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Teoria Literária - Prosa A Crônica e o Teatro Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profa. Ms. Helba Carvalho Prof. Dr. Manoel Francisco Guaranha Revisão Textual: Profa. Ms. Helba Carvalho 5 • A Crônica • O Teatro Recomendamos que siga o seguinte roteiro para que tenha um melhor aproveitamento da unidade: 1) Leia o conteúdo teórico da disciplina; 2) Leia o mapa mental do conteúdo teórico; 3) Assista à apresentação narrada e à vídeo aula; 4) Faça a atividade de sistematização; 5) Faça a atividade de aprofundamento; 6) Leia o material complementar; 7) Formule suas dúvidas ao professor da disciplina por meio do módulo Mensagens do blackboard ou ainda por meio do fórum de dúvidas da disciplina; 8) Procure ler as obras indicadas na bibliografia, principalmente aquelas que estão disponíveis na biblioteca eletrônica da Universidade, isso irá colocar você em contato com diferentes visões sobre o problema além de fornecer a você um repertório maior de conceitos sobre a crônica e o teatro. · Seja bem vindo à unidade A crônica e o teatro. Nesta unidade, faremos uma reflexão sobre os elementos necessários para uma análise do texto dramático e da crônica. · É necessário que você leia com atenção os textos disponibilizados, visite os sites sugeridos, leia obras importantes da bibliografia (principalmente aquelas que estão na biblioteca eletrônica da Universidade) e procure estabelecer relação entre a teoria e a prática, já que você perceberá que os textos foram concebidos com muitos exemplos. Não se esqueça, ainda, de interagir com o seu professor questionando sobre os pontos que não ficaram muito claros para você. Esse diálogo é fundamental no processo de aprendizagem. A Crônica e o Teatro 6 Unidade: A Crônica e o Teatro Contextualização Ao ler o Conteúdo teórico, sobre A crônica e o teatro, você deve ter notado que a crônica é um gênero textual que está muito próximo de nossa vida cotidiana. Nesse gênero é possível observar que, por se apresentar na forma de um texto breve e recriar a vida miúda, descreve os acontecimentos diários, com poeticidade, podendo levar você, futuro professor, a incentivar, motivar o seu aluno a produzir textos que possam utilizar o elemento circunstancial da vida cotidiana desse aluno. Por ser um gênero literário que teve suas origens no jornal, a crônica torna-se um texto mais acessível, também por conta de sua busca por manifestar a oralidade na escrita que evidencia situações mais próximas da realidade de nosso aluno. Agora observe como o trecho abaixo, da crônica de Fernando Sabino, reflete muito bem como este gênero é criado: No fragmento da crônica de Fernando Sabino, você deve ter notado que o autor explica, em uma crônica, como se elabora este tipo de gênero, ou seja, como o flagrante do cotidiano, o casal de pretos com sua filhinha no botequim, torna-se o motivo de seu texto. Logo, este tipo de gênero pode ser uma boa forma de você mostrar ao seu aluno que o episódio aparentemente mais banal pode se tornar objeto, assunto, para o texto literário. Confira o final dessa crônica no link indicado acima. A última crônica A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome. (...) (disponível em http://www.releituras.com/i_samuel_fsabino.asp, acessado em 10 de março de 2013). 7 Você já leu alguma crônica? Já deve ter se deparado com algum texto do jornal ou de uma revista que tratava de algum acontecimento cotidiano ou ficcional que dava a impressão de realidade, expondo de maneira reflexiva ou crítica os eventos nele relatados. Esta é a forma mais atual de vermos este gênero na mídia impressa, mas em sua origem, a crônica não apresentava essas características. Segundo Massaud Moisés, no início da era cristã a crônica designava “uma listagem de acontecimentos ordenados segundo a marcha do tempo, isto é, uma sequência cronológica. Situada entre os anais e a história, limitava-se a registrar os eventos sem aprofundar-lhe as causas ou tentar interpretá-los” (MOISÉS, s.d.: 101). A crônica abrangia, pois, a vida ou reinado de um monarca, seus sucessos político-militares, ou a vida de corporações religiosas e de alguns dos seus membros mais ilustres (Crônica da Ordem dos Frades Menores). A partir do século XIX que a crônica passou a ser concebida como gênero literário, vinculado aos jornais. Como observou Massaud Moisés, a crônica “move-se entre ser no e para o jornal, uma vez que se destina a ser lida na folha diária ou na revista. Difere, porém, da maneira substancialmente jornalística naquilo em que, apesar de fazer do seu quotidiano o seu húmus permanente, não visa à mera informação: o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender o dia-a-dia pela universalização das suas virtualidades latentes, objetivo esse via de regra minimizado pelo jornalista de ofício. O cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do quotidiano” (MOISÉS, s.d.: 104). Conforme a visão do crítico literário Massaud Moisés, você deve ter percebido que a crônica é, muitas vezes, uma apreciação crítica, um juízo de valor, uma narração de fatos/acontecimentos (reais, como pretexto, ou ficcionais), alternando entre a subjetividade literária e o relato de fatos. A crônica oferece reflexão e solicita reflexão. Mesmo sendo um gênero literário muito cultivado por diferentes escritores de épocas distintas, segundo Antonio Candido, “A crônica não é um “gênero maior”. Não se imagina uma literatura feita de grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.” (p.13) A Crônica 8 Unidade: A Crônica e o Teatro Como “gênero menor”, Antonio Candido vê na crônica um texto que “fica perto de nós”, na medida em que fala com uma linguagem mais informal, despretensiosa, perto do “nosso modo de dizer mais natural” (p.13). O crítico também ressalta que a crônica, como não foi feita para o livro e sim para o jornal, não tem a pretensão de durar. A partir do século XX, a crônica, em sua fórmula moderna de apresentar o fato miúdo, em um texto breve insere um toque humorístico e, muitas vezes, poético, atingindo uma certa profundidade de significado, identificando certasingularidade e beleza no que é contado, aproximando-nos daquilo que é mais humano (CANDIDO, 1992, p.14) Mas as crônicas apresentam certas peculiaridades que as distingue umas das outras. Em função disso, o crítico Antonio Candido criou uma tipologia da crônica. Quanto a essa tipologia de crônica feita por Candido (1992), José Marques de Melo (1985) resume: “Sem a pretensão de criar categorias, mas tão-somente destacar diferenças entre os modernos cronistas brasileiros, Antônio Cândido sugere a seguinte classificação: Crônica-diálogo – onde o cronista e seu interlocutor imaginário se revezam, intercambiando informações e pontos de vistas; exemplos: Gravador (Carlos Drummond de Andrade) e Conversinha mineira (Fernando Sabino); Crônica narrativa – tem certa estrutura de ficção, marchando rumo ao conto; Crônica exposição poética – divagação livre sobre um fato ou personagem; cadeia de associações; Crônica biografia lírica narra poeticamente a vida de alguém.”(MELO, 1985, p. 118) Agora que temos algumas informações básicas sobre o gênero crônica, vamos fazer uma leitura de uma crônica de Rubem Braga, intitulada “Recado ao senhor 903”: Recado ao senhor 903, de Rubem Braga Vizinho – Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor teria ainda ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quan- do há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a 9 Você deve ter observado que a crônica que acabou de ler chama a atenção pela sua brevidade, o que é comum neste gênero. O texto curto vai se fixar em um evento extremamente banal, ou como pensou Antonio Candido, pega o “fato miúdo” do cotidiano, da “vida ao rés-do-chão”, que é um desentendimento entre vizinhos de um prédio residencial. O narrador, em primeira pessoa, relata uma situação comum, porém a forma com que apresenta as personagens e a si mesmo coloca em xeque certa humanidade natural às pessoas envolvidas. Note que todos são identificados por números, como se fossem somente um lugar, uma localização dentro de um edifício. O narrador protagonista se nomeia como “o homem do 1003” que recebe a reclamação do barulho em seu apartamento por parte de seu vizinho, o “senhor 903”. Todos os demais vizinhos são, também, identificados por números e isso revela a forma como a sociedade moderna industrializada e desenvolvida desumaniza os homens, projetando-os no mundo do anonimato, no qual fazemos sentido e temos uma “identidade” apenas na quantidade, ou seja, somos identificados como números, como observa o narrador: “Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos.” Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe des- culpas – e prometo silêncio. Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: “Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou.” E o outro respondesse: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”. E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz. (In: 200 Crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2002). 10 Unidade: A Crônica e o Teatro A crônica de Rubem Braga surpreende na medida em que o narrador encara a reclamação do vizinho com passividade e aceitação, assumindo a culpa e se comprometendo a não fazer mais barulho em seu apartamento depois das 22 horas. Caso raro, se compararmos com a nossa realidade em que um conflito desse tipo poderia acabar na delegacia de polícia. Note que a proposta do narrador, a partir do segundo parágrafo, projeta um ideal de convívio entre vizinhos, que remete à ideia de uma comunhão cristã, fraterna, solidária e poética ao mesmo tempo: “Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”. Antes deste trecho, o narrador, inclusive, se refere à “casa” e não mais a um número, como se esta representasse um lugar acolhedor, com uma humanidade, tornando possível a cena acima, de comunhão, que continua no último parágrafo, evocando, novamente, a mitologia cristã e o mundo da natureza, como o lugar de paz, amor e tranquilidade, em que o homem se encontra livre do processo de desumanização contemplado no mundo das grandes cidades e dos apartamentos. Retomando o que foi dito sobre a crônica, você deve ter observado que Rubem Braga conseguiu imprimir ao acontecimento, com uma linguagem simples e um tom humorístico, singularidade, profundidade e beleza que permitem uma reflexão mais profunda, para além do simples fato, fazendo com que esta crônica consiga ultrapassar o seu tempo e fazer sentido para as próximas gerações. Se retomarmos, também, a classificação proposta por Antonio Candido, para as diferentes formas de crônica, notamos que esta crônica de Rubem Braga está mais próxima dos tipos crônica narrativa, por apresentar uma estrutura de ficção muito semelhante a um conto, e a exposição poética, no momento em que o narrador, nos dois últimos parágrafos, faz divagações livres e diferentes associações que imaginam uma cena idílica, ideal, com seus vizinhos, evocando a natureza e a comunhão cristã. Agora que você já teve uma amostra do gênero crônica, vamos ao teatro! O teatro pertence ao gênero dramático, que se refere particularmente “ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo o conflito.”(ROSENFELD, 2008, p.34) Segundo Anatol Rosenfeld, na dramática, “os personagens apresentam-se autônomos, emancipados do narrador (que neles desapareceu), mas ao mesmo tempo dotados de todo o poder da subjetividade lírica (que neles se mantém viva).” (2008, p.28) Isso significa que ao contrário dos outros gêneros que você viu, como o conto, a novela, o romance, a crônica, no teatro não há a presença de um narrador que conduzirá a narrativa e apresentará os acontecimentos: “estes de apresentam por si mesmos, comona realidade” (ROSENFELD, 2008, p.29). Os personagens se apresentam dialogando, sem a interferência de um autor e as ações acontecem no presente e não no passado. O Teatro 11 A função do narrador é absorvida pelos atores que, transformados em personagens, se relacionam e se expõem de maneira compreensível uma ação complexa e profunda por meio do diálogo. Como não há o narrador que contextualize as personagens, no gênero dramático, o palco, os cenários, os elementos coreográficos e musicais complementam o texto dramático cenicamente, ou seja, na representação. Segundo Angélica Soares: “O diálogo é a forma própria para que as personagens ajam sem qualquer mediação, dando-nos sempre a impressão, até mesmo nos dramas históricos, de que tudo está acontecendo pela primeira vez”. (2001, p.59) Depois de uma breve exposição teórica, vamos observar alguns elementos da peça teatral O santo e porca, de Ariano Suassuna. Você já deve ter ouvido falar desse escritor, famoso por outra peça, O auto da compadecida, adaptado para a TV (em forma de seriado) e para o cinema. Conhecido por suas comédias, o dramaturgo Ariano Suassuna busca colocar em diálogo o universo mítico sertanejo com o teatro da Antiguidade clássica. A peça O Santo e a Porca é um bom exemplo desse diálogo, pois apresenta, como subtítulo, Imitação Nordestina de Plauto, uma referência à peça A Marmita, do dramaturgo romano Plauto, do século III e II a.C. Isso mostra que Ariano Suassuna estabelece uma relação dialógica ou intertextual com o texto de Plauto, na medida em que usa o texto do dramaturgo como base para recriar a sua peça. Plauto, em A Marmita (também denominada de Aululária), aborda, com bom humor, a questão do homem dominado pela avareza. Trata-se da história de Euclião, homem simples que descobre a existência de uma panela (marmita) cheia de ouro, herança de seu avô, que a deixara escondida. Porém, a descoberta do local onde estaria a panela se deu com o auxílio do deus Lar da Família, que recebia oferendas de Fedra, filha de Euclião. No decorrer da trama, os diversos diálogos que acontecem, envolvendo o protagonista com os outros personagens, confirmam o caráter avaro desse personagem de Plauto. Em O Santo e a Porca, temos a história de Eurico Árabe, mais conhecido como Euricão, um velho avarento, devoto de Santo Antônio, que esconde em sua casa uma porca de madeira, cheia de dinheiro. A peça gira em torno das preocupações de Euricão em proteger a sua porca e da tentativa do fazendeiro Eudoro Vicente em casar-se com Margarida, filha do velho avarento. Caroba, empregada do Árabe, para evitar tal enlace, já que lhe fora prometido um pedaço de terra caso conseguisse, apronta inúmeras confusões a fim de acabar com o casamento. Como você deve ter percebido, as peças, tanto de Plauto quanto de Ariano Suassuna são comédias. A comédia, segundo Aristóteles, volta-se para os homens de psique mais fraca, na qual seus vícios são expostos ao ridículo, produzindo o riso. Ao ler O santo e a porca, você perceberá como as personagens, em especial Euricão, é ridicularizado por sua avareza. Mas vamos, primeiramente, as características do gênero dramático que podemos observar nessa peça: 12 Unidade: A Crônica e o Teatro O pano abre na casa de EURICO ARÁBE, mais conhecido como EURICÃO ENGOLE-COBRA. CAROBA — E foi então que o patrão dele disse: “Pinhão, você sele o cavalo e vá na minha frente procurar Euricão...” EURICÃO — Euricão, não. Meu nome é Eurico. CAROBA — Sim, é isso mesmo. Seu Eudoro Vicente disse: “Pinhão, você sele o cavalo e vá na minha frente procurar Euriques...” EURICÃO — Eurico! CAROBA — “Vá procurar Euríquio...” EURICÃO — Chame Euricão mesmo. CAROBA — “Vá procurar Euricão Engole-Cobra...” EURICÃO — Engole-Cobra é a mãe! Não lhe dei licença de me chamar de Engole- Cobra, não! Só de Euricão! CAROBA — “Vá na minha frente procurar Euricão para entregar essa carta a ele.” EURICÃO — Onde está a carta? Dê cá! Que quererá Eudoro Vicente comigo? PINHÃO — Eu acho que é dinheiro emprestado. EURICÃO — (Devolvendo a carta.) Hein? PINHÃO — Toda vez que ele me manda assim na frente, a cavalo, é para isso. EURICÃO — E que idéia foi essa de que eu tenho dinheiro? Você andou espalhando isso! Foi você, Caroba miserável, você que não tem compaixão de um pobre como eu! Foi você, só pode ter sido você! CAROBA — Eu? Eu não! EURICÃO — Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai a crise, ai a carestia! Tudo que se compra é pela hora da morte! CAROBA — E o que é que o senhor compra? Me diga mesmo, pelo amor de Deus! Só falta matar a gente de fome! EURICÃO — Ai a crise, ai a carestia! E é tudo querendo me roubar! Mas Santo Antônio me protege! PINHÃO — O senhor pelo menos leia a carta! EURICÃO — Eu? Deus me livre de ler essa maldita! Essa amaldiçoada! Ai a crise, ai a carestia! Santo Antônio me proteja, meu Deus! Ai a crise, ai a carestia! (SUASSUNA, 2009, p.18-19) Neste trecho inicial da peça O santo e a porca, você já deve ter notado que não há a presença de um narrador. As informações sobre as personagens é obtida por meio da tensão que se estabelece nos diálogos. Caroba já estabelece o primeiro conflito, ridicularizando seu patrão Eurico ao chamá-lo por vários nomes diferentes daquele que seria o correto. 13 Observe também que as falas de Eurico revelam a sua avareza: “E que idéia foi essa de que eu tenho dinheiro? Você andou espalhando isso! Foi você, Caroba miserável, você que não tem compaixão de um pobre como eu! Foi você, só pode ter sido você!” (...) “Ai, meu Deus, com essa carestia! Ai a crise, ai a carestia! Tudo que se compra é pela hora da morte!” A avareza de Euricão se consolida com seu apego demasiado à porca e sua dedicação a ela como substituta da esposa que o abandonou; seu medo de perdê-la; sua devoção a Santo Antônio como protetor de seu lar e de sua porca até o seu roubo e sua devolução. Você deve observar ainda as rubricas do texto dramático que servem como indicação para os atores, no momento da interpretação, marcarem suas posições, reações no palco, como observamos a seguir: EUDORO se aproxima de EURICÃO e começa a olhá-lo, examinando-o com um misto de curiosidade, desgosto e compaixão. Chega mesmo a tocar na roupa de EURICÃO para inspecioná-la. EURICÃO, desconfiado, vai se afastando dele, aos arrancões, mas sem querer sair para não despertar suspeitas. (SUASSUNA, 2009, p.58) Além de observar essas rubricas, procure pensar na forma como a personagem Caroba é a única que em momento algum aparece coisificada, já que todas as outras em um momento ou em outro são manipuladas pela criada, tal como se fossem marionetes. Outro ponto importante da peça é pensar como, pela comédia, pelo riso provocado a partir da forma como Euricão é ridicularizado pela sua excessiva avareza e egoísmo, ao ser satirizado, o dramaturgo Ariano Suassuna estabelece uma moral na peça, visto que todo o dinheiro guardado na porca, durante muito tempo, tinha perdido seu valor. Euricão finaliza a peça sozinho, ao passo que as demais personagens finalizaram casados, conforme o gosto do santo padroeiro do casamento, Santo Antônio, e mais um castigo para o seu devoto. Informação É importante que você note, também, a oposição entre o santo, Santo Antônio, que representa o mundo sagrado e a porca, representante do mundo profano, material. A oposição entre esses dois elementos revela a grande contradição de Euricão que usa o elemento sagrado, o santo, apenas para buscar proteção para sua fortuna guardada na porca. 14 Unidade: A Crônica e o Teatro Material Complementar Para que você possa entender melhor a crônica e o teatro, leia os artigos que estão disponíveis nos links abaixo. Explore No primeiro link, você encontrará um artigo da Profa. Dra. Maria LúciaCunha V.O. Andrade que explica a relação do gênero crônica com a prática escolar. No segundo link, o artigo apresenta uma proposta de sequência didática ou uma sequência de atividades que propõe leitura, escrita e en- cenação do gênero textual teatro aplicada a uma aula de Língua Portuguesa com alunos da sexta série. Confira nesses dois artigos como a crônica e o teatro podem ser trabalhos em sala de aula, no momento em que você praticar a docência. 1. http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/maluv017.pdf 2. http://www.epedusp.com.br/Marega.pdf 15 Referências BRAGA, Rubem. 200 Crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2002. CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: CANDIDO, Antonio et ali. A crônica, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. COUTINHO, Afrânio. Antologia brasileira de literatura. Rio de Janeiro, Letras e Artes, vol.3, 1967. MELO, José Marques de. A Opinião No Jornalismo Brasileiro. Rio de Janeiro:Vozes, 1985. MOISÉS, Massaud. A Criação Literária. Prosa II. São Paulo, Cultrix, 2003. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva: 2008. SÁ, Jorge de. A Crônica. São Paulo: Ed. Ática. Col. Princípios, 1985. SOARES, Angélica. Gêneros Literários. São Paulo: Ática, 2001. SUASSUNA, Ariano. O santo e a porca. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009. 16 Unidade: A Crônica e o Teatro Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000