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Autora: Profa. Regina Rossetti Colaboradores: Prof. Renato Bulcão Profa. Tânia Sandroni Descartes e a Filosofia Moderna Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Professora conteudista: Regina Rossetti Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, onde também fez seu estágio pós‑doutoral. Possui mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde também fez a graduação em Filosofia. Atualmente é docente do Programa de Pós‑Graduação em Comunicação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e professora na Universidade Paulista (UNIP). Possui experiência na área de Comunicação com ênfase em Epistemologia, Filosofia e Teorias da Comunicação. Atua na investigação interdisciplinar entre comunicação e filosofia contemporânea, pesquisando os seguintes temas: comunicação e inovação, esfera pública e comunicação de interesse público. Sua trajetória profissional inclui a atuação em cursos de Filosofia na Universidade São Judas e na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) ou em disciplinas de Filosofia em outros cursos na UNIP e PUC/SP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) R829d Rossetti, Regina Descartes e a Filosofia Moderna. / Regina Rossetti. – São Paulo: Editora Sol, 2017. 140 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXIII, n. 2‑069/17, ISSN 1517‑9230. 1. Racionalismo clássico. 2. Metafísica cartesiana. 3. Método cartesiano. I. Título. CDU 1 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Rose Castilho Fabrícia Carpinelli Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Sumário Descartes e a Filosofia Moderna APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 A FILOSOFIA MODERNA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL ........ 11 1.1 Períodos da História da Filosofia: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea .... 12 1.2 O ensino da história da Filosofia .................................................................................................... 16 2 PERÍODOS DA FILOSOFIA MODERNA: RENASCENTISTA, RACIONALISTA CLÁSSICO E ILUMINISTA ................................................................................................... 23 2.1 Filosofia renascentista: ruptura com o pensamento medieval ......................................... 23 2.2 Racionalismo clássico: Descartes ................................................................................................... 31 2.3 Iluminismo: filosofia das luzes ........................................................................................................ 34 3 RACIONALISMO MODERNO E O EMBATE COM OS EMPIRISTAS .................................................. 37 3.1 A origem da razão humana: debate entre inatistas e empiristas ..................................... 37 3.2 Soluções dos filósofos modernos para a questão da origem da razão .......................... 47 4 CRÍTICA AO RACIONALISMO E AO EMPIRISMO MODERNOS ........................................................ 57 4.1 Marx e a ideologia, Freud e o inconsciente ............................................................................... 57 4.2 Bergson e a intuição ........................................................................................................................... 60 4.3 Bachelard e a crítica ao empirismo .............................................................................................. 68 Unidade II 5 DESCARTES ........................................................................................................................................................ 81 5.1 Vida e obra .............................................................................................................................................. 82 5.2 Cinebiografia de Descartes ............................................................................................................... 84 6 A PSICOLOGIA E A METAFÍSICA DE DESCARTES ................................................................................. 86 6.1 A psicologia cartesiana ...................................................................................................................... 86 6.2 Metafísica cartesiana .......................................................................................................................... 91 6.3 Descartes no ensino de Filosofia .................................................................................................... 98 Unidade III 7 O MÉTODO CARTESIANO ............................................................................................................................104 7.1 A dúvida metódica .............................................................................................................................104 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 7.2 Um método para o conhecimento da verdade ......................................................................107 7.3 Discurso do Método: segunda parte ..........................................................................................111 8 AS MEDITAÇÕES .............................................................................................................................................116 8.1 O cogito posto: dúvida radical, dúvida metafísica e existência em Descartes .........116 8.2 Meditação primeira e Meditação segunda ..............................................................................121 8.3 O cogito de Descartes no Ensino Básico ...................................................................................125 7 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 APRESENTAÇÃO Este é o livro‑texto da disciplina Descartes e a Filosofia Moderna. Ele servirá de apoio para seus estudos nessa disciplina e está organizado em três unidades. Inicialmente, trataremos da Filosofia Moderna e iremos descrever o contexto da história do pensamento ocidental no qual ela está inserida. A História da Filosofia pode serdividida em quatro grandes períodos: Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea. Iremos abordar os três períodos dentro da Filosofia Moderna: Renascimento, Racionalismo clássico e o Iluminismo. Em seguida, discutiremos a origem da razão humana a partir do debate moderno entre inatistas e empiristas e apresentaremos algumas soluções de filósofos modernos para esta questão. Por fim, quanto ao racionalismo da Filosofia Moderna, são postas críticas de alguns pensadores contemporâneos. Veremos a filosofia de Descartes, considerado o fundador da Filosofia Moderna, trazendo a biografia de Descartes e suas principais obras. Em seguida, serão vistas suas concepções de psicologia e de metafísica. Depois, iremos adentrar dois textos fundamentais de Descartes, o Discurso do Método e As meditações, aprofundando e discutindo o pensamento do filósofo. Esse é um trecho mais analítico do material, que requer a leitura e a reflexão dos textos escritos por Descartes para a compreensão de seu pensamento. Neste livro‑texto você encontrará vários textos de leitura cuidadosamente selecionados. Colocar textos de autores diferentes sobre um mesmo tema propicia ao leitor uma visão múltipla de um pensamento, desenvolvendo o seu senso crítico. Filosofia se aprende lendo e refletindo sobre o que se leu. Então, é fundamental que você faça todas as leituras recomendadas aqui. Mas a filosofia não é feita somente de conceitos. As imagens são importantes para despertar a reflexão filosófica. Neste livro‑texto, você encontrará várias imagens. Elas não são aleatórias, pois trazem significados relacionados ao conteúdo que está sendo exposto. Reflita sobre cada imagem e descubra seus significados múltiplos. Cada ilustração serve de inspiração para a sua reflexão pessoal. INTRODUÇÃO Você está agora lendo estas páginas. Mas você realmente está aí lendo ou está deitado em sua cama sonhando que está lendo? 8 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Figura 1 Você já deve ter sonhado que estava em outro lugar, diferente da cama onde dorme. Já sonhou que estava na escola, na igreja ou andando na rua. E enquanto sonhava, na maioria das vezes, não sabia que estava sonhando e acreditava que tudo o que via e sentia era real. Bom, se você refletir filosoficamente sobre a experiência de sonhar, sem saber que está sonhando e acreditando que é verdadeiro tudo o que vê, irá perceber que pode existir uma consequência terrível: como terei certeza de que, neste momento, estou acordado? Como saber se não estou dormindo, sonhando que estou acordado? À noite, ouvimos um gato miando lá fora. Abrimos a janela e vemos que o gato parece pardo, acinzentado, pois a luz noturna não é suficiente. Pela manhã, encontramos o gato e vemos que ele não é cinza, mas, na realidade, é amarelo. Figura 2 Na noite seguinte, observamos o luar e chegamos à conclusão de que a Lua parece ter o tamanho de uma bola de basquete. Mas sabemos, por meio dos estudos científicos, que a Lua, na realidade, mede um quarto do tamanho do planeta Terra. Pois bem, nos enganamos no sonho, com o gato e com a Lua. 9 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Figura 3 Nossos sentidos não parecem confiáveis. Então, se nossos sentidos nos enganaram uma única vez que seja, como ter a garantia de que não está nos enganando agora, neste exato momento? Esse foi o principal problema que Descartes enfrentou e veremos como ele resolveu essa questão. 11 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Unidade I 1 A FILOSOFIA MODERNA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL Para compreendermos a Filosofia Moderna, é necessário contextualizá‑la dentro da História do pensamento ocidental. O pensamento ocidental teve sua origem na Grécia Antiga e, para chegar até nós, passou por diversos períodos. Podemos dividir a História da Filosofia ocidental em quatro grandes períodos: Filosofia Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea, conforme o quadro a seguir: Quadro 1 – Períodos da História da Filosofia Filosofia Antiga Medieval Moderna Contemporânea Séculos VI a.C.-VI d.C. I-XIV XIV-XIX XX-XXI Língua Grego Latim • Latim • Modernas Modernas Divisões • Pré‑Socráticos • Clássico • Patrística • Escolástica • Renascentista • Racionalismo Clássico • Iluminismo Filósofos • Tales • Anaximandro • Anaxímenes • Pitágoras • Demócrito • Sócrates • Platão • Aristóteles • Epicuro • Diógenes • Antístenes • Zenão • Agostinho • Abelardo • Duns Scoto • Escoto Erígena • Anselmo • Tomás de Aquino • Alberto Magno • Guilherme de Ockham • Roger Bacon • Boaventura • Dante • Marcílio Ficino • Giordano Bruno • Campanella • Maquiavel • Montaigne • Erasmo • Thomas Morus • Jean Bodin • Kepler • Nicolau de Cusa • Francis Bacon • Descartes • Galileu • Nietzsche • Marx • Hegel • Freud, • Bergson • Heidegger • Husserl • Foucault • Deleuze • Derrida • Habermas • Pierce • Sartre • Ricoeur 12 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Filósofos • Pascal • Hobbes • Espinosa • Leibniz • Malebranche • Locke • Berkeley • Newton • Gassendi • Hume • Voltaire • D’Alambert • Diderot • Rousseau • Kant • Fichte • Schelling Como podemos observar no quadro, o período Moderno foi muito fecundo para o surgimento de pensadores e filósofos, superando em muito o período anterior, a Idade Média. 1.1 Períodos da História da Filosofia: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea A Filosofia Antiga vai do século VI a.C. até o século VI d.C. e compreende quatro grandes períodos da Filosofia greco‑romana: • Pré‑socrático: a Filosofia se ocupa com a origem do mundo e as causas das transformações na natureza. • Socrático: a Filosofia investiga as questões humanas – a ética, a política e as técnicas –, ou seja, é um período antropológico. • Sistemático: a Filosofia busca reunir e sistematizar tudo quanto foi pensado anteriormente, interessando‑se, sobretudo, em mostrar que tudo pode ser objeto do conhecimento filosófico, desde que as leis do pensamento e de suas demonstrações estejam firmemente estabelecidas para oferecer os critérios da verdade e da ciência. É o período de Platão e Aristóteles. • Helenístico: a Filosofia se ocupa, sobretudo, com as questões da ética, do conhecimento humano e das relações entre o ser humano e a natureza e de ambos com Deus, quando adentra o cristianismo. Neste período temos as escolas epicurista, estoica, cínica e neoplatônica. Os filósofos mais importantes e influentes do período antigo são: Sócrates, Platão e Aristóteles. 13 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Figura 4 A Filosofia Medieval se divide em Patrística e Escolástica. A Patrística se inicia no século I e vai até o século VII, recebendo influência das Epístolas de São Paulo e do Evangelho de São João. A principal preocupação da Filosofia Patrística é conciliar a fé cristã com a razão herdada dos gregos. Divide‑se em patrística grega (ligada à Igreja de Bizâncio) e patrística latina (ligada à Igreja de Roma). Os nomes mais importantes foram: Justino, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio, São Gregório Nazianzo, São João Crisóstomo, Isidoro de Sevilha, Santo Agostinho, Bedae Boécio. A Filosofia Escolástica Medieval vai do século VIII ao século XIV e abrange pensadores europeus, árabes e judeus. É o período em que a Igreja Romana dominava politicamente a Europa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia Medieval também é conhecida com o nome de Escolástica. Uma de suas questões principais diz respeito às provas da existência de Deus e da alma. Os teólogos medievais mais importantes foram: Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. Do lado árabe: Avicena, Averróis, Alfarabi e Algazáli. Do lado judaico: Maimônides, Nahmanides, Yeudah ben Levi. 14 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Figura 5 A Filosofia Moderna pode ser dividida em três períodos: Renascimento, que vai do século XIV até o século XVI; Racionalismo Clássico, que vai do século XVII a meados do século XVIII; e o Iluminismo, que vai de meados do século XVIII ao começo do século XIX. O pensamento renascentista se inicia no século XIV e vai até o século XVI sendo marcado pela descoberta de obras filosóficas gregas de Platão e Aristóteles, desconhecidas na Idade Média, bem como pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e romanos. Os temas principais desse período são: o homem como microcosmo, a política e o antropocentrismo. Os nomes mais importantes desse período são: Dante, Marcílio Ficino, Giordano Bruno, Campanella, Maquiavel, Montaigne, Erasmo, Thomas Morus, Jean Bodin, Kepler e Nicolau de Cusa. O período seguinte, conhecido como o Grande Racionalismo Clássico, é marcado por três grandes mudanças intelectuais: surgimento do sujeito do conhecimento; o objeto pode ser conhecido desde que sejam consideradas representações, ou seja, ideias ou conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento; e a realidade é concebida como um sistema racional de mecanismos físicos, cuja estrutura profunda e invisível é matemática. Há uma grande confiança nas capacidades e nos poderes da razão humana. Os principais pensadores desse período foram: Francis Bacon, Descartes, Galileu, Pascal, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, Locke, Berkeley, Newton, Gassendi. 15 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA A última fase da Filosofia Moderna é chamada de Iluminismo ou Ilustração. A filosofia da ilustração vai de meados do século XVIII ao começo do século XIX. Esse período também crê nos poderes da razão, chamada de As Luzes. O Iluminismo afirma que, pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política, além da evolução e do progresso das civilizações. Os principais pensadores do período foram: Hume, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling (embora este último costume ser colocado como filósofo do Romantismo). Figura 6 A Filosofia Contemporânea aparece depois da Filosofia Moderna e compreende o final do século XIX e os séculos XX e XXI. A Filosofia Contemporânea abrange o pensamento filosófico atual e é marcada por rupturas com o pensamento anterior. São temas recorrentes na Filosofia Contemporânea: a história, as ciências, a política e as utopias, a cultura, a pós‑modernidade, a linguagem e a ética. São considerados filósofos contemporâneos: Hegel, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau‑Ponty, Bachelard, Bergson, Wittgenstein, Foucault. Lembrete A História da Filosofia ocidental é dividida em quatro grandes períodos: Filosofia Antiga, Filosofia Medieval, Filosofia Moderna e Filosofia Contemporânea. A Filosofia Moderna vai do século XIV até o século XIX. 16 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I 1.2 O ensino da história da Filosofia Sobre Filosofia e seu ensino: qual o lugar e o papel do sujeito? Pretende‑se desenvolver aqui uma reflexão filosófica, inspirada na filosofia de Descartes e, principalmente, na dúvida metódica, em que seja possível pensar, em primeiro lugar, quais as relações entre a Filosofia e o ensino de Filosofia. Posteriormente, pretende‑se que uma reflexão sobre essas relações permita pensar se há um lugar para o sujeito no curso do ensino da Filosofia e, subsequentemente, qual seria o papel dele nesse lugar. Assim, o que se pretende agora é pensar a relação que o sujeito tem no estudo da Filosofia e no seu ensino, para então compreender de que modo ele opera ou pode operar no curso do aprendizado filosófico na relação entre mestre e discípulo. Para tanto, parte‑se de uma leitura clássica desses dois sujeitos, sem, contudo, considerar entre eles qualquer tipo de relação de subordinação ou submissão, o que seria incompatível com o método cartesiano, que, por sua vez, pressupõe certa liberdade e independência de investigação no curso da reflexão filosófica como condição necessária para que seja possível o conhecimento a partir de si mesmo, tal como o filósofo propõe em suas obras mestras. Desse modo, pretende‑se a intitulação dos sujeitos apenas para fins didáticos, de entendimento acerca daqueles que constroem e desenvolvem a relação de ensino‑aprendizagem. Do mesmo modo, também se propõe, ainda que inicialmente, uma distinção entre a Filosofia e seu ensino, mas apenas a fim de contextualizar um problema, qual seja: há distinção entre a Filosofia e ensino da Filosofia? Posteriormente, como se verificará ao longo deste livro‑texto, será demonstrado em que medida Filosofia e seu ensino se confundem enquanto obras de uma mesma operação racional. O que, na história da Filosofia, dá a Descartes um papel de destaque é a revolução metódica que ele propõe como novo e inovador, norte referencial para o conhecimento científico, baseado no entendimento e no esclarecimento da realidade a partir das ideias, o que se encontra no Discurso do Método e nas Meditações. Trata‑se de uma significativa novidade na história da Filosofia, uma vez que o autor rompe com a tradição aristotélico‑tomista e com toda a vertente filosófica que entende que o conhecimento prescinde da experiência sensorial do mundo real para tão somente depois se constituir como reflexão ou como síntese de ideias. Sua crítica centra‑se, principalmente, no desprezo da realidade material, dada sua efemeridade, e na retomada de uma perspectiva cognitiva de caráter subjetivo, mas agora firmada na ideia de que o conhecimento começa no sujeito, e não na experiência do mundo real. Nessa linha, pretende supor que toda a realidade se constitui, primeiramente, no plano do pensamento ou do espírito como ideia, o que justifica a afirmação de que o método de conhecimento científico cartesiano é racionalista, em oposição ao método empirista, que se baseia e começa com a experiência sensorial do mundo material. Com isso, sustenta que todo o conhecimento, para ser considerado verdadeiro, logicamente válido e universal, tem que ser constituído enquanto ideia acerca das coisas e a partir de uma reflexão fortemente amparada na dúvida metódica. 17 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA É importante esclarecer, como se verá mais adiante, que seu método implica, necessária e primeiramente, duvidar das coisas como se apresentam aos sentidos, porque elas podem ser enganadoras, percebendo que elas podem ser concebidas de outra maneira, que nem os sentidos sejam capazes de perceber, e a partir daí elevar a dúvida ao próprio sujeito da reflexão, fazendocom que ele questione‑se a si mesmo como um gênio do mal, enganador, que pode levar a reflexão e o percurso do conhecimento ao desvio para a falsidade ou mentira. Superadas as dúvidas, as respostas encontradas devem ser racionalmente fortes o suficiente para garantir uma explicação esclarecida e coerente acerca da realidade do mundo sem que a efemeridade dele se apresente como um obstáculo ao entendimento que dele se possa ter. É nessa direção que ele propõe uma revolução filosófica: da constatação da realidade (ideias acerca da experiência do mundo real) ao seu entendimento, passando, por intermédio da dúvida metódica, pela atestação do conhecimento e das ideias que se pode ter a respeito do mundo real. O processo de reflexão se dá exclusivamente pela via da razão como obra do espírito, sem levar em consideração, a qualquer momento, a experiência sensorial do mundo, elemento fundamental de sua definição. Da mesma forma como a obra filosófica de Descartes inaugura um novo período da história da Filosofia, marcado por essa ruptura com a tradição, e mediante uma inversão radical das perspectivas metodológicas do conhecimento, o ensino da Filosofia deve se submeter à nova orientação, na qual quem ensina se coloca como sujeito de reflexão e o aprendizado se dá pela dúvida metódica, num pleno e vigoroso exercício da consciência, em que o próprio mestre é levado a pensar se o conhecimento que pretende transmitir, construir ou acessar, tanto quanto o seu espírito, não se constituem como enganos e, por isso, podem levar o aprendiz ao erro, à mentira e à falsidade. Para tanto, é necessário submeter a experiência racional do ensino e do aprendizado a uma significativa transformação, mediante um exercício de reflexão metódica em que o pensamento passa a ocupar papéis epistemológico e ontológico primordiais de referência. Nesta perspectiva teórica e metódica, o ato de ensinar se projeta como puro exercício do pensamento, ao passo que o mestre se revela agora como sujeito de reflexão e, posteriormente, como referência do saber, do conhecimento e da verdade. Isso quer dizer que se a Filosofia de Descartes se propõe como uma forma de superação da tradição empirista, mediante o emprego de um método que parte do espírito e que rejeita os elementos da experiência material do mundo como base segura do saber, e com isso despreza toda forma de relação ensino‑aprendizagem profundamente amparados numa perspectiva empirista, que, por sua vez, pretende construir o conhecimento como experiência sensorial do mundo real a partir das percepções da realidade, a própria experiência do ensino da Filosofia deve se submeter ao crivo da razão e à dúvida metódica como vias seguras a fim de garantir que o conhecimento filosófico seja certo, coerente e coeso, de modo que possa ser demonstrado racionalmente e de forma clara, e, acima de tudo, que possa ser submetido ao cogito e à dúvida hiperbólica, métodos radicais de atestação, e, ao final, resistir como referência da verdade das coisas do mundo. Existe uma justificativa para essa tomada de decisão: o ensino, como via para o conhecimento e para a verdade, deve ter as mesmas qualidades que tem o saber filosófico enquanto método. Todo o conhecimento, para ser considerado verdadeiro, logicamente válido e universal, tem que ser constituído 18 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I enquanto ideia acerca das coisas e a partir de uma reflexão fortemente amparada na dúvida metódica, ao invés de se amparar na experiência pessoal e efêmera das coisas do mundo sensorial. Portanto, e neste sentido, ensinar Filosofia é filosofar. O ensino de Filosofia consiste no ato de filosofar na medida em que ele não se reduz a mera enunciação dos conceitos e teorias filosóficas ou mesmo da historiografia dessas ideias ou da biografia bibliográfica de seus autores. Ensinar Filosofia é ensinar a filosofar filosofando. Nesse sentido, não há outra maneira de ensinar a Filosofia se não for mediante o estudo das ideias e a partir delas, conforme o método cartesiano de reflexão. Assim, o ensino filosófico é um estudo filosófico construído mediante a reflexão dos conceitos e das teorias, com vista ao seu entendimento. No entanto, todo o exercício filosófico que surge com o seu ensino implica necessariamente uma tomada de posição quanto ao material da reflexão, em que o sujeito que ensina a Filosofia o faz mediante o questionamento voltado ao entendimento do conceito ou teoria filosófica, em uma forma dinâmica de raciocínio na qual, por meio de análises e esclarecimentos, se busca explicar o que as ideias são e o que elas significam, e principalmente, naquele momento em que são retomadas. É correto afirmar que ensinar Filosofia é ensinar a pensar, a refletir e a conhecer, a partir do próprio exercício do questionamento racional, as ideias e a si mesmo. O exercício do pensamento filosófico na perspectiva cartesiana se revela como um exercício de reflexão mediante a dúvida do sentido e das explicações que tradicionalmente foram constituídas no curso da história da Filosofia, isto é, é verificar e atestar se o entendimento que os filósofos tiveram a respeito do pensamento, teoria ou conceito está racionalmente bem fundamentado, de modo que a explicação tenha o mesmo valor de validade racional para todos aqueles que o pensaram. É nessa linha de raciocínio que a própria ideia de tradição filosófica se define: ela aparece como retomada, análise dos argumentos, verificação e atestação do que é dito, afirmado ou questionado. Pertencer a uma tradição filosófica não tem nada a ver com repetição de ideias de forma irrefletida, como um eco de pensamento que ressoa ilimitadamente na escrita ou na voz daqueles que retomam o pensamento de um filósofo. Tem a ver, sim, com a possibilidade de retomar analiticamente um pensamento filosófico com a firme disposição de reaver‑lhe o sentido ou significação de seus enunciados, mediante a dúvida quanto a validade de suas proposições. E ainda que ao final se chegue às mesmas conclusões, sua significação pode se demonstrar atualizada já que retomada em outro contexto filosófico e com outras formas possíveis de duvidar. É nesse sentido que ensinar Filosofia se apresenta como reflexão, posto que o sujeito que pensa se revela como um outro da reflexão, em relação a primeira propositura da proposta filosófica, o que garante, como se verá mais adiante, a subjetividade do discurso que, retomando a tradição de um pensamento, se vê levado a reponderar e a reanalisar todo o processo de reflexão, o que pode ocorrer, em muitas situações, motivado por uma outra problematização filosófica ou por um outro modo de se colocar o problema que ensejou a formulação anterior do pensamento que se analisa. 19 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Certamente, esse itinerário reflexivo pode se apresentar como novo, possibilitando novas considerações e novos modos de entendimento, o que não significará necessariamente a invalidação da concepção filosófica anterior, mas apenas um redimensionamento de sua propositura. Destarte, o ensino da Filosofia, enquanto conhecimento, apresenta um duplo aspecto: o conhecimento do objeto de uma reflexão anterior, passando pelo reconhecimento do próprio exercício reflexivo mediante a dúvida metódica, e o conhecimento que leva ao entendimento do que foi dito anteriormente, mas agora direcionado por uma nova orientação do entendimento. E o que efetiva o exercício do conhecimento no interior de uma tradição filosófica como atividade racionalmente válida é a retomada do cogito e da dúvida hiperbólica que ele gera, já o que o sujeito da reflexão agora é outro. Nessa oportunidade,o próprio sujeito, que retoma a tradição filosófica, é obrigado, sob a influência do método cartesiano, a duvidar de si mesmo como gênio questionador e investigativo, a pretexto de validar o que conhece como objeto autêntico e legítimo, sem qualquer sujeição a um gênio enganador ou mesmo aos vícios advindos do erro ou da mentira. Afinal, como sugere Descartes, conhecimento seguro é aquele que o sujeito adquirir por si mesmo, ao invés de tomá‑lo por empréstimo ou como o fruto de mera experiência sensorial do mundo real. Por tudo isso, é correto pensar que ensinar Filosofia não é ensinar história da Filosofia, se por esta se entender o exercício narrativo e descrito da ordem dos enunciados argumentativos ou conceituais de um filósofo, ou mesmo de suas relações com outros pensadores, ou mesmo uma narrativa da ordem dos acontecimentos pessoais de sua vida. Não é possível perder de vista a ideia de que filosofar é indagar, o que exige uma dupla ponderação: uma acerca da natureza da própria indagação e outra acerca do próprio sujeito que indaga. Assim, se filosofar significa o ato do sujeito questionar a si mesmo enquanto uma coisa pensante, o ensino da Filosofia implica ensinar o discípulo a compreender a si mesmo enquanto uma coisa pensante, mediante o exercício da dúvida hiperbólica, e também como um meio para alcançar efetivamente um saber acerca de si mesmo e das coisas do mundo real. Trata‑se, portanto, de um caminho de aprendizado, no qual o pensador aprende a aprender, aprende a ser e aprende a fazer, a partir do entendimento racional de que se é no universo das ideias e do pensamento. Somente após cumprir esse itinerário, poderá ensinar ao estudante de Filosofia a maneira racionalmente adequada de aprender e de conhecer a própria Filosofia. Também é importante esclarecer por que a Filosofia não se confunde com a ideologia. Ainda que ambas façam referência ao conceito de ideia, cada uma delas opera de modo próprio, uma diferentemente da outra. Filosofar é pensar a ideia das coisas e buscar entendê‑las a partir delas mesmas, mediante procedimentos racionais específicos de questionamento, dúvida e entendimento segundo, como se verá mais adiante, regras e critérios específicos de reflexão racional. Nesse sentido, a filosofia idealiza, isto é, ela define ideias, conceitos e formas de reflexão. Já a ideologia decorre de uma atividade de apropriação das ideias para conformá‑las a determinadas formas de conceber, imaginar e definir o mundo da vida, para, a partir de então, coordenar condutas e atitudes de modo persuasivo, arbitrário e controlador. Ela se expressa por ideologização. Ideologizar é criar ideias acerca das coisas a fim de significar o mundo de forma criativa e até positiva: a ideologia ideologiza. 20 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Idealizar ou idear é diferente de ideologizar. Idear é pensar, refletir, perquirir com objetivo de compreender as coisas que existem no mundo e as próprias ideias a respeito dele. Ideologizar é imaginar, é criar ex ni hilo, é fantasiar com a finalidade de impor ao outro determinado modo de conceber ou de acreditar e, por isto, é limitadora e circunstancial em relação ao mundo. Sendo assim, não é correto afirmar que a Filosofia possa ser ideológica, assim como não é possível afirmar que uma ideologia seja filosófica, posto que, enquanto a primeira é libertadora, reveladora e racional, a segunda é coatora, limitadora e irracional, no sentido cartesiano. Assim sendo, a Filosofia, segundo Descartes, se propõe como um exercício do espírito, ela é investigativa e leva o sujeito a um processo racional de demonstração lógica e sistemática das ideias a respeito das coisas, do espírito, do sujeito e do mundo real. Diferentemente do discurso ideológico, que é positivo e limitado a certo conjunto de crenças ou sentimentos e que culmina num processo arbitrário e dogmático de determinação da realidade. Segundo a proposta cartesiana, a realidade pode ser comprovada por meio de ideias, enquanto a ideologia não se comprova, mas apenas se sustenta por um conjunto de argumentos persuasivos amparados em crenças, convicções e sentimentos particulares acerca das coisas que se anseia no mundo empírico. Na mesma direção, é correto afirmar que não existe Filosofia sem um sujeito que a pense, conferindo a ela e, ao mesmo tempo, a si mesmo, sentido e entendimento racional, logicamente demonstrável, acerca das coisas ou das ideiais que possam ser pensadas. Diferentemente, a ideologia pode existir sem sujeito, já que não é fruto da consciência do sujeito, mas um conteúdo abstrato e pouco provável acerca do mundo da vida, que eventualmente se impõe ao indivíduo de forma irrefletida, irracional. Contudo, é possível pensar que os conteúdos do ensino de Filosofia não podem ser predeterminados em razão de um itinerário bibliográfico específico sem que, para tanto, se deixe perder algo do caráter filosófico do próprio exercício em detrimento do que se assume como Filosofia segundo o método cartesiano, ao passo que se torna ideológico, doutrinador, limitador do conhecimento e da verdade. É nessa perspectiva que o ensino de Filosofia profundamente amparado no curso da história da Filosofia pode se revelar desafiador, dificultador e dissimulador do conhecimento filosófico, pois impõe um caminho parcial e um ritmo de desenvolvimento que nem sempre permitem a livre reflexão e certa criatividade no modo como o pensamento pode se pôr. No mesmo passo, a propriedade do saber filosófico, de pensar as questões do cotidiano, se perde na medida em que o ensino histórico da Filosofia pode impor desvios ao sujeito da reflexão, que, de repente, não vê mais condições de pensar o que constitui o mundo real, mas apenas as questões pertinentes de um tempo filosófico que já não é mais. Perceba que, nessa direção, foi e sempre será a atividade filosófica, ocupando‑se das questões de seu tempo, que não serão necessariamente questões de todos os tempos. Isso se dá pelo fato que o filosofar se ocupa de um rol de preocupações ou condicionamentos quase negativos, enquanto uma história da Filosofia se ocupa de uma descrição dessa constatação e a coloca em termos de um itinerário narrativo dos posicionamentos filosóficos circunstanciados e, por isso, cristalizados num determinado tempo. Então, é preciso ter em mente que filosofar é pensar as questões e as ideias não suficientemente 21 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA esclarecidas, e não uma abordagem dogmática e meramente descritiva das relações de ideias contidas em projetos filosóficos desenvolvidos por determinado pensador em sua geração. Não descarte os acontecimentos episódicos do pensamento, isto é, as ideias acerca das coisas e as coisas mesmas, como objeto de reflexão; o ensino da Filosofia, enquanto ato de filosofar, deve se ocupar das questões do cotidiano, porém, sem se perder nele, como se fosse um fato da experiência. As questões propriamente racionais das quais a Filosofia deve se ocupar são fatos da razão, ainda que provenientes ou profundamente ligadas à experiência real do cotidiano. Portanto, a Filosofia deve ser pensada não como um entendimento absoluto acerca do mundo cotidiano, mas como uma reflexão segura e racionalmente orientada ao esclarecimento sintético, sobre questões que cotidianamente podem ser orientadas para o entendimento do sujeito da reflexão, de sua obra de pensamento e do ensino da Filosofia. A Filosofia tem função educadora no curso de seu processo de ensino porque ela ensina o pensador a ser precavido quanto às ciladas ou armadilhas do discurso argumentativo mediante a provocação da dúvida metódica, mas não se destinaa construir convicções, sentimentos ou crenças na mente do sujeito, porque Filosofia não se confunde com ideologia. Eis a razão pela qual o conteúdo do ensino filosófico não pode ser predeterminado, dogmático e vinculativo, já que ele requer um exercício pleno de reanálise e contínuo esclarecimento. Assim, a Filosofia pode servir à educação se tomada, segundo inspiração cartesiana, como um instrumento de esclarecimento e de libertação e atestação do pensamento como autêntico espírito, gênio ou guia racional do sujeito que pensa. Por não permitir aceitar os discursos argumentativos de caráter persuasivo como apropriados ou detentores da verdade, a Filosofia propicia ao sujeito da reflexão compreender as intenções ideológicas produzidas no interior do discurso para que assim, despidas de quaisquer pompas ou floreios, seja possível verificar quando induz ao erro ou à mentira. Na relação de ensino da Filosofia que se desenha entre mestre e discípulo no curso da aprendizagem, aquele deve ensinar este a rejeitar as proposições como verdadeiras, a pretexto da dúvida, além de provocar‑lhe a cisma sobre si mesmo, de modo a questionar se o que aprende é, de fato, uma evidência racional universalmente válida e capaz de revelar alguma verdade. A educação poderá ser ideológica se não for desenvolvida a partir do exercício reflexivo que permita ao sujeito desenvolver a capacidade de construção do conhecimento. Desse modo, uma educação ideológica não fomenta a atestação da verdade e do conhecimento, mas apenas de doutrinas ou conteúdos dogmáticos que obstruem a arte do pensamento e da reflexão. Ao contrário da educação ideológica, a Filosofia sempre se destinará à formação do sujeito enquanto livre pensador, de modo que ele aprenda a pensar, a fazer e a ser com independência e liberdade, e é nessa direção que o pensamento filosófico que se constrói pela dúvida hiperbólica emancipa o sujeito da reflexão. Isso porque ele, para atestar o conhecimento das ideias e das coisas, dispensa a experiência e o discurso persuasivo, também o faz em relação ao conhecimento que não se adquire a partir de si 22 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I mesmo. Portanto, é possível pensar uma função ou tarefa ética da Filosofia no processo de educação, que acontece mediante o uso de certa metodologia filosófica e voltada para o descobrimento das coisas a partir das ideias que se possa fazer delas. No curso de um ensino de Filosofia profundamente amparado na dúvida hiperbólica, a Filosofia se mostra também como conhecimento. O conhecimento se dá pelo exercício da dúvida racional e do que se julga conhecer das coisas, das ideias e do próprio sujeito que pensa a si mesmo como uma coisa pensante, a Filosofia aparece como objeto de reflexão, como se verá mais adiante. Logo, filosofar é saber racionalmente de si. E tudo aquilo que se sabe racionalmente e que, por causa disso, pode ser demonstrado como verdade, também pode ser ensinado. Logo, a Filosofia, enquanto conhecimento, se constitui como Filosofia do Sujeito e, por isso, é filosofia reflexiva de si, é o caminho para uma verdade subjetiva, é um caminho filosófico do sujeito que ensina a filosofar, o que contemporaneamente se compreende como filosofia hermenêutica. Chega‑se ao conhecimento filosófico pela via da dúvida metódica, ou seja, o que se pode sustentar em filosofia como verdade é o que se submete aos métodos cartesianos da indagação e da demonstração, e que não se desintegra mediante o questionamento racionalmente articulado, nem durante seu processo de demonstração. Isso porque, para Descartes, a reflexão filosófica requer o questionamento do objeto de reflexão, e o sujeito é também um objeto dessa natureza, razão pela qual o ensino da Filosofia requer um exercício de questionamento acerca da verdade do sujeito que a ensina e acerca da verdade do sujeito que aprende. Com objetivo de finalizar esta reflexão acerca da relação entre ensino e Filosofia, preciso responder aquela questão inicialmente apresentada: qual o lugar e o papel do sujeito no ensino da Filosofia? Ora, se é possível falar de um lugar filosófico, esse lugar é o pensamento. O lugar do sujeito não é somente onde ele se encontra ou atua, mas também o que o constitui. Afinal, o sujeito é o espírito que pensa e reflete o pensamento, é a razão que constitui e atesta o conhecimento acerca do mundo real. O sujeito é quem orienta, guia e pratica a própria reflexão filosófica no curso do seu ensino, mas também é quem constitui o próprio saber filosófico na construção do aprendizado. A tarefa primaz do sujeito é a de pensar a Filosofia mediante a dúvida metódica, ao mesmo tempo em que ensina a si mesmo o fazer filosófico. Como já foi dito anteriormente, ensinar Filosofia é o mesmo que filosofar e é o sujeito que o faz no curso de sua edificação enquanto espírito, pensamento, reflexão, gênio ou coisa pensante que pensa a si mesmo enquanto pensa. Simone Gallina (2004) escreveu o artigo “O ensino de Filosofia e a criação de valores”, cujo objetivo é pensar as linhas do ensino de Filosofia levando em conta que esta atividade pedagógica se constitui também em uma atividade filosófica, a qual é implícita na atividade pedagógica e implica a criação de conceitos. Portanto, a atuação do professor de Filosofia concatena duas tarefas: o ensinar e o filosofar. Ensinar Filosofia é também filosofar sobre ela e ensinar nossos alunos a pensar e a criar conceitos acerca da realidade. 23 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Saiba mais Leia o texto: GALLINA, S. O ensino de Filosofia e a criação de conceitos. Cad. Cedes, Campinas, v. 24, n. 64, p. 359‑371, set./dez. 2004. Disponível em: <http:// www.scielo.br/pdf/ccedes/v24n64/22836.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2017. 2 PERÍODOS DA FILOSOFIA MODERNA: RENASCENTISTA, RACIONALISTA CLÁSSICO E ILUMINISTA Para a Filosofia Moderna, a razão é a fonte para compreender a realidade. Não é mais a religião que dirá o que é a verdade, mas a verdade será conhecida pela razão. A Filosofia Moderna pode ser dividida em três períodos: Renascimento, Racionalismo Clássico e Iluminismo. Quadro 2 – Filosofia Moderna Filosofia Renascimento Racionalismo Clássico Iluminismo Séculos XIV-XVI XVII-XVIII XVIII-XIX Língua LatimModernas Modernas Modernas Filósofos • Dante • Marcílio Ficino • Giordano Bruno • Campanella • Maquiavel • Montaigne • Erasmo • Thomas Morus • Jean Bodin • Kepler • Nicolau de Cusa • Francis Bacon • Descartes • Galileu • Pascal • Hobbes • Espinosa • Leibniz • Malebranche • Locke • Berkeley • Newton • Gassendi • Hume • Voltaire • D’Alembert • Diderot • Rousseau • Kant • Fichte • Schelling 2.1 Filosofia renascentista: ruptura com o pensamento medieval A Filosofia Moderna tem seu início no Renascimento, que compreende os séculos XIV, XV e XVI. O período renascentista é marcado pela ruptura com o modelo teocêntrico dos medievais e a proposta de um modelo antropocêntrico de compreensão da realidade. 24 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Figura 7 Descartes nasceu em um período histórico marcado pela transição da Idade Média para a Idade Moderna. Então, é importante conhecer as características dessa forma de pensamento que estava chegando ao fim: o pensamento medieval. O período medieval durou mil anos e foi marcado pela presença constante do domínio da Igreja. O pensamento cristão, sob o monopólio da Igreja, controlava o pensamento das pessoas e dos grupos sociais da época. Tudo o quese produzia intelectualmente na Europa deveria passar pelo crivo da Igreja, que decidia o que podia e o que não podia ser pensado. É o período em que a Igreja Romana dominava a Europa, ungia e coroava reis, organizava Cruzadas à Terra Santa e criava, à volta das catedrais, as primeiras universidades ou escolas. E, a partir do século XII, por ter sido ensinada nas escolas, a Filosofia medieval também é conhecida com o nome de Escolástica (CHAUÍ, 2004, p. 47). A Filosofia estava sob o domínio da teologia. Somente era admitida uma filosofia que se prestasse a servir de apoio e confirmação dos dogmas religiosos. Assim, buscava‑se encontrar, por meio da Filosofia, uma prova racional da existência de Deus. Conservando e discutindo os mesmos problemas que a patrística, a Filosofia medieval acrescentou outros – particularmente um, conhecido com o nome de Problema dos Universais – e, além de Platão e Aristóteles, sofreu uma grande influência das ideias de Santo Agostinho. Durante esse período surge propriamente a Filosofia cristã, que é, na verdade, a teologia. Um de seus temas mais constantes são as provas da existência de Deus e da alma, isto é, demonstrações racionais da existência do infinito criador e do espírito humano imortal (CHAUÍ, 2004, p. 47). 25 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA No período medieval, as filosofias antigas dos gregos Platão e Aristóteles foram, em certo sentido cristianizadas por filósofos medievais. Figura 8 – Aristóteles Assim, Agostinho colocou uma roupagem cristã em Platão e Tomás de Aquino cristianizou as teses de Aristóteles. Figura 9 – São Tomás de Aquino 26 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Essa foi apenas uma das inúmeras tentativas de conciliação entre a fé cristã e a filosofia grega. Claro que tal empreitada enfrentava inúmeros obstáculos, pois a forma de pensar dos gregos antigos era fundada em uma física e uma metafísica muito distante dos pressupostos transcendentes dos cristãos. A Filosofia medieval teve como influências principais Platão e Aristóteles, embora o Platão que os medievais conhecessem fosse o neoplatônico (vindo da Filosofia de Plotino, do século VI d.C.), e o Aristóteles que conhecessem fosse aquele conservado e traduzido pelos árabes, particularmente Avicena e Averróis (CHAUÍ, 2004, p. 47). O pensamento cristão medieval é teocêntrico. Teo significa Deus e cêntrico significa centro, portanto, tudo que pensavam e conheciam girava em torno de Deus. Ele era o centro da vida, da existência e da filosofia medieval. O homem era apenas a criatura criada à imagem e semelhança de Deus, existindo somente para obedecer e salvar sua alma por meio dessa obediência. A dualidade corpo e alma, tão cara a Platão, teve grande aceitação e desenvolvimento no pensamento medieval. A alma era considerada a única parte digna do ser humano, aquela que deveria ser salva a todo custo. O corpo era considerado a entrada do pecado no mundo. Deveria ser mortificado e controlado para que a alma não ardesse no fogo do inferno. A diferença e separação entre infinito (Deus) e finito (homem, mundo), a diferença entre razão e fé (a primeira deve subordinar‑se à segunda), a diferença e separação entre corpo (matéria) e alma (espírito), o Universo como uma hierarquia de seres, onde os superiores dominam e governam os inferiores (Deus, arcanjos, anjos, alma, corpo, animais, vegetais, minerais), a subordinação do poder temporal dos reis e barões ao poder espiritual de papas e bispos: eis os grandes temas da Filosofia medieval (CHAUÍ, 2004, p. 47). Essa dualidade também se estendia aos mundos: o mundo celestial, o paraíso para onde as almas salvas irão habitar na eternidade, o céu; o mundo terreno, sujo, degradado, cheios de tentações que podem levar a alma ao inferno de eternos sofrimentos. Saiba mais O cinema retratou muito bem o impacto da força da Igreja sobre o destino dos indivíduos no período Medieval. O longa‑metragem O Nome da Rosa narra uma guerra ideológica entre franciscanos e dominicanos sobre a questão dos universais, travada enquanto o motivo de assassinatos é lentamente solucionado: 27 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA O NOME da Rosa. Dir. Jean‑Jacques Annaud. Itália; Alemanha; França: Neue Constantin Film, 1986. 130 minutos. O filme Em Nome de Deus trata de um romance histórico baseado em fatos reais entre Heloisa e Pedro Abelardo (1079‑1142), um teólogo e professora de Filosofia: EM NOME de Deus. Dir. Clive Donner. Reino Unido; Iugoslávia: Amy International, 1988. 115 minutos. Joana D’Arc, dirigido por Luc Bresson, retrata o papel político da Igreja e a influência devastadora da fé na vida do indivíduo: JOANA D’Arc. Dir. Luc Bresson. França: Gaumont, 1999. 158 minutos. Por fim, o filme Santo Agostinho conta a biografia de Santo Agostinho, filósofo medieval: SANTO Agostinho. Dir. Roberto Rossellini. Itália: Orizzonte 2000; RAI Radiotelevisione Italiana, 1972. 121 minutos. Figura 10 – Cena do filme O nome da rosa. Direção de Jean‑Jacques Annaud Os teólogos, considerados também filósofos, mais importantes do período medieval foram: Santo Agostinho, Abelardo, Duns Scoto, Escoto Erígena, Santo Anselmo, Santo Tomás de Aquino, Santo Alberto Magno, Guilherme de Ockham, Roger Bacon, São Boaventura. 28 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Figura 11 – Abelardo O início da Filosofia Moderna se dá com o surgimento do pensamento renascentista, que rompe com a filosofia medieval. As grandes descobertas marítimas, a reforma protestante, o ressurgimento das cidades e o reestabelecimento do comércio colocaram fim ao sistema feudal medieval. Isso tudo ocorreu no período chamado de Renascença, entre os séculos XIV e XVI. Figura 12 – Cidade Renascentista Segundo Chauí (2004, p. 48), o pensamento renascentista tem três grandes linhas de pensamento: 1. Aquela proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos livros do Hermetismo; nela se destacava a ideia da Natureza como um 29 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA grande ser vivo; o homem faz parte da Natureza como um microcosmo (como espelho do Universo inteiro) e pode agir sobre ela através da magia natural, da alquimia e da astrologia, pois o mundo é constituído por vínculos e ligações secretas (a simpatia) entre as coisas; o homem pode, também, conhecer esses vínculos e criar outros, como um deus. 2. Aquela originária dos pensadores florentinos, que valorizava a vida ativa, isto é, a política, e defendia os ideais republicanos das cidades italianas contra o Império Romano‑Germânico, isto é, contra o poderio dos papas e dos imperadores. Na defesa do ideal republicano, os escritores resgataram autores políticos da Antiguidade, historiadores e juristas, e propuseram a “imitação dos antigos” ou o renascimento da liberdade política, anterior ao surgimento do império eclesiástico. 3. Aquela que propunha o ideal do homem como artífice de seu próprio destino, tanto através dos conhecimentos (astrologia, magia, alquimia), quanto através da política (o ideal republicano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia, navegação) e das artes (pintura, escultura, literatura, teatro). O Renascimento é assim chamado porque a cultura, a filosofia e a arte dos gregos e dos romanos renasceram após ter desaparecidodurante o período medieval. Isso porque a igreja considerava herege a cultura, a filosofia e a arte dos gregos e dos romanos porque eram pagãos. O pensamento renascentista, assim como o pensamento moderno, é antropocêntrico, isto é, o homem é o centro da Filosofia, é o ponto de partida para a compreensão da realidade. Saiba mais O cinema retratou o período Renascentista em: MARTINHO Lutero. Dir. Irving Pichel. Alemanha; Estados Unidos: Louis de Rochemont Associates, 1953. 105 minutos. GIORDANO Bruno. Dir. Giuliano Montaldo. Itália; França: Compagnia Cinematografica Champion, 1973. 115 minutos. ELIZABETH. Dir. Shekhar Kapur. Reino Unido: PolyGram Filmed Entertainment, 1998. 124 minutos. O MERCADOR de Veneza. Dir. Michael Radford. EUA; Itália; Luxemburgo; Reino Unido: Movision, 2004. 131 minutos. 30 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I Figura 13 – Cena do filme Elizabeth, de Shekhar Kapur (2007) Os principais pensadores do período renascentista são: Dante, Marcílio Ficino, Giordano Bruno, Campanella, Maquiavel, Montaigne, Erasmo, Thomas Morus, Jean Bodin, Kepler e Nicolau de Cusa. Figura 14 – Maquiavel Lembrete Rompendo com o pensamento medieval, o pensamento renascentista tem três grandes linhas de pensamento: o antropocentrismo, a vida política e o homem dono de seu destino. 31 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA 2.2 Racionalismo clássico: Descartes O primeiro período, chamado de Renascimento, nós já estudamos. O segundo período é chamado de Racionalismo Clássico é marcado por três grandes mudanças intelectuais segundo Chauí (2004, p. 48): 1. Aquela conhecida como o “surgimento do sujeito do conhecimento”, isto é, a Filosofia, em lugar de começar seu trabalho conhecendo a Natureza e Deus, para depois referir‑se ao homem, começa indagando qual é a capacidade do intelecto humano para conhecer e demonstrar a verdade dos conhecimentos. Em outras palavras, a Filosofia começa pela reflexão, isto é, pela volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer sua capacidade de conhecer. O ponto de partida é o sujeito do conhecimento como consciência de si reflexiva, isto é, como consciência que conhece sua capacidade de conhecer. O sujeito do conhecimento é um intelecto no interior de uma alma, cuja natureza ou substância é completamente diferente da natureza ou substância de seu corpo e dos demais corpos exteriores. Por isso, a segunda pergunta da Filosofia, depois de respondida a pergunta sobre a capacidade de conhecer, é: Como o espírito ou intelecto pode conhecer o que é diferente dele? Como pode conhecer os corpos da Natureza? 2. A resposta à pergunta acima constituiu a segunda grande mudança intelectual dos modernos, e essa mudança diz respeito ao objeto do conhecimento. Para os modernos, as coisas exteriores (a Natureza, a vida social e política) podem ser conhecidas desde que sejam consideradas representações, ou seja, ideias ou conceitos formulados pelo sujeito do conhecimento. Isso significa, por um lado, que tudo o que pode ser conhecido deve poder ser transformado num conceito ou numa ideia clara e distinta, demonstrável e necessária, formulada pelo intelecto; e, por outro lado, que a Natureza e a sociedade ou política podem ser inteiramente conhecidas pelo sujeito, porque elas são inteligíveis em si mesmas, isto é, são racionais em si mesmas e propensas a serem representadas pelas ideias do sujeito do conhecimento. 3. Essa concepção da realidade como intrinsecamente racional e que pode ser plenamente captada pelas ideias e conceitos preparou a terceira grande mudança intelectual moderna. A realidade, a partir de Galileu, é concebida como um sistema racional de mecanismos físicos, cuja estrutura profunda e invisível é matemática. O “livro do mundo”, diz Galileu, “está escrito em caracteres matemáticos.” A realidade, concebida como sistema racional de mecanismos físico‑matemáticos, deu origem à ciência clássica, isto é, à mecânica, por meio 32 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I da qual são descritos, explicados e interpretados todos os fatos da realidade: astronomia, física, química, psicologia, política, artes são disciplinas cujo conhecimento é de tipo mecânico, ou seja, de relações necessárias de causa e efeito entre um agente e um paciente. A realidade é um sistema de causalidades racionais rigorosas que podem ser conhecidas e transformadas pelo homem. Nasce a ideia de experimentação e de tecnologia (conhecimento teórico que orienta as intervenções práticas) e o ideal de que o homem poderá dominar tecnicamente a Natureza e a sociedade. Predomina, assim, nesse período, a ideia de conquista científica e técnica de toda a realidade, a partir da explicação mecânica e matemática do Universo e da invenção das máquinas, graças às experiências físicas e químicas. Existe também a convicção de que a razão humana é capaz de conhecer a origem, as causas e os efeitos das paixões e das emoções e, pela vontade orientada pelo intelecto, é capaz de governá‑las e dominá‑las, de sorte que a vida ética pode ser plenamente racional. A mesma convicção orienta o racionalismo político, isto é, a ideia de que a razão é capaz de definir para cada sociedade qual o melhor regime político e como mantê‑lo racionalmente. Nesse período, os principais pensadores são: Francis Bacon, Descartes, Galileu, Pascal, Hobbes, Espinosa, Leibniz, Malebranche, Locke, Berkeley, Newton, Gassendi. Portanto, Descartes é um pensador racionalista do período clássico da Filosofia Moderna. Figura 15 – Descartes 33 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Vejamos agora como Jostein Gaarder (1995, p. 252‑254), no início do capítulo sobre Descartes em seu livro O Mundo de Sofia, narra a vida de Descartes e seu lugar na História da Filosofia: CAPÍTULO XVIII: DESCARTES ... ele queria remover todos os velhos materiais do terreno de construção.... Alberto levantara‑se e despira a capa vermelha. Pô‑la numa cadeira e voltou a sentar‑se confortavelmente no sofá. — “René Descartes” nasceu em 1596 e viveu em vários países da Europa ao longo da vida. Já na sua juventude, sentia o forte desejo de tomar conhecimento da natureza do homem e do universo. Mas depois de ter estudado filosofia tornou‑se consciente principalmente da sua própria ignorância. — Mais ou menos como Sócrates? — Sim, mais ou menos assim. Tal como Sócrates, estava convencido de que só a razão nos pode dar conhecimento seguro. Nunca podemos confiar no que está escrito em livros antigos. Nem sequer podemos confiar no que os nossos sentidos nos transmitem. — Platão era da mesma opinião. Ele achava que só a razão nos pode dar um saber sólido. — Exato. De Sócrates e Platão, através de S. Agostinho, há uma linha direta até Descartes. Todos eles eram racionalistas convictos. Para eles, a razão era a única fonte segura de conhecimento. Após muitos estudos, Descartes reconheceu que não era forçoso confiar no saber transmitido na Idade Média. Podes fazer uma comparação com Sócrates, que não confiava nas concepções mais difundidas com que se defrontava na ágora em Atenas. E o que é que se faz neste caso, Sofia? Sabes responder‑me? — Começa‑se a filosofar por si mesmo. — Exato. Descartes decidiu então viajar pela Europa — tal como Sócrates, que passou a vida em diálogo com homens de Atenas. Ele próprio relata que a partir dessa altura só queria procurar o saber que podia encontrar em si mesmoou “no grande livro do mundo”. Por isso, entrou para o exército e pôde permanecer em diversos locais da Europa Central. Mais tarde, passou alguns anos em Paris. Em maio de 1629, viajou para os Países Baixos, onde viveu durante quase vinte anos, enquanto trabalhava nos seus escritos filosóficos. Em 1649, a rainha Cristina convidou‑o a viver na Suécia. Mas esta estadia “no país dos ursos, do gelo e dos rochedos”, como ele lhe chamou, provocou‑lhe uma pneumonia, e morreu no Inverno de 1650. — Então só tinha 54 anos! 34 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I — Mas ainda havia de ser muito importante para a filosofia, mesmo após a sua morte. Sem exagero, podemos dizer que Descartes foi o fundador da filosofia da época moderna. Depois da imponente redescoberta do homem e da natureza no Renascimento, surgiu de novo a necessidade de reunir todas as ideias contemporâneas num único “sistema filosófico” coerente. O primeiro grande construtor de sistema foi “Descartes”, e seguiram – se‑lhe “Espinosa” e “Leibniz”, “Locke” e “Berkeley”, “Hume” e “Kant”. — O que é que entendes por “sistema filosófico”? — Entendo uma filosofia construída desde a base e que procura encontrar uma resposta para todas as questões filosóficas importantes. A Antiguidade teve grandes construtores de sistemas como Platão e Aristóteles. A Idade Média teve S. Tomás de Aquino, que queria fazer uma ponte entre a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Veio depois o Renascimento — com uma mistura de velhas e novas ideias sobre a natureza e a ciência, Deus e os homens. Só no século XVII a filosofia tentou de novo pôr em sistema as novas ideias. O primeiro a fazer esta tentativa foi Descartes. Ele deu o sinal de partida para aquilo que se tornaria o projeto filosófico mais importante para as gerações seguintes. Antes de mais, preocupava‑o o que nós podemos saber, ou seja, a questão da “solidez do nosso conhecimento”. A segunda grande questão que o preocupava era a “relação entre corpo e alma”. Estas duas problemáticas determinariam a discussão filosófica dos cento e cinquenta anos seguintes. — Então ele estava adiantado em relação à época. — Mas as questões já andavam no ar na época. Na questão de como podemos alcançar saber seguro, alguns exprimiram o seu total “ceticismo” filosófico. Achavam que os homens tinham de se conformar com o fato de nada saberem. Mas Descartes não se conformou com isso. Se o tivesse feito, não teria sido um verdadeiro filósofo. De novo, podemos fazer um paralelismo com Sócrates, que não se contentou com o ceticismo dos sofistas. Justamente na época de Descartes, a nova ciência da natureza desenvolvera um método que havia de fornecer uma descrição totalmente segura e exata dos processos naturais. Descartes se interrogou não havia um método igualmente seguro e exato para a reflexão filosófica. Fonte: Gaarder (1995, p. 252‑254). 2.3 Iluminismo: filosofia das luzes O terceiro período, chamado Iluminismo, também se firma nos poderes da razão. A razão é a luz que ilumina a realidade, por isso, esse é o período das luzes, daí o nome Iluminismo. Segundo Chauí (2004, p. 49), o Iluminismo afirma que: • pela razão, o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade social e política (a Filosofia da Ilustração foi decisiva para as ideias da Revolução Francesa de 1789); 35 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA • a razão é capaz de evolução e progresso, e o homem é um ser perfectível. A perfectibilidade consiste em liberar‑se dos preconceitos religiosos, sociais e morais, em libertar‑se da superstição e do medo, graças ao conhecimento, às ciências, às artes e à moral; • o aperfeiçoamento da razão se realiza pelo progresso das civilizações, que vão das mais atrasadas (também chamadas de “primitivas” ou “selvagens”) às mais adiantadas e perfeitas (as da Europa Ocidental); • há diferença entre Natureza e civilização, isto é, a Natureza é o reino das relações necessárias de causa e efeito ou das leis naturais universais e imutáveis, enquanto a civilização é o reino da liberdade e da finalidade proposta pela vontade livre dos próprios homens, em seu aperfeiçoamento moral, técnico e político. No período do Iluminismo há um interesse grande pelas ciências, principalmente aquelas baseadas na ideia de evolução. A evolução das espécies, estudada por Darwin, colocará a biologia em um lugar central no pensamento iluminista, incluindo‑a no campo da filosofia da vida. Também há grande interesse pelas artes, porque elas representam o grau de progresso de uma civilização, pois são expressões artísticas do nível de desenvolvimento de uma sociedade. Figura 16 – Charles Darwin No período das luzes ocorre também o interesse pela compreensão da economia como alicerce da vida social e política. É nesse momento que surge uma reflexão mais aprofundada sobre a origem das riquezas de cada nação. Discute‑se a importância maior ou menor da agricultura e do comércio. Essa controvérsia sobre o que vale mais, a agricultura ou o comércio, se expressa em duas correntes do pensamento econômico: a corrente fisiocrata, que defende que a agricultura é a fonte principal da 36 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I origem das riquezas de uma sociedade; e a corrente mercantilista, que defende o comércio como sendo a fonte principal para a formação da riqueza das nações. O pensamento moderno é antropocêntrico, isto é, o Homem é o centro da Filosofia, é o ponto de partida para a compreensão da realidade. Isso porque a Filosofia Moderna, seja no Renascimento, no Racionalismo Clássico e no Iluminismo, busca compreender o mundo por meio da razão. E essa razão é a razão humana. O Racionalismo e o Iluminismo, centrados na ideia da razão humana, marcam uma ruptura com o pensamento medieval teocêntrico, isto é, centrado na ideia de Deus. Saiba mais Os filmes indicados a seguir retrataram o período por meio dos relacionamentos sociais nas cortes da nobreza: LIGAÇÕES perigosas. Dir. Stephen Frears. EUA; Reino Unido: Lorimar Film Entertainment, 1988. 119 minutos. ORLANDO: a mulher imortal. Dir. Sally Potter. Reino Unido: Adventure Pictures, 1992. 94 minutos. MARIA Antonieta. Dir. Sofia Coppola. EUA; França; Japão: Columbia Pictures Corporation, 2006. 123 minutos. Figura 17 – Cena do filme Maria Antonieta. Direção: Sofia Coppola Os principais pensadores iluministas são: Hume, Voltaire, D’Alembert, Diderot, Rousseau, Kant, Fichte e Schelling. 37 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Figura 18 – Rousseau Lembrete A Filosofia Moderna pode ser dividida em três períodos: Renascimento (séculos XIV até XVI), Racionalismo Clássico (século XVII a meados do século XVIII) e o Iluminismo (meados do século XVIII ao começo do século XIX). 3 RACIONALISMO MODERNO E O EMBATE COM OS EMPIRISTAS Neste momento, iremos realizar a leitura de trechos de um texto escrito por Marilena Chauí, no qual a autora coloca em debate uma questão fundamental para os pensadores modernos: a razão humana é inata, isto é, nascemos já com ela, ou é adquirida, ou seja, forma‑se a partir das nossas experiências vividas? Na sequência, a autora apresenta as principais respostas dadas por filósofos modernos. Os textos selecionados foram retirados dos capítulos três e quatro da unidade 2 do livro Convite à Filosofia. 3.1 A origem da razão humana: debate entre inatistas e empiristas Você já se perguntou de onde vêm suas ideias? Vocêjá nasceu com elas ou foi aprendendo durante a vida? Dois irmãos gêmeos têm as mesmas ideias ou ideias diferentes? Eles nasceram com personalidades e tendências semelhantes ou diferentes? Vejamos como Chauí coloca o problema sobre a origem da razão: 38 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I A razão: inata ou adquirida? Inatismo ou empirismo? De onde vieram os princípios racionais (identidade, não‑contradição, terceiro‑excluído e razão suficiente)? De onde veio a capacidade para a intuição (razão intuitiva) e para o raciocínio (razão discursiva)? Nascemos com eles? Ou nos seriam dados pela educação e pelo costume? Seriam algo próprio dos seres humanos, constituindo a natureza deles, ou seriam adquiridos através da experiência? Durante séculos, a Filosofia ofereceu duas respostas a essas perguntas. A primeira ficou conhecida como inatismo e a segunda, como empirismo. O inatismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais, mas também algumas ideias verdadeiras, que, por isso, são ideias inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas ideias, é adquirida por nós através da experiência. Em grego, experiência se diz: empeiria – donde, empirismo, conhecimento empírico, isto é, conhecimento adquirido por meio da experiência. Fonte: Chauí (2004, p. 69). Assim surge o debate entre inatistas e empiristas acerca da origem da razão humana. Os inatistas defendem que a razão é inata, ou seja, já nascemos com alguns conteúdos em nossas mentes. Já nascemos sabendo de algo, com alguns conhecimentos preexistentes. Nesse sentido, temos Platão, que afirma que nascemos com o conhecimento das ideias, embora elas estejam esquecidas, cabendo a nós nos lembrarmos delas no decorrer da vida. Figura 19 39 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA Vejamos primeiro as teses dos inatistas, segundo Chauí: O inatismo Vamos falar do inatismo tomando dois filósofos como exemplo: o filósofo grego Platão (século IV a.C.) e o filósofo francês Descartes (século XVII). Inatismo platônico Platão defende a tese do inatismo da razão ou das ideias verdadeiras em várias de suas obras, mas as passagens mais conhecidas se encontram nos diálogos Mênon e A República. No Mênon, Sócrates dialoga com um jovem escravo analfabeto. Fazendo‑lhe perguntas certas na hora certa, o filósofo consegue que o jovem escravo demonstre sozinho um difícil teorema de geometria (o teorema de Pitágoras). As verdades matemáticas vão surgindo no espírito do escravo à medida que Sócrates vai‑lhe fazendo perguntas e vai raciocinando com ele. Como isso seria possível, indaga Platão, se o escravo não houvesse nascido com a razão e com os princípios da racionalidade? Como dizer que conseguiu demonstrar o teorema por um aprendizado vindo da experiência, se ele jamais ouvira falar de geometria? Em A República, Platão desenvolve uma teoria que já fora esboçada no Mênon: a teoria da reminiscência. Nascemos com a razão e as ideias verdadeiras, e a Filosofia nada mais faz do que nos relembrar essas ideias. Platão é um grande escritor e usa em seus escritos um procedimento literário que o auxilia a expor as teorias muito difíceis. Assim, para explicar a teoria da reminiscência, narra o mito de Er. O pastor Er, da região da Panfília, morreu e foi levado para o Reino dos Mortos. Ali chegando, encontra as almas dos heróis gregos, de governantes, de artistas, de seus antepassados e amigos. Ali, as almas contemplam a verdade e possuem o conhecimento verdadeiro. Er fica sabendo que todas as almas renascem em outras vidas para se purificarem de seus erros passados até que não precisem mais voltar à Terra, permanecendo na eternidade. Antes de voltar ao nosso mundo, as almas podem escolher a nova vida que terão. Algumas escolhem a vida de rei, outras de guerreiro, outras de comerciante rico, outras de artista, de sábio. No caminho de retorno à Terra, as almas atravessam uma grande planície por onde corre um rio, o Lethé (que, em grego, quer dizer esquecimento), e bebem de suas águas. As que bebem muito esquecem toda a verdade que contemplaram; as bebem pouco quase não se esquecem do que conheceram. 40 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 Unidade I As que escolheram vidas de rei, de guerreiro ou de comerciante rico são as que mais bebem das águas do esquecimento; as que escolheram a sabedoria são as que menos bebem. Assim, as primeiras dificilmente (talvez nunca) se lembrarão, na nova vida, da verdade que conheceram, enquanto as outras serão capazes de lembrar e ter sabedoria, usando a razão. Conhecer, diz Platão, é recordar a verdade que já existe em nós; é despertar a razão para que ela se exerça por si mesma. Por isso, Sócrates fazia perguntas, pois, através delas, as pessoas poderiam lembrar‑se da verdade e do uso da razão. Se não nascêssemos com a razão e com a verdade, indaga Platão, como saberíamos que temos uma ideia verdadeira ao encontrá‑la? Como poderíamos distinguir o verdadeiro do falso, se não nascêssemos conhecendo essa diferença? Fonte: Chauí (2004, p. 69). Descartes é um inatista. Vejamos como Chauí expõe as principiais características do inatismo cartesiano: Inatismo cartesiano Descartes discute a teoria das ideias inatas em várias de suas obras, mas as exposições mais conhecidas encontram‑se em duas delas: no Discurso do Método e nas Meditações Metafísicas. Nelas, Descartes mostra que nosso espírito possui três tipos de ideias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade: 1. Ideias adventícias (isto é, vindas de fora): são aquelas que se originam de nossas sensações, percepções, lembranças; são as ideias que nos vêm por termos tido a experiência sensorial ou sensível das coisas a que se referem. Por exemplo, a ideia de árvore, de pássaro, de instrumentos musicais etc. São nossas ideias cotidianas e costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isto é, não correspondem à realidade das próprias coisas. Assim, andando à noite por uma floresta, vejo fantasmas. Quando raia o dia, descubro que eram galhos retorcidos de árvores que se mexiam sob o vento. Olho para o céu e vejo, pequeno, o Sol. Acredito, então, que é menor do que a Terra, até que os astrônomos provêm racionalmente que ele é muito maior do que ela. 2. Ideias fictícias: são aquelas que criamos em nossa fantasia e imaginação, compondo seres inexistentes com pedaços ou partes de ideias adventícias que estão em nossa memória. Por exemplo, cavalo alado, fadas, elfos, duendes, dragões, Super‑Homem etc. São as fabulações das artes, da literatura, dos contos infantis, dos mitos, das superstições. Essas ideias nunca são verdadeiras, pois não correspondem a nada que exista realmente e sabemos que foram inventadas por nós, mesmo quando as recebemos já prontas de outros que as inventaram. 41 Re vi sã o: R os e - Di ag ra m aç ão : J ef fe rs on - 0 4/ 07 /1 7 DESCARTES E A FILOSOFIA MODERNA 3. Ideias inatas: são aquelas que não poderiam vir de nossa experiência sensorial porque não há objetos sensoriais ou sensíveis para elas, nem poderiam vir de nossa fantasia, pois não tivemos experiência sensorial para compô‑las a partir de nossa memória. As ideias inatas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por exemplo, a ideia do infinito (pois não temos qualquer experiência do infinito), as ideias matemáticas (a matemática pode trabalhar com a ideia de uma figura de mil lados, o quiliógono,
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