. Como exceção a essa regra de que lei interna superveniente se sobrepõe a tratado em vigor só era atribuída aos tratados que versassem sobre matéria tributária essa prerrogativa, em face do trazido pelo art. 98 do Código Tributário Nacional.74 73 ACCIOLY, Hildebrando; NASCIMENTO E SILVA, G. E. do; CASELLA, Paulo Borba. Manual de direito internacional público.16 ed. rev., atual e ampl. São Paulo. Saraiva, 2008, p. 213. 74 “Os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha”. BRASIL. Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966. Dispõe 37 2.2 - O caso concreto que modificou o paradigma jurisprudencial com relação à prisão do depositário infiel. No fim de 2008, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou pela impossibilidade da prisão civil do depositário infiel, contrariando a jurisprudência reiterada da maioria dos tribunais brasileiros (dentre os quais o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios), que admitia essa espécie de constrição pessoal. O caso concreto que possibilitou essa reorientação da Suprema Corte surgiu em São Paulo, nos termos do que se segue. O Banco Bradesco ajuizou ação de busca e apreensão em face de um cliente com quem havia celebrado contrato de financiamento para aquisição de bens garantido por alienação fiduciária, onde se comprometeu ao empréstimo de quantias em benefício do requerido, com as quais adquiriu um veículo automotor. Ocorre que este transferiu o carro objeto do contrato, deixando também de adimplir com as prestações a que se obrigara e incorrendo em mora, nos termos do parágrafo 2º do art. 2º do Decreto-Lei 911/69. Convertida a ação em depósito após restar infrutífera a busca e apreensão até então ajuizada, requereu o banco a entrega do bem ou seu depósito em juízo no prazo de 24 horas, sob pena de prisão. O requerido nada disse, incorrendo em revelia. Deferido o pedido de depósito sem que, contudo, houvesse manifestação judicial no sentido da prisão civil do requerido, foram opostos embargos de declaração de modo sobre o Sistema Tributário Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e Municípios. Brasília, 1996 disponível em meio eletrônico em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L5172.htm, acessado em 13/04/2010. 38 a suprir tal omissão, ocasião em que aquele juiz de primeiro grau se justificou no sentido de que aquele caso não se configurava como de depositário infiel, mas de mutuário em contrato de alienação fiduciária, i.e., não pagou dívida de verdadeiro contrato de empréstimo bancário. Já havia entendimento dos Tribunais nesse sentido, inclusive do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, quando classificou a prisão do devedor em contrato de mútuo, mesmo que garantida pela cláusula de alienação fiduciária, como ilegal.75 O requerente apelou ao até então 2º Tribunal de Alçada Cível de São Paulo em 03/12/2002, de modo que fosse reformada a decisão do juízo a quo, decretando a prisão civil do requerido. Para tal, utilizou-se de julgado que representava a jurisprudência dominante da Suprema Corte e que respaldava o pretendido, qual seja, o RE 235.879-2- SP. Até aquele momento, tendo em vista a equiparação dos tratados às leis ordinárias e o critério da especialidade, mesmo já tendo sido celebrada a Convenção Americana de Direitos Humanos (Declaração de San José sobre Direitos Humanos76 ou também conhecido “Pacto de San José da Costa Rica”), que previa em seu artigo 7º apenas a admissibilidade da prisão civil do alimentante que não adimplisse com a sua obrigação de forma voluntária e inescusável, prevalecia o entendimento de que “a referida disposição de que só é admissível a prisão do alimentante, embora, incorporada ao 75TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. 2ª Turma Criminal. Habeas Corpus n.º 89.492, Relator: Desembargador Costa Carvalho. Brasília/DF: 13 de setembro de 1996. Diário de Justiça de 20 de novembro de 1996. 76 A Declaração enfatiza os direitos humanos, democracia e o desenvolvimento em seus muitos aspectos, atendo-se principalmente aos grupos vulneráveis (em especial as crianças, a condição da mulher, dos portadores de deficiência, dos idosos, dos enfermos terminais, dos povos indígenas, dos trabalhadores migrantes), à identificação dos obstáculos aos direitos humanos, reafirmando a interdependência e indivisibilidade de todos os direitos humanos, com atenção especial ao domínio econômico e social, ao fortalecimento da democracia e do Estado de Direito e à prevenção de violações maciças e sistemáticas de direitos humanos. 39 direito interno, não revogou a norma especial da nossa legislação, que admite a prisão civil do depositário remisso”77 e “Pacto de São José da Costa Rica não revogou a possibilidade de se decretar a prisão civil do depositário infiel”.78 Na segunda instância, novamente restaram sem êxito os apelos do requerente, quando a decisão prolatada direcionou-se no sentido de que ao se interpretar a autorização que a Constituição Federal traz no artigo 5º em relação à prisão civil do depositário infiel deverá se fazer de forma restrita, em seu sentido próprio, não se estendendo a casos alheios àqueles em que alguém recebe de outrem objeto móvel para guardá-lo e que, instado a devolvê-lo, não o faz ou não se justifica adequadamente. Ainda irresignada, a parte autora recorreu ao Supremo Tribunal Federal, originando o RE 466.343-SP, sendo a presidente a Ministra Ellen Gracie, o que desencadeou profunda discussão acerca do status que teriam as normas trazidas pelos tratados que versem sobre direitos humanos, além da impossibilidade de prisão civil do depositário infiel. Por aquela Corte foi decidido que os tratados que tenham esse tipo conteúdo (direitos humanos) possuem hierarquia supralegal e que não mais seria possível decretar a prisão civil baseada no descumprimento de uma obrigação de depósito. 77 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Primeira Turma. Recurso Extraordinário n.º 235.879-2/SP. Relator: Ministro Ilmar Galvão. Brasília/DF: 03 de novembro de 1998. Diário de Justiça de 26 de março de 1999. 78 “HABEAS CORPUS. DEPOSITÁRIO JUDICIAL. DESCUMPRIMENTO DE MUNUS PÚBLICO. PRISÃO CIVIL. Descumprido, de forma voluntária, o dever de guarda e conservação dos bens arrolados, caracteriza-se a infidelidade, o que legitima a prisão civil. Quem se nega a devolver bem penhorado de que é depositário pode
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