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Anemia Falciforme e Complicações – Mara Zamae, Medicina 145 UFMG Protocolo FHEMIG; Protocolo de atendimento de eventos agudos da AF, 2005; Livro Emergências Pediátricas Introdução A Doença Falciforme é autossômica recessiva, e constitui grupo de hemoglobinopatias em que há hemoglobina S, acompanhada ou não de outra hemoglobina variante. O tipo mais comum é a homozigose (Hb SS) = anemia falciforme. As manifestações são mais brandas nos pacientes heterozigotos (Hb SC). As principais síndromes falciformes observadas no Brasil são: Anemia Falciforme Hb SS Hemoglobinopatia SC Hb SC HbS-beta talassemia HbS e beta talassemia, ambas em heterozigose Traço Falciforme Heterozigose para HbS (não incluída nas síndromes falciformes) Pacientes com traço falciforme não apresentam crises vaso-oclusivas e tem expectativa de vida normal. Epidemiologia. A prevalência na população geral é 2-6%, enquanto o traço falciforme está presente em 4%. A frequência é de 1:1000 nascidos vivos, aproximadamente. Devido à gravidade da doença, ela tem elevada letalidade. 78,6% dos óbitos devidos à doença falciforme ocorreram até os 29 anos de idade, e 37,5% concentraram- se nos menores de nove anos. A sobrevida média é de 42 anos para o homem e 48 anos para a mulher. Principais complicações: Ósseas Infarto ósseo e necrose (dactilite, necrose da cabeça do fêmur e do úmero) Osteomielite Infarto da medula óssea Artrite séptica Dimunição da massa óssea Embolia pulmonar gordurosa Síndrome compartimental orbital Cardíacas Arritmias, por aumento de QT Disfunção diastólica Hipertensão pulmonar e cor pulmonale Hemocromatose (politransfundidos) Aumento do débito cardíaco Infarto do miocárdio Aumento das câmaras cardíacas Oftalmológicas Retinopatia proliferativas e não-proliferativas Oclusão arterial da retina, descolamento da retina e hemorragias Perda da visão Hepatobiliares Isquemia hepática aguda Colestase Crise de sequestro hepático Hemocromatose Infecção pelo vírus da hepatite C Toxicidade das drogas – hydroxyuréia Colelitíase por cálculos de bilirrubina (70%). Renais Enurese por hipostenúria Hematúria assintomática (infartos de medula renal) Glomeruloesclerose focal segmentar Proteinúria e hipertensão Infarto renal, necrose papilar e cólica renal Diabetes insipidusnefrogênicoepoliuria Dermatológicas e musculares Úlceras de membros inferiores Síndrome miofascial Fisiopatologia Anemia falciforme (AF) e uma doença autossômica recessiva causada pela substituição do aminoácido ácido glutâmico por valina na posição seis da cadeia de beta-globina. Essa hemoglobina anormal (alfa 2 beta S 2) forma polímeros em pressões baixas de oxigênio, o que lesa a membrana dos eritrócitos, levando a um aspecto em foice e consequente anemia hemolítica crônica. Principais achados: Hemólise crônica: as hemácias falciformes tem deformabilidade reduzida e ficam impactadas no baço, onde são destruídas. Crises vaso-oclusivas: A falcização depende de: Concentração de HbS. Há correlação direta entre concentração de HbS e falcização o Paciente com traço falciforme é assintomático Concentração de outras hemoglobinopatias o Hb fetal e A2 reduzem falcização o HbC e HbD polimerizam com HbS, mas com menor repercussão clínica Desoxigenação Estase vascular o HbS desoxigenada aumenta 10x a viscosidade vascular Temperatura. Baixa temperatura retarda polimerização, mas causa vasoconstrição Acidose. ↓pH = ↓afinidade por O2 e aumenta desoxigenação e polimerização HCM (concentração de Hb corpuscular). Meio EC hiperosmolar aumenta desidratação e polimerização Infecções. São associadas a desidratação, hipóxia, desoxigenação, estase vascular, aumento de efeitos inflamatórios e pró coagulantes entoliais Baixo fluxo na microvasculatura Numero de PMN. Diretamente relacionado com isquemia tecidual, mortalidade, STA e infarto hemorrágico Pela elevada concentração de Hb fetal, crianças costumam ser assintomáticas no primeiro ano de vida. Desoxigenação das hemácias com HbS Polimerização, perda de solubidade, aumento de viscosidade, inciialmente em algumas moléculas de Hb Lesões permanentes na membrana das hemácias após cilcos de polimerização/ despolimerização Falcização: alta concentração de Hb, ↑Ca, ↓K, depleção de ATP Adesão das hemácias falciformes ao endotélio e aos leucócitos Inflamação crônica e isquemia por obstrução pelas hemácias (pouco complacentes) causando dano endotelial Uso de Hidroxiureia e Penicilina V Hidroxiurieia O fármaco hidroxiureia atua na inibição da enzima ribonucleotídeo redutase. Leva a aumento da produção de HbF, da hidratação do glóbulo vermelho e da taxa hemoglobínica, além de diminuição da hemólise, maior produção de óxido nítrico e diminuição da expressão de moléculas de adesão. Até o momento, a HU é considerada a terapia farmacológica mais eficaz para a DF. Os pacientes deverão preencher todos os critérios a seguir para iniciar uso: 1. Eletroforese de hemoglobina compatível com o diagnóstico de DF: Hb SS, SC, SD ou SBetaTal 2. Idade igual ou maior que 2 anos (ou a partir de 9 meses segundo critérios específicos) 3. Possibilidade de comparecer às revisões periódicas 4. Beta HCG sérico negativo para mulheres em idade reprodutiva 5. Ter apresentado pelo menos uma das complicações abaixo nos últimos 12 meses: a. três ou mais episódios de crises vasoclusivas com necessidade de atendimento médico; b. dois episódios de síndrome torácica aguda c. um episódio de priapismo grave ou priapismo recorrente d. necrose isquêmica óssea e. insuficiência renal; quaisquer outras situações em que haja comprovação de lesão crônica de órgão A terapia com HU apresenta risco de toxicidade hematológica, necessitando de monitorização rigorosa das contagens de células sanguíneas. Além disso, o potencial carcinogênico e teratogênico do fármaco deve ser considerado. Dose: 15mg/kg/dia, por via oral, em dose única (usar o peso real ou o ideal, aquele que for menor). Aumentar em 5 mg/kg/dia a cada 4 semanas até atingir a dose máxima de 35 mg/kg/dia ou a ocorrência de toxicidade hematológica ou outros efeitos adversos graves. Penicilina V Deve ser usada em todos os pacientes com diagnóstico de AF, até completarem 5 anos de idade. Pacientes com doença falciforme são frequentemente acometidos por asplenia funcional (ausência da função normal do baço), com consequente aumento da susceptibilidade a infecções por bactérias com parede celular. O Streptococcus pneumoniae é responsável por 70% das infecções nessa população. Essa profilaxia antibiótica deve ser iniciada a partir do segundo ou terceiro mês de idade, com penicilina sintética V oral. É ativa contra estafilococos (exceto cepas produtoras de penicilinase), estreptococos (grupos A, C, G, H, L e M) e pneumococos. Na impossibilidade de uso por via oral, a penicilina G injetável (penicilina G benzatina intramuscular) deve ser considerada. No caso de crianças alérgicas à penicilina, utiliza-se eritromicina por via oral, na dose de 20 mg/kg/dia, dividida em duas administrações diárias. Esquema profilático preconizado desde o diagnóstico até os 5 anos de idade (via oral): Crianças até 3 anos: 125 mg (equivalente a 200.000 UI ou 2,5 mL) a cada 12 horas (250 mg/dia) Crianças de 3 a 5 anos: 250 mg (equivalente a 400.000 UI ou 5 mL) a cada 12 horas (500 mg/dia) O tratamento profilático com penicilina V deve ser mantido desde o diagnóstico até os 5 anos de idade. Crises Álgicas Causa mais frequente de morbidade recorrente relacionada com admissão hospitalar na AF. Podem terou não fatores desencadeantes: Mudanças abruptas de temperatura Desidratação Infecção Menstruação Estresse físico ou emocional Trauma Hipóxia Febre Consumo de álcool A dor dura de poucas horas até semanas. Cerca de metade dos casos de crise vasoclusiva e dor apresenta edema e aumento da sensibilidade da região afetada, febre, taquipneia, hipertensão, náuseas, vômitos. A dor é mais frequente em tórax, extremidades e costas. Importante avaliar o tempo de início da dor, a intensidade, a duração, a localização e a frequência. Investigar fatores desencadeantes, tratamento utilizado no domicílio, data da ultima crise e hospitalização prévia. Determinar se a crise álgica atual é semelhante às anteriores. Caso contrário, considerar dx diferenciais. No exame físico, avaliar sinais vitais (PA, pulso, FR, temperatura, oximetria de pulso). Avaliar local da dor, edema, mobilidade articular, icterícia por hemólise. Exames complementares Radiografia de tórax Hemograma com reticulócitos Hemocultura Função renal Eletrólitos Tratamento Deve incluir, simultaneamente, analgesia fixa e hidratação oral ou venosa! Pode-se associar fisioterapia motora e respiratória, especialmente na vigência de dor no tronco (risco aumentado de síndrome torácica aguda). A analgesia deve ser mantida por pelo menos 24-48hrs após a remissão completa da dor, podendo-se retornar para via oral após amenização do quadro. Opioide usado por até 7 dias pode ser descontinuado de forma abrupta, se por mais de 7 dias, deve ser feita retirada gradual, para evitar sintomas de abstinência. Evitar uso de meperidina (efeitos colaterais frequentes)! Resumindo: Analgesia fixa Hidratação venosa e/ou oral Fisioterapia motora e respiratória Outros: o Monitorização de dados vitais o Calor local o Massagens o Apoio psicológico Obs.: Tratamento domiciliar. Importante ensinar o paciente e a família a reconhecer a crise álgica e, quando ela começar, iniciar hidratação oral (1,5-2x as necessidades hídricas para a idade) e analgesia fixa (pode-se alternar dipirona e ibuprofeno, a cada 3hrs). Hidratação. Preferencialmente realizada com SG/SF na proporção 4:1, de maneira a evitar aumento da osmolaridade plasmática, que acarreta desidratação celular e falcização. Síndrome Torácica Aguda Forma mais comum de complicação pulmonar no paciente com AF! Segunda causa de hospitalizações e principal causa de morte em adultos. Mais comum e mais grave no adulto do que na criança, e pode levar a morte por complicações neurológicas, renais, falência de múltiplos órgãos. Mortalidade de 4-9%. Suspeita de STA = internação! Fisiopatologia Etiologia. 40% dos pacientes tem etiologia definida. Eventos embólicos a partir de medula óssea Infecção Infarto pulmonar. Causa mais provável em menores de 9 anos. Causa desconhecida Apresentação clínica e diagnóstico São necessários pelo menos dois dos critérios abaixo para diagnóstico: Crise vasoclusiva Isquemia e necrose de medula óssea // trombose e isquemia in situ Tromboembolia a partir de medula óssea e gordura // Vasoclusão de microvasculaura pulmonar Pode ser quadro agudo e grave ou ocorrer em 48-72hrs após a crise álgica. Manifestações neurológicas são frequentes e a recorrência pode levar a hipertensão pulmonar. DD deve ser feito com embolia pulmonar, SCA e pneumonia. Exames complementares Hemograma PCR Hemoculturas Gasometria arterial Radiografia de tórax ou TC (pesquisa de quadros embólicos) Tratamento Deve incluir: Monitorização de dados vitais Controle adequado e imediato da dor o Analgésico e/ou opioide e/ou AINE Hidratação com cristaloide o 50mL/kg/dia o Cuidado para não sobrecarregar os pacientes e causar congestão pulmonar Oxigênio suplementar se SaO2 <92% ou vigência de esforço intenso para manter saturação Antibióticoterapia para todos os pacientes (Protocolo Fhemig). Manter por 10 dias: o Ampicilina IV 200mg/kg/dia, dividida em 4 doses para casos leves ou o Ceftriaxone IV 70mg/kg/dia, dividido em 2 doses + claritromicina 15mg/kg/dia IV, dividido em 2 doses para casos graves Broncodilatadores (2 adrenérgico) na presença de sibilos a cada 4 ou 6hrs Hemotransfusão simples para casos leves (queda maior que 2g/dL na Hb basal) e exossanguíneotransfusão para casos moderados a graves ou se Hb <5g/dL. Não ultrapassar Hb >10g/dL. Avaliar EST em caso de hematócrito elevado também, para reduzir a viscosidade sanguínea (hipóxia com Htc >25%) Profilaxia para TVP com heparina Fisioterapia respiratória + mobilização no leito a cada 2hrs Considerar ambulatorialmente hidroxiureia em todos os pacientes com STA Manifestações neurológicas Qualquer evento neurológico agudo secundário à oclusão arterial ou hemorrágico com manifestações neurológicas nas últimas 24 horas: hemiparesias, disfasias, distúrbio de marcha e alterações do nível de consciência. As complicações neurológicas incluem: AVEi. Forma mais frequente!! Acomete até 10% dos portadores de DF antes dos 20 anos de idade. Fatores de risco: o AIT o Hb basal baixa o Hipertensão arterial o STA recente o Velocidade de fluxo sanguíneo cerebral elevada, detectada por doppler transcraniano AVEh. 50% dos AVE em adultos. Fatores de rico: o Valores baixos de Hb o Leucocitose Alterações cognitivas Alterações comportamentais Infecções Os pacientes com AF são mais susceptíveis a infecções por organismos encapsulados, especialmente Streptococcus pneumoniae e H. influenzae tipo B, devido à ausência de função normal do baço. A apresentação clínica de pneumonia pode ser tosse, dispneia, dor torácica, febre, taquipneia, leucocitose e pode evoluir para STA, com DD difícil. Desvio para a esquerda no leucograma sugere infecção bacteriana. Importante: saber a idade do paciente, o tipo de Hb patia, a situação vacinal e o uso profilático ou não de penicilina! Além disso, fazer exame físico minucioso. Exames laboratoriais Hemograma PCR Hemoculturas, duas amostras Urina rotina e urocultura Radiografia de tórax, PA e perfil Punção lombar, se meningissmo Outros exames guiados pela apresentação clínica Tratamento Critérios para internação: Caso sem localização de foco infeccioso Menor que 3 anos de idade Suspeita de PNM ou meningite Caso grave Tratamento deve envolver: Antibióticoterapia empírica guiada pelo provável foco, por 7-10 dias. Avaliar mudança da medicação na ausência de melhora clínica Suporte clínico: hidratação, oxigênio complementar, monitorização de dados vitais Pacientes tratados ambulatorialmente devem ser reavaliados em 24-48hrs! FHEMIG: Manifestações hematológicas Crise aplásica É a parada transitória e autolimitada da eritropoiese, com reduções bruscas da hemoglobina(2-3g/dL do basal) e dos precursores eritroides na medula óssea, sendo geralmente precedida por febre. Associada a infecção por parvovírus B19 em 70-100% dos casos. Outros agentes: S pneumoniae, salmonela, outros estreptococcus, Epstein barr. Quadro clínico: fadiga, dispneia, palidez, mal estar, febre, IVAS, sintomas gastrintestinais e reticulopenia (<1% de reticulócitos ou contagem absoluta <10000/uL). A maioria dos quadros regride espontaneamente. Tratamento Hidratação Oferecer oxigênio suplementar Considerar transfusão de concentrado de hemácias nos sintomáticos Tratar condições associadas Sequestro esplênico agudo Ocorre em 20%dos pacientes, 1/3 anos dos 2 anos de idade. Apresenta quatro características: Redução abrupta de pelo menos 2g/dL em relação ao basal de Hb, indicando aprisionamento de eritrócitos no baço, podendo evoluir com choque hipovolêmico Esplenomegalia geralmente dolorosa Trombocitopenia Reticulocitose Quadro clínico: mal estar súbito, taquicardia, palidez, taquipneia, dor e distensão abd, esplenomegalia dolorosa, reticulocitose importante (o que diferencia da anemia aplásica). Geralmente o primeiro episódio ocorre entre 3 meses e cinco anos, podendo estar associado a infecções. Exames: hemograma, contagem de reticulócitos. Espero queda de Hb e, as vezes, de plaqueta, com reticulocitose. Tratamento. Monitorização Hidratação com SF para correção de volemia Transfusão de concentrado de hemácias deleucotizadas, 10mL/kg Priapismo Priapismo é ereção involuntária, sustentada e dolorosa, por vasoclusão, que obstrui a drenagem venosa do pênis. Quando dura mais de 3hrs é uma emergência médica e requer avaliação urológica, pelo risco de causar impotência. Se não tratado. Aos 20 anos, 89% dos pacientes do sexo masculino com AF já apresentaram pelo menos um episódio de priapismo. Exames: hemograma e ionograma. Tratamento Analgesia Hidratação via oral (se sintomas por menos de 2-3hrs) ou venosa (se sintomas prolongados). Usar SG/SF 4:1, 1,5x a necessidade diária basal Avaliar hemotransfusão Solicitar avaliação urológica
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