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1 RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL X PESSOAL ∎A responsabilidade patrimonial é uma GARANTIA FUNDAMENTAL do devedor (art. 5, inc. 67 CF/88): CF, art. 5º, LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel; ∎ O devedor já sabe de antemão de que NÃO RESPONDERÁ COM “ATRIBUTOS INERENTES A SUA CONDIÇÃO DE SER HUMANO” – responderá pelas suas dívidas com seus bens. Garantia fundamental do devedor. ∎ O art. 5, LXVII estabelece HIPÓTESES DE RESPONSABILIZAÇÃO PESSOAL. ⦿ na responsabilidade pessoal (exceção) – o “atributo” inerente à condição de ser humano (BJT) que será restringido será a liberdade e não a integridade física. ⦿ a responsabilização pessoal se dá através de COERÇÃO – ao cumprimento do débito previsto – e “NÃO uma finalidade PUNITIVA”. ⦿ A liberdade é um direito fundamental - quando há restrição – esta é uma exceção da regra - assim a interpretação sob as hipóteses de exceção (responsabilização pessoal) deve ser feita através de uma INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. ❶❶❶❶ DEVEDOR DE ALIMENTOS: ∎ Poderá existir alimentos em razão de: 1) Parentesco, 2) Ato ilícito (agressor x vítima)? 2 ∎ Os “alimentos” em razão de Responsabilidade Civil (ato ilícito) não ensejam a prisão civil de acordo com o STJ porque a ratio da norma foi feita para os alimentos de relação de parentesco. Interpretação restritiva. Prisão civil somente no caso de relação de parentesco. ∎ SOBESAMENTO DE INTERESSES: por vezes o próprio constituinte faz a sua opção. “Balança”: Liberdade do Alimentante (D.Existencial) x Subsistência do Alimentado (D. Existencial) ∎ “Conflito de interesses existenciais” – Contudo, no caso dos “alimentos” o legislador já fez a sua opção – ponderação feita na lei maior. ----------------------------------------------------------------------------------------------- ②②②② NO CASO DO DEPOSITÁRIO INFIEL: Liberdade do depositário (D.Existencial) x Direito patrimonial do Depositante (D. patrimonial): ∎ De um lado tem-se o princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1, III da CF/88) que é pilar da Constituição. Contudo, de outro lado o art. 5, inc. 67 mandou prestigiou o interesse econômico do depositário (p/ex;. Bancos). ∎ ∎ ∎ ∎ Qual seráQual seráQual seráQual será, numa ordem constitucional, o sopesamento? -O interprete fez uma releitura da norma constitucional a partir do momento em que entrou em vigor o TRATADO/ PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA. ∎ Panorama histórico: → O Tratado é 1969 – Todavia, o Brasil ratificou somente em 1.992 (Dec. Exec. 678/92)- “CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS”. → De acordo com PACTO DE SÃO JOSÉ DA COSTA RICA (Item 7, Par. 7) - os países signatários teria apenas prisão civil do devedor de “alimentos”. 3 Contrato de depósito: é o negócio jurídico pelo qual uma das partes – o depositário – recebe bem móvel alheio para guardá-lo, com a precípua obrigação de devolver, quando o depositante o reclamar (art. 627 CC). → Após a entrada do Pacto de São José (1992) - a polêmica começou no CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA (...quando o devedor adquire um bem e este é transferido para a Instituição Financeira a propriedade já que é o “financiador da compra” (e o devedor fica com a posse) – caso o devedor fique inadimplente a Instituição poderá retomar o bem. → O devedor permanece como possuidor direto, ao passo que o credor (fiduciário) detém a posse indireta e a propriedade resolúvel da coisa, até o adimplemento da dívida. Exemplo: “carro” - com base no Dec.Lei 911/69 o Banco ajuíza uma ação de Busca e apreensão do bem – caso não seja encontrado com o Devedor inadimplente – o Dec.Lei 911/69 permite a conversão da busca e apreensão em ação de depósito (art. 901 ss, CPC –rito especial) – o devedor fiduciário ficava inadimplente passou a ser preso em função da referida conversão legal, ou seja, o devedor fiduciário passava a ser considerado depositário infiel. Atenção: os tratados podem ser de força Supra-Constitucional, Constitucional, Supra-legal e de Lei ordinária. . ⦿⦿⦿⦿- Em 1995 o STF decidiu que poderia continuar a “prender o devedor fiduciário” – decisão que resguardou os interesses das instituições financeiras. Em linhas gerais: “Na época o STF fundamentou no sentido de que os tratados quando entram em vigor no ordenamento possuem força de Lei Ordinária (norma legal), e de outro lado a CF/88 autoriza a prisão – então não mudou nada o panorama do depositário infiel com a entrada do Pacto de São José”. 4 →Então a antiga posição do Supremo Tribunal Supremo era a seguinte: “... a Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou legal (art. 5o, LXVII). Os arts. 1o e 4o do Decreto-lei 911/69, definem o devedor alienante fiduciário como depositário, porque o domínio e a posse direta do bem continuam em poder do proprietário fiduciário ou credor, em face da natureza do contrato. A prisão de quem foi declarado, por decisão judicial, como depositário infiel é constitucional, seja quanto ao depósito regulamentado no Código Civil, como no caso de alienação protegida pela cláusula fiduciária. Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte não minimizam o conceito de soberania do Estado- Povo na elaboração de sua Constituição; por esta razão, o art. 7o, no.7, do Pacto de São José da Costa Rica deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5o, LXVII, da Constituição” (STF, Ac. 2a T., HC 73.044-2/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 19.3.96, in Revista de Direito Privado 1:188). ⦿⦿⦿⦿- Em 2001 STJ fixou o seguinte entendimento: “proibida a prisão civil do DEVEDOR FIDUCIÁRIO” – (DEPOSITÁRIO ATÍPICO): Fundamentos: • O devedor fiduciário não celebrou “contrato de depósito”. • Devedor fiduciário não é depositário, mas a “Lei passa a considerá-lo para haver a prisão”. • “Erro de hermenêutica” – uma INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA para ofender/restringir direitos fundamentais. • E, mais, se um Tratado Internacional AMPLIA OS DIREITOS FUNDAMENTAIS arrolados no art. 5º, CF/88, estes direitos devem ser incorporados como direitos fundamentais (art. 5, § 2 CF/88) – “direito de liberdade”. CF, Art. 5º (...). § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 5 →Vejamos um julgado do STJ neste sentido: “embora a jurisprudência do Pretório Excelso tenha se firmado no sentido da legitimidade da prisão do devedor fiduciante que não entregou o bem objeto da alienação fiduciária em garantia ou o equivalente em dinheiro, equiparando-o, para tal fim, à figura do depositário infiel prevista no art. 5o, inc. LXVII, da CF, mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica, a Corte Especial deste STJ pacificou já o entendimento no sentido de que não cabe a prisão civil do devedor que descumpre contrato garantido por alienação fiduciária” (STJ, Ac.unân. Corte Especial, EDREsp. 489.278/DFAgRg, rel. Min. Hamílton Carvalhido, j. 27.11.2003, DJU 22.3.2004, p. 287). →Argumento: Embora constitucional a prisão do infiel depositário (em norma não auto aplicável), incorporado o Tratado de San José em nosso Direito Positivo, como norma geral (lei ordinária), ter-se-ia revogado o art. 1.287 do CC (prisão civil em contrato de depósito), que tem a mesma naturezagenérica. Assim, embora não atingisse diretamente a norma especial da alienação fiduciária (DL 911/69), esvaziou-a, uma vez que o referido diploma teria feito remissão à fonte cominatória derrogada (CC e CPC). ⦿⦿⦿⦿- Em 2005 o STF - diante de um novo panorama (CF/88 reformada) – especialmente no RExt. 466.343/SP (banco Bradesco x Maria Lucia Albuquerque) – cujo foi o Rel. Cesar Peluzo – passa-se a entender que com o pacto de São José da costa rica – estaria proibida no Brasil à prisão no caso do Devedor fiduciário e inclusive do Depositário Infiel. Ementa - Prisão civil: Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. 6 →OBS1: Posição do Ministro Gilmar Mendes: art. 652 CC, 902 CPC, Dec.Lei 911/69- eficácia paralisante (do art. 652 CC, art. 902 CPC, Dec.Lei 911/69=teriam sua eficácia paralisada desde a entrada no pacto ) – Contudo, no final o STF tratou como DERROGAÇÃO. Argumentação: numa ordem constitucional calcada no princípio dignidade da pessoa humana se você sopesar o Patrimônio (direito de crédito) e a Liberdade deve prevalecer os direitos existenciais em detrimento dos direitos patrimoniais (concretização do princípio da dignidade da pessoa humana). Se houver a prisão, estaríamos afirmando que o direito de crédito do banco seria mais importante na ordem constitucional que a liberdade. (fim do processo: 12.12.2008) →OBS2: Ministro Celso de Melo: que a partir da Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou o art. 5, §3, CF/88, poderíamos recepcionar o pacto de S.J.C.R. como NORMA CONSTITUCIONAL (matéria de direitos humanos – quórum 3/5). – voto não vencedor. →OBS3: POSIÇÃO VITORIOSA: todavia prevaleceu que o tratado/Pacto de São José da Costa Rica estaria no sistema como SUPRA-LEGAL, pois haveria uma derrogação da legislação infraconstitucional. (não há mais lugar para a prisão do depositário, qualquer forma: inclusive na judicial). ⦿Depositário infiel – Informativo 449, 498 e 531 STF/ Informativo do STJ: 380, 382, 384, 386. ⦿⦿⦿⦿Súmula 304 STJ “É ilegal a decretação da prisão civil daquele que não assume expressamente o encargo de depositário judicial.” – cancelamento? ⦿⦿⦿⦿Súmula vinculante 25: É ILÍCITA A PRISÃO CIVIL DE DEPOSITÁRIO INFIEL, QUALQUER QUE SEJA A MODALIDADE DO DEPÓSITO. *Pelo novo entendimento do STF da Hierarquia dos tratados (julgamento unanimidade: 11 ministros STF) considerou que a prisão civil do depositário infiel é incabível. 7 LEITURA COMPLEMENTAR (Nelson Rosenvald, Obrigações) O Vínculo Jurídico e a Excepcional Possibilidade de Prisão Civil do Devedor a) Escorço histórico da prisão civil: É certo e incontroverso que o mais importante consectário da compreensão humanizada e social da relação obrigacional, que se iniciou com o advento da Lex Poetelia Papiria, na Antiga Roma, é a impossibilidade de prisão civil do devedor. Trata-se de conquista que, hoje, se adequa à prevalência da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1o, III), garantindo a prevalência da proteção da pessoa humana sobre o patrimônio. Outrora, em remotos tempos romanos, o devedor estava de tal modo atrelado ao credor que, não quitando a sua dívida, a Lei das XII Tábuas, de 450 anos a.C., estipulava, na Tábua Terceira (Leis IV a IX) a possibilidade de o credor ceifar a vida do devedor.38 Não só. Não havendo a quitação da dívida, poderia o credor conduzir o devedor à presença do magistrado e, na eventual hipótese de relutância, autorizava-se a condução ab torto colo (isto é,“pelo pescoço”, na literalidade da expressão!). Em se tratando, porém, de idoso ou doente, deveria se fornecer um cavalo. Não sendo cumprida a dívi-da e não se apresentando um fiador, o sujeito, então, era amarrado pelo pescoço e preso pelo credor, impondo-se, tão-somente, o dever de fornecer pão, pelo menos. Se, ainda assim, não houvesse o adimplemento, o devedor era levado à praça pública e a sua dívida era proclamada em altas vozes, decidindo, então, o credor se o vendia como escravo ou se o matava e dividia as partes do seu corpo. Como não lembrar do histórico relato de William Shakespeare, em seu inolvidável O Mercador de Veneza, narrando a história de uma dama jovem e bela, chamada Pórcia de Belmonte. Um de seus admiradores, Bassânio, possuindo parcos recursos, embora sendo da nobreza veneziana, viu-se obrigado a recorrer ao auxílio de Antônio, um amigo mais velho, que se dispôs a emprestar. Não possuindo a quantia encarecida, Antônio procura Shylock, um judeu que fazia empréstimos monetários e que notou a oportunidade de vingar-se dele, por quem guardava ódio, embora não tenha revelado o seu propósito. Foi assim, então, que Shylock emprestou dinheiro a Antônio, sem cobrar-lhe juros, mas inserindo uma cláusula pela qual, não quitado na data, o credor teria direito de exigir uma parte do corpo do devedor que lhe agradasse. Apesar dos protestos de Bassânio, Antônio assume a dívida, pois está seguro de que cumprirá, no prazo, a obrigação, pois os seus navios estariam de volta. Enquanto Bassânio cortejava Pórcia, descobre-se que os navios de Antônio se perderam e o credor poderá, portanto, executar a sua dívida. A formosa dama, nesse momento, já casada, resolve ajudar Antônio, disfarçando-se de advogada para defendê-lo. Considerando a sustentação da “causídica”, o juiz, então, decide que o credor poderá executar a sua cláusula penal, retirando uma libra de carne do coração do devedor (conforme a sua escolha), desde que não derramasse uma única gota de sangue, deixando antever, desde aquela época, uma natural preocupação com a integridade e a dignidade do ser humano, bem como a 8 impossibilidade de executar cláusulas de garantia que possam reduzir a dignidade do titular. Lamentavelmente, a hipótese continua atual, pois o nosso ordenamento jurídico continua a autorizar a prisão civil do devedor, muito embora em hipóteses específicas. Nota-se que há de se reconhecer uma necessária evolução para compreender que, no estado democrático de Direito, a prisão civil por dívida há de ser abolida, firmando-se a regra da responsabilidade civil patrimonial, como, aliás, já rezam os arts. 591 do CPC e 391 do Estatuto da Cidadania. Por igual, o reconhecimento e o prestígio dos direitos humanos corroboram para a afirmação da imprescindível dignidade da pessoa humana, colaborando para a superação da prisão civil do mundo jurídico. b) A prisão civil na Constituição Federal de 1988 Buscando sintonia com os ventos humanizadores que permeiam os ordenamentos democráticos, em especial após a II Guerra Mundial, a Constituição da República de 1988, nesse passo, reconheceu, em seu art. 5o, inciso LXVII, que “não haverá prisão civil por dívidas, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”, deixando antever a nítida preocupação em confirmar a regra da responsabilidade patrimonial. Não é por outro motivo que CELSO RIBEIRO BASTOS obtempera que, nos tempos modernos, já não se pode tolerar que o devedor seja preso pela simples inadimplência. “No entanto, a Constituição abre duas exceções. A prisão de que trata a Constituição é de natureza civil. Com isto, quer-se significar que ela não visa à aplicação de uma pena, mas tão-somente a sujeição do devedor a um meio extremamente violento de coerção,diante do qual, é de se presumir, cedam resistências do inadimplente. É por isto que, paga a pensão ou restituído o bem depositado, automaticamente cessa a prisão”. Seguramente, as hipóteses de prisão civil (que possuem natureza coercitiva, pretendendo exortar o devedor de alimentos e o infiel depositário ao cumprimento da obrigação) não se confundem com as hipóteses de prisão penal, que estão assentadas em ideais nitidamente punitivos, decorrendo da prática de ato ilícito. Ademais, não se pode olvidar que a Carta Social de 5 de Outubro acresceu uma importante qualificação para as hipóteses de prisão civil, exigindo que o descumprimento obrigacional – para propiciar a prisão civil – seja voluntário e inescusável. Assim, conquanto o Texto Maior tenha admitido a prisão civil (repita-se à exaustão: sempre como meio compulsório de execução), exigiu, porém, que o inadimplemento da dívida seja voluntário e inescusável, limitando a possibilidade prisional. Registre-se, por oportuno, que um exemplo muito comum de justificativa plausível e lógica para o inadimplemento é o caso fortuito ou força maior, que serve para limitar o cumprimento da dívida. Aliás, a Corte Suprema tem, inclusive, corroborado desse entendimento, como se pode notar: “Habeas corpus. Depositário infiel. Motivo de força maior. Prisão civil. Constrangimento ilegal. Comprovado que à data da penhora o bem já era objeto da garantia de contrato de financiamento, é de reconhecer-se motivo de força maior para a recusa em entregá-lo, mostrando-se 9 ilícita a prisão civil decretada” (STF, Ac.unân. 2a T., HC 83.056/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 27.5.2003, DJU 27.6.2003, p. 54). Vale pontuar, por oportuno, que a regra geral é a proclamação da garantia constitucional, que é a impossibilidade de prisão por dívida civil. As duas permissões de prisão civil são, nitidamente, excepcionais e, como tais, exigem interpretação restritiva. Não cabe, pois, qualquer interpretação ampliativa para admitir prisões civis não previstas expressamente no Texto Constitucional. Pontue-se, por relevante, que a Carta Maior erigiu a dignidade da pessoa humana ao status de pedra angular (fundamental) do sistema jurídico pátrio, transcendendo e transpassando todos os demais valores constitucionais, mas, excepcionando a regra geral, permitiu o constrangimento máximo consistente em restrição à liberdade em determinados casos estabelecidos de forma expressa. c) O Pacto de San Jose da Costa Rica e a sua recepção no direito brasileiro Sem a menor sombra de dúvidas, a proibição de prisão civil por dívidas concerne à própria afirmação dos direitos humanos, decorrendo, por isso, da Declaração Universal de Direitos do Homem. Nessa trilha, então, a Convenção Interamericana de Direitos do Homem (conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica), que foi regularmente firmada pelo Brasil e que já está recepcionada pela nossa ordem jurídica interna, estabeleceu que “ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (art. 7o, item 7). Pois bem, incorporado esse tratado internacional pelo direito brasileiro, impende reconhecer os intensos debates que têm sido travados sobre o posicionamento hierárquico da citada norma internacional no plano jurídico interno. Enfim, discute-se acerca do cabimento da prisão civil do devedor infiel depositário, após a incorporação do citado Tratado Internacional. Naturalmente, não se discute a respeito da prisão civil do devedor de alimentos, que também é autorizada pela norma externa, fixando-se a discussão quanto ao cabimento da prisão civil do infiel depositário. Encontram-se três diferentes teses, em sede doutrinária e jurisprudencial. A primeira corrente vem entendendo que o Pacto de San Jose da Costa Rica (tratado internacional que estabelece regras acerca de direitos humanos) foi incorporado, entre nós, em sede constitucional, ingressando, logo após a sua ratificação, em altitude constitucional, por força do § 2o do art. 5º da Lex Mater. Dentre os que advogam esta tese, encontra-se FLÁVIA PIOVESAN, grande autoridade na matéria: “a Constituição assume expressamente o conteúdo constitucional dos direitos constantes dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte. Ainda que estes direitos não sejam enunciados sob a forma de normas constitucionais, mas sob a forma de tratados internacionais, a Constituição lhes confere o valor jurídico de norma constitucional, já que preenchem e complementam o catálogo de direitos fundamentais previsto pelo texto constitucional.” O punctum saliens dessa tese, por conseguinte, é a afirmação de que os tratados internacionais 10 são incorporados como verdadeiras normas constitucionais. Defendem, pois, a inconstitucionalidade da prisão civil por qualquer dívida que não seja alimentícia. Em posição diversa, a segunda tese formulada rechaça a idéia de que os tratados internacionais seriam abraçados em sede constitucional, propugnando que ingressem em sede infraconstitucional. Naturalmente, os corifeus dessa compreensão sustentam uma compreensão rígida da norma maior, inclusive obstando uma modificação do texto constitucional por meio de convenção internacional, o que poderia, segundo alegam, afrontar os arts. 47 e 49, I, da Lex Legum. Entretanto, os defensores dessa tese observam que a Constitiução não determina a prisão civil, mas, apenas, permite que a lei infraconstitucional o faça. Lembram, inclusive, que a norma constitucional é de garantia da liberdade individual. Assim, sintetizam que o constituinte autorizou o legislador infraconstitucional a criar a hipóteses de prisão civil, mas não determinou, diretamente, tal segregação. Trilhando essa senda, entendem que a norma citada (art. 7o, item 7, do Pacto) veio a revogar a legislação ordinária (infraconstitucional), afastando a prisão civil, que se tornou ilegal (salvo, por óbvio, a de alimentos), mas não inconstitucional. Tanto que LUIZ ALBERTO DAVID ARAÚJO é enfático ao verberar que quando “a Constituição Federal autorizou a criação, pelo legislador infraconstitucional, da hipótese de prisão, entende-se que o Tratado só poderia ter agido sobre a lei ordinária e nunca sobre a Constituição Federal... Há, no caso, revogação da lei ordinária... e não a incidência sobre a Constituição”. A terceira corrente (já superada), por seu turno, afasta-se das demais (que, por um ou outro motivo, vão se distanciando da prisão civil do devedor infiel depositário) e admite, com maior amplitude, a prisão civil do infiel depositário, tanto quanto a do devedor de alimentos. Aliás, o Pretório Excelso vinha admitindo a prisão civil do infiel depositário, afastando a incidência do Tratado Internacional: “a Constituição proíbe a prisão civil por dívida, mas não a do depositário que se furta à entrega de bem sobre o qual tem a posse imediata, seja o depósito voluntário ou legal” (STF, HC 73.044/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, DJU 20.9.96, pp. 34.534). Com a nova composição da Suprema Corte, bem como considerando o entendimento manifestado no julgamento do RE 466343/SP (rel. Min. Cezar Peluso), espera-se o reconhecimento da incompatibilidade da prisão civil do infiel depositário com o ordenamento jurídico brasileiro. Até mesmo porque, compreendendo a matéria à luz da legalidade constitucional (em especial submetendo a matéria à inexcedível dignidade da pessoa humana, exigida pelo art. 1o, III, da CF/88), afigura-se-nos certo e incontroverso que a posição mais acertada é, realmente, a primeira delas, devendo se abraçar uma concepção mais contemporânea e ajustada à valorização da pessoa humana, defendendo a impossibilidade de prisão civil do infiel depositário, em face da incorporação do tratado internacional em sede constitucional. Emabono ao nosso entendimento, não se pode olvidar que o § 2o do art. 5o da Lex Mater é de clareza meridiana ao proclamar que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Ora, se é certo 11 que havia a possibilidade de prisão civil do depositário infiel, não menos correta é a afirmação de que, ao subscrever o Pacto de San Jose da Costa Rica, o nosso país acabou por restringir a prisão civil por dívida à hipótese única de dívida alimentícia – e, ainda assim, nas hipóteses em que o inadimplemento não for escusável. d) A prisão civil (absurda!) no contrato de alienação fiduciária: Apesar da absoluta falta de lógica e coerência jurídica, o Decreto-lei no 911/69 (editado em período de exceção, no auge da ditadura militar, sem qualquer fundamento democrático), em seu art. 4o, estabeleceu a possibilidade de prisão civil do devedor no contrato de alienação fiduciária (o chamado devedor fiduciário). Essa estranha possibilidade prisional decorre de um (não menos estranho!) dispositivo legal que permite a conversão do contrato de alienação fiduciária – que é um contrato de garantia, pelo qual o devedor garante um empréstimo para o uso de uma coisa entregando a propriedade dela mesma ao credor, que lhe emprestou a verba – em contrato de depósito – que é aquele pelo qual alguém assume o dever de guarda de uma coisa, sem que possa utilizá-la. A toda evidência, trata-se do desvirtuamento de uma espécie contratual bem delineada em outra figura jurídica, igualmente especificada, para atender aos interesses econômicos da parte mais forte (que é o credor fiduciário). Admitindo que o devedor fiduciário poderá não pagar a sua dívida e, além disso, não restituir a coisa que serve de garantia ao contrato, o Decreto-lei n. 911/69 autorizou a sua conversão em depósito e, assim, viabilizou a sua prisão civil. Em verdade, não deve ser tolerada tal hipótese por variados motivos. Primus, porque o contrato de alienação fiduciária não se confunde, substancialmente, com o de depósito. E, nessa linha, a lei não poderá desvirtuar a natureza do contrato, sob pena de desfigurá-lo. Secundus, pois a exceção constitucional que autoriza a prisão civil deve ser interpretada restritivamente, não sendo admitida a medida segregatória em hipóteses não expressas na Lei Maior. Assim sendo, não constando, expressamente, do inciso LXVII, do art. 5o da CF/88 a possibilidade de prisão civil do devedor fiduciário, não se pode equipará-lo ao infiel depositário, que decorre de outra estrutura. Tertius, porque o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de Direitos Humanos – o Pacto de San Jose da Costa Rica que, em seu art. 7o, n.7, veda qualquer outro tipo de prisão civil que não seja a do devedor de alimentos, afastando essa lamentável ocorrência do nosso ordenamento jurídico. Demais de tudo isso, no contrato de garantia fiduciária o credor dispõe de providências eficazes para fazer valer o seu crédito, no âmbito da excussão patrimonial, não se justificando a adoção de medida tão drástica, que atenta, frontalmente, contra a personalidade do devedor. Enfim, não se pode tolerar que o ter mereça relevância maior do que o ser! Em decisão que merece referência, o Tribunal de Justiça do estado da Bahia já reconheceu a tese aqui esposada, em acórdão que merece a referência: “Prisão civil. Alienação fiduciária convertida em depósito. Impossibilidade. Inadmite-se a equiparação do contrato de alienação fiduciária em garantia com o contrato de depósito, posto que institutos jurídicos intrinsicamente distintos, onde a obrigação precípua do primeiro é pecuniária, enquanto a do segundo é a devolução da coisa. Ademais, o Decreto-lei 911/69 não foi recepcionado pela nova ordem constitucional, 12 diante da redação do inciso LXVII, do art. 5o, que, ao contrário do texto anterior, art. 153, § 17, da CF de 1969, suprimiu a expressão ‘na forma da lei’, deixando de existir a prisão do depositário, salvo nos casos do contrato típico de depósito. Por conseguinte, tratando-se de norma constitucional de exceção, impõe-se a interpretação restritiva” (TJ/BA, Ac.unân. 2a Câm.Crim., HC 41.537.8 – comarca de Salvador, rel. Des. Benito A. Figueiredo). Em arremate lacônico, porém preciso, ROSANA FACHIN dispara: “o instituto da alienação fiduciária deve ser interpretado à luz dos novos princípios constitucionais, o que implica a vedação do uso da prisão civil como meio coercitivo para o implemento de uma obrigação”. Deste modo, não se deve admitir a prisão civil, no contrato de alienação fiduciária, por motivos diversos, dentre os quais a inexistência de depósito nesta modalidade negocial, sem contar com os argumentos constitucionais antes delineados. Modificando o entendimento que reinava de há muito, apesar de ligeiras divergências, o Supremo Tribunal Federal, com a sua nova composição, reconheceu a incompatibilidade da prisão civil do devedor fiduciante com a orientação constitucional. Incorporando o espírito da Emenda Constitucional 45, que abraçou em sede constitucional os tratados internacionais que versam sobre direitos e garantias humanitárias, o Pretório Excelso afirmou a impossibilidade de prisão civil na alienação fiduciária, inaugurando uma nova fase interpretativa no direito brasileiro. Afirmou-se, assim, que a aplicação do art. 4o do Decreto-lei no 911/69, que permitia a prisão civil do devedor fiduciante, em todo o seu alcance é inconstitucional. Por isso, deliberou a Corte que entre os contratos de depósito e de alienação fiduciária em garantia não há afinidade, conexão teórica, entre dois modelos jurídicos nitidamente distintos, não sendo permitida a sua equiparação. Asseverou-se, também, que, à lei, só é possível equiparar pessoas ao depositário com o fim de lhes autorizar a prisão civil como meio de compeli-las ao adimplemento de obrigação, quando não se deforme nem deturpe, na situação equiparada, o arquétipo do depósito convencional, em que o sujeito contrai obrigação de custodiar e devolver. É o que consta do RE 466343/SP, rel. Min. CEZAR PELUSO, julgado em 22.11.06. Compartilhando do entendimento do relator, o Ministro GILMAR MENDES acresceu que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7o, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. Assim, reconheceu o Supremo Tribunal que a prisão civil do devedor-fiduciante viola o princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais-executórios postos à disposição do credor-fiduciário para a garantia do crédito. Esse posicionamento, harmonizando a alienação fiduciária aos parâmetros de legalidade constitucional, já vinha sendo acatado pelo Superior Tribunal de Justiça, que reconhecia o descabimento da prisão civil na alienação fiduciária em garantia: “embora a jurisprudência do Pretório Excelso tenha se firmado no sentido da legitimidade da prisão do devedor fiduciante que não entregou o bem objeto da 13 alienação fiduciária em garantia ou o equivalente em dinheiro, equiparando-o, para tal fim, à figura do depositário infiel prevista no art. 5o, inc. LXVII, da CF, mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica, a Corte Especial deste STJ pacificou já o entendimento no sentido de que não cabe a prisão civil do devedor que descumpre contrato garantidopor alienação fiduciária” (STJ, Ac.unân. Corte Especial, EDREsp. 489.278/DFAgRg, rel. Min. Hamílton Carvalhido, j. 27.11.2003, DJU 22.3.2004, p. 287). Realmente, em sede do Direito Civil é preciso uma compreensão constitucional dos institutos fundamentais. E, assim pensando, somente será possível a prisão civil do devedor nos casos, expressamente, previstos em lei (devedor de alimentos e infiel depositário), não sendo admissível interpretação ampliativa. Por isso, não fossem suficientes outros argumentos já apresentados, não havendo depósito típico na alienação fiduciária, afasta-se, definitivamente, a prisão civil. Sem dúvida, a prisão civil do devedor infiel depositário viola, frontalmente, as garantias constitucionais, pois o interesse do credor (o depositante) não justifica o sacrifício da dignidade do devedor. Não se esqueça, inclusive, que, no caso do depósito, a dívida conta com outros mecanismos de satisfação, através de execução civil, não se justificando o aprisionamento do devedor como mecanismo de coerção. Em arremate, consolidando os argumentos aqui esposados, vale lembrar a advertência de ODETE NOVAIS CARNEIRO QUEIROZ, destacando a impossibilidade de se tolerar a predominância de questões econômicas em detrimento da dignidade humana. e) Lineamentos da prisão civil por descumprimento da obrigação alimentícia A possibilidade de prisão civil serve como mecanismo para a solução de um dos problemas mais angustiantes do Direito de Família contemporâneo, que diz respeito à busca da efetivação da obrigação de pagar alimentos. Partindo da afirmação fundamental de que os alimentos são expressão concreta do princípio da dignidade humana e asseguram a própria subsistência da pessoa, é fácil depreender a natural exigência de um mecanismo ágil, célere, eficaz e efetivo de cobrança dos alimentos. Até mesmo porque a relutância no cumprimento dessa obrigação coloca em xeque não apenas a efetividade de uma decisão judicial, mas o próprio direito à vida e o fundamento do ordenamento jurídico, que é a proteção do ser humano. A execução alimentícia, assim, constitui-se em uma “modalidade especial de execução por quantia certa contra devedor solvente, que merece tratamento especial em razão da natureza da prestação cujo cumprimento se pretende”, como percebe ALEXANDRE FREITAS CÂMARA, talentoso processualista fluminense. Podem, assim, os alimentos ser exigidos, coercitivamente, no caso de descumprimento, através de um tipo específico de execução por quantia certa contra devedor solvente (CPC, arts. 732 a 735), estabelecendo regras específicas, peculiares, para este especial tipo de obrigação. Assim, considerada a peculiar natureza da obrigação alimentar, justifica- se a prisão civil do devedor, pelo prazo máximo de 60 (sessenta) dias, com o propósito de assegurar a própria dignidade e integridade do alimentando. Registre- se, de qualquer modo, que o arresto pessoal do devedor de alimentos tem natureza coercitiva e não punitiva, funcionando como mecanismo eficiente para o 14 cumprimento obrigacional. Não é pena, sanção. Não tenciona sancionar aquele que deixou de pagar os alimentos, mas, diversamente, tende a coagi-lo ao pagamento da prestação tão importante para a subsistência do alimentando. Exatamente por isso, é possível a prisão civil de ofício pelo juiz (ou por provocação do Ministério Público, quando funcione como fiscal da lei – CPC, art. 82), independentemente de provocação da parte interessada.É certo (e isso não se põe em dúvida) que a prisão civil é medida odiosa, devendo ser repelida no estado democrático de direito. Oxalá, seja possível uma humanização do sistema jurídico para que, em breve futuro, não mais seja necessária a privação de liberdade como mecanismo coercitivo para o adimplemento obrigacional. Entretanto, não se pode negar as vantagens e benefícios propiciados pela medida segregatória como mecanismo coercitivo para o adimplemento alimentício. Os dados estatísticos do cotidiano forense não escondem que a prisão civil do devedor de alimentos cumpre, em larga medida, a sua finalidade: fazer com que o alimentante pague a dívida alimentar. Por evidente, considerado o quadro de excepcionalidade da providência coercitiva, exige-se a fundamentação da decisão que determina a prisão civil, como reza o art. 93, IX, da Lex Mater. Ademais, impõe-se limites para a prisão civil do devedor de alimentos. Assim, parcela considerável da doutrina e da jurisprudência vem repudiando a prisão civil, como meio de coerção, para compelir o devedor de alimentos a adimplir prestações vencidas há mais de três meses (apelidadas de prestações pretéritas). Justificam o entendimento com a alegação de que, sendo excepcional a medida prisional consoante a diretriz constitucional, não seria razoável permitir a utilização da coerção pessoal das parcelas vencidas há mais de três meses. Em outras palavras, significa dizer que somente as parcelas vencidas nos últimos três meses autorizam o manejo da prisão civil como meio coercitivo, afastada a sua possibilidade para as parcelas vencidas anteriormente. As demais parcelas restariam submetidas aos meios de coerção patrimonial. É o entendimento cimentado, inclusive, no Superior Tribunal de Justiça, que chegou mesmo a cristalizá-lo na Súmula 309: “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do processo”. Por óbvio, as parcelas vincendas (isto é, aquelas que irão vencer no curso do procedimento executório) também permitem a prisão civil, impedindo que o credor venha a ser prejudicado pela demora natural do processo. Todavia, resta latente, explícita, uma indagação: qual o critério adotado para impedir a prisão civil das parcelas vencidas há mais de três meses? Por que considerar atual a dívida dos últimos três meses e não dos quatro, cinco ou seis últimos meses?As questões ganham contornos ainda mais duvidosos quando se lembra que nem a Constituição da República (em seu art. 5o, LXVII), nem o Código de Processo Civil (arts. 732 e 733) e tampouco a Lei no 5.478/68 – Lei de Alimentos – fazem qualquer distinção entre a execução de alimentos vencidos em períodos diferenciados, não limitando o uso da prisão como mecanismo de coerção. Por isso, reitere-se: qual o critério para afirmar que dívida alimentícia atual é relativa, apenas, ao último trimestre? Com efeito, é preciso compreender a prisão civil do devedor alimentar na dimensão constitucional, vocacionada para o realce dos valores maiores do sistema jurídico. Nessa ordem de 15 idéias, ainda que em posição minoritária, entendemos que manter a estrutura da prisão civil fundada no débito do trimestre antecedente à propositura da ação alimentar é ter uma visão míope da norma constitucional, enxergando de maneira turva a realidade latente da vida. Somente permitida a prisão civil assim, restarão sacrificados direitos fundamentais do credor (muita vez, crianças e adolescentes, que contam com proteção integral e prioridade absoluta, como reza o art. 227, CF), incentivando o devedor relapso. Defendemos que é imperiosa a aplicação da técnica de ponderação de interesses no caso em apreço, sopesando numa balança imaginária os valores colidentes: o direito do devedor de não ter a prisão civil desviada de sua função precípua de garantir a integridade humana e o direito do credor de perceber a pensão regularmente, viabilizando sua própria subsistência. O fiel da balança será a afirmação da dignidade da pessoa humana, devendo prevalecer o valor que a respeitar de forma mais ampla e efetiva. Nessa linha de intelecção, não se pode represar a prisão civil do devedor de alimentos ao débito do último trimestre anterior ao ajuizamento da demanda, sob pena de negar os mais relevantes valores constitucionais.É preciso detectar, no caso concreto (casuisticamente), qual o período de tempo que, equilibrando a balança, atende às diretrizes constitucionais. Com isso, afirma-se, com tranqüilidade, a possibilidade de prisão civil do devedor de alimentos por período inadimplido há mais de três meses. Poderá, seguramente, o juiz decretar a prisão civil para coagi-lo a pagar os últimos seis, nove ou doze meses (ou mais ainda!), considerando as circunstâncias fáticas. Ora, quando a dívida resta descumprida injustificadamente, a prisão civil avulta como medida necessária à própria prevalência da legalidade constitucional, pena de subversão dos valores fundantes do sistema jurídico. Pensar diferente seria autorizar que o devedor se locupletasse da própria torpeza, preferindo não pagar a dívida, apostando em torná- la velha, pretérita, e, por conseguinte, livrar-se da coerção pessoal.61 Fundados em tais ponde-rações, entendemos que, em se tratando de dívida contumaz e reiterada, deixando o devedor de cumprir o débito (não raro por vindita ou mágoa da mãe do alimentando), pode (rectius, deve!) o magistrado determinar – inclusive ex officio ou a requerimento do Ministério Público ou do interessado – a prisão civil por período superior aos três últimos meses. f) A prisão civil do devedor à luz do Direito Civil-Constitucional (a legalidade constitucional e a prisão civil) Não é difícil notar, pois, que o ponto de partida – e, certamente, de chegada – da nossa Lei Suprema é o direito à vida digna, reconhecido como direito fundamental por excelência, motivo pelo qual a prisão civil somente pode se tornar justificável em hipóteses nas quais a dignidade humana reclame o encarceramento. Sem dúvida, a Carta Constitucional, fundada em seus princípios e regras, é vetor de informação que caracteriza uma base necessária para a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e solidária. Por isso, quando se tratar de prisão civil por débito alimentício não há que se falar em violação à dignidade humana, eis que a dignidade do alimentando (credor de alimentos) reclama a prisão como medida necessária. Nessa ordem de idéias, cerceia-se a liberdade do devedor para garantir 16 a integridade física e psíquica do credor. E, como bem pondera ODETE NOVAIS CARNEIRO QUEIROZ, “isto sem dúvida faz toda a diferença, levando a admitir-se nesse único e exclusivo caso a privação da liberdade daquele que, podendo e sem justificar, não paga o que deve ao credor necessitado de alimentos”. E arremata: “cerceia-se a liberdade de alguém para viabilizar a vida de outrem”. Assim, vislumbra-se que, concretamente, é preciso ponderar (à luz da proporcionalidade dos valores constitucionais em colidência) o conflito existente entre o direito de receber o crédito e a garantia do direito à dignidade e liberdade, para entender o que deve preponderar. Assim sendo, é imperiosa a aplicação da técnica de ponderação de interesses no caso em apreço, sopesando em uma balança imaginária os valores colidentes: o direito do devedor de não ter garantida a sua liberdade e o direito do credor de perceber o seu crédito. Ora, sem dúvida, o fiel da balança para a solução do problema é a afirmação da dignidade da pessoa humana, devendo prevalecer o valor que a respeitar de forma mais ampla e efetiva. Mais incisiva ainda, ROSANA FACHIN chega mesmo a verberar que “só edificaremos uma sociedade justa e digna quando a ordem jurídica for respeitada e seus princípios fundamentais não forem transgredidos”. Nessa linha de intelecção, é preciso represar a prisão civil do devedor civil somente para hipóteses em que a medida segregatória se apresentar necessária à afirmação da dignidade do credor (o que ocorrerá, somente, no caso do débito alimentício), pena de negar os mais relevantes valores constitucionais. Com efeito, se a nossa Constituição Federal privilegia a afirmação da dignidade humana e da solidariedade social, qualquer norma infraconstitucional atentatória de tais princípios não pode ter sido recepcionada pela nova ordem superior que consagra a responsabilidade civil do cidadão limitada ao seu patrimônio.
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