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Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Aviso Legal - Social DRM http://www.bookess.com/ Atenção! Esta obra foi adquirida por Brenda Cristina Rodrigues Oliveira , cujo número da identidade é 18151515, no dia 20/08/2018 às 16:26:00. É vedado qualquer tipo de distribuição ou comercialização desde documento, executando-se ao mesmo as responsabilidades implícitas por lei em caso de extravio. Para maiores informações, acesse: - Termos de uso http://www.bookess.com/infos/terms-of-use/ - Política de Privacidade http://www.bookess.com/infos/privacy-policy/ - Bookess contra a pirataria http://www.bookess.com/infos/anti-piracy/ Desejamos a você uma ótima leitura! Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira das O Segredo Cartas Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 2015, Bookess Editora Revisão TexTual Guilherme Peixoto Gabriella Regina PRojeTo GRáfico Ana Paula Agostini caPa Ana Paula Agostini Editora Bookess Rua Lauro Linhares, 1281, Sala 04 - 88036-003 Florianópolis - SC A Editora Bookess é responsável pelos serviços de capa, revisão e diagramação deste livro. Entretanto, o conteúdo desta obra é de responsabilidade exclusiva do autor. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, sem a permissão por escrito, do Autor. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Belo, Warley O segredo das cartas / Warley Belo. -- Florianópolis, SC : Bookess, 2015. ISBN 978-85-448-0123-9 1. Crimes (Direito penal) 2. Direito penal - Brasil - Casos 3. Julgamento 4. Justiça 5. Processo penal I. Título. 15-02681 CDU-343(81) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Casos criminais : Direito penal 343(81) Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 2015, Bookess Editora das O Segredo Cartas Warley Belo Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Aos Professores da Faculdade de Direito Kennedy de Belo Horizonte que pacientemente ouviram esta história dezenas de vezes na Sala dos Professores, me incentivaram a escrevê-la e aqui faço o registro nominal, conforme prometido “com afeto e carinho”: Professoras: Bárbara Carolina Mendes, Cristiane Helena Cabral, Lucélia Sena, Margareth de Abreu, Maria Cristina Dias Nascimento, Mariana Swerts, Renata Paula de Oliveira, Silvana Fortes, Sílvia Portilho e Tatiana Boueri. Professores: Alex Cabral, Claudiney Dulim, Dalvo Leal Rocha, Evaristo de Magalhães, Filipe Bezerra, Hellom Lopes, Herzio Mansur, James Ladeia, Jânio Donato, João Salvador dos Reis, Joel Moreira Filho, Nelson Garcia, Renato Braga Bicalho, René Vial e TOSTES, Otávio. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Conhece-se a verdade muito mais pelos atos do que pelas palavras. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Sumário Deus perdoa . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Lobo em pele de cordeiro . . . . . . . . . . . 19 Vestido de verde e amarelo . . . . . . . . . . . 25 Coffebrainstorm . . . . . . . . . . . . . . . . 29 As cartas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Incidente de uniformização . . . . . . . . . . . 35 O julgamento do incidente . . . . . . . . . . . 39 Para Brasília e avante . . . . . . . . . . . . . . 43 Resiliência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 A visita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 Tempus fugit . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 A justificação . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 Homem de pouca fé . . . . . . . . . . . . . . 63 O segredo das cartas . . . . . . . . . . . . . . 71 Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 11Deus perdoa Marcamos reunião às três horas da tarde no saguão principal do fórum Lafayette. Meu escritório ficava longe do centro de Belo Horizonte e eu tinha uma audiência mais cedo. Acabaria por resolver dois assuntos no mesmo lugar. Nos dias atuais, é necessário ser dinâmico. Tam- bém facilitaria a vida de Vinícius Baía e Floriano que não se- riam obrigados a se deslocar para uma região da Capital que lhes era desconhecida. Era novembro e, naquela tarde, chovia copiosamente. Lá dentro fazia um calor abafado, mas que permitia vestir terno de maneira confortável. No horário marcado, avistei meu amigo juiz-forano Vi- nícius Baía que traria e apresentaria o novo cliente, Floriano Monforte. O advogado anterior havia falecido e, por isso, ne- cessitava de um novo defensor para tocar a causa. Vinícius Baía estava, como sempre, vestido despojada- mente. Ambos tinham vindo de carro, naquele dia, de Juiz de Fora e apresentavam um certo ar de cansaço. Floriano Mon- forte, entretanto, trajava um terno preto um tanto amarrotado Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 12 e os cabelos estavam desalinhados, provavelmente por ter via- jado com as janelas do carro abertas. Baía havia me relatado o caso por alto. Era sério. Floria- no estava condenado a doze anos e seis meses de prisão e o TJMG já havia confirmado em grau de apelação a sentença condenatória. Faltava muito pouco para a execução da pena. Não chegou a antecipar-me o caso em seus pormenores, mas sabia que era uma acusação de pedofilia. Um caso sempre é um caso, mas esse, se por um lado me atiçava a curiosida- de porque o advogado falecido era muito renomado em Belo Horizonte, por outro, repelia-o por ser um crime tão grave. Querendo ou não, o fato de ser escolhido para substituir um grande advogado é sempre um privilégio. Esse já era um alen- to positivo que me fazia ver o caso com bons olhos, apesar da natural relutância preconceituosa que nutria em defender acu- sados daquele crime. Também significava um alívio para mim, porque se um advogado de renome como o que sucederia não havia conseguido absolver o réu, quem seria eu a substituí-lo, já no apagar das luzes, para reverter uma duríssima condena- ção de doze anos e seis meses de reclusão? Não teria nada a perder; já o Floriano… Cumprimentamo-nos efusivamente. Abraçou-me. Já ha- via alguns meses que não encontrava meu amigo Baía, que havia conhecido quando eu fora coordenador do curso de pós-graduação em ciências criminais da UFJF, onde ministrei aulas. Mais um ponto favorável: significava que teria deixado boa impressão no colega, já que no curso também ministra- vam aulas outros advogados criminalistas, apesar de existi- rem competentíssimos criminalistas em Juiz de Fora. Talvez o fato de Floriano ser Defensor Público ali, oficiando, tenha pesado na escolha de um advogado “de fora”, ou mesmo por- que o processo já estivesse na Capital, em grau de recurso, onde seria mais seguro ter um advogado local para acompa- nhar. De qualquer modo, uma responsabilidade a mais para Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 13 mim, já que uma intervenção mal sucedida no caso poderia significar também uma baixa em dupla fronte: na advocacia e na docência. Apresentou-me o Floriano. Baixa estatura, quase desapa- recido entre o meu amigo e eu, apesar de não sermos muito altos. Estava nervoso e ansioso para iniciar a conversa, o que é um pouco ruim porque é sempre bom que a primeira conversa se alongue um pouco, ainda mais num caso daqueles, que já imaginava complexo. Quando me cumprimentou, percebi que suas mãos estavam trêmulas. Mas o que mais me chamou a atençãofoi aquela áurea que possuía de condenado. Pode até ser que eu tenha criado uma imagem do réu condenado, mas a verdade é que o homem ali em minha frente não só tinha cara de condenado, como exarava um sentido de alma aprisionada, profunda e escura, talvez sinal de muito sofrimento agrilhoado sem ter por onde escoar. Não é muito difícil imaginar o que pesa sob o semblante e alma de qualquer ser uma sentença criminal de doze anos e seis meses de reclusão. Aquele ali não me deixava dúvidas: era um homem condenado. Lia-se em seu rosto, percebia-se o peso no seu andar, sobre seus ombros, o olhar profundo, a dor incessante, as noites mal-dormidas dos últimos anos e, já adianto, também dos próximos. Feitas as apresentações de praxe, propus irmos a uma ca- feteria ali perto para conversarmos mais confortavelmente so- bre o caso. Baía, muito delicadamente, preferiu não ir. Sabia que o caso era de revelar intimidades. Pegamos um táxi bem em frente ao fórum e para lá nos dirigimos. Sentamos um de frente ao outro. Olhos nos olhos e o senhor que ali estava, após pedir um café cada um, começou a relatar sua sina. O caso era de que havia sido condenado por abusar sexualmente de sua própria filha, que contava à época, com seis anos de idade. A pedofilia. Esses casos são realmente terríveis. Devo confessar que tenho pouca resistência para esse tipo de proces- so. Tenho consciência da minha obrigação profissional, mas Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 14 crime contra crianças me deixa um pouco abalado. Desde sempre aprendemos que o dever do advogado é defender o di- reito e não o crime. Evidentemente que não se pode compac- tuar com abuso sexual de nenhuma espécie, muito menos de um pai contra a própria filha, mas no caso era eu o advogado de defesa e precisaria me concentrar nesse mister procurando o melhor a se fazer. Ouvi a sua versão e fiquei temeroso quando o mesmo me confidenciou que a criança era quem o acusava. Havia feito a acusação na polícia e em juízo com acompa- nhamento de psicólogos e assistentes sociais. Esses casos são complicados. A palavra da vítima, nesses crimes chamados de crimes entre quatro paredes, normalmente, põe termo definiti- vo. Isto quer dizer que a palavra da vítima tem peso relevante e suficiente para uma condenação. Bastasse uma prostituta acusando-o, uma mulher de rua desconhecida e ensandecida, que mesmo assim teria graves e sérios problemas com a acusa- ção leviana; mas a própria filha, criança de seis anos a acusar- lhe de maneira peremptória de que foi vítima de abuso… Era causa perdida; condenado ficaria. Sem ler os autos, antecipava-lhe o que já sabia: o caso era gravíssimo. Talvez estivesse em seus últimos dias de liberdade. O advogado não deve mentir para o cliente, ainda mais na seara criminal. Não se brinca com a liberdade de ninguém. Também não podemos antecipar a condenação ou “jogar a toalha” antes do gongo final, mas o caso parecia realmente perdido. Não quis fixar os honorários, queria ver os autos an- tes e confirmar toda a acusação, os fundamentos da sentença e do acórdão. Os autos estavam ali perto da cafeteria, no Tri- bunal de Justiça, mas ainda não possuía o substabelecimento do escritório do antigo advogado e se tratava de causa em se- gredo de justiça. Não poderia simplesmente chegar no balcão para fazer um estudo. Por outro lado, o caso era urgente. Poderíamos ter a ex- pedição de um mandado de prisão a qualquer instante. Pedi Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 15 o substabelecimento para aquela mesma tarde para evitar al- gum problema ético, mas, como era uma solicitação de urgên- cia, providenciei ali mesmo uma procuração para tirar cópia dos autos. Estava apreensivo com a possibilidade de algum prazo correndo e queria, o quanto antes, saber dos fundamen- tos e em que pé estava o andamento. Já havia conversado o suficiente com o Floriano e o mesmo jurara inocência. Quanto antes ir ao Tribunal seria melhor. O mesmo quis me acompa- nhar, mas achei melhor não. Iria lhe telefonar no mesmo dia, se houvesse algo de maior urgência e relevância. A procura- ção me bastava naquele momento. Despedi-me na porta da cafeteria. Não sei o porquê, mas fingi que não vi quando o mesmo me estendeu a mão. Aquela chuva me fazia pensar em cobrar um pouco mais os honorários imaginados. Molharam-me todo o sapato e meu terno. Cheguei ao Tribunal e pedi para ver os autos. Tive sor- te, os autos estavam na secretaria. Mostrei a procuração. Não cheguei a protocolar naquele momento, também não pediram para protocolar. Talvez estivesse demonstrando um pouco de apreensão. O processo já contava com quatro volumes e qua- se três mil folhas. No fim, o pedido de dia para julgamento dos Embargos Infringentes de uma Apelação. O julgamento deveria ser marcado em poucos dias, talvez não demoraria nem uma semana. O julgamento não ocorrera, mas a discus- são dos Embargos era muito limitada. Até que o Tribunal confirmasse a data de julgamento, teria tempo mais do que suficiente para destrinchar e entender aquele caso a tempo de produzir sustentação oral, seja para que fim fosse. A curiosidade era tamanha, entretanto, que folheei os autos. Passei os olhos na sentença, no acórdão da Apelação. Só com aquela leitura superficial, percebi que o caso era real- mente de condenação. O mesmo jurara inocência olhando em meus olhos. Natural. Talvez ninguém fosse capaz, em sã consciência, de admitir um ato dessa verve. Não é problema Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 16 meu. Não sou padre e nem psicólogo. Sou advogado e preciso confiar no que Floriano diz, mesmo que, naquele caso, me parecesse uma mentira indefensável. Precisaria ler os autos com mais calma. Despedi-me da escrevente, dirigi-me à sala da OAB onde requisitei a cópia integral dos autos. Estariam à disposição no outro dia. Peguei um táxi de volta ao estacio- namento perto do fórum e de lá para a faculdade onde minis- traria aula até às dez e meia da noite. Não liguei para Floriano, mas durante a aula fiquei o imaginando a me aguardar. O caso não saía da minha cabeça, fiquei impressionado. Perceba que é quase uma exigência a todo advogado desligar-se dos seus processos enquanto fora do escritório ou do fórum. Não é possível ficar se martirizando continuamente com os casos, nem mesmo aqueles já passados. Um dos mandamentos do ad- vogado é esquecer. Mas o rosto e o peso daquele homem con- denado, a sua mão esticada pretendendo me cumprimentar, o meu ato de desprezo pelo seu gesto amistoso, já me demons- trava que nada ia bem. Eu, o advogado dele, o único talvez que estivesse ou deveria estar incondicionalmente ao seu lado, sentado ali no último degrau da sociedade, no degrau dos condenados, eu mesmo não conseguia creditar-lhe a verdade. A sua versão partia de uma vingança que a mãe, dona Lucília Monforte, lhe armara em consequência de brigas conjugais, colocando na cabeça da menina o abuso sexual do pai, como forma de vingança. Não que esses casos de alienação parental não sejam comuns. São bastante. Alie-se também o fato da muito corrente falsa memória cognitiva de que se tem notícias vivamente, pois as crianças podem fantasiar sugestionadas por alguém. Mas, naquele caso, os autos demonstravam que tais probabilidades eram mínimas. Além do grande período de tempo em que a criança mantinha seu discurso, houve um acompanhamento de per- to de psicólogos dentro da técnica de depoimento sem dano que, mesmo não sendo perfeito e infalível, diminuía a quase Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 17 zero as chances de tais alegações naquele momento. O pior de tudo, entretanto, partia da minha própria percepção de que o Floriano seria culpado. Tinha cara de culpado, agia como cul- pado. Por mais que se dê aulascriticando a tese de Lombroso, estava ali um exemplar atávico. Talvez por isso a forte cena de não querer cumprimentá-lo me atordoava constantemente. Senti nojo de tocar naquelas mãos de um homem condenado por abusar de sua própria filha. Mãos sujas que não se lim- pariam com água e sabão, e que me produziram asco. Ser advogado não é ser amigo do cliente, basta ser diligente e técnico. Aqui nesta vida se faz e, muitas vezes, se paga; e digo mais, o preço a se pagar por uma condenação dessas em nos- sos fétidos presídios é alto demais. Estupro da própria filha? Num presídio brasileiro? Não é preciso saber muito, apenas o suficiente para desejar a morte mais rápida e indolor possível. Talvez um envenenamento por estricnina no último instante de liberdade fosse ato suficiente, altivo e menos danoso. Se houvesse que se ver com Deus, tanto melhor, como disse Car- nelutti: Deus perdoa, os homens não. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 19Lobo em pele de cordeiro No outro dia, uma sexta-feira, fui novamente ao Tribu-nal para buscar a cópia dos autos. Teria o final de semana para fazer o estudo do caso e dar o primeiro “diagnóstico” ao Floriano, o que incluiria a fixação dos hono- rários. Naquela tarde, o calor estava terrível e o peso dos autos me fazia suar mais do que o normal. Pressentia, entretanto, que havia mais gente suando pelo processo e não por esforço físico, mas por aflição. Andava pela calçada e olhava os autos debaixo dos meus barcos. Vidas que iam balançando sob a minha guarda rua à fora. Ao chegar no escritório, comecei a folhear despreocu- padamente os autos. É mania proceder assim, ver o prédio todo antes de se inteirar dos cômodos, dos andares. E se a primeira impressão foi muito negativa, agora a situação ga- nhava contornos trágicos para qualquer pretensão de defesa. Havia várias fotos de uma filmagem. Floriano aparecia com a mão em sua genitália, sob o short, enquanto sua filha, Celina, brincava à sua frente assistindo TV. Em outra cena, pareceria que o mesmo acariciava as nádegas da criança. O DVD estava nos autos com a gravação completa. Resolvi começar por ali. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 20 Nos pouco mais de doze minutos de gravação, o que se viu foi exatamente o que fora descrito nas fotos. O réu com a mão em sua genitália e depois dando um tapinha nas nádegas da criança. A maldade ali só existia na cabeça de quem assistiu e chegou à conclusão de abuso sexual apressadamente. É ab- solutamente incrível pensar que uma “coçada no saco” possa revelar todo um sadismo pedófilo, assim como um tapinha no bumbum da infante atendesse a escusos desejos sexuais. Per- versão pedófila de quem acusa. Entretanto, passado o arroubo de que as provas do DVD eram fraquíssimas e — de fato — na sentença o juízo monocrático assim se referiu, o fato é que os outros elementos dos autos eram terrivelmente desfavoráveis a qualquer pretensão absolutória. Assim, o DVD e as fotos decorrentes, que foram produzidas a mando de dona Lucília, esposa à época de Floriano, através de uma firma de detetives que plantou a câmera em um ursinho de pelúcia, elevava-se de um nada jurídico à concepção de “veementes indícios de materialidade” no subjetivismo ativista de hoje em dia. Esses indícios de materialidade, cuja representação dou- trinal é mais inocente do que ir comprar rocambole em Lagoa Dourada, no contexto dos autos representavam uma avalan- che, o ponto fulcral, a imagem do abuso revelada porque se casava em harmonia com as declarações da criança. É claro que estamos no campo das provas subjetivas porque aquele comportamento era totalmente comum a qualquer homem e pai, afinal de contas, não houve filmagem propriamente dita do abuso sexual, mas poderia se inferir daquele comporta- mento outros mais gravosos, que dariam conta às outras pro- vas e o cerco se fecharia. E que outras provas eram essas? Não havia dúvidas de que o mais doloroso de todo o pro- cesso fosse realmente o relato da criança. Imaginem uma crian- ça de seis anos em uma delegacia de polícia para acusar o pró- prio pai de abuso sexual. O procedimento de depoimento sem dano ameniza, mas não exime de dor. E a criança prestou as Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 21 declarações, com sua linguagem, de forma coesa, não só na po- lícia, mas perante o próprio juiz. Relatou que o pai a mandava fazer sexo oral no mesmo enquanto ele lhe acariciava as partes íntimas. Uma declaração de uma criança é sempre muito peri- gosa por causa das fantasias, possibilidades de influência, e etc., como já o dissemos, e deve ser sempre levado com parcimônia e elencado em conjunto com os outros elementos dos autos, e aí a foto com o pai dando um tapinha no bumbum da criança ganhava outros contornos. As fotos em si nada revelaram, mas, em conjunto com a declaração da criança, era o que faltava para fazer um conjunto probatório coeso. As declarações de dona Lucília, que agora já não estava mais acompanhada por detetives particulares, mas por advogados assistentes da acusa- ção, revelavam comportamentos estranhos do réu como ir dor- mir na cama da filha ou uma vez que o mesmo levou para seu quarto um bichinho de pelúcia da filha, e que teria ejaculado no mesmo do que foi acusado de se utilizar do brinquedo para auxílio em sua masturbação. Foi feita perícia no brinquedo e a mancha esbranquiçada não era sêmen. Todos esses compor- tamentos foram referendados também pela tia da vítima, dona Alda, e por um primo, Márcio. Nos interrogatórios do réu, o mesmo sempre negava com veemência qualquer tipo de comportamento abusivo contra sua filha. Sempre o disse inocente em todos os interrogatórios. Entretanto, no mundo do direito, somos treinados para des- confiar, para por à prova a alegação de inocência, para cruzar as informações porque, desde sempre, o réu tem o direito de mentir e muitas vezes mente e ninguém gosta de ser enganado, muito menos se é investigado por um suposto crime. Veja bem: se é direito do réu mentir, por que falaria a verdade? Pressupõem-se na mais das vezes que o réu é um mitô- mano porque se é acusado muito provavelmente é culpado, até que se prove o contrário. E deste pensamento em pensamento, passando pela polícia e depois pelo Ministério Público, muitos Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 22 inocentes são processados e outros tantos condenados. Uma coi- sa é o que diz a lei, outra situação é a realidade do fórum. E a troco de quê a própria filha viria com uma história dessas? Qual a sua motivação de mentir? Um ato monstruoso desses, vindo de uma criança de seis anos de idade? Foi exata- mente esta pergunta que o delegado fez ao indiciado e o mes- mo respondera-lhe que seria por desavenças entre o casal, mas não soube precisar concretamente quais seriam essas desaven- ças, ficou em construções ora abstratas, ora sem importância alguma. Construía seu álibi? Não. Na verdade, para todos os efeitos, aquilo ali soava como uma confissão de culpa. Antes tivesse alegado loucura de dona Lucília, já que seria suficiente para se criar um contexto de dúvida e alienação parental, mas “desavenças que não sabe citar” é, realmente, uma pá de cal. Nem precisaria ir mais longe nos estudos dos autos. De qualquer maneira, prossigamos, porque se o réu se diz inocente apesar das declarações, do vídeo e da foto e, ain- da de seu tosco interrogatório, há algo a se perquirir, a se indagar, a procurar uma nulidade gravíssima. Entretanto, na sequência, quando se imaginava que não haveria como piorar mais sua situação, veio o depoimento de um primo da vítima, Márcio, que, ao dormir na casa de sua tia, e passando à noite pelo corredor do apartamento, de frente à sala da TV, viuFloriano guardando seu órgão genital na cueca e a filha sobre seu colo limpando uma baba que escorria sobre seu rosto. Se havia, então, alguma dúvida sobre o comportamento doentio do réu, agora, parecia irrefutável. Lembrei-me novamente de não tê-lo cumprimentado na saída da cafeteria, das suas juras de inocência. As cenas me produziram ânsias de vômito. Não que me deixei enganar, mas é que preferia ter encontrado um inocente nos autos, e o que encontrei foi um perverso pedófilo e mitômano que, apesar de se saber culpado, tentava angariar esse advogado para o seu lado negro. É o tipo de processo em que eu falo de Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 23 condenação absoluta, irrefutável. A palavra do réu não pode- ria mesmo valer muito; ou melhor, nada valia frente àquelas provas robustas. E havia mais: não acabou. No decorrer dos depoimentos e declarações que se seguiram e foram confirmadas em juízo, ha- via a empregada doméstica, senhora Rosália Belém, que havia presenciado o réu dando uma passada de mão no bumbum da criança, a exemplo do que havia sido filmado, o que reforçaria o indício elevando-o quase a uma prova irrefutável. E, por fim, a irmã da esposa, tia da vítima, dona Alda, que atestara o estra- nho comportamento do cunhado, assim como o equilíbrio de mulher e esposa dona Lucília. Por conta do réu, suas testemu- nhas, que nada viram ou ouviram sobre o fato principal, repor- taram esparsas passagens de discussões conjugais, nada graves ao ponto de produzir uma alienação daquela magnitude e gra- vidade. No mais, foram, como se diz na prática, testemunhas de canonização, a elogiarem o comportamento social e emocional do réu, o que naquelas alturas só serviriam para demonstrar um caráter frio a esconder vileza. Veja bem, era um caso perdido. A sentença apoiou-se exatamente nestas provas e “indícios” suficientes para a con- denação, sem dúvidas. Visto por outro ângulo, não havia o menor subsídio para uma absolvição. Doze anos e seis meses a condenação, ainda dentro do razoável. Mas chamava atenção a parte da sentença onde o juiz praticamente prestava teste- munho sobre a veracidade da declaração da criança, que fora acompanhada por psicólogo e lhe relatara de maneira que en- tendia e sentia verídica o abuso sexual. O juiz disse na senten- ça que viu sinceridade e sofrimento nos olhos daquela criança que ali estava à sua frente, sem chances de ter sido instruída. Conhecia aquele juiz, Dr. Leni Belchior. Havia sido meu primeiro coordenador, anos atrás, na mesma Faculdade de Di- reito onde lecionava na pós-graduação. Homem correto, cal- mo, simples e educado, de fala mansa. Convidava-me sempre Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 24 que ia lá lecionar para almoçar após as aulas. Não possuía vaidade do cargo, não era de fazer “justiçamento”. Era aberto ao diálogo e bem quisto pelos colegas advogados daquela co- marca, inclusive do próprio réu e também por mim. Por parte do juiz, portanto, não poderia criar suspeitas no que dizia, não teria escamoteado, procurado fundamen- tar ainda mais sua sentença numa verdade judicial absoluta. Se não conhecesse o Dr. Belchior, talvez duvidaria daquela sinceridade toda, mas aquele sentenciante não faria isso. Sua preocupação era ser justo e não punir a todo o custo quem lhe parasse na frente. A cada vez que ia avançando no estudo do processo, mais me encolhia na cadeira, mais pressentia a culpa do réu. O réu, que era pessoa queridíssima naquela co- marca, viu-se condenado por um crime tão abjeto. Ele era tão querido que nada menos do que quatro promotores de justiça recusaram deliberadamente a denunciá-lo alegando amizade com o mesmo. Não só recusaram a denunciá-lo, como foram suas testemunhas de antecedentes. Realmente, neste particu- lar, os autos deixaram claro que o réu era uma excelente pes- soa e profissional, motivos entretanto insuficientes para qual- quer benefício; antes pelo contrário, seria um lobo em pele de cordeiro, concluiria a sentença. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 25Vestido de verde e amarelo Terminados meus estudos sobre o processo e com a con-clusão já devidamente formada, qual seja, seria ques-tão de mês, talvez dias para a prisão de Floriano. Com isso em mente, entrei em contato para nos encontrarmos. Chuva fina, mas tempo quente deixando um mormaço no ar aliviado por rajadas constantes de vento fresco fazia daquela segunda-feira um dia aprazível, não fosse o fato de me considerar Hermes a conduzir aquela alma para o reino de Hades. Como de costume, reuniões à tarde, já que cedo mi- nistrava aulas. Lá fomos nós com os autos debaixo do braço, novamente, a nos encontrarmos na cafeteria predileta. Fixaria os honorários e, se não aceitasse, já lhe passaria ali mesmo as cópias dos autos e passar bem. Ia observando o movimento da cidade. As pessoas an- dando na rua, apressadas. E eu sem nenhuma pressa aparente, preocupado com o meu café. Mas se engana quem pensa que Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 26 tomar um café seja um tempo perdido, pois para além da necessidade de dar um tempo nas atividades do dia, ali, na- quelas cadeiras ao som de invariáveis notas de jazz, o cheiro intenso do pó de café e o barulho de conversas que se entre- cortam inteligíveis, já vislumbrei muitas respostas jurídicas. É o que eu denomino de coffee-brainstorm. Mais do que nunca, precisaria de um. Quando cheguei, bem adiantado do horário previsto, já que no fórum havia somente uma vista, fui surpreendido com a presença do Floriano que ali já se encontrava. O meu coffee -brainstorm ficaria para depois. Fitei-o antes de cumprimentá-lo como quem diz saber bem sê-lo culpado. A áurea de condena- do permanecia densa. Os ombros lhe pesavam, a angústia lhe transparecia nas olheiras escuras, retrato de noites mal dor- midas que se perpetuariam. Sentei-me sem cerimônias, soltei os autos pesadamente sobre a mesa. Fez um grande estrondo, quase derrubei a xícara sobre a mesa. Havia calculado mal a distância de soltá-los e acabei por chamar atenção dos vi- zinhos da mesa que se entreolharam por um instante e logo voltaram ao bate-papo. Fiquei constrangido, pedi desculpas ao Floriano e, como alguém que virasse a página de um livro, pedi um café. Era o que me restava. Alertei-o de que não lhe trazia boas notícias; relatei os autos, como se ele nunca os tivesse lido. Adverti-o de que em dias seria marcado seu derradeiro julgamento dos Em- bargos Infringentes e que deveria produzir sustentação oral, apesar de mínimas as chances de vitória. Olhava-me conster- nado entre longos períodos de tempo fitando a xícara de café já vazia em sua frente. A lógica da sentença, os testemunhos, as declarações, a confirmação do acórdão, a perda de chances para Brasília e a limitada discussão dos Embargos. Tudo uníssono, concate- nado. Nem uma falha, nem uma nulidade. Uma condenação perfeita. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 27 A tudo me ouvia. Atônito, deixou de resistir à acusação, como um peixe fisgado que deixa de se debater para que o anzol não mais se encaixe inexoravelmente. Negava os fatos, entretanto, jurava inocência. À essa altura da conversa já me convencia de que, inocente ou culpado, pouco me importava. Percebera que seria irrelevante. Dizer-se inocente, mesmo que não o fosse, não era problema meu, era dele. O meu problema era saber o que se poderia trabalhar em prol daquele conde- nado, já no apagar das luzes processuais, e o que via era uma sustentação oral de poucos minutos com uma derrota pré-de- terminada. É bom que se diga que houve a apelação ao Tribunal que, por unanimidade, confirmou os termos da sentença apro- fundando nos laudos psicológicos juntados que atestavam a veracidade dasdeclarações da criança. Entretanto, por uma questiúncula jurídica, uma discus- são que não poderia trazer a absolvição, mas benefícios fu- turos na execução, deixara uma porta aberta ao antigo ad- vogado para opor este outro recurso chamado de Embargos Infringentes, já que um, dos três Desembargadores, entendera que o crime não seria hediondo. Ocorreu que, no decorrer do processo, houve uma modificação importante na legislação penal, como dói acontecer entre nós, que gerou dúvidas de interpretação. Daí os Embargos do antigo advogado já faleci- do. Assim, encontrava-se o processo, por um fio de cabelo a segurar a espada de Dâmocles sobre a cabeça do condenado e iria estraçalhar-lhe a vida por completo. Seja no aspecto de liberdade, seja no aspecto financeiro ou profissional ou fami- liar ou moral. Um zumbi se tornaria ao lembrar da vida que outrora lhe vestiu. Fui bem sincero. Não haveria muito que se fazer. Já não se poderiam apresentar novas provas; as provas dos autos, por sua vez, lhe eram amplamente contrárias. A discussão se o crime seria ou não hediondo, apesar do voto vencido, era na- Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 28 timorto, pois as instâncias superiores já haviam pacificado o entendimento em sentido contrário às suas pretensões. Uma tragédia em termos de esperança. O que se poderia fazer seria uma sustentação oral e, depois, segurar o processo em suas lides próprias o maior tempo possível, mas isso não chegaria sequer a alguns meses, não arriscaria nem mesmo um ano de prazo. O seu desespero foi sendo substituído por um fio de lucidez e me disse que, com a condenação, seu cargo de Defensor Público seria perdido. De fato, um dos efeitos da condenação explícito na sentença e confirmado no acórdão era a destituição do cargo público. Confidenciou-me então que precisaria de pouco mais de oito anos de prazo para se aposentar. Meu trabalho, portanto, se resumiria a lutar ensan- decidamente para lhe alcançar aposentadoria e, depois, abrir outro campo de batalha para assegurar aquele benefício, o que mais não me competiria. A dificuldade era latente, mas não havia outro benefício mais concreto a se buscar ou outra saída; nem para mim e muito menos para ele. Apresentei o contrato de honorários. Assinou sem discutir cláusulas ou valores. Ele se despediu de mim e disse que iria caminhando a pé até a rodoviária, onde voltaria para Juiz de Fora. Percebi que ia caminhando na chu- va, pouco se importando que se molhasse. Ali ia um homem condenado pela justiça brasileira, prestes a descer aos umbrais vestido de verde e amarelo. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 29Coffee-brainstorm Com a desculpa de que a chuva apertou, fiquei na ca-feteria. Havia pedido um expresso acompanhado de água gasosa. Prefiro água gasosa porque aumentava a sensibilidade das papilas gustativas, que possibilitava sentir melhor o gosto do café. Mas só passei mesmo a tomar água gasosa a partir de uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro e um garçom de um bar havia confidenciado que, muitas vezes, os proprietários reutilizavam as garrafinhas de água natural va- zias enchendo-as com água de torneira e revendendo-as. Para reforçar o golpe, lançavam uma ou duas gotinhas de cola se- ca-rápido na tampinha para dar aquele clique ao abrir. Como mineiro e advogado, nunca mais comprei água sem ser gasosa. Essa seria mais difícil de ser substituída. De qualquer modo, ao folhear novamente o acórdão, já pensando na sustentação oral que veria promover, uma frase final daquela decisão me fez secar a boca. “Expeça-se man- dado de prisão”. Sim. O acórdão mandava expedir imediata- mente o mandado de prisão. No meio de tantos detalhes de mérito no processo e no limiar de mais um julgamento, só então havia atentado para o iminente risco de prisão. Teori- Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 30 camente, antes mesmo do julgamento dos Embargos, poderia lhe ser expedido o mandado. Estava livre por uma mera ques- tão burocrática. Uma vez preso, a luta processual se resumiria à busca de sua aposentadoria, naquele momento algo pura- mente fantasioso. Bebi toda a água que meava o copo. Olhei para o salão da cafeteria, as luzes amarelas, observei o movimento frenéti- co da rua. Do outro lado, uma boutique de bolsas e mulheres parando para admirá-las em tempo curto porque a chuva caía sem cessar. O tempo fugia. Sem mais, voltei à sentença e nela estava disposto “expeça-se o mandado de prisão após o trân- sito em julgado”. No mínimo uma abertura para se discutir aquela expedição imediata do mandado exarada no acórdão em contradição com o disposto na sentença. Minha primeira tarefa para manter Floriano solto até o deslindar do processo havia sido traçada. Pedi a conta, mas não foi necessário pagar, Floriano havia se antecipado e deixa- do tudo pago. Não havia percebido a gentileza. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 31As cartas Ocompromisso do advogado não é com a justiça, é com o cliente. Não há nada que prenda o advogado à jus-tiça; inclusive, o advogado está impossibilitado de pe- dir a condenação do cliente, e seria considerado uma defesa inexistente. Está claro, pois que o advogado precisa lutar com todas as argumentações e instrumentos para favorecer o clien- te, e só assim se pode alcançar a justiça. E foi com este espírito que liguei para Floriano, já no outro dia, advertindo-o da necessidade urgente de se impe- trar um habeas corpus perante o STJ em Brasília para mantê-lo em liberdade. Foi, então, que me disse que existia algo que não havia dito ainda, mas que talvez fosse importante. No dia anterior, quando nos encontramos, havia lhe pedido para me dizer qualquer coisa que tivesse ligação com o seu processo. Mesmo que para ele isso não fosse importante, mesmo que lhe fosse insignificante. Se tivesse uma única ligação com o processo, com as pessoas envolvidas, sua filha, esposa ou as testemunhas, ele deveria me contar porque poderia lhe ser útil. Então disse que sua filha, Celina, lhe mandava sempre cartas Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 32 de Natal e de Dia dos Pais e que me enviaria num pacote na- quele mesmo dia. Perguntei se havia algo relacionado com o caso, uma confissão, um pedido de desculpas, mas não havia nada de especial nas cartas; eram apenas cartas de uma filha para um pai e que ele guardara ao longo dos quatro anos passados desde que perdera contato com a sua própria filha em decor- rência deste processo. Frente à agonia de querer logo produzir o habeas corpus, não dei muita atenção, apenas procurava seu aval da minha primeira investida prática como procurador. Fiz o habeas corpus também ancorado na legislação referente à Defensoria Públi- ca, que vinha ao encontro de meus interesses em mantê-lo solto até o trânsito final. Para minha surpresa e satisfação, em rápidos dois dias obtivemos a liminar do habeas corpus assegu- rando-lhe a liberdade até o trânsito em julgado. A primeira vitória. Floriano ficou efusivo, não era para menos. Nesse in- terregno, as referidas cartas chegaram. Abria-as e comecei a lê-las. Datadas desde o fatídico assunto noticiado na denúncia, as cartas de Celina demonstravam toda a pureza e singeleza de uma criança. Uma a uma, fui lendo-as e imaginando o quão inocente era aquela filha que, mesmo abusada pelo pai, ainda encontrava forças para lhe mandar cartas. A advocacia provoca-nos fortes emoções. Quase todos os dias nos sentimos como em uma montanha-russa de sentimen- tos, ora bons, ora ruins e, naquele instante, lá pela décima- quinta cartinha de Celina para Floriano aberta, sobressaiu-me que aquelas palavras, aqueles desenhos não seriam atitudes de uma criança violentada pelo pai e que há anos não o via. Já vi muitos casos que bonspais não recebiam cartas com tanta demonstração de apreço e carinho. Numa das cartas, a criança jurava saudades, noutra um desenho com o sol, as nuvens, um jardim, ela, o pai e um cachorrinho. Em muitas das cartas pude perceber lágrimas secas. Algumas estavam Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 33 amassadas como que por raiva. Num dos envelopes havia um caderninho feito por ela, uma colagem em referência ao Dia dos Pais. Na capa, estava escrito “papai, te amo”, dentro oito páginas com colagens, desenhos coloridos feitos pela criança, representando o pai e ela dentro de um grande coração, e na última folha uma dezena de beijos feitos com algum tipo de tinta ou batom escrito com letra mal formada: “eu beijos te amo”. Imagino ainda como essa criança deve ter lutado, exi- gido, chorado, gritado para a mãe, dona Lucília, enviasse-as ao pai. Anos a fio, sem contato, nem ao menos telefonemas porque proibido pela dona Lucília e aquela criança mandava incessantemente aquelas cartas. Uma a uma, fui abrindo-as e colocando-as sobre a minha mesa. Fiquei de pé, e fui tomado de uma vertigem e um gosto de fel na boca. Atônito, inferi: aquele pai não violentara sua filha. Eu havia me enganado, miseravelmente. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 35Incidente de uniformização Infelizmente, na altura do processo, as cartas não poderiam ser mais juntadas aos autos para influenciar os Desembarga-dores. Também é verdade que seriam insuficientes para ab- solvê-lo frente às provas já apresentadas pela acusação. Mas ali estava o que procurava para ter a minha consciência tranquila de que não advogava para um crápula, um doente pedófilo. O que aquelas cartas significavam eu sabia em meu âmago, e era um grande amor recíproco entre o pai e a filha. O que estava por trás das cartas, talvez ninguém nunca saberia. O porquê da- quela acusação tão grave feita pela filha? A mãe, dona Lucília, me parecera sempre ponderada em seus dizeres nos autos e não apresentava motivos para uma alienação parental. De qualquer maneira, com a liminar obtida no STJ, Flo- riano tinha a liberdade assegurada até o trânsito. Nesse tempo poderia analisar mais friamente o delicado processo e galgar- lhe melhor sorte. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 36 Mas, presumivelmente, faltavam poucos dias para o jul- gamento dos Embargos Infringentes que sepultariam a derrota de Floriano. Dali para frente, somente através de um temerário Recurso Extraordinário para o Supremo ou um insustentável Recurso Especial para o STJ. É bom que se alerte que não have- ria mais outra discussão a ser levada a Brasília a não ser aquela pontuada nos Embargos Infringentes, pois para todas as outras questões já se consumara o trânsito em julgado definitivo, ten- do em vista que o advogado anterior não havia manejado os eventuais recursos cabíveis à época da publicação do acórdão. E a questão dos Embargos estava sedimentada. O cerco estava fechado com um espaço mínimo de movimentação. Se fosse o caso, deveria o antigo advogado, em concomitância com os Em- bargos Infringentes — naquela época da oposição — ter também manejado, no mesmo início de prazo, os Recursos Extraordiná- rio e o Especial. Não o fez. Paciência. As outras questões pré-questionadas se encontravam im- possibilitadas de serem discutidas. Só havia mesmo de mais pal- pável um Recurso Especial para Brasília decidir o que, de tudo, estava mais do que decidido se seria ou não caso de considerar aquele crime de atentado violento ao pudor — hoje, estupro — como hediondo. Forçar a subida de um recurso desse jaez po- deria até mesmo ser considerado protelatório, tendo em vista a passividade que se formava naquela superior instância. Todavia, tendo sido contratado para postergar o mal maior, qual seja, a prisão e a eventual perda da aposentadoria, não me restavam outras opções a não ser trabalhar neste sentido. Em análise mais aprofundada, pude observar que, se em Brasília a questão se encontrava definitivamente resolvida, o mesmo não se dava nos tribunais estaduais. Em alguns, inclusi- ve, com ferrenhos adeptos da não-hediondez do velho crime de atentado violento ao pudor sem violência física. Isso me moti- vou a percorrer os registros do próprio TJMG e a fazer acurada pesquisa de como pensavam cada um dos Desembargadores. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 37 Minha consternação e ao mesmo tempo sorte ao saber que, por outra composição de desembargadores da mesma Câmara julgadora, Floriano sairia vitorioso, porque existiam julgadores com precedentes nesse sentido; ou seja, Floriano poderia ter vencido por maioria de votos e seu crime poderia ter sido considerado comum e não hediondo, o que lhe rende- ria benefícios na execução da pena. Seria uma sorte, mas também um azar, porque se não houvesse a derrota, não seria possível os Embargos Infringen- tes e muito menos seria possível levar a discussão até Brasília; o que, de todo modo, o favoreceria pelo tempo que ficasse solto. É aquele assunto de que há vitórias que são derrotas e vice-versa. No caso, foi uma sorte Floriano ter perdido. Per- dendo, ganhava tempo e isso era o que interessava naquela altura do processo. De qualquer forma, dos Desembargadores criminais, a ampla maioria, mais de 2/3, já havia se pronuncia- do pela hediondez do crime naqueles moldes, ou seja, contra a tese benéfica a Floriano. Faltava saber os outros Desembar- gadores o que pensavam, e não havia outro caminho a não ser um Incidente de Uniformização Jurisprudencial. Seria a forma cabível e correta de provocar o Tribunal a se pronunciar, paci- ficando definitivamente a Corte no assunto. Em outra pesquisa, pude comprovar que esse meu inci- dente seria o primeiro no TJMG e, dos males o menor, se per- desse ficaria como estava; se ganhasse, Floriano em pouco mais de dois anos poderia obter algum benefício da execução penal. Mas o que mais me motivou naquele momento, a manejar o incidente legal e pertinente para todos os jurisdicionados minei- ros, era o tempo que tal procedimento levaria até ser concluído. Um, dois, talvez três anos. Com a publicação da designação de data para a sessão de julgamento, restavam-me quatro dias e não tinha tempo a perder. Tal incidente no TJMG teria um nível alto de dificuldade e qualquer erro poria tudo a perder, porque levar a questão à Brasília estava cada vez mais difícil. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 38 Concentrei-me nesse mister, e tive que abdicar dos outros afazeres do escritório e em dois dias a peça estava pronta. Protocolada, foi aceita quase que de imediato tendo o julga- mento dos Embargos sido suspenso. Com a liminar obtida em Brasília e com o trâmite do incidente em curso, Floriano, que estava prestes a ser preso por um crime hediondo, teria uma sobrevida de anos de liberdade. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 39O julgamento do incidente Eassim o foi. De desembargador em desembargador, pas-sando por todos, mesmo aqueles que não militavam na seara penal, foram estudando e preparando a decisão para o dia do julgamento. Após todo esse trâmite, os autos foram ao Ministério Público para parecer e, na sequência, foi designado o dia para o julgamento. Seria uma decisão que afe- taria todo o estado de Minas Gerais. No caso, minha respon- sabilidade ia para além do meu próprio cliente. Preparei-me de maneira pormenorizada. Dos desembargadores criminais, sabia de cor o que pensavam sobre a questão, como funda- mentavam as decisões e, entre eles, minha derrota era mais do que provável, porque já sabia de antemão que mais de 2/3 deles estavam contra a minha tese; ou seja, declarariam o crime como hediondo. Meu discurso,então, deveria voltar-se para os outros de- sembargadores que não atuavam na seara penal. Por mais in- Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 40 congruente que assim seja, é norma do regimento interno que todos os desembargadores, que atuem na área criminal ou não, julguem o Incidente de Uniformização. E a questão era difícil porque, para bom entendedor, defender a ideia de que um crime daqueles era não-hediondo, para além das filigra- nas jurídicas, era subjetiva e politicamente difícil. Recorde-se de que a decisão seria para todo o Estado e não só para meu cliente, que se entendia inocente, mas que estava sendo pro- cessado por aquele crime. Data e hora marcados, Floriano avisado do julgamento, foi-me dada a palavra já no início da sessão. Somente eu de advogado inscrito naquele dia, onde toda a Corte iria delibe- rar questões relevantes que afetavam a todo o Tribunal. Esta- vam ali reunidos todos os desembargadores e, por mais que se façam sustentações orais nos Tribunais, é sempre um misto de emoção e adrenalina subir à tribuna. Na sala principal de julgamento, onde tudo era mais pomposo e maior a gravidade do assunto, impunha-se por suas cores próprias a sustentação oral. Desenhava-se como um verdadeiro desafio. Subindo à tribuna, ia observando os desembargadores, enquanto me preparava vestindo a beca. Uns estavam curiosos, outros re- torciam as faces deixando transparecer antecipadamente o seu julgamento. Estava prestes a iniciar a sustentação e meu nervosismo era o combustível alimentador da acuidade mental. Minhas mãos estavam firmes, mas gélidas. Iniciei o discurso, combati o bom combate, mas há questões jurídicas que são mais do que simples discussões legais, expandem-se para além da lei, para além do direito e invadem posições políticas e ideológicas. Aliás, essa distinção é complexa, de toda forma, foi o que se sucedera. Por maioria de votos, Floriano perdia aquela bata- lha, mas não perdia a guerra, acreditava. A derrota soava-me relativa, porque o incidente havia demorado quase dois anos para seu trâmite. Após a publicação do acórdão do incidente, Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 41 a Câmara deveria obrigatoriamente aplicar aquela decisão no julgamento dos Embargos Infringentes. Num todo, teria pouco mais de dois meses para manejar outro recurso para Brasília, cujas chances de vitória também seriam mínimas. Liguei para Floriano do próprio Tribunal e expus o su- cedido esperado, inclusive a passagem de um desembargador que havia se pronunciado no sentido de que se fosse por esco- lha dele, os estupradores seriam capados. Tal afirmação, vin- da de um desembargador, frente aos pares, foi uma avalanche para mim. Aquelas palavras quase me derrubaram da tribuna porque não se esperava palavras assim de quem tem a respon- sabilidade de ser imparcial. Mas compreendemos. A justiça é feita de homens e homens são passionais, mormente frente a crime tão abjeto. Eu também, mesmo como defensor, já tivera meu pré-julgamento contra o réu, mas as cartas me puseram uma dúvida razoável e desta dúvida me conduzira à certeza de que havia algo a mais e que o réu era inocente, por mais condenado que estivesse. Após terminar a sustentação, ainda na tribuna e com os desembargadores julgando o caso, lem- bro-me de ter sido cumprimentado por um juiz, meu ex-colega de cátedra na Faculdade de Direito da Universidade de Itaúna onde ministramos aulas juntos. Tive receio de estender-lhe a mão, o que não tardou, pois a mesma pareceria de mármore, nem tanto pela branquidão que aparentava em si, mas pela frieza que encerrava. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 43Para Brasília e avante Pois bem. Nessa altura dos acontecimentos, o prezado leitor deve ter se dado conta de que muitos anos se passaram. Como de fato, entendia que meu papel como advogado es- tava sendo bem cumprido. Margeava um milagre a permanência do réu solto. Faltava pouco tempo para ingressar com o pedido de aposentadoria. De alguns dias de liberdade, Floriano obtivera anos, mas apesar de entendê-lo definitivamente condenado pela Justiça, sabia-o inocente, ainda não compreendera as tramas que moviam aquela criança, agora pré-adolescente, a fazer uma acu- sação contra seu próprio pai, alijando-a do convívio paterno. De toda sorte, indefectível atuação não trouxera qualquer lampejo de luz à absolvição. Foi publicada a decisão dos Embargos Infrin- gentes, finalmente, e em novo contato com Floriano acordamos de levar o caso a Brasília, mesmo que não houvesse razoável chance de vitória, que naquele instante nem mais me preocupava. “Não tenho outra escolha”, disse-me consternado. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 44 Dentro do prazo e atendidas as prescrições legais ineren- tes à causa natimorta, procedi à feitura e protocolo do Recurso Especial para o STJ. A discussão pré-questionada nos embar- gados permanecia a mesma, apesar de entender menor agora qualquer chance de vitória. Como já dito, qualquer outra ques- tão estava impossibilitada de ser levada àquele superior soda- lício. Restou-me o fio de caminho, cujo resultado já previa e era desfavorável ao Floriano. Com um recurso desses, é difícil precisar o tempo que Floriano ganharia de liberdade já que a liminar obtida em Brasília no habeas corpus já estava sedimenta- da, confirmada que fora no julgamento do remédio. Sem ris- cos, pois, de Floriano ser preso. Passaram-se quarenta dias e o TJMG não admitiu o recurso. Estava bem feito e tecnicamente era viável, mas a questão de fundo já se encontrava pacificada e foi por este motivo, em duas linhas, que me foi negado o seguimento de um recurso com mais de trinta folhas. O cerco apertava contra Floriano, dentro deste labirinto de recursos es- tava em um beco sem saída e sem chances de voltar. Talvez não houvesse nem mais dois meses de liberdade para Floriano. A questão se apresentava cristalina, o que me desmotivou a apre- sentar outros recursos, não fosse a insistência do réu. Para aque- la delicada situação, interpus um agravo de instrumento para rediscutir os pálidos fundamentos da não admissibilidade do recurso. O recurso estava prestes a ser declarado como protela- tório e eu receberia uma multa por manejá-lo; advertido disso, Floriano se predispôs a arcar com a multa, já que lutaria até as últimas forças pela sua liberdade e sua inocência. Compreendi e, como defensor de seus interesses, fazia de tudo o melhor para alcançar um dia a mais que fosse por sua liberdade por mais que explicasse que o caso era mesmo de se resignar e aguardar a execução derradeira. Foi só aí, quando já se apagavam as luzes do palco, já abaixava a guarda e entregaria os pontos, que ocorreu algo que mudaria todo o deslinde processual e traria uma reviravolta fantástica e inimaginável ao caso. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 45Resiliência Resiliência: mais do que ter a capacidade de retornar ao seu status quo ante, é a capacidade de se adequar, resistir às pressões e voltar ao equilíbrio inicial. Tal não foi ou- tra a minha postura quando Floriano me ligou para avisar que a testemunha Márcio, que o vira guardando o pênis e a Celina a limpar-se babujada no rosto, o primo da vítima, estava sen- do processado em Salvador por crime de estupro de um outro primo. Até então, tal fato por si só também seria incapaz de modificar o terrível quadro que Floriano se encontrava, a não ser pelo fato de tal processo ter desencadeado em Celina, ago- ra já com quatorze anos de idade, uma recaída de consciência a apontar o primo Márcio como sendo também seu algoz es- tuprador! Não só a estuprara, como também a ameaçara de matar seus pais se revelasse toda a verdade. À época, em suaescola, surgiram suspeitas da professora do abuso e tal fato havia sido comunicado à dona Lucília, que expusera à toda família e assim chegara ao conhecimento do primo. A meni- na, ameaçada pelo primo e com medo da morte de seus pais, passou a fazer tal acusação contra seu próprio pai a mando do primo Márcio e de sua tia Alda, mãe deste primo, que passou Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 46 a participar das investidas contra Celina. A menina não pre- tendia prejudicar seu pai, mas protegê-lo de seu doente primo. Por várias e repetidas vezes foi seviciada. Por vários e repetidos anos acusou seu pai, desde o primeiro contato que teve com o psicólogo da família até a sua última declaração em juízo. Martirizava-se para proteger seu pai. Os psicólogos perceberam tudo, conseguiram extrair tudo da criança, exce- to o fato do estupro não ter sido produzido pelo seu pai, mas pelo seu primo Márcio. Alda, irmã de dona Lucília, ajudou de maneira decisiva a implantar a falsa memória na menina e a influenciar dona Lucília contra Floriano. Até então, o ca- samento ia muito bem, o que teria gerado ciúmes em Alda pela felicidade conjugal da irmã. Em conversas secretas com a criança, Alda reforçava as ameaças de morte contra o pai e afirmava que nada de ruim aconteceria ao mesmo, já que era defensor público. Se falasse, entretanto, que era Márcio seu algoz, esse seria preso e se vingaria matando seu pai. Depois, vim a saber que essa tia teve também problemas de abuso sexual, inclusive havia fortes suspeitas de que a mesma abusara do próprio filho, que reproduzia, em sequência, mesmo maior de idade, as violências perpetradas contra si. Alda, então, seria sua cúmplice e também causa de seu comportamento. Uma cadeia de comportamentos doentios que poderia chegar sabe-se lá onde, já que tão longe tinha ido. Não que todo pedófilo tenha sido vítima de abusos e nem que toda pes- soa vítima de abuso tenha tendência a ser pedófilo. Não é isso que se está a dizer. Mas me pareceu claro, no caso específico, que havia uma boa influência neste comportamento de Már- cio por ter sido vítima de abusos por sua própria mãe, Alda. Era o que corria em forma de boatos na família. Não me compete aqui traçar o perfil psicológico de um pedófilo ou suas motivações; para mim, bastava saber dos fatos e ter a consciência de que Márcio era o pedófilo da vítima e continuava em seu comportamento doentio pela família à fora. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 47 Celina, agora adolescente, recobriu os sentidos, confessou para dona Lucília e essa ligou para Floriano, que tudo me repassou. Era outubro e do telefone de meu escritório, ao escutar tal informação, simplesmente deixei-me recair pesadamente na cadeira, dando a impressão que viraria de costas no chão, a exemplo de como o meu juízo virava. Expirei todo o ar num misto de alívio e preocupação. Fiquei por um tempo mudo ao telefone, tentando entender e ligar tudo o que ocorrera ao lon- go daqueles anos; percorria mentalmente as provas do proces- so, o depoimento de Márcio, de como detalhou as minúcias da baba na boca de Celina, o detalhe de Floriano guardando o órgão genital, isso tudo visto num relance, em um passar de olhos, à noite, no corredor do apartamento. Muita informação, muitos detalhes, para uma vista de relance. Mentia descara- damente para sedimentar a condenação de Floriano e eu não pude perceber aquele falso depoimento, talvez pela grande impressão que me produzira. Tentava encontrar um erro na- quela crucial informação e por onde imaginasse, a revelação surgia cristalina como uma peça de quebra-cabeça faltante que agora se completava. Encaixava-se perfeitamente a fazer mudar todo o enredo daquela tragédia familiar. Mas como advogado, fui obrigado a desacreditar, a por à prova o que tão surpreendentemente me chegava aos ouvidos. Poderia ter outros móveis por trás daquela revelação, como o medo da família perder a pensão alimentícia, não sei; era uma hipótese, já que o pai seria desligado do serviço público. O que não poderia era mover o mundo para desconstituir a condenação e, ao final, descobrir que tudo era mais uma mentira. Pedi um tempo a Floriano, contendo toda a expectativa e turbilhão de pensamentos que pululavam à mente. Disse que lhe ligaria em breve. Percorri o site do STJ, a decisão do agravo de instrumento prestes a ser publicada, o que signifi- caria, de novo, a prisão. Fiquei novamente atônito por não ter imaginado, como nos livros e filmes, que a testemunha-chave Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 48 seria a culpada. Mas não haveria mais tempo para lamúrias. Nem eu e nem ninguém percebera aquela mentira. No outro dia, já tinha meu plano e ele se iniciava com uma visita pessoal urgente a Juiz de Fora. Não poderia haver erros e nem me deixaria influenciar pelo ineditismo dos fatos. Olhos nos olhos com a vítima seria capaz de perceber a even- tual mentira e ter a serenidade suficiente para abrir um novo campo de batalha. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 49A visita Era inverno, mas o tempo estava muito agradável naque-le mês e a imperiosa necessidade de ir a Juiz de Fora fizera nascer, como sempre deveria ser, a ideia de se unir o útil ao agradável. Marcaria a reunião para o sábado vindouro na parte da manhã e aproveitaria o final de semana com Renata, minha namorada, em Conceição do Ibitipoca, onde sabia da existência de um belo parque estadual. Saímos de Belo Horizonte antes do nascer do sol naquele sábado e fomos direto para o apartamento onde residia a jovem em Juiz de Fora. Encontrei-me antes no saguão do prédio, que tinha umas lojas com cabeleireiros, um restaurante e comércios do gênero, com Floriano e ele me confirmou todos os fatos. “É a verda- de, doutor, a verdade está aparecendo!”. Ele resolveu não me acompanhar, ficaria me aguardando para o almoço na volta da conversa, muito compreensível. Renata estava impaciente com o fato de ter de ficar me esperando por não se sabe quan- to tempo e, para evitar que meus planos fossem por água a baixo de ter um final de semana relaxante em Ibitipoca, acon- selhei-a a retocar as unhas no salão de beleza do saguão do Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 50 prédio. Salão de beleza é um calmante natural para algumas mulheres. Era o caso. Fiz a sugestão e aguardei, apreensivo. Se ela gostasse da ideia, seria minha salvação, se não gostasse, adeus fim de semana. Por intervenção divina, achou que seria ótimo ir ao salão fazer as unhas para conhecer o parque. Seja lá qual foi a associação feita por ela, subi para o apar- tamento e lá fui recebido pela dona Lucília. Estava com um semblante exausto e, na mão, um cigarro aceso, que certamen- te não era o primeiro daquele dia. Uma senhora foi-me apresen- tada, era Rosália Belém que prestara o depoimento de ter visto o réu passando a mão no bumbum da criança. Ela não mais trabalhava para a família, mesmo assim, consternada frente à situação, predispusera-se a colaborar. Sentei-me à mesa da sala e veio me ver, só então, Celina. Apesar da idade de adolescente, parecia ainda uma criança. Baixinha, com as bochechas rosa- das e os olhos grandes, fitou-me com curiosidade e sentou-se à mesa, na minha frente. De pronto, pedi desculpas pelo o que haveria de perguntar e conversar porque seriam perguntas de foro íntimo que também a mim constrangeriam, mas não havia outro modo de forma que quanto mais direto fôssemos, mais rápido e menos constrangimento geraria. Ela aquiesceu deste procedimento na conversa. Dona Lucília pediu licença para fa- zer um café, levando consigo Rosália que a tudo assistia de pé, deixando-se observar em seu vestido azul longo plissado, nada adequado para a ocasião. Mas entendi que aquelasenhora se- xagenária, negra e encorpada reputara uma reunião solene e que deveria vestir-se apropriadamente, a intenção deveria ter sido essa. De qualquer modo, acompanhou D. Lucília à cozinha para deixar-nos, eu e Celina, a sós. Como é de costume, após algum tempo advogando, é sempre melhor deixar que a outra parte relate os fatos falando livremente e se vá apenas direcionando os relatos. Coloquei-me a todos ouvidos e pedi para que ela me contasse, desde o iní- cio daquela tragédia, o que de fato sucedera. Entretanto, após Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 51 o “doutor, aconteceu que…”, ela desabou num choro incontido que nem água com açúcar, que dona Rosália prontamente lhe trouxe, e nem o tempo que ali permaneci tentando acalmá-la, serviu de solução. Todos estavam extremamente emocionados, inclusive dona Rosália com suas mãos trêmulas. Celina, cer- tamente, não poderia passar ilesa sendo protagonista do em- buste preparado pelo primo Márcio. Dona Lucília, também extremamente emocionada, só conseguia se referir ao evento com “aquele crápula, acabou com a minha família…” e mais choro e cigarro. Diante daquela cena, o máximo que pude fa- zer foi perguntar se era verdade que fora Márcio o estuprador e se confirmava as ameaças. Dado que sim, dona Lucília, que saíra e voltara rapidamente da sala com o café nas mãos a me oferecer, ainda me confidenciou que a sua irmã Alda teria sido decisiva no seu convencimento de que seu ex-marido abusara de sua filha. Um enredo para Nelson Rodrigues nenhum botar defeito. Dona Rosália a tudo assistia constrangida, mas já re- composta, era a melhor dentre as três emocionalmente, no que tomei a liberdade de ler o seu depoimento em juízo. Indagada se aquela passada de mão tinha conotação sexual como deixa- ra transparecer em seu depoimento, a mesma afirmou que não, era um carinho normal de um pai para com uma filha, havia sido interpretada equivocadamente. Com aquela confirmação, e vendo o que se passava no seio daquele lar, já me dava por satisfeito, pois percebera que a verdadeira versão era realmente aquela a principiar um fe- liz desfecho após quase década. Imaginei, entretanto, como seriam as duas, dona Lucília e Celina, relatando o grave fato ao juiz de direito, se apenas comigo na sala, em um sábado e vestido despojadamente, as mesmas não conseguiam formular mais do que pequenas frases e lamúrias. Numa sala de audiên- cia, com todo o formalismo, certamente haveriam de se sair bem pior e, nesse caso, a chance que nascia de se “desconde- nar” o réu entraria em colapso absoluto. Foi pensando nisto Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 52 que, ainda na sala, sugeri que ambas fossem a um cartório e fizessem uma declaração pública dos fatos. Disse que queria ler com calma e que os documentos serviriam para o futuro. Quando descemos, sacramentou-se minha certeza da inocên- cia do réu ao ver a filha correndo em direção ao mesmo e abraçando-o e beijando-o efusivamente como se não existisse mais ninguém no mundo e fosse capaz de regatar todos os beijos e abraços que queria dar em seu pai e não pôde. Dona Lucília, constrangida ao meu lado, se culpava pela separação do que, em vão, dona Rosália tentava convencê-la do con- trário. Estávamos num caminho seguro para reverter aquela condenação, mas isso ficaria para a vindoura semana já que o tempo urgia para a exploração do Parque do Ibitipoca. Renata presenciou a cena no saguão do prédio, ficou sem nada entender ainda mais quando disse que Celina não conseguira falar nada, mesmo tendo permanecido no aparta- mento por mais de duas horas. De qualquer modo, a minha tática de usar o salão de beleza para deixá-la feliz tinha ido por água abaixo. A manicure arrancara-lhe um bife da cutí- cula, segundo ela “monstruoso”, e seu humor estava pra lá de péssimo. Achei prudente agradecer e dispensar o almoço e ir correndo para a magia do Parque Estadual a fim de aplacar a ira de Renata. Ledo engano. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 53Tempus fugit Já na segunda-feira recebi o telefonema de Juiz de Fora, da própria dona Lucília, relatando que, conforme havia pedi-do, tinha ido ao cartório e feito a declaração pública. Pedi para me enviar via fax os documentos e vieram todas as decla- rações, inclusive de dona Rosália. Havia a retratação formal de Celina e de dona Lucília e a explicação da ex-empregada. Aquilo ali constituiria nova prova para o processo de Revisão Criminal, remédio para o caso. É claro que aqueles documen- tos, por si sós, não seriam hábeis suficientes, haveria de propor antes uma Ação de Justificação para que as declarações fos- sem colhidas sob o crivo do contraditório com a participação do Ministério Público. Aquelas declarações eram meu seguro de que a emoção não embargaria a completude dos fatos; dito de outra forma, já previa choro e emoção forte em audiência. Para que houvesse uma Ação de Justificação bem feita e, pos- teriormente, uma vitoriosa ação de Revisão Criminal, deve- ria, ainda, providenciar a cópia dos autos de Salvador onde Márcio estava sendo processado por crime análogo. Também haveria espaço para juntar as cartas que a filha durante todos aqueles anos mandava ao pai. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 54 O tempo urgia e enquanto pensava nos próximos passos, um olho ficaria no andamento processual em Brasília e o ou- tro na Ação de Justificação. A qualquer momento, teríamos a decisão denegatória do Agravo de Instrumento com o trânsito e com este a prisão de Floriano. Uma prisão àquela altura dos acontecimentos era tudo o que não precisava. A história já corria à boca miúda por toda comarca de Juiz de Fora e uma prisão seria um coroamento da injustiça. Como o Poder Judiciário ainda nada sabia formalmente sobre as retratações, deveria providenciar subterfúgios para mantê-lo liberto. Entre esta ansiedade e o imperioso dever de acertar, tive que entrar em contato com um colega advogado em Salvador para que com a máxima urgência enviasse-me não só a cópia dos autos daquele processo de lá, mas também a autorização do juízo para fazer juntá-lo na minha Ação de Justificação. É que o pro- cesso de lá, certamente, também estava em segredo de justiça e não correria o risco de criar um problema a mais, os que tinha já eram suficientes. Prontamente, o colega se dirigiu ao foro soteropolitano e a douta juíza negou-lhe acesso exatamente por estar em segredo de Justiça. Foi uma decepção, mas estava correta a douta juíza baiana. Já que se tratavam de familiares, consegui o telefone do pai do menor violentado e, depois de alguma re- lutância, consegui sua autorização por escrito para fazer nova investida frente aquele juízo para obter a cópia. Desfar-se-ia uma injustiça aqui em Minas e ajudaria na acusação em Sal- vador, argumentei ao pai que, constrangido, aceitou ajudar. Com o pedido instruindo em mãos, o douto juízo baiano per- mitiu não só a cópia como também autorizou sua utilização na Ação de Justificação Criminal. Posto assim, entedia presentes todos os elementos ne- cessários para propor aquela ação. Estava firme nos trilhos rumo à absolvição. Fiz com esmero e capricho a referida ação. Protocolizei-a em Juiz de Fora, no foro condenatório Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 55 competente para a ação. Após alguns dias de aflição, recebi a publicação de que o juízo havia declinado da competência, o que me pareceu um ato de defesa, pois a vara condenatória era realmente a competente. De qualquer forma, não foi di- fícil imaginar a situação do Dr. Belchior, ainda naquela vara. Reencontrar com quem havia condenado e cuja história já tomava cercanias para fora da própria comarca, dificultava- lhe o múnus. Como não produziria nenhum tipo de prejuízoàs minhas pretensões e meu tempo para discutir questiún- cula tão irrelevante era inexistente, não me opus. No novo juízo, foi designada audiência para depois de seis meses. Não haveria tempo hábil para manter Floriano solto, estava pen- sando que não tardaria mais de mês a publicação da deci- são do agravo de instrumento quando, quase que concomi- tantemente, recebi a malsinada publicação de Brasília. Pedi intervenção do Floriano junto ao juízo, já que conhecia o defensor daquela vara e este defensor poderia antecipar-lhe a urgência do feito. O desespero tomou conta de toda aquela família destro- çada por uma mente doentia. Floriano seria preso e se agra- varia aquela miríade injustiça. É claro que não poderia ficar inerte e a única forma de retardar o trânsito seria agora mane- jar um Agravo Interno. Um Agravo Interno no Agravo de Ins- trumento de um Recurso Especial… O leitor, que não é afeito às práticas jurídicas, deve estar se perguntando até quando se pode recorrer, e a mesma pergunta me fazia e a resposta, inva- riavelmente, até quando der para se fazer Justiça. No caso, cor- ria-se um seríssimo risco do ministro do STJ entender como recurso protelatório e me fixar uma multa; já corria esse risco antes com o Agravo de Instrumento e, novamente, Floriano se pré-dispôs a assumir os riscos, pequenos naquela implicada situação. Não havia chances de vitória no Recurso Especial, nem no Agravo de Instrumento e muito menos no Agravo Interno. A questão punha a Lei contra o Direito e é outro man- Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 56 damento do advogado que se encontrarmos a Lei em oposição ao Direito, devemos lutar pelo Direito, o que fazia. Após uma semana, houve a atualização da movimenta- ção com a designação da audiência de justificação para dali a três meses, mas naquela altura, o meu Agravo Interno já havia sido protocolado em Brasília, o recurso teria sido intempestivo se houvesse aguardado a decisão do juiz. Talvez o tempo do trâmite do Agravo Interno no STJ até a sua não-admissibilida- de não fosse suficiente até a absolvição, mas era o que poderia fazer para manter Floriano solto. Milagrosamente, contra to- das as minhas expectativas, entretanto, o Agravo Interno fora aceito. Com a liberdade de Floriano assegurada pelo habeas corpus e com o trâmite em curso do Agravo Interno, era, agora, aguardar a audiência de justificação. Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 57A justificação Os três meses se passaram rápido. A audiência no meio da semana forçou-me a ir de avião para realizá-la e vol-tar no mesmo dia para assumir outros compromissos inadiáveis em Belo Horizonte. No corredor do fórum, pude per- ceber que a injusta condenação ganhava popularidade. Pude rever alguns conhecidos amigos, inclusive Vinícius Baía que se colocava à disposição para ajudar-me no que fosse necessário. Apesar de ser um novo ambiente, senti-me tranquilizado pela recepção e apreensivo pelo adiantar da hora. A audiência havia sido designada para as duas horas da tarde, já passa- vam das duas e meia e o meirinho ainda não havia apregoa- do ninguém, mesmo porque o juiz e o promotor ainda não tinham chegado. Com o voo marcado para as cinco horas da tarde e com compromisso em Belo Horizonte às sete da noite, com três pessoas para serem ouvidas, não é difícil imaginar meu desespero. E se o juiz faltasse? E se o promotor estivesse doente? Tudo isso passa pela cabeça quando se quer resolver rapidamente uma questão processual. E, invariavelmente, es- sas intercorrências existem e as coisas podem piorar. É só ter imaginação. Mas não poderia ser naquele dia, naquela au- Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 58 diência. Isso não. Lutava com meus pensamentos buscando concentrar-me em um final feliz para aquela audiência. Floria- no, dona Lucília, Celina e dona Rosália conversavam entre si, de vez em quando me perguntavam algo, respondia, mas não conseguia prestar atenção em mais nada. Havia instruído a todos, de como ocorreria a audiência, ou deveria ocorrer, mas não conseguia disfarçar a minha ansiedade olhando o relógio de minuto a minuto. Até que vi um senhor entrando apressa- do e sem olhar para os lados na sala de audiências, ao que fui informado por Floriano tratar-se do juiz. “Antes tarde”, pensei. Na sequência, veio o promotor e não tardou o meirinho a fazer o pregão. Nem acabou de falar o nome de todos, já confirma- va de pé a minha presença em sua frente. Ao entrar na sala de audiência, o clima era um tanto tenso. Um silêncio incomum para uma simples Ação de Jus- tificação, mas compreensível por se tratar de um caso que envolvia uma tragédia familiar e, até onde estava, com um final tenebroso de desventura para todos. Apresentei-me, o juiz perguntou-me se viera de Belo Horizonte e respondi que sim e que havia ido a Juiz de Fora somente para aquela audiên- cia e tinha voo às cinco da tarde. Acho que o juiz não gostou da informação, talvez transpareci impaciência, quando era só aflição. De qualquer modo, primeiro foi chamada a adolescen- te. Ao se sentar na cadeira de frente ao juiz, Celina olhou para todo o ambiente e disse que estava sentada ali, mas preferia estar sentada no lugar do juiz, querendo fazer alguma referên- cia à sua vontade de estudar direito e se tornar magistrada. Tinha se referido a este assunto no corredor, minutos antes, mas tinha uma vaga lembrança do que tinha falado. Meu ner- vosismo com a hora impedia-me de lembrar de certos detalhes, mas a referência fazia certo sentido. Como ninguém da sala, a não ser eu, havia tomado parte da conversa que se dera no corredor, a frase ficou sem sentido o que fez com o que juiz desconversasse iniciando a sua inquiri- Licenciado para Brenda Cristina Rodrigues Oliveira 59 ção. O juiz perguntou-lhe o nome e, antes mesmo que pudesse responder, lágrimas romperam-lhe as faces. Foi um choro con- tido, suficiente para aumentar o constrangimento naquela sala. O juiz passou-me a palavra num simples “pois, não, doutor”. Como previra, haveria dificuldades em conduzir as perguntas para a adolescente no que requeri a leitura da declaração feita no cartório de notas para que houvesse a confirmação. Infor- mei as folhas, o juiz buscou nos autos, analisou o documento e pediu para que a escrevente lesse em voz alta, não sem antes ter consultado a promotora de justiça que a tudo aquiesceu depois também de averiguar detidamente o documento e ter pergun- tado para Celina se ela tinha ido ao cartório fazer aquela decla- ração. Com a afirmativa de Celina com a cabeça, procedeu-se a leitura. Metade do trabalho estava pronto. Após a leitura e sua confirmação integral, não houve nenhuma pergunta nem por mim, nem pela promotora e nem pelo juiz do que a meni- na assinou a ata, levantou-se e saiu aliviada. Nesse momento, pude perceber que a promotora também se emocionara com a declaração e enxugava uma lágrima furtiva que teimava em es- conder sob os óculos. Tanto quanto melhor. Apregoada, a dona Lucília, ao contrário da filha, pôs-se a falar desbragadamen- te, antes mesmo do juiz perguntar-lhe algo. Acho que o maço de cigarro que fumara antes da audiência havia deixado dona Lucília elétrica. O juiz, então, olhando-me como quem pede socorro, perguntou se era o caso de ler também a declaração em cartório dela e, antes de responder, já localizara o documen- to demonstrando ter conhecimento dos autos. Interrompi dona Lucília e disse que a escrevente lhe leria a declaração para que confirmasse ou não. Ao final, o Juiz inquiriu-a se era verdade o que ali constava. Dada a resposta afirmativa e não havendo perguntas, ia encerrando o ato quando a mesma quis, ainda, explicar como a sua irmã Alda teria lhe influenciado. Intervi. Não havia mais necessidade de nada, já era o suficiente.
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