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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS CENTRO DE ESTUDOS GERAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS DENISE BARROS WEISS Conversação em aula de português para estrangeiros Tese submetida à banca de Doutorado, na área de concentração de Estudos de Linguagem, linha de pesquisa Discurso e Interação. Orientador: Prof. Dr. FERNANDO AFONSO DE ALMEIDA Niterói 2007 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá W429 Weiss, Denise Barros. Conversação em aula de português para estrangeiros / Denise Barros Weiss. – 2007. 232 f. Orientador: Fernando Afonso de Almeida. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2007. Bibliografia: f. 164-167. 1. Língua portuguesa – Estudo e ensino – Falantes estrangeiros. 2. Conversação. 3. Interação. I. Almeida, Fernando Afonso. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título. CDD 469.0202 3 DENISE BARROS WEISS Conversação em aula de português para estrangeiros Tese submetida à banca de Doutorado, na área de concentração de Estudos de Linguagem, linha de pesquisa Discurso e Interação. BANCA EXAMINADORA _______________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando Afonso de Almeida – Orientador Universidade Federal Fluminense – UFF _______________________________________________________________ Profa. Dra. Letícia Rebollo Couto Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ ______________________________________________________________ Prof. Dr. Décio Orlando Soares da Rocha Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ _______________________________________________________________ Prof. Dr. José Carlos Gonçalves Universidade Federal Fluminense – UFF _______________________________________________________________ Profa. Dra. Solange Coelho Vereza Universidade Federal Fluminense – UFF Suplentes: _______________________________________________________________ Profa. Dra. Cláudia Nivea Roncaratti Universidade Federal Fluminense – UFF _______________________________________________________________ Profa. Dra. Kátia Ferreira Fraga Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ Data da defesa: 29 de agosto de 2007 4 AGRADECIMENTOS Ao professor doutor Fernando Afonso de Almeida, orientador deste trabalho, pela tranqüilidade com que me ajudou durante o processo de elaboração da tese. Aos professores doutores Letícia Rebollo Couto, Décio Orlando Soares da Rocha, José Carlos Gonçalves e Solange Coelho Vereza, pela gentileza de se disporem a compor a banca de avaliação desta tese. Aos professores doutores Paulo Gago e Solange Vereza, pelas orientações preciosas quando da apresentação do projeto de qualificação. À Universidade Federal de Juiz de Fora, por ter me concedido um ano de afastamento integral durante a elaboração da tese e aos professores do Departamento de Letras, por me incentivarem a participar do programa de qualificação e por viabilizarem meu afastamento total das atividades docentes. Às professoras doutoras Verônica Lage e Marta Cristina da Silva, pela verificação da acuidade das traduções da língua inglesa. Ao professor doutor Fernando Afonso de Almeida, pela verificação da acuidade das traduções da língua francesa. Aos alunos do curso de português para estrangeiros da Universidade Federal de Juiz de Fora, por me permitirem gravar suas aulas. Às queridas amigas Ana e Luiza, pela ajuda na transcrição inicial dos dados e pelo apoio nas horas de dificuldade. Aos professores Igor Porsetti e Lyvia Gomes, companheiros que doaram seu tempo e sua habilidade técnica se revezando na gravação dos dados em vídeo. À professora doutora Norimar Júdice, por ceder parte de seu material de pesquisa para compor a base de dados. À secretaria da Universidade Federal Fluminense, pelo tratamento sempre gentil e eficiente durante todas as fases de participação no programa de doutorado. Aos amigos que, mesmo quando não compreendiam muito do que eu falava, me ouviam com paciência. À minha família, que entendeu minhas ausências. Ao Emídio, que suportou com tranqüilidade minhas muitas horas à frente do computador e que me deu o incentivo necessário para eu ir até o fim do trabalho. Obrigada! 5 RESUMO O objetivo desta tese é reconhecer padrões de comportamento dos participantes de atividades de conversação em aulas de português para estrangeiros ministradas no Brasil. Apresentamos a atividade de conversação como uma composição de duas camadas: a didática e a relacional. Na camada didática, na qual os participantes têm como objetivo estudar a língua-alvo, observamos como as informações são negociadas e como os participantes proporcionam uns aos outros oportunidades de desenvolvimento das habilidades de compreensão e produção oral. Na camada relacional, na qual os participantes empregam a língua de estudo para se comunicarem e mostrarem a si mesmos, expondo suas visões de mundo, observamos como são negociados os traços identitários apresentados pelos indivíduos ou atribuídos a eles. PALAVRAS-CHAVE: Interação, conversação, ensino, língua estrangeira, português para estrangeiros. 6 ABSTRACT The aim of this thesis is to recognize standards of behavior of the participants of conversational activities in lessons of Portuguese for foreigners in Brazilian classes. We present the conversational activity as a composition of two layers: the didactic and the relational ones. In the didactic layer, in which participants aim to observe and to practise aspects of the target language, we analyze how they negotiate information and provide each other chances of development of oral comprehension and production abilities. In the relational layer, in which the participants use the language they are studying to communicate and present themselves displaying their own world views, we observe how the identity features shown by individuals or assigned to them are negotiated. KEY WORDS: Interaction, conversation, teaching, foreign language, Portuguese for foreigners 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO........................................................................................................................................................................9 1. ASPECTOS METODOLÓ GICOS DO TRABALHO ........................................................................................... 12 1.1. OS DADOS .....................................................................................................................................................................13 1.2. O MATERIAL ANALISADO............................................................................................................................................15 1.2.1. O registro em vídeo ..........................................................................................................................................17 1.2.2. O registro em áudio.......................................................................................................................................... 19 1.3. SER PESQUISADOR E PESQUISADO.............................................................................................................................19 1.4. IDENTIFICAÇÃO DAS AULAS ANALISADAS................................................................................................................21 1.4.1. Aula 1 .................................................................................................................................................................. 21 1.4.2. Aula 2 .................................................................................................................................................................. 23 1.4.3. Aula 4 .................................................................................................................................................................. 24 1.4.4. Aula 5 .................................................................................................................................................................. 25 2. CONSIDERAÇÕES DE ORDEM TEÓRICA......................................................................................................... 28 2.1. FILIAÇÃO TEÓRICA......................................................................................................................................................28 2.2. CONVERSA E SITUAÇÃO SOCIAL ................................................................................................................................30 2.3. ENQUADRES..................................................................................................................................................................32 2.4. ENQUADRES E ALINHAMENTOS .................................................................................................................................33 2.5. AQUISIÇÃO E APRENDIZAGEM....................................................................................................................................34 2.6. FACE ..............................................................................................................................................................................36 3. O ESPAÇO INTERACIONAL DA SALA DE AULA........................................................................................... 38 3.1. O QUE É UMA SALA DE AULA?....................................................................................................................................38 3.1.1. A sala de aula como ambiente institucional................................................................................................. 39 3.1.2. Esquemas participativos na sala de aula...................................................................................................... 41 3.1.3. As configurações de participação na sala de aula...................................................................................... 42 3.1.3.1. A configuração em leque ...............................................................................................................................42 3.1.3.2. A configuração em rede.................................................................................................................................43 3.2. A AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA............................................................................................................................44 3.2.1. Contratos que regem a aula de língua estrangeira..................................................................................... 45 3.2.1.1. Contrato principal e contratos menores .........................................................................................................45 3.2.1.2. O papel da língua-alvo ...................................................................................................................................46 3.2.2. Os participantes da aula de língua estrangeira .......................................................................................... 47 3.2.2.1. O papel do professor......................................................................................................................................48 3.2.2.2. O papel dos alunos.........................................................................................................................................51 4. A CONVERSAÇÃO – UMA ATIVIDADE DA AULA DE LÍNGUA ESTRANGEIRA ............................. 53 4.1. A CONVERSAÇÃO E OUTROS TIPOS DE INTERAÇÃO.................................................................................................55 4.1.1. A conversação e a conversa............................................................................................................................ 55 4.1.2. A conversação e a entrevista........................................................................................................................... 60 4.2. OS CONTEXTOS EXTERNOS E A CONVERSAÇÃO: CONTEXTOS ALOGLOTA E HOMOGLOTA.................................64 8 4.2.1. O contexto aloglota........................................................................................................................................... 65 4.2.2. O contexto homoglota...................................................................................................................................... 65 4.3. AS REGRAS DA CONVERSAÇÃO..................................................................................................................................67 4.3.1. A modificação de características da conversa............................................................................................. 67 4.3.2. A modificação de características da sala de aula....................................................................................... 69 4.4. A CONVERSAÇÃO COMO UM COMPLEXO DE CAMADAS..........................................................................................76 5. A CAMADA DIDÁTICA............................................................................................................................................... 81 5.1. A FUNÇÃO DE INFORMAR............................................................................................................................................82 5.1.1. Tarefa: fornecer informações sobre aspectos externos à língua.............................................................. 83 5.1.1.1. O professor como informador ........................................................................................................................83 5.1.1.2. O aluno como informador ..............................................................................................................................85 5.1.2. Tarefa: dar explicações sobre itens de vocabulário................................................................................... 87 5.1.2.1. O professor como explicador .........................................................................................................................87 5.1.2.2. O aluno como explicador ...............................................................................................................................89 5.1.3. Tarefa: fornecer dados sobre estruturas lingüísticas................................................................................. 92 5.2. A FUNÇÃO DE ANIMAR................................................................................................................................................93 5.2.1. Tarefa: Pontuar as trocas................................................................................................................................ 945.2.1.1 O professor como pontuador das trocas..........................................................................................................94 5.2.1.2. O aluno como pontuador das trocas...............................................................................................................98 5.2.2. Tarefa: Fornecer comandos de atividades................................................................................................... 99 5.2.3. Tarefa: Chamar à atenção............................................................................................................................101 5.3. A FUNÇÃO DE AVALIAR.............................................................................................................................................103 5.3.1. A tarefa de fazer uma apreciação................................................................................................................103 5.3.2. A tarefa de fazer uma correção ....................................................................................................................104 5.3.3. A tarefa de fazer uma avaliação indireta....................................................................................................107 5.3.4. A autocorreção................................................................................................................................................108 6. A CAMADA RELACIONAL .....................................................................................................................................110 6.1. MOBILIZAÇÃO DE TRAÇOS DA IDENTIDADE PELO PRÓPRIO PARTICIPANTE.......................................................113 6.1.1. Aluno portador de cultura específica..........................................................................................................113 6.1.2. Professor portador de cultura específica....................................................................................................115 6.2. MOBILIZAÇÃO DA IDENTIDADE POR OUTRO PARTICIPANTE ...............................................................................116 6.2.1. Aluno como aprendiz......................................................................................................................................116 6.2.2. Aluno portador de cultura específica..........................................................................................................117 6.2.3. Professor portador de cultura específica....................................................................................................121 6.3. MOBILIZAÇÃO DE CARACT ERÍSTICAS PESSOAIS....................................................................................................125 6.3.1. Exposição de características pessoais dos alunos....................................................................................125 6.3.2. Exposição de características pessoais do professor.................................................................................130 6.3.3. Atribuição de características pessoais a outro participante...................................................................131 6.4. EFEITOS DA NEGOCIAÇÃO DE IDENTIDADES NA CONVERSAÇÃO.........................................................................134 6.4.1. Atos de ameaça da face..................................................................................................................................134 6.4.2. Redução do potencial de dano à face..........................................................................................................142 6.4.3. Redução do potencial de dano pelo humor................................................................................................146 7. RELAÇÕES ENTRE AS CAMADAS DIDÁTICA E RELACIONAL...........................................................151 7.1. COLAPSO ENTRE AS CAMADAS.................................................................................................................................151 7.2. CONFLITOS ENTRE AS CAMADAS.............................................................................................................................155 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................................................................................159 BIBLIOGRAFIA EMPREGADA..................................................................................................................................164 ANEXOS ...............................................................................................................................................................................168 ANEXO 1.............................................................................................................................................................................168 ANEXO 2.............................................................................................................................................................................179 ANEXO 3.............................................................................................................................................................................192 ANEXO 4.............................................................................................................................................................................224 9 Introdução Este projeto nasceu de uma angústia antiga. Como professora de português para estrangeiros desde 1988, lecionando em turmas que congregam alunos de diferentes nacionalidades em uma universidade federal, sempre observamos que as situações vividas por mim em sala de aula eram diferentes das que viviam meus colegas que trabalhavam com o ensino de outras línguas estrangeiras. Nessas aulas freqüentemente ocorriam situações em que os alunos, ao ouvirem ou lerem uma frase, uma expressão presente no material didático, ou ainda diante de alguma informação apresentada em sala ou mesmo fora dela, passavam a discutir um tema diferente daquele proposto por mim, e o faziam de um modo tal que parecia uma conversa informal. A dúvida era: seria aquela interação incompatível com o objetivo daquele encontro? Qual seria a diferença entre aquela interação na sala de aula e, por exemplo, uma conversa entre professor e alunos na cantina? O que me pareceu inicialmente uma idiossincrasia da minha prática em sala de aula acabou se afigurando como uma situação característica das aulas de português para estrangeiros. Professores da área, em encontros, seminários e congressos, sublinhavam o caráter imprevisível das aulas e costumavam demonstrar a mesma preocupação que eu tinha. O projeto inicialmente tinha como objetivo compreender como se dava a interação entre os alunos, já que me parecia que eram unicamente eles os responsáveis pela modificação das interações na sala. A observação foi 10 demonstrando, porém, que a professora tinha um papel importante nesse movimento. Assim, houve uma alteração substancial no objetivo da pesquisa e chegou-se progressivamente a um conjunto de questões que nortearam o trabalho aqui apresentado. A pergunta que consiste no objetivo deste trabalho é: como se caracteriza a conversação em uma sala de aula de português como língua estrangeira em contexto homoglota, em termos da interação entre os participantes? A conversação será aqui analisada em dois aspectos. O primeiro é o do uso da conversação como estratégia de exposição do aluno a estruturas da língua-alvo e a aspectos sócio-culturais da cultura-alvo. O segundo aspecto analisado é o da conversação enquanto espaço de negociações de identidade, negociações essas que a caracterizamcomo lugar no qual os participantes organizam e reorganizam constantemente as relações que têm uns com os outros, seja assumindo, seja atribuindo identidades sociais. O trabalho foi dividido em sete capítulos. No primeiro, são apresentadas considerações de caráter metodológico que guiaram a elaboração da pesquisa. No segundo, indicam-se os elementos básicos de caráter teórico empregados no trabalho. Inicialmente, apresenta-se sucintamente a corrente teórica a que se filia a pesquisa. A seguir, serão elucidados conceitos- chave que serão empregados posteriormente na análise dos dados. Os capítulos seguintes são dedicados à análise propriamente dita. No capítulo 3 o objetivo é apresentar as características da sala de aula, mostrando como esse contexto estabelece uma hierarquia de posições entre os participantes da interação pedagógica. Depois de se mostrar as características da interação na sala de aula, tal como se apresentam nas representações de professores e alunos, trata-se das estruturas de participação, ressaltando o contrato entre professores e alunos e os modelos de participação aí encontrados. No capítulo 4, centra-se o foco na conversação, observada como uma atividade dentro do complexo que constitui a aula de língua estrangeira. Nesse capítulo, são destacadas as características específicas dessa atividade que a diferenciam tanto da conversa quanto da entrevista. Ao final dele, propõe-se a idéia de que a conversação pode ser analisada como um complexo de camadas:a didática e a relacional. Cada uma dessas camadas merecerá um capítulo, respectivamente o quinto e o sexto. No quinto, são analisadas as características da camada relacional, 11 empregando-se como teoria de fundo as informações coletadas em Vion e Dabène. No sexto, são observadas as relações interpessoais e seus processos de negociação. Nessa seção, são empregados em especial o conceito de face (de Goffman) e seus desdobramentos. Destacamos aqui a formulação apresentada por Katherine Kerbrat-Orecchioni, que serviu de base à análise. Finalmente, no sétimo capítulo, destacamos as situações em que as camadas se colapsam (observando em especial a técnica de revozeamento, empregada por uma das professoras) e aquelas em que os participantes demonstram dificuldade em transitar entre as camadas. Em relação aos trechos citados nesta tese, fizemos uma opção, em prol da legibilidade, de manter a versão em português no corpo do texto e, no rodapé da página, o trecho no original. Embora tenhamos contado com a ajuda de especialistas na revisão dessas traduções, assumimos a responsabilidade pelos eventuais erros de interpretação. 12 1. Aspectos metodológicos do trabalho Este trabalho foi estruturado a partir da observação dos dados da pesquisa. Eles foram analisados inicialmente a partir de uma observação não técnica de uma situação cotidiana da vida profissional da pesquisadora. A partir dessas observações, devidamente enriquecidas por leituras de cunho teórico, chegou-se aos conceitos necessários para a análise. Foi um processo dialético: dos dados, passou-se à procura de elementos de caráter teórico que os explicassem. O estudo desses aspectos teóricos abriu caminho para uma nova leitura dos dados, o que exigia novas investidas na teoria. Nesse processo, foram-se modificando tanto os objetivos do trabalho como o modo de se observar os dados. Procurou-se reconhecer padrões interacionais que caracterizassem a atividade de conversação, padrões esses que a distinguissem de outras atividades decorrentes de um encontro social de caráter institucional. Foi feita uma distinção entre a conversação e a conversa – tanto pelo fato de essa última ser considerada a interação social básica quanto por ser essa uma distinção extremamente relevante para se obter respostas à questão proposta neste trabalho. Além disso, descobriu-se durante a análise dos dados uma relação entre a conversação e a entrevista, o que mereceu também um olhar mais atento. A partir da perspectiva discursiva, que ressalta a natureza dialógica e interpretativa da comunicação humana, foi estudado os comportamentos verbal e não-verbal no contexto da sala de aula de português para estrangeiros, observando- se a co-construção discursiva entre professor e alunos. No processo de análise, foram sendo destacados elementos que apontavam para algumas características 13 fulcrais, ao nosso ver, da conversação: as negociações de identidades dos participantes, alguns efeitos dessas negociações e processos de minimização dos possíveis efeitos indesejados de determinadas atribuições de identidade (processos esses que objetivam à reparação de ameaças à face positiva ou negativa de um participante). 1.1. Os dados O material coletado e analisado neste trabalho consiste em quatro aulas de português para estrangeiros gravadas em vídeo na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e uma aula gravada em áudio na Universidade Federal Fluminense (RJ). A principal característica dos grupos analisados é a extrema heterogeneidade dos alunos que formam sua clientela. No caso da Universidade Federal de Juiz de Fora, o grupo a que poderíamos chamar “principal”, por ser o mais previsível a cada ano, é formado por alunos de instituições de ensino japonesa, alemã e americana. Esse grupo, que forma a base das turmas, tem como único elemento nivelador o fato de estarem todos cursando o equivalente ao “terceiro grau”. Não há homogeneidade quanto aos interesses, já que os cursos de origem são muito variados. É comum que, além desse grupo, cursem as disciplinas outros alunos, já que a universidade permite a matrícula de quaisquer estrangeiros que tenham terminando o equivalente ao ensino médio. Assim, a origem dos demais alunos é não somente diversa como imprevisível. Já houve alunos que eram professores visitantes da instituição, outros que eram refugiados políticos, esposas de funcionários de uma companhia estrangeira que se instalava na cidade, padres e pregadores de diferentes religiões e seitas. O curso de Juiz de Fora é ministrado na forma de duas disciplinas (português para estrangeiros I e II) que se alternam na grade. Assim, no primeiro semestre do ano temos português estrangeiros I e no segundo semestre, o II. Esse sistema teve repercussões para a coleta de dados, já que o objetivo era gravar as aulas de alunos que tivessem aproximadamente quatro meses de convívio na sala de aula. Por conta disso, só foram gravadas as aulas de final de primeiro semestre ou de início de segundo semestre. 14 O curso de português para estrangeiros oferecido pela UFF consiste em um total de 60 horas de atividades, oferecido em sistema de estudos intensivos. Na página da instituição lê-se que A UFF oferece um programa específico de Português para Estrangeiros que preconiza o método comunicativo, com ênfase na produção oral e no contato do aluno estrangeiro com a comunidade de Niterói, estimulando-se visitas de campo a lugares públicos (campus universitário, museus, locais históricos e turísticos etc.), que permitem maior aproximação com a cultura brasileira. Os alunos a quem são oferecidos esses cursos se encontram em uma das duas situações: · alunos de intercâmbio temporariamente freqüentando cursos de graduação ou pós-graduação na UFF; · estrangeiros não vinculados à UFF que desejem aperfeiçoar seus conhecimentos de português. A universidade tem convênios com instituições dos seguintes países: Uruguai, Suécia, Romênia, Portugal, Namíbia, Japão, Itália, França, Estados Unidos, Espanha, Dinamarca, Cuba, Chile, Canadá, Bolívia,Bélgica, Argentina, Angola e Alemanha. O tratamento dos dados começou com a transcrição (inicialmente parcial, depois integral) das fitas de vídeo e de áudio. Primeiramente foi feita uma transcrição não-detalhada, contemplando apenas o que foi dito pelos participantes e, quando considerado relevante, também informações relativas a elementos não- verbais e proxêmicos. A partir dos dados brutos aí obtidos, foram selecionados trechos de maior relevância para a pesquisa, que se converteram em um banco de dados. Foi feito um refinamento da transcrição desse conjunto e os dados já analisados foram então revistos à luz desse refinamento. Assim chegou-se ao conjunto de trechos analisados no decorrer deste trabalho. O emprego de uma fonte de dados mista (feita parcialmente em vídeo e parcialmente em áudio) pode não ser a melhor forma de se efetuar a análise proposta. Cremos que o material ideal seria formado por transcrições de material apenas em vídeo. Entretanto, depois de fazer a gravação das aulas na UFJF, percebeu-se que faltava um conjunto de dados que funcionasse como um 15 contraponto. Em uma pesquisa sobre as relações professor-aluno, ter aulas apenas de uma professora poderia gerar uma análise extremamente restrita. Assim, obtivemos o material a que nos referimos como aula 5, gravada em áudio na Universidade Federal Fluminense. A análise dessa aula suscitou um conjunto de observações extremamente enriquecedor. Assim, os dados foram incorporados ao conjunto do material oriundo da UFJF. 1.2. O material analisado Como já foi dito no item anterior, o material é constituído de uma fita cassete e de quatro fitas de vídeo. A gravação em fita cassete, embora menos invasiva, trouxe alguma dificuldade para a análise, pois tornou difícil a identificação dos alunos e impediu observações de elementos não-verbais da interação. Esses problemas não ocorreram quando da análise da gravação em vídeo. Entretanto, permanece a questão da presença ostensiva da câmera durante a gravação, que deve ser considerada um aspecto relevante na análise. Segundo Rose (2002), Não há um modo de coletar, transcrever e codificar um conjunto de dados que seja “verdadeiro” com referência ao texto original. A questão, então, é ser o mais explícito possível a respeito dos recursos que foram empregados pelos vários modos de translação e simplificação. (ROSE, 2002:344) É fato que a transcrição indica um modo de olhar o objeto de pesquisa. No caso específico de dados transcritos de vídeo, é inevitável que sejam feitas certas escolhas. A partir do ângulo tomado pela câmera, passando pelas escolhas do que é ou não relevante para a pesquisa (o que inclui o recorte dos trechos considerados importantes) até a decisão sobre o nível de detalhamento da transcrição, tudo pode interferir no material final a ser efetivamente trabalhado. As convenções de transcrição empregadas neste trabalho são adaptadas daquelas descritas em Sachs, Schegloff e Jefferson (1974), conforme apresentadas por Gago em palestra proferida na UFF, em julho de 2004 e em Gago (2004). 16 [colchetes] fala sobreposta (0.5) pausa medida em segundos (.) micropausa de menos de dois décimos de segundo = contigüidade entre a fala de um mesmo falante ou de dois falantes. . descida de entonação / subida de entonação , entonação contínua : alongamento de som - auto-interrupção sublinhado acento ou ênfase de volume MAIÚSCULA ênfase acentuada º fala mais baixa imediatamente após o sinal ºpalavras trecho falado mais baixo >palavras< fala comprimida ou acelerada <palavras> fala desacelerada <palavras início acelerado hhh aspirações audíveis (riso) (h) aspirações audíveis durante a fala .hhh inspiração audível (suspiro) (( )) comentário do analista (palavras) transcrição duvidosa ( ) transcrição impossível Th estalar de língua “ “ palavra em emprego metalingüístico ou em citação Além das convenções adotadas na transcrição, apresentadas na tabela acima, empregamos, em alguns exemplos, a estratégia de colocar em negrito elementos para os quais estamos chamando a atenção na análise Essa medida visa a facilitar a leitura, especialmente quando os trechos recortados são longos. Durante o processo de transcrição das fitas procuramos registrar a fala dos participantes tal como se apresentava, evitando fazer modificações ou correções 17 para que ela se adequasse à língua padrão, ou mesmo ao padrão da língua portuguesa. A fala da professora, que pode parecer mais próxima da língua padrão do que seria de se esperar em uma transcrição de fala, pode ser explicada pelo fato de ela estar tentando conscientemente manter-se o mais próximo possível de uma forma considerada correta do ponto de vista gramatical. Assim, tanto a velocidade de fala – um pouco reduzida, para que os alunos pudessem entendê-la mais facilmente – quanto a pronúncia de plurais, por exemplo, são aspectos desse cuidado com a pronúncia. A fala dos alunos, por sua vez, apresenta maior número de incorreções, o que é absolutamente previsível, já que eles são aprendizes de língua portuguesa, embora alguns estejam em nível avançado. Não se trata, nesse caso, de registrar alguma forma de preconceito lingüístico, mas simplesmente de manter-se tão fiel quanto possível ao que de fato ocorreu nas aulas. Além disso, é importante notar que muitas vezes as incorreções ou inadequações na pronúncia dos alunos são objetos de negociação e provocam o início de módulos importantes para a análise. 1.2.1. O registro em vídeo Em Bauer e Gaskell (2002) são abordadas diversas questões relativas ao trabalho do pesquisador que utiliza dados de textos, imagens e som. Entre elas é de especial interesse para este trabalho o que ensina Loizos, em seu texto sobre o uso da videografia. O autor apresenta as vantagens de se trabalhar com esse tipo de registro, salientando o fato de que a análise desses dados oferece um material muito mais rico em informações do que o registro, por exemplo, apenas em áudio, bastante comum nas pesquisas lingüísticas. Utilizando a videografia, podemos observar situações bem mais complexas, nas quais elementos não-verbais são, às vezes, determinantes para um entendimento adequado do que se passa. A imagem, com ou sem acompanhamento de som, oferece um registro restrito, mas poderoso das ações temporais e dos acontecimentos reais – concretos, materiais. (...) Embora a pesquisa social esteja tipicamente a serviço de complexas questões teóricas e abstratas, ela pode empregar, como dados 18 primários, informação visual que não necessita ser nem em forma de palavras escritas, nem em forma de números. (LOIZOS, 2002:137) O registro feito pela câmera é um olhar sobre o objeto, pouco diferente de qualquer outro. É uma representação da cena, tomada de um ângulo específico. A câmera é manejada por alguém que afasta ou focaliza segundo seus próprios critérios. Assim, pode-se dizer que esses registros não estão isentos de problemas, ou acima de manipulação, e eles não são nada mais que representações, ou traços, de um complexo maior de ações passadas. (Id. ib:138) A tarefa do pesquisador que se dispõe a trabalhar com videografia pressupõe que se lide com aspectos técnicos que são específicos dessa situação e que nem sempre esse pesquisador domina. Em primeiro lugar, deve-se considerar questões relativas ao manejo da câmera e sua inserção no local em que serão feitas as gravações. É preciso observar, em primeiro lugar, aspectos técnicos da gravação: número de pessoas presentes (se formuito grande, provocará problemas com o som); adequação do equipamento utilizado no que diz respeito à capacidade de captar a imagem em situações de relativamente pouca luz; a localização do espaço físico em que se fará a gravação, já que muitas vezes os sons do ambiente externo à sala são extremamente prejudiciais à compreensão do que se diz; finalmente, o que talvez seja o mais complicado dos problemas: tornar a presença da câmera o menos invasiva possível. No caso deste trabalho, o manejo da câmera não apresentou maiores dificuldades, mas o local em que as aulas ocorriam tinha interferência de barulho proveniente da circulação de carros na rua em frente. Em certos momentos, isso dificultou a compreensão do que foi dito. A principal vantagem de se trabalhar com o vídeo foi a oportunidade de se observar como os gestos e a postura física de cada participante interferiram no prosseguimento da interação verbal. A variedade das posturas dos participantes (com o corpo totalmente encostado na cadeira, em atitude de passividade, com o corpo inclinado para frente, em atitude de ouvinte interessado), assim como os movimentos em direção uns aos outros foram empregados como dados que 19 permitiam identificar o envolvimento maior ou menor de cada participante na interação. Esse aspecto da comunicação não-verbal ajudou a entender sobretudo aspectos da atribuição de turno, o que foi importante para a análise do comportamento da professora. É evidente que a presença da câmera na sala de aula foi um fator de inibição para os participantes. É provável, portanto, que esse processo de coleta de dados tenha interferido na espontaneidade das intervenções. Tal fato torna-se mais perceptível quando a professora Diane faz interrupções para dar orientações sobre o uso da câmera, registradas no primeiro dia de gravação (aula 1) e quando alguns participantes, especialmente daqueles já naturalmente menos propensos a falar ou menos proficientes em português, se mantêm em silêncio. Esses problemas foram minimizados pelo fato de os participantes que manejaram a câmera serem já presenças constantes na sala de aula, já que eram alunos do curso de Letras da UFJF interessados no ensino de português para estrangeiros, portanto pessoas não estranhas àquele grupo. 1.2.2. O registro em áudio O uso de fitas de áudio é a forma mais comum de registro de interações orais, onipresente nos estudos realizados antes do advento das técnicas de registro em vídeo. A principal característica do registro em áudio utilizado neste trabalho foi a não-interferência de ninguém além dos próprios participantes da aula (professora e alunos). Como eles mesmos manipularam o gravador (que era passado de um para o outro), não havia a presença potencialmente inibidora de um estranho ao grupo. Essa passagem do gravador de mão em mão foi registrada em alguns pontos pela professora que indicava (possivelmente em uma tentativa de explicar a quem fosse manipular a fita futuramente) quando isso acontecia. 1.3. Ser pesquisador e pesquisado Uma das questões que provocou discussão no que se refere à coleta dos dados foi se seria adequado trabalhar com as gravações feitas em aulas ministradas 20 pela própria pesquisadora (identificada, nas transcrições com o nome de Diane). Embora, em nome da isenção do tratamento dos dados, fosse talvez mais confortável trabalhar estudando a atuação de outro profissional, várias circunstâncias acabaram por nos fazer optar pela outra solução. Já comentamos no item anterior que a câmera de vídeo é um elemento de intimidação em qualquer ambiente. A sala de aula não é exceção. O professor se sente desconfortável, por se saber observado, não só por si mesmo, já na situação de pesquisador, mas também provavelmente por pessoas que ele sequer conhece. Saber-se avaliado em seu trabalho é sempre desafiador, e poucos estão dispostos a passar pela experiência. Uma outra dificuldade para se conseguir dados deve-se ao fato de não haver muitos cursos de português para estrangeiros no Brasil em que se trabalhe em condições semelhantes às que se pretendia observar, já que turmas heterogêneas quanto à origem são comparativamente raras (há uma tendência a se congregar grupos de alunos de mesma origem). Como resultado, encontramo-nos na situação de não poder contar, naquele momento, com outras pessoas dispostas a participar dessa empreitada. Embora de modo geral se possa dizer que o fato de o professor saber de antemão os objetivos da gravação tenha o poder de interferir em seu desempenho, acreditamos que nesta situação em especial tal interferência seja minimizada. Em primeiro lugar, os objetivos da pesquisa mudaram um pouco no decorrer da mesma. O que se pretendia inicialmente era observar apenas a atuação dos alunos – postura algo ingênua, já que não se pode, em uma dada situação, ignorar a atuação de uma das partes. Assim, à época da gravação a professora julgava não estar no centro das atenções. Em segundo lugar, houve um considerável período de tempo entre a gravação das aulas e sua análise, o que permitiu que a pesquisadora conseguisse observar o desempenho da professora sem tanta interferência do aspecto emocional (críticas à sua atuação, irritação por certas condutas...). Se por um lado esse processo de distanciamento atrasou a análise, por outro permitiu que não houvesse tanta interferência da memória da pesquisadora a respeito do que ela pensava estar fazendo ao falar (ou calar). Isso colaborou para um olhar menos marcado por certas crenças sobre o próprio trabalho que, de outra forma, poderiam influenciar os julgamentos. 21 1.4. Identificação das aulas analisadas O objetivo desta seção é apresentar uma visão mais geral das aulas analisadas, de modo a que se possa compreender mais adequadamente o contexto geral em que se inserem os trechos transcritos neste trabalho. Considerando que a transcrição integral das fitas formou um material longo demais para ser apresentado integramente em anexo, optamos por apresentar apenas uma seleção dos momentos dos quais foram recortados os trechos analisados. Para a melhor compreensão da seqüência total de situações das aulas gravadas, apresentamos um resumo de cada uma, de modo a que se possa compreender o “enredo do drama” vivido pelos participantes. Convém ainda observar que o nome dos participantes foi modificado, como é praxe. Por uma questão de legibilidade do material, optamos por atribuir nomes fictícios e não códigos tais como Al1, Al2. Também para ajudar a compreender determinadas configurações de participação nas aulas, selecionamos nomes característicos de pessoas das culturas a que pertence cada participante. As aulas foram numeradas de 1 a 5, de acordo com a ordem cronológica em que ocorreram. Das cinco aulas gravadas originalmente, em quatro obtivemos trechos nos quais houve efetivamente conversação. Na aula aqui denominada 3, toda a interação girou exclusivamente em torno do material apresentado pela professora – uma crônica. As intervenções dos alunos foram unicamente respostas às perguntas formuladas pela professora, cuja intenção comunicativa era principalmente o treino de estruturas ou a resolução de uma dúvida pontual sobre o texto. Nenhum ponto dessa aula originou uma situação de interação do tipo que estamos analisando. Assim, a referida aula não apresenta trecho passível de ser analisado nos termos propostos neste trabalho. As demais aulas serão aqui descritas de modo mais detalhado. 1.4.1. Aula 1 Participantes: Professora : Diane Alunos do curso: 22 Kaori, Kanji, Aiko, Yukoe Naomi alunos provenientes do Japão. Todos pertencentes à mesma universidade. Nível de proficiência intermediário. Ade aluno proveniente de Gana – falante nativo de inglês. Nível de proficiência intermediário > avançado. Roy aluno proveniente da Nova Zelândia – falante nativo de inglês. Nível de proficiência intermediário. Donald aluno proveniente dos Estados Unidos. Nível de proficiência intermediário. Demais participantes: Laís e Flávio alunos do curso de Letras, participantes habituais das aulas, como observadores. Responsáveis pela gravação em vídeo. Resumo dos eventos da aula Na aula 1, o objetivo da professora era apresentar aos alunos um texto (um diálogo fabricado com propósito didático) e através dele explicar os usos do pretérito imperfeito. Antes, porém, de efetivamente começar a trabalhar com o texto, ela fez um exercício de sensibilização dos alunos para o tema a ser trabalhado: uma situação de assalto na casa dos personagens. Essa atividade de conversação teve como tema geral a violência e se desenvolveu em três tópicos: o medo da violência, comparação entre a violência no Brasil e nos países de origem dos alunos; episódios de violência vividos pelos alunos. Em cada tópico, foram desenvolvidos diversos módulos. Nesse exercício inicial, que acabou por tomar aproximadamente quinze minutos da aula, mantém-se um enquadre característico da conversação, próximo ao de uma situação de entrevista, durante o qual a professora conduz as intervenções dos alunos de modo a mantê-las em um nível mais igualitário de participação (de modo semelhante ao que faz o mediador em um debate formal). Esse modo de a professora conduzir a conversação suscitou diferentes reações dos alunos, que interpretaram a oportunidade de fala de maneiras diferentes: alguns utilizando a abertura em termos de oportunidade de fala para exporem mais minuciosamente seus pontos de vista sobre o tema; outros, agindo 23 segundo as regras tácitas da situação professor/ aluno, simplesmente respondendo ao que foi perguntado, sem maior delonga. Como foi indicado acima, além dos participantes, estavam presentes na sala dois estudantes brasileiros, responsáveis pela gravação em vídeo. A sala teve suas cadeiras dispostas em semicírculo. Todos podiam, sem muito esforço, virar-se para olhar os outros participantes, mas a postura padrão dos alunos foi permanecer com o corpo reto, na posição em que a visão predominante era o centro da sala – local em que estava a professora. 1.4.2. Aula 2 Participantes Professora : Diane Alunos do curso: Ade aluno proveniente de Gana – falante nativo de inglês. Nível de proficiência intermediário > avançado. Roy aluno proveniente da Nova Zelândia – falante nativo de inglês. Nível de proficiência intermediário. Donald aluno proveniente dos Estados Unidos. Nível de proficiência intermediário. Pepper aluna proveniente dos Estados Unidos. Nível de proficiência iniciante > intermediário. Hazel aluna proveniente da Austrália. Nível de proficiência iniciante > intermediário. Demais participantes: Laís e Flávio alunos do curso de Letras, participantes habituais das aulas, como observadores. Responsáveis pela gravação em vídeo. Resumo dos eventos da aula Na aula 2, o objetivo da professora era fazer com que os alunos falassem de um tema que exigisse domínio de um vocabulário relativo a viagens e diversão. A professora forneceu-lhes uma tarefa específica, projetada como parte de uma 24 avaliação do desempenho oral, a ser completada posteriormente pelos alunos em performances individuais (que não foram gravadas). A tarefa se compunha de dois exercícios a serem executados em grupo. No primeiro, os alunos deveriam imaginar um roteiro de férias e propô-lo aos demais alunos. Esse exercício tinha aspecto de jogo, já que os alunos deveriam tentar convencer os demais de que seu passeio era o melhor. O objetivo era observar a capacidade de argumentação dos alunos. No segundo, os alunos deveriam apresentar um plano de elaboração de uma festa. Esse exercício foi executado por pares de alunos, que negociaram as características da festa e depois a apresentaram aos demais. De modo geral, observou-se nessa aula uma estrutura de participação semelhante à descrita na aula 1, com a professora mantendo um enquadre característico da conversação, próximo ao de uma situação de entrevista, conduzindo as intervenções dos alunos de modo a mantê-las em um nível mais igualitário de participação. Nessa aula, porém, essa condição foi levada a efeito de maneira mais firme pelo fato de os alunos estarem um uma situação de avaliação. Como resultado, temos, na aula 2, menos digressões que nas demais aulas observadas. 1.4.3. Aula 4 Participantes Professora : Diane Alunos do curso: Eric aluno proveniente dos Estados Unidos. Nível de proficiência intermediário. Gretel aluna proveniente da Alemanha. Nível de proficiência iniciante > intermediário. Hans aluno proveniente da Alemanha. Nível de proficiência intermediário > avançado. Takeo aluno proveniente do Japão. Nível de proficiência intermediário. Demais participantes: Laís e alunos do curso de Letras, participantes habituais das aulas, como 25 Flávio observadores. Responsáveis pela gravação em vídeo. Resumo dos eventos da aula A aula 4 é a mais rica em situações diferentes. Ela pode ser decomposta em blocos. O primeiro, iniciado momentos antes do início da gravação, consistiu em uma conversação entre a professora e os alunos sobre o tópico “casamento e relações familiares”. Esse tópico gerou um conjunto de subtópicos que foram construídos coletivamente pelos participantes: o casamento da professora, preço de um casamento, casamento e gravidez. A seguir, a professora propôs um jogo de simulação de cenário, no qual os alunos deveriam explicar como agiriam a partir de uma situação hipotética. Nesse ponto houve uma intervenção de uma aluna que deu origem ao terceiro bloco da aula, cujo tema, inicialmente a própria pesquisa da professora, derivou para uma comparação entre os sistemas educacionais brasileiro e dos países de origem dos alunos. Depois desse momento, voltou-se à situação de jogo, último bloco da aula. Uma característica dessa aula é o fato de se ter registrado interações menos marcadas pelo ambiente institucional em que ocorreram. Isso é observado mais fortemente na primeira parte da aula (discussão sobre casamento), já que nessa caso a discussão começou fora do ambiente da sala de aula e foi incorporada à aula propriamente dita, de maneira a não haver nenhuma quebra de continuidade no tópico discutido, mas com a estrutura de participação de alterando para a característica da conversação. 1.4.4. Aula 5 Participantes Professora Rita Alunos: Maria, Paulo, Sarah, A1 e A2 alunos provenientes do Senegal - francófonos. Maria e Paulo são irmãos. Nível de proficiência intermediário. Wilson aluno proveniente da Espanha. Gilda aluna proveniente da Alemanha. 26 Resumo dos eventos da aula A aula 5 é a única gravada apenas em áudio. A aula transcrita corresponde a um trecho de aproximadamente 25 minutos de duração, registrado em fita cassete pelos próprios participantes. O grupo era composto de quatro alunos do Senegal, mais dois alunos de outras nacionalidades. A maior parte da conversação se desenvolve entre a professora e os participantes senegaleses. O mote para a conversação foi a apresentação de uma imagem representativa de uma cena do Brasil colonial. Inicialmentea professora perguntou a cada aluno o que ele pensava sobre a imagem apresentada a eles e sobre como eram as relações familiares em seu próprio país. O primeiro a responder é Wilson, que faz a descrição. A professora provavelmente iria manter a rotina de perguntar a cada aluno, mas uma intervenção de uma aluna aqui identificada como Maria muda esse quadro, já que ela, ao explicar a situação da mulher em seu país, acaba por promover uma modificação na dinâmica da discussão. Enquanto a professora mantém a estratégia de repetir ou parafrasear todas as informações dadas pelos alunos, de modo a poder corrigir eventuais inadequações e dar aos alunos o crédito de sua participação – processo conhecido como revozeamento1, os alunos vão encaminhar a discussão no sentido de uma disputa pessoal: como dois dos alunos são irmãos (Maria e Paulo), as falas de Maria começam a gerar uma situação de possível agressividade, devidamente controlada pela professora. Notou-se na fala da professora uma prosódia característica do discurso pedagógico. Ela empregou entonações bastante específicas para marcar as frases interrogativas, e falou muitas vezes escandindo as sílabas, de modo a tornar sua pronúncia absolutamente compreensível para os alunos. Como esse efeito ocorreu em todas as suas intervenções, optou-se por não marcar a escansão, registrando-se apenas os momentos em que ela dava uma ênfase ainda maior a essa separação. Nessa aula, o ponto mais interessante a ser observado é o movimento de identidades que ocorre por parte dos alunos. A professora mantém-se durante toda a seqüência em uma posição característica de sua função institucional, envolvida 1 No item 7.1 apresentamos e analisamos essa técnica. 27 nas atividades de animadora e de mantenedora da conversação. Os alunos, por sua vez, transitam entre várias identidades – aquela oriunda de sua função naquela situação (aluno) cede espaço à de cidadão de um país e à de indivíduo. As relações sociais preexistentes serão colocadas em jogo, assim como as imagens de si, interferindo decisivamente nos rumos tomados na conversação. 28 2. Considerações de ordem teórica Neste capítulo indicam-se elementos básicos empregados no trabalho. Inicialmente, será apresentada sucintamente a corrente teórica a que se filia este trabalho. A seguir, serão elucidados conceitos-chave que serão empregados posteriormente na análise dos dados. 2.1. Filiação teórica O presente trabalho se filia teoricamente à sociolingüística interacional, valendo-se de princípios da etnometodologia. Fortemente ancorada na pesquisa qualitativa empírica e interpretativa, a sociolingüística interacional propõe o estudo da língua na interação social (...) As análises que caracterizam essa tradição são necessariamente uma interpretação ex post facto dos fenômenos (lingüísticos, não-verbais, sociais, entre outros) que co-operam na construção do evento comunicativo. (RIBEIRO e GARCEZ, 2002: 8) O presente trabalho se inscreve dentro da proposta de análise da interação. Um dos ramos da sociolingüística, a análise da interação consiste na observação não apenas de aspectos verbais de um dado encontro social, mas de sua correlação com aspectos não-verbais (entre eles a proxêmica) que interferem na negociação dos sentidos. Segundo Bronckart, 29 A expressão interacionismo social designa uma posição epistemológica geral, na qual podem ser reconhecidas diversas correntes da filosofia e das ciências humanas. Mesmo com a especificidade dos questionamentos disciplinares particulares e com as variantes de ênfase teórica ou de orientação metodológica, essas correntes têm em comum o fato de aderir à tese de que as propriedades específicas das condutas humanas são o resultado de um processo histórico de socialização, possibilitado especialmente pela emergência e pelo desenvolvimento dos instrumentos semióticos. (BRONCKART, 1991:21) Bronckart situa a linguagem como prática fundamental da conduta e do desenvolvimento humano. Em suas palavras: “as práticas de linguagem situadas (quer dizer, os textos-discursos) são os instrumentos maiores do desenvolvimento humano, não somente sob o ângulo dos conhecimentos e dos saberes, mas, sobretudo, sob o das capacidades de agir e da identidade das pessoas”. (BRONCKART, 2006) O objetivo da pesquisa na linha da sociolingüística interacional é descobrir “o que está acontecendo aqui e agora nesta situação de uso da linguagem” (RIBEIRO e GARCEZ, 2002:7). Essa frase sublinha dois aspectos da sociolingüística. Em primeiro lugar, trata-se de lidar com dados de uso da língua, coletados a partir de situações de interação entre indivíduos. Em segundo lugar, existe a preocupação do pesquisador em identificar as características daquilo que efetivamente se passa no momento. Isso significa identificar as forças sociais e discursivas que agem naquela situação em especial. É o que os autores explicam: uma análise da organização do discurso e da interação social demonstra a complexidade inerente a qualquer tipo de encontro face a face, pois, na condição de participantes, estamos a todo momento introduzindo ou sustentando mensagens que organizam o encontro social, mensagens essas que orientam a conduta dos participantes e atribuem significado à atividade em desenvolvimento ao mesmo tempo que ratificam ou contestam os significados atribuídos pelos demais participantes. (RIBEIRO e GARCEZ, 2002:7) 30 A análise da interação pressupõe a observação minuciosa de aspectos verbais e não-verbais de uma dada relação social mediada pela linguagem. Seu objetivo não é prever, mas entender o que ocorre a cada passo da interação. Tannen e Wallat explicam: Quando as pessoas estão na presença umas das outras, todos os seus comportamentos verbais e não-verbais são fontes potenciais de comunicação, e suas ações e intenções de significados podem ser entendidas somente em relação ao contexto imediato, incluindo o que o antecede e o que pode sucedê-lo. Logo, a interação só pode ser entendida em contexto específico. (TANNEN e WALLAT, 2002:186) 2.2. Conversa e situação social O material básico com que lida o sociolingüista interacional é a conversa. Ataliba Castilho (1998) explica que a conversa é uma atividade lingüística básica, que integra as práticas diárias de qualquer cidadão, independentemente de seu nível sócio-cultural. Ela pode ser reconhecida como o intercurso verbal durante o qual dois ou mais participantes se alternam, discorrendo livremente sobre tópicos propiciados pela vida cotidiana, fora de ambientes institucionais. Conversa, para aquele pesquisador, é, portanto, uma atividade que não está presa a padrões institucionalmente marcados, daí servir como termo de comparação quando se pretende analisar interações socialmente mais marcadas, que ocorrem em situações mais formais – sejam entrevistas na televisão, discussões em órgãos de defesa do consumidor, ou ainda, como é o caso deste trabalho, as relações em sala de aula. Goffman insere a conversa no contexto da situação social. Ele define a situação social como um ambiente que proporciona possibilidades mútuas de monitoramento, qualquer lugar em que um indivíduo se encontra acessível aos sentidos nus de todos os outros que estão presentes, e para quem os outros indivíduos são acessíveis de forma semelhante. De acordo com essa definição, uma situação social emerge a qualquer momento em que dois ou mais indivíduos se encontram na presença 31 imediata um do outro e dura até que a penúltimapessoa tenha se retirado. (GOFFMAN, 2002:17) Segundo ele, ao participarem de uma situação social, os indivíduos agem de acordo com uma determinada imagem, definida quer a partir das características institucionais da situação, quer a partir do que apresentam sobre si mesmos e do que os outros participantes da interação estabelecem como sendo seu papel naquele momento, naquele lugar. Essa imagem é externalizada por um conjunto de sinais ou elementos pertencentes a diferentes ordens: o que se fala (ou pelo que se cala), pelo que se faz, pelo modo como alguém se movimenta, pelas suas expressões faciais. Portanto, o indivíduo desempenha papéis que variam conforme a situação social em que se encontra. Esses papéis constituem o que Goffman chama de fachadas pessoais: um conjunto de traços entre aqueles que uma pessoa efetivamente possui e que ela mobiliza em determinada situação porque são os que ela crê que se coadunam com o ambiente. Há pontos dessa fachada que são menos sensíveis a mudança. Elementos como a idade, a aparência física e o sexo tendem a ser menos mutáveis que outros, tais como os distintivos de função ou categoria (uso de uniformes, por exemplo) e os padrões de linguagem. Outros, porém, serão altamente influenciados pelo contexto imediato em que se encontram os participantes. Uma determinada fachada social tende a se tornar institucionalizada em termos das expectativas estereotipadas às quais dá lugar e tende a receber um sentido e uma estabilidade à parte das tarefas específicas que no momento são realizadas. (GOFFMAN, 1992: 34) Na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la (...) como uma cerimônia, um rejuvenescimento e afirmação expressivos dos valores morais da comunidade. (...) O mundo, na verdade, é uma reunião. (id. ib.: 41) Uma conversa seria, então, para esse autor, um processo complexo de negociação de significados criados a partir da posição assumida por cada participante na interação. Assim, 32 a fala é socialmente organizada, não apenas em termos de quem fala para quem em que língua, mas também como um pequeno sistema de ações face a face que são mutuamente ratificadas e ritualmente governadas, em suma, um encontro social. (GOFFMAN, 2002:19) 2.3. Enquadres Goffman mostra que o significado das ações sociais – entre as quais se destaca a conversa – é definido em função dos enquadres que organizam e governam esses eventos. Os enquadres são “macro-representações sociais expressas na organização das interações” (Martins, 2005). Segundo Tannen e Wallat, a noção interativa de enquadre se refere à definição do que está acontecendo em uma interação, sem a qual nenhuma elocução (ou movimento ou gesto) poderia ser interpretado. (...) Para compreender qualquer elocução, um ouvinte (e um falante) deve saber dentro de qual enquadre ela foi composta. (TANNEN e WALLAT, 2002:188) O enquadre é uma estrutura dinâmica, sujeita a modificações provenientes da negociação de sentido entre os participantes da interação. Cada enquadre é identificado por pistas lingüísticas e paralingüís ticas, e sua definição está condicionada tanto ao conhecimento compartilhado pelos participantes em relação ao contexto em que estão inseridos quanto aos objetivos de cada participante naquele momento específico. A noção de enquadre interacional presente no estudo de Tannen e Wallat (1987) reflete a noção de atividade de fala, que é onde o falante sinaliza mudanças nas relações interpessoais através de traços contextuais (Gumperz, 1982), princípios de organização comportamental que servem para que os participantes saibam interpretar que atividade está ocorrendo e como devem se comportar ou interagir para serem entendidos (Ribeiro, 1994). As aulas deste estudo serão analisadas sob dois tipos de enquadres interacionais: os enquadres institucionais, que dizem respeito às atividades voltadas ao objetivo central da interação em contexto escolar; e os enquadres pessoais, que correspondem aos tópicos pessoais ou experiências que os participantes compartilham entre si favorecendo um 33 relacionamento de natureza não institucional. Pretende-se mostrar, neste estudo, como se dá a interdependência entre esses enquadres. 2.4. Enquadres e alinhamentos Para a análise da interação em sala de aula, utilizamos os conceitos de Goffman (1998) referentes aos papéis que falantes e ouvintes podem assumir em uma dada situação social, bem como aos alinhamentos projetados pelos interlocutores. Ao utilizar esses conceitos, pretendemos focalizar as “estruturas de participação”, já que elas estão intimamente associadas ao processo dinâmico de construção de significados pelos participantes (Goffman, 1967). Enquanto os enquadres são, nas situações sociais, as cenas das quais participam falantes e ouvintes, os alinhamentos podem ser entendidos como os movimentos feitos pelos participantes durante essas cenas, de modo a se posicionarem frente às condições que se lhes apresentam naquele momento. Segundo Goffman (1992:70), o footing representa o alinhamento, o porte, a postura, a posição/o posicionamento, a projeção do ‘eu’/a projeção pessoal do participante, de um participante na sua relação com o outro, consigo próprio e com o discurso em construção. A estrutura de participação envolve os participantes da interação (falante, ouvinte ratificado e, no caso das entrevistas, ouvinte não ratificado ou expectadores), isto é, diz respeito às diversas maneiras como eles se inter- relacionam. Para criar essa estrutura, Schiffrin baseia-se em Goffman (1981), apresentando uma distinção entre a estrutura de participação e o formato da produção, ou seja, entre os papéis dos participantes durante um evento discursivo e o alinhamento adotado para a situação de representatividade. O formato de produção só pode ser explicado se atentarmos para a função dos encaixamentos na fala (mudanças de entonação ou qualidade de voz) produzidos pelo falante quando, por exemplo, lê algo em voz alta, recita um texto ou fala por outro, ou seja, através das palavras do outro. Nesse caso, o participante deixa de ser um falante no sentido característico da palavra e torna-se um animador: fala o discurso, mas não é o seu autor, nem seu protagonista. Verificamos, portanto, que o formato de produção evidencia como os participantes se relacionam com o que é dito ou feito, isto é, a 34 sua posição diante de seus turnos, atos de fala e enunciados. (Fávero, Andrade e Aquino, 1998) Na observação da interação é necessário atentar para as marcas deixadas pelas operações discursivas, imprescindíveis para que os participantes produzam inferências, as contextualizem e, assim, interpretem o que está acontecendo na interação. Gumperz (1998) chama a isso pistas de contextualização. Elas incluem aspectos lingüísticos, de natureza lexical ou sintática, ou paralingüísticos, que podem ser de caráter prosódico, como o tempo da fala, a acentuação e a altura da voz, o ritmo, a hesitação, risos, entre outros. Nos dados, observamos que os diferentes alinhamentos assumidos pelos participantes foram cruciais para lidar com os eventos relativos à relação entre identidades (assumidas ou atribuídas). 2.5. Aquisição e aprendizagem A palavra aquisição é usada por diversas correntes lingüísticas com significados nem sempre iguais. Aquisição pode ser, segundo Almeida Filho e Lombello, a construção progressiva de um sistema que vai se configurando na direção do sistema da língua-alvo através da formulação e testagem de hipóteses. (ALMEIDA FILHO eLOMBELLO, 1989:44) Krashen distingue assim aquisição de aprendizagem: a aquisição é um processo subconsciente de construção criativa usado por crianças e adultos ao adquirirem a primeira e segunda línguas. A aquisição é natural e por isso muito se assemelha à maneira pela qual a criança adquire a primeira língua, enfatizando-se a necessidade de comunicação e não a forma lingüística. A aprendizagem de uma língua, por outro lado, é um processo consciente através do qual regras são assimiladas e observadas. (KRASHEN, 1982:10) Neste trabalho, aquisição será considerada como o processo parcialmente inconsciente, não obrigatoriamente formal, através do qual se consegue adquirir certa habilidade ou determinado conhecimento. Aprendizagem será, por sua vez, 35 considerada o processo formal de estudo que leva o aluno a conseguir essa habilidade ou conhecimento. Os alunos que formam o público-alvo desta pesquisa passam ao mesmo tempo pelos processos de aquisição e de aprendizagem da língua portuguesa. Del’Isolla, tratando do ensino de português para alunos estrangeiros no Brasil, explica que o objetivo mais geral (...) independentemente da abordagem adotada, é propiciar ao aprendiz o conhecimento dessa língua para fins de comunicação principalmente pelo fato de o mesmo encontrar-se em contexto de imersão: ele está exposto à língua no país que a utiliza enquanto código comunicativo. Assim, como o português é o meio de instrução e interação pessoal, dentro e fora de sala de aula, será considerado a segunda língua do aluno. (DEL’ISOLLA, 1997: 100) Ou seja, ao mesmo tempo em que o aluno está vivendo em um ambiente no qual a língua de comunicação dominante é o português, o que constitui uma situação adequada à aquisição da língua, freqüenta um curso regular de português, no qual há reflexão sistemática sobre aspectos dessa língua, o que constitui situação de aprendizagem. Forma-se, assim, uma condição específica que configurará formas diferentes de contato com a língua, as quais podem variar de indivíduo para indivíduo conforme, entre outros fatores, sua inserção em maior ou menor grau no ambiente em que convive, seu grau de interesse em aprender a língua, seu contato maior ou menor com falantes de sua língua materna. Para efeito deste trabalho, empregaremos a expressão ensino de língua estrangeira para nos referirmos às situações aqui analisadas. Tal nomenclatura coincide com a que, de maneira geral, é empregada nesses casos e evita uma distinção algo problemática entre ensino de língua estrangeira e ensino de segunda língua. Ademais essa distinção não teria efeito prático algum sobre as análises aqui apresentadas. 36 2.6. Face Goffman (1967) afirma que cada indivíduo está imbuído de uma face, ou seja, de um valor social positivo que requisita para si quando em interação face-a-face com outros indivíduos. A interação e a troca não colocam simplesmente o indivíduo em contato com outros modelos identitários (...) todo indivíduo faz, de um modo mais explícito ou menos, um julgamento sobre a identidade do outro e é objeto, por sua vez, de julgamento análogo. Essa dinâmica pode afetar profundamente os personagens na interação e provocar alteração de identidades. (SEMPRINI, 1999:104) A face pode ser identificada como o valor social que alguém reivindica para si. Todo ser social tem duas faces: a positiva e a negativa. A face negativa se refere aos territórios, às reservas pessoais e aos direitos do indivíduo, ou seja, à sua liberdade de ação. É o desejo de não ser impedido em suas ações; assim, a preservação da face negativa implica a não-imposição do outro. A face positiva, por sua vez, representa a auto-imagem definida ou personalidade do indivíduo, incluindo o desejo de aprovação dessa auto-imagem pelos interlocutores. Goffman explica que em toda situação social existe sempre a necessidade de haver um acordo quanto à definição geral da situação pelos participantes. Os participantes, em conjunto, contribuem para uma única definição geral da situação, que implica não tanto num acordo real sobre o que existe, mas, antes, num acordo real quanto às pretensões de qual pessoa, referentes a quais questões, serão acatadas. Haverá também um acordo real quanto à conveniência de se evitar um conflito aberto de definições da situação. Referir-me-ei a este nível de acordo como um “consenso operacional”. (GOFFMAN, 1992 :19) Quando esse acordo deixa de funcionar, ocorre uma ameaça à face daquele participante cuja definição da situação é questionada. Os atos de ameaça à face consistem em situações nas quais se coloca em xeque a situação de outro participante de uma interação. Tanto se pode ameaçar a face negativa do outro (em atos que violam o direito ao território e à intimidade, por exemplo) quanto se pode 37 ameaçar a face positiva (críticas, sarcasmo são violações desse tipo). É o que explica Kerbrat-Orecchioni: Atos que ameaçam a face negativa do receptor: as violações territoriais de natureza não-verbal são numerosas (...) mas as ameaças territoriais podem também ser de natureza verbal: é isso que ocorre nas chamadas perguntas “indiscretas”; e no conjunto dos atos que são, em alguma medida, inoportunos ou diretivos, como ordem, a interpelação, a proibição ou o conselho. (...) Atos que ameaçam a face positiva do receptor: são todos aqueles que colocam em risco o narcisismo do outro, como a crítica, a refutação, a reprovação, o insulto e a injúria, a chacota e o sarcasmo. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006:79) Kerbrat chama a atenção para uma outra característica da interação, com a qual os participantes procuram equilibrar a constante possibilidade de ameaça à face. Trata- se dos trabalhos de “face want” ou preservação das faces. Por um lado, portanto, os atos efetuados de ambas as partes ao longo da interação são potencialmente ameaçadores para os interactantes. Mas, por outro lado, eles devem obedecer ao comando supremo: Uns e outros, sejam cuidadosos, Porque a perda da face é uma falha simbólica que tentamos evitar, na medida do possível, a nós mesmos e aos outros. À noção de face sobrepõe-se não somente a noção de FTA, mas também a de face want ou o desejo de preservação das faces – sendo essas últimas, ao mesmo tempo e contraditoriamente, o alvo de ameaças permanentes e o objeto de desejo de preservação. (KERBRAT-ORECCHIONI, 2006: 80) 38 3. O espaço interacional da sala de aula Neste capítulo nosso objetivo é apresentar as características da sala de aula, mostrando como esse contexto estabelece uma hierarquia de posições entre os participantes da interação pedagógica. Inicialmente mostraremos as características dessa interação, tal como se apresentam nas representações de professores e alunos. A seguir, tratamos das estruturas de participação na sala de aula, ressaltando o contrato entre professores e alunos e os modelos de participação aí encontrados. 3.1. O que é uma sala de aula? A sala de aula pode ser pensada sob vários pontos de vista: como espaço físico, como locus de aprendizagem, como espaço de convivência. É um espaço físico estabelecido, de modo geral, dentro de um ambiente institucional característico (a escola). Sua estrutura padrão compreende uma ordenação espacial que separa professor e alunos. O primeiro assume uma posição central, na qual ao mesmo tempo fica visível e tem possibilidade de ver todos os demais participantes. Os alunos, por sua vez, têm um espaço padronizado, proporcionalmente menor, ordenado de modo tal que todos estejam voltados para a frente,
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