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PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 1 I N T E R D I S C I P L I N A R Novos tempos da leitura e da escrita Fernando Moraes Fonseca Jr Este texto discute as transformações na leitura e na escrita que resultam da disseminação de telas e meios digitais, novas práticas sociais e gêneros discursivos. Numa perspectiva histórica e com fundamentação psicossocial e neurolinguística, descreve a evolução da leitura e da escrita, bem como as relações dessa tecnologia intelectual com a constituição da racionalidade e do desenvolvimento humanos. Analisa de modo crítico as vinculações desse fenômeno com a educação e a escola e os possíveis desdobramentos pedagógicos do cenário que já se insinua. “Aqueles que são considerados não leitores leem, mas leem coisa diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema não é tanto o de considerar como não‑leituras estas leituras selvagens que se ligam a objetos escritos de fraca legitimidade cultural, mas é o de tentar apoiar‑se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores pela escola, mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. É preciso utilizar aquilo que a norma escolar rejeita como um suporte para dar acesso à leitura na sua plenitude, isto é, ao encontro de textos densos e mais capazes de transformar a visão do mundo, as maneiras de sentir e de pensar.” CHARTIER, p.103 Das pedras às telas: reconfigurando o cérebro E m A aventura do livro: do leitor ao navegador, Ro‑ ger Chartier descreve as tensões suscitadas por mudanças no contexto histórico da leitura e da escrita, seus meios e gêneros discursivos. “A multipli‑ cação dos livros é garantida, primeiro, pela invenção de Gutenberg, segundo, no século XIX, pela industrializa‑ ção da atividade gráfica e, enfim, no século XX, pela multiplicação das tiragens graças aos livros de bolso. Diante dessa multiplicação, há aqueles que estão em condições de dominá‑la porque sua cultura e os ins‑ trumentos que ela construiu permitem orientar‑se racionalmente nesse mundo prolífico, e aqueles que, completamente desarmados diante da profusão, fazem as más escolhas e são como que asfixiados ou afogados pela produção escrita. Em suma, eles leem aquilo que jamais deveriam ter lido [...] O livro de bolso deu uma nova forma a estas publicações, precárias, pouco cuida‑ das e pouco custosas que, desde o fim do século XVI, eram destinadas àqueles e àquelas que não podiam ou não queriam entrar nas livrarias. [...] ‘Sem qualidade’, estas obras eram condenadas ao desdém dos letrados e ao desaparecimento. [...] Aqueles que o menospreza‑ vam ou temiam expressavam nostalgia por uma forma nobre de livro e receavam a perda do controle sobre a cultura escrita.” (CHARTIER, p.110). É palpável o sentimento de ambiguidade que novos suportes, gêneros e modos de ler promoveram ao longo da história. Desde a Grécia Antiga surgem resistências NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 2 de todo tipo, como narrou Platão, em Fédon, a despeito da opinião de Sócrates, o eminente defensor da tradição oral que se opunha à escrita por acreditar que ela enfra‑ quecia o pensamento e comprometia o desenvolvimen‑ to do conhecimento verdadeiro. A ampliação do acesso ao livro por meio da introdução de novas tecnologias, assim como o surgimento de gêneros discursivos tidos como “sem qualidade”, e, especialmente, a dissemina‑ ção da escrita e da leitura a novas esferas de circulação geraram apreensões e incertezas no passado do mesmo modo como neste momento, em que subsiste um sen‑ timento de profunda ambiguidade com as novas formas de leitura impulsionadas pelo mundo digital. A leitura e a escrita baseadas em um alfabeto consti‑ tuem um assombro da inventividade humana que con‑ seguiu reduzir tudo o que se pode pensar e falar a siste‑ mas com algumas poucas dezenas de símbolos. “Desde os primeiros artistas que desenharam em Lascaux1 as cabeças muito realistas de um touro até os escribas do Sinai, que reduziram esta cabeça a uns poucos traços, enfim, até os escrivães fenícios e gregos que extraíram dali a forma da letra A, a escrita evoluiu em direção a um jogo de caracteres simplificados, suscetíveis de serem imediatamente reconhecidos pelos neurônios especia‑ lizados do córtex occipitotemporal ventral esquerdo2. [...] Com o alfabeto, a escrita, enfim, se democratizou. Não era mais necessário investir anos de aprendizagem para pertencer à casta invejada dos escribas. Qualquer pessoa motivada poderia aprender a ler e a escrever a vintena de caracteres do alfabeto.” (DEHAENE, p.210). O alfabeto mais antigo talvez tenha sido aquele criado há cerca de 5.500 anos pelos sumérios na Meso‑ potâmia, onde hoje encontra‑se o Iraque. Desde então escrevemos em pedra, barro, madeira, pano, couro, pa‑ piro, pergaminho e diversos outros suportes até chegar‑ mos ao papel e recentemente às telas. Inicialmente de uso restrito para anotações sobre inventários de bens, impostos e escrituras sagradas, seguiu‑se uma dissemi‑ nação planetária, e hoje, a despeito das dificuldades de erradicarmos o analfabetismo, chegamos a 84,1% da população mundial maior de 15 anos sabendo ler e es‑ crever, segundo dados divulgados pela Unesco em seu UIS FACT SHEET – Adult And Youth Literacy de setem‑ bro 2013. Talvez ainda não seja possível comemorar, mas sem dúvida é um feito memorável, um dos mais consistentes projetos da humanidade. Ao propagar o uso de símbolos na comunicação, a lei‑ tura e a escrita deram um passo além no desenvolvimen‑ to das linguagens naturais e, independente do suporte utilizado, constituem uma tecnologia fundamental para o desenvolvimento humano, pois modelam importantes funções cerebrais, como o próprio pensamento superior. Popper afirmava que, “se um homem lê um livro, a coisa decisiva não é que ele o influencia nas suas opiniões e fornece‑lhe informações. São todos epifenômenos irre‑ levantes. O que interessa é tão‑somente a mudança em sua estrutura cerebral que afeta a sua disposição para agir”. (POPPER, p.104). No exato momento em que você lê a palavra cachorro, uma série de correntes elétricas percorreu os neurônios em seu cérebro, desencadeando uma química complexa que resulta em imagens, sons e sensações. É espantoso reconhecer o que podem causar simples borrões de tinta – com padrões socialmente negociados – em um suporte adequado. Pesquisadores da linguagem como Vygotsky e Eche‑ verría há muito nos ajudaram a entender a profundida‑ de desse fenômeno na constituição humana. Segundo Echeverría, para quem a racionalidade humana é decor‑ rência do fato de que “somos seres linguísticos vivendo em um mundo linguístico” (ECHEVERRÍA, p.54), a cria‑ ção do alfabeto acarretou a “transformação de nossas categorias mentais, na maneira como o ser humano pensa sobre ele mesmo e sobre o mundo”. (ECHEVER‑ RÍA, p.20). Vygotsky (1989) descreveu a linguagem como um sistema simbólico que medeia as relações de cada um de nós com o que conhecemos, o que significa 1 Complexo de cavernas no sul da França em cujas paredes foram encontradas pinturas rupestres representando especialmente animais, produzidas entre 15 mil e 17 mil anos atrás. 2 Área cerebral localizada na parte anterior esquerda da cabeça, principal responsável pelo processo da leitura. No exato momento em que você lê a palavra cachorro, uma série de correntes elétricas percorreu os neurônios em seu cérebro, desencadeando uma química complexa que resulta em imagens, sons e sensações. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 3 que é por meio da linguagem que apreendemos o mun‑ do que nos cerca e desenvolvemos formas deexprimir nossas ideias e sentimentos. A linguagem e o conheci‑ mento têm uma relação de mútua dependência: quanto mais complexo um, mais complexo precisa ser o outro. Desenvolvemos nossas linguagens para poder conceber o que antes não seríamos capazes, e, ao mesmo tempo, quanto mais conhecemos, mais nossas linguagens se sofisticam. A linguagem é uma tecnologia intelectual que nos permite pensar e comunicar melhor. O domí‑ nio de uma linguagem constitui um complexo exercício de hipóteses sobre sua estrutura e funcionamento, o que induz formas analíticas de pensar e de solucionar problemas. Estudos recentes das neurociências vêm demons‑ trando como esses fenômenos se desenvolvem no nível cerebral. O avanço dos exames de imagem, como a ressonância magnética, e o desenvolvimento de no‑ vas técnicas de investigação, como a implantação de eletrodos, têm permitido observar o cérebro em fun‑ cionamento enquanto se lê ou escreve. Foi a partir das pesquisas de Steve Peterson e seus colegas, em 2008, que pudemos desenhar um mapa das atividades ce‑ rebrais envolvidas na leitura. Após uma triagem inicial da imagem realizada nas regiões occipitais primárias, “a região occipitotemporal esquerda, que se ativa no curso da leitura, reúne informações visuais e nos per‑ mite reconhecer as palavras ao aparecerem na retina” (DEHAENE, p.103) em cerca de 180 milissegundos, o que ocorre independentemente da língua e do alfabeto usados, quer leia‑se de cima para baixo, como no japo‑ nês, da esquerda para a direita, como no português, ou da direita para a esquerda, como no árabe. Mas essas não são as únicas áreas do cérebro envolvidas na leitura. Observa‑se que os estímulos elétricos se espalham por diversas regiões da massa encefálica. Essas pesquisas revelam que a leitura e a escrita ampliaram o que nossa espécie pode conhecer não apenas por tornar acessíveis e manejáveis as informações sobre os conhecimentos acumulados, mas, sobretudo, por modelar nosso cére‑ bro para que seja capaz de um processamento comple‑ xo e sofisticado. Sabemos, hoje, que a leitura e a escrita acionam áreas e processos fisiológicos cerebrais que uma vez desenvolvidos nos tornam aptos a realizar muito mais que ler e escrever. Nicholas Carr (2011), entre outros pensadores, defende a ideia de que toda tecnologia tem uma ética. O desenvolvimento e a aplicação de uma tecnologia na vida dos indivíduos e sociedades apresentam efeitos práticos que podem ser percebidos de imediato, no entanto, somente no transcorrer das gerações se revelam os efeitos mais importantes, que resultam na transformação de nossa visão de mundo. Essa é a ética da tecnologia, seu potencial em mudar nossa cosmovisão, o modo como compreendemos o nosso lugar. Assim como ocorreu com o fogo, a roda, o relógio, o calendário, a luneta, o microscópio, a carto‑ grafia e tantas outras tecnologias, a escrita e a leitura mudaram nossa forma de pensar e nossa visão de mun‑ do, e seria inconcebível viver sem elas, ao menos não neste mundo que construímos. Parece consenso que a história da leitura e da escrita pode ser dividida em antes e depois da invenção de Gu‑ tenberg, que viabilizou a impressão rápida e em grandes volumes de um mesmo original, impulsionando a disse‑ minação da leitura em uma escala sem precedentes. “A composição e a impressão da Bíblia de Gutenberg con‑ sumiram mais de dois anos. Mas enquanto um escriba teria levado três anos para produzir uma única cópia, Gutenberg fez 180 (150 em papel e 30 em velino, o que teria exigido 5 mil peles de vitelo para a produção de pergaminho suficiente).” (LYONS, p. 57). A prensa de tipos móveis permitiu o surgimento de gerações e gerações de aficionados pela leitura e pelo livro, o que passou a ser um projeto intencionalmente perseguido por quase todas as sociedades em todo o mundo. As práticas sociais desencadeadas pela tecnologia do livro impresso e suas linguagens tiveram inúmeros desdobramentos, mas talvez o mais fantástico tenha Pesquisas revelam que a leitura e a escrita ampliaram o que nossa espécie pode conhecer não apenas por tornar acessíveis e manejáveis as informações sobre os conhecimentos acumulados, mas, sobretudo, por modelar nosso cérebro para que seja capaz de um processamento complexo e sofisticado. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 4 sido tornarem‑se a pedra fundamental que viabilizou a construção do sistema educacional que temos hoje: a escola como espaço público, baseada na razão, no sujeito (aluno e professor) e no livro. Somente o de‑ senvolvimento da impressão em larga escala a partir da criação da prensa de tipos móveis de Gutenberg no século XV tornou possível aceitar o até então inal‑ cançável desafio de uma educação que extrapolasse o domínio privado das famílias abastadas, ancorada nos preceptores, voltando‑se para a maioria da população e, por fim, universalizando o ensino. Foi Lutero, um monge agostiniano do século XV, quem mostrou o caminho ao implementar um plano nacional de alfabetização na Alemanha a partir da Bíblia, conferindo uma dimensão à nova tecnologia de impressão provavelmente muito além daquela prevista pelo próprio Gutenberg. Leitura e escrita tradicionais e leitura e escrita emergentes A leitura de textos impressos tem longa tradição e marca nossa cultura de um modo profundo. A sociedade letrada, filha da escola com o livro, criou o iluminismo, a revolução industrial, a revolução burguesa, a revolução tecnológica e tantos outros avanços que delinearam nossa sociedade, e não há dúvida de que essa trajetória representou um salto sem precedentes na construção do projeto humanista de um mundo melhor, ainda que haja tanto a melhorar. O livro impresso teve um papel essencial nesse percurso, como raras outras tecnologias tiveram a oportunidade de ter, contribuindo de modo decisivo para a explosão da produção e da disseminação do conhecimento vivenciadas nos últimos quase trezen‑ tos anos. Foi com o livro em papel que se libertou, mais de cinco mil anos depois, todo o potencial transforma‑ dor dessa fabulosa criação que foi o alfabeto. Nem sempre foi assim, mas, hoje, encontramos mui‑ tos propósitos para a leitura: ler para saber o que se passa, para tornar familiar o que antes era desconheci‑ do, ler como quem busca um sentimento perdido, para encontrar e pelo encontro, ler para aplacar a dor, para rir, para distrair e passar o tempo, para se envolver com novos mundos e fantasias, para conhecer novas formas de vidas, ou “ler” como os bebês, apenas para se co‑ municar e trocar afetos com sua mãe... Ler pelo prazer da experiência estética, ética, intelectual, espiritual. A essas e outras motivações para ler correspondem múl‑ tiplas formas de leitura: ler em sobrevoo, ligeiro, desli‑ zando nas ideias ou ler como quem mergulha nas águas densas de um oceano profundo, buscando o máximo da narrativa, sem perder o fôlego, ler indo e voltando, titu‑ beante, ler em devaneio, fruindo imagens que surgem sem cessar, ler sem ler ou mesmo ler e reler como se aquilo nunca houvesse lido. O leitor concentrado que se funde à narrativa vê sumir de suas mãos as páginas do livro, a poltrona onde se senta e tudo o mais a sua volta para cair em uma solidão amiga repleta de cone‑ xões, descobertas e de emoções, no aconchego de seu mundo intrapsíquico, em uma experiência visceral. Mas ler também é compartilhar com aquele que escreveu um conjunto de códigos e referências que adquirem significados específicos do contexto da prática social que o configurou, e por isso mesmo é também uma experiência interpsíquica. A leitura acende, graveto a graveto, a fogueira montada pelo escritor. Por suas inúmeras motivações e modos, a leitura de textos é um fenômeno complexo, vinculadoa múlti‑ plas práticas sociais, em contextos amplamente varia‑ dos. Todo esse repertório foi construído essencialmente nas interações humanas em sociedade e com o im‑ presso, ainda que a leitura de textos em outros meios exista desde os primórdios da humanidade. Mas foi por meio do papel impresso que a leitura se disseminou e permitiu que cada vez mais pessoas tivessem acesso simultâneo a um mesmo texto e a muitos textos, num contínuo processo de aprimoramento da leitura e tam‑ bém da escrita. A leitura no papel impresso tem a sua própria sensorialidade: o toque, o cheiro, a mobilização de certas capacidades do aparato sensório‑motor e do aparato cognitivo, a cadência e o ritmo da leitura. O cérebro é mobilizado de um modo característico. Há, ainda, uma temporalidade específica desse contexto, em geral com a interposição de longos intervalos entre a produção do texto e a fruição da leitura, o que acaba definindo sua articulação com determinadas práticas sociais e inviabilizando outras. Por suas inúmeras motivações e modos, a leitura de textos é um fenômeno complexo, vinculado a múltiplas práticas sociais, em contextos amplamente variados. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 5 Desde a chegada do cinema mudo no apagar das luzes do século XIX, pouco a pouco passamos a ler em um novo suporte: as telas. A partir dos anos 1960, as telas se disseminaram por toda parte, na forma de aparelhos de televisão, outdoors luminosos, quadros de avisos, painéis nos automóveis, conso‑ les de games, celulares e tantos outros formatos dia a dia mais diversificados, cada qual vinculado a um novo ou renovado contexto de leitura e a uma nova ou renovada prática social. Ler, pouco a pouco, foi se tornando um hábito além do impresso e da poltrona. Com a propagação dos computadores domésticos nos anos 1990 e dos e‑readers, tablets e smartphones no final da década passada, as telas passaram a ser uma alternativa real para leituras anteriormente restritas ao papel. Primeiro porque a microeletrônica barateou o acesso às telas, como previu a Lei de Moore em 1965, dobrando a capacidade dos chips a cada dezoito meses pelo mesmo custo, oferecendo telas cada vez com mais resolução e conforto para os olhos e por isso mesmo incorporadas a inúmeros dispositivos; segundo porque diversos gêneros discursivos antes restritos ao papel passaram a circular também em telas, como mensagens pessoais, memorandos e documentos de trabalho, notícias e tantos outros; depois porque surgi‑ ram novas linguagens híbridas, baseadas em hiperlinks e multimídia, o que trouxe inusitadas possibilidades comunicativas, e, por fim, mas não menos importante, porque uma nova geração cresceu familiarizada com esse suporte, incorporando novos gestos e modelos mentais perante a leitura e a escrita, e, o mais impor‑ tante, criando e recriando práticas sociais em torno dos novos e renovados gêneros. Considerando a abrangência e a intensidade desse fenômeno, é evidente que novas relações com a leitura e a produção de textos têm surgido desde que pas‑ samos a conviver mais amiúde com o digital. Se o repertório de leitura e escrita se desenvolveu e con‑ solidou por séculos no suporte impresso, agora esse repertório se renova com o apoio dos meios digitais, ampliando ainda mais a importância do desenvolvi‑ mento das habilidades conexas para que se evitem no‑ vas formas de iletrismo. Impresso e digital compõem diferentes ambientes de leitura e de produção de textos, cada qual com características específicas, indu‑ zindo determinados comportamentos, propósitos de leitura, formas de ler e práticas sociais. Para Chartier, “[...] a relação da leitura com o texto depende, é cla‑ ro, do texto lido, mas depende também do leitor, de suas competências e práticas, e da forma na qual ele encontra o texto lido ou ouvido. Existe aí uma trilo‑ gia absolutamente indissociável se nos interessamos pelo processo de produção do sentido. O texto implica significações que cada leitor constrói a partir de seus próprios códigos de leitura, quando ele recebe ou se apropria desse texto de forma determinada”. (CHAR‑ TIER, p. 152). O ambiente de leitura é um componente essencial na experiência do leitor. Cada aspecto do ambiente configura e induz uma forma de experiência, e o suporte utilizado é, certamente, um dos elementos determinantes, como descrito por Bakhtin (1997) em seus estudos. A comunicação instantânea praticada em aplicativos como o WhatsApp, por exemplo, só se sustenta plenamente na iminência da simultaneidade entre emissão e recepção da mensagem, e só se viabi‑ liza sob o suporte tecnológico específico. Se no papel o texto é inerte, nos meios digitais pode mudar, mover, piscar, desaparecer, alterar o tamanho, a cor, pode vir acompanhado de uma profusão de ima‑ gens, sons, assim como vínculos, links e mesmo com‑ portamentos. O ambiente de leitura constituído pelos novos suportes digitais e suas linguagens promovem a sobreposição sucessiva dos planos de leitura como janelas e abas, tornando a experiência menos linear, mais multimodal quanto às linguagens e polinuclear quanto aos interesses e motivações. Já não lemos apenas grandes massas de textos, mas, com muito mais frequência, imagens, animações, vídeos, áudios, infográficos, entre outras formas. Também é raro nos restringirmos a apenas um único foco; mais comum Ler, pouco a pouco, foi se tornando um hábito além do impresso e da poltrona. Com a propagação dos computadores domésticos nos anos 1990 e dos e‑readers, tablets e smartphones no final da década passada, as telas passaram a ser uma alternativa real para leituras anteriormente restritas ao papel. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 6 é a leitura a partir de um campo de interesse que se sustenta em uma rede de conexões, aproveitando a usabilidade do meio digital, mais confortável para uma leitura menos linear ancorada na facilidade dos links imediatos. Diferentemente dos meios anteriores, como o papel, os dispositivos digitais são ativos e mantêm atividades paralelas enquanto o leitor lê, observando, registrando, armazenando, gerando big data, realizando data mining, analytics, computando e cruzando dados em algoritmos intrincados que classificam e coligam ações, identificam padrões e pouco a pouco aprendem a antecipar desejos e necessidades para conectar inte‑ resses ao contexto da leitura ou a contextos conexos, propondo conteúdos e caminhos de exploração. Por isso, esses dispositivos oferecem, avisam e perguntam sobrepondo diálogos, e, se o leitor desejar ou se deixar levar, controlam sua agenda, a disponibilidade de um amigo para conversar, uma mensagem que acaba de chegar e, certamente, o surgimento de novas informa‑ ções de interesse. O sistema subjacente ao dispositivo em muitos casos se converte em um ente que participa das decisões antes restritas tão‑somente ao leitor. A leitura tende, assim, a sair da esfera estrita do diálogo leitor‑autor, privado, para uma esfera pública envolven‑ do o sistema e, possivelmente, uma comunidade de leitores que em seus caminhos de exploração compar‑ tilharão os significados sob a mediação dos sistemas. Se no papel a ponta dos dedos servia apenas para na‑ vegar nas páginas com o texto inerte, agora, nos meios digitais, poderá realizar inúmeras novas interações na leitura e pela leitura. Por tudo isso, a leitura nos dispo‑ sitivos digitais impulsiona uma experiência multiface‑ tada, promovendo novas habilidades leitoras e desesti‑ mulando outras. Como consequência, surgem também novas formas de escrever. Como disse Paulo Freire (1986), a leitura e a escrita não vivem uma sem a outra. Nessesubs‑ trato se desenvolvem linguagens, com novas formas de articulação, lincadas, mixadas, híbridas, rizomáticas, minimalistas, em contextos comunicativos que muitas vezes colocam quase simultaneamente a produção do texto e sua leitura, disseminando novas formas de inte‑ ração e, por isso mesmo, criando novas linguagens, gê‑ neros discursivos e práticas sociais. Em algumas dessas novas práticas sociais a leitura parece querer antecipar a escrita: a disponibilidade para a leitura antecede a dis‑ ponibilidade para a escrita. Esse curto lapso de tempo concedido à escrita afeta o texto de muitas formas: vc em vez de você, blz em vez de beleza, add em vez de adicionar, mto em vez de muito, vlw em vez de valeu :( em vez de estou triste, : / em vez de estou indeciso, um twiter em vez de uma página inteira, um microconto em vez de um conto. Tendo o (pouco) tempo como uma das chaves para interpretar as novas formas de produção de texto e de leitura, é possível compreender por que a concisão tor‑ na‑se quase uma obsessão nos meios digitais, resultan‑ do em novas estruturas do texto e formas discursivas e na supervalorização do signo, de modo a transmitir grande carga de informação com o menor esforço. A língua se adapta à evolução que se faz de seu uso nos contextos sociais que surgem e por isso é viva, como defendeu Baktin. O novo contexto afeta, também, é claro, o teor das mensagens, que podem então se organizar em camadas com sucessivos níveis de apro‑ fundamento e complexidade. Esse modo de escrever já contamina inclusive a escrita no papel: jornais e revis‑ tas, por exemplo, vêm sistematicamente diminuindo o número de páginas, aumentando o corpo das letras e estruturando o texto de modo a permitir múltiplos níveis de leitura – chapéu, título, olho, lead, intertítulos, legendas etc. Na escrita para o papel, a luta é garantir a leitura da próxima página, um marco natural do suporte que gera um pequeno respiro no ritmo do leitor; na escrita em Nesse substrato se desenvolvem linguagens, com novas formas de articulação, lincadas, mixadas, híbridas, rizomáticas, minimalistas, em contextos comunicativos que muitas vezes colocam quase simultaneamente a produção do texto e sua leitura, disseminando novas formas de interação e, por isso mesmo, criando novas linguagens, gêneros discursivos e práticas sociais. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 7 meio digital, há inúmeros novos marcos, como o rolar de tela, o avançar o texto, o link, outras janelas abertas em paralelo onde se desenvolvem processos que dis‑ putam a atenção de quem lê, além das intervenções explícitas do sistema, quer seja porque a bateria está acabando, quer seja porque um backup está iniciando ou diversas outras intercorrências. Por tudo isso, nos suportes digitais, o desafio é evitar o clique a qualquer instante, jogando a janela com o texto para trás, para o fim da fila, muitas ve‑ zes soterrada por uma profusão de outras janelas em meio a um mundo de telas. Essa luta contra o clique é velha conhecida pela indústria da televisão desde que a invenção do controle remoto “criou” o zapping: o clique do controle remoto e agora o clique do mouse colocaram nas mãos do leitor uma espécie de mesa de edição onde pode autorar de forma única, singular, os componentes e o ritmo de sua própria experiência de leitura. Se a luta contra o clique parece perdida, ao menos o texto ganhou um aliado ativo capaz de gerar novas trilhas narrativas que o remixam como em um gigantesco caleidoscópio. Depois da escrita e junto com a leitura emergem com mais força as funções de edição do leitor‑editor nos meios digitais. A escolha do encadeamento narrativo é, agora, um campo de interação entre o autor‑editor e o leitor‑edi‑ tor. Em alguns casos, como em livros didáticos e livros de referência, por exemplo, o novo ambiente digital permite critérios ao mesmo tempo mais enxutos de edição – uma vez que é oferecida, ao leitor‑editor, a possibilidade de com mais facilidade reestruturar a nar‑ rativa a partir dos componentes que julgar necessário – e mais generosos, com larga quantidade de conteúdos considerados, a priori, complementares. A escola e o alargamento da leitura e da escrita L eitura e escrita são centrais no projeto de educa‑ ção conduzido pelas escolas, centros de formação profissional e universidades. Nem sempre foi as‑ sim. Tornaram‑se centrais somente com a dissemina‑ ção dos livros viabilizada pela inovação da tecnologia de impressão. Em pouco tempo, a leitura e a escrita tor‑ naram‑se indispensáveis para as metodologias de ensi‑ no e para a aprendizagem sistemática organizada pela escola. Para que se lê e escreve, o que se lê e escreve, como se lê e escreve e os suportes utilizados compõem os elementos essenciais desse aprendizado: o desenvol‑ vimento das habilidades e competências relacionadas à leitura e à escrita constitui a espinha dorsal do currículo da educação básica. Sem uma sólida formação dessas habilidades e competências, os alunos não irão muito longe em sua vida acadêmica e, na maioria das vezes, em suas vidas em geral. Por isso, qualquer alteração nesses componentes tem implicações significativas para a organização e execução dos programas educa‑ cionais, especialmente nesse segmento. Assim como ocorreu com a educação escolar entre os séculos XV e XVII com o advento da tecnologia da impressão, há grande probabilidade de que a atual orga‑ nização das escolas, bem como sua estrutura e funcio‑ namento, seja afetada pelos novos horizontes da leitura e da escrita que decorrem das tecnologias digitais. Não foi mero acaso o início de uma das etapas mais férteis da história humana, com avanços notáveis em todos os campos, ter‑se dado há séculos justamente após a criação de Gutenberg ter viabilizado a refundação da escola. Talvez tenhamos a felicidade de estar vivendo a aurora de um novo ciclo como aquele, ainda que a es‑ cola atual seja uma instituição muito mais sólida, com raízes profundas e práticas mais bem consolidadas do que era naquele passado. No âmbito mais específico da educação básica, o alargamento do horizonte da leitura e da escrita que vivemos de modo mais intenso a partir da última virada de milênio tem potencial para gerar transfor‑ A escola de educação básica já está lidando, proativamente ou não, com a transição de um ambiente social que tinha nos impressos sua principal fonte de informação para uma nova realidade ancorada em meios digitais, onde são modeladas e disseminadas novas formas de leitura e escrita, suas linguagens, gêneros discursivos e práticas sociais. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 8 mações estruturais na escola, até porque esse alar‑ gamento é decorrência de mudanças mais amplas que instalam um novo ambiente informacional de escala planetária e capilaridade extrema, com acesso quase universal aos dispositivos e redes mundiais, em qualquer lugar e a qualquer hora. Esse contexto configura um novo substrato epistemológico sobre o qual a escola realiza seu trabalho, o que por certo nos motiva a realizar ajustes metodológicos em nossas abordagens. A escola de educação básica já está lidando, proa‑ tivamente ou não, com a transição de um ambiente social que tinha nos impressos sua principal fonte de informação para uma nova realidade ancorada em meios digitais, onde são modeladas e disseminadas novas formas de leitura e escrita, suas linguagens, gê‑ neros discursivos e práticas sociais. Um dos reflexos dessa transformação do substrato epistemológico é a translação do papel do professor, antes essencialmente centro de informação, agora sujeito imbuído de múlti‑ plas e mais complexasfunções. Torna‑se indispensável realizar uma educação que considere as novas relações que surgem com o texto, seja na produção ou na fruição, seja a partir da diver‑ sificação dos meios utilizados e dos contextos sociais em que tais práticas adquirem sentido. O trabalho da escola perante a leitura e a escrita ampliadas aos novos meios busca evitar que se desenvolvam sujeitos que se‑ jam “asfixiados ou afogados pela profusão da escrita”, na expressão de Chartier (1999), tornando‑os sujeitos incapazes de interagir adequadamente no âmbito de práticas sociais essenciais para sua inserção nas múlti‑ plas esferas de circulação que potencializam seu pleno desenvolvimento. Não nos referimos, evidentemente, às habilidades de manipulação das interfaces, o que se desenvolve muito facilmente até mesmo por meio de esquemas rudimentares de aprendizagem, como a simples imitação, tentativa e erro, mas sim ao desen‑ volvimento e apropriação de um novo repertório de habilidades e competências orientadas para a leitura profunda e crítica do mundo, na perspectiva propos‑ ta por Freire (1986). A leitura e a escrita passam a ser realizadas também, e em alguns contextos prioritaria‑ mente, em suportes ativos que não apenas trazem a informação, mas constituem canais de comunicação e ainda se prestam a inúmeros outros fins. A tecnologia intelectual mais sofisticada que a humanidade desen‑ volveu, a leitura e a escrita, agora se associa e articula com os mais intelectuais de todos os dispositivos que já foram inventados, baseados em processamento digi‑ tal, o que abre um novo universo de possibilidades para a educação e, certamente, muitos desafios. Obstáculos à leitura e escrita em meios digitais na escola Entretanto, há uma ampla gama de argumentos para protelar a escolarização da leitura e da escrita em meios digitais, a começar pelas dificuldades materiais de aces‑ so aos dispositivos digitais, complexos e caros, pela difi‑ culdade de adaptar a leitura às superfícies que emitem luz, passando por eventuais desequilíbrios na relação entre alunos e professores, diante da geralmente ale‑ gada maior facilidade dos primeiros perante os meios digitais, seguindo pelo questionamento da própria qua‑ lidade dos textos disponíveis nos meios digitais ou dos tipos de leituras que esses meios induzem, rápidas e superficiais. Todos esses argumentos os temos ouvido com frequência em diversos contextos institucionais. Faz jus, portanto, uma análise mais detida. Os entraves materiais, como a dificuldade de acesso aos meios digitais, os custos, a complexidade das inter‑ faces e a dificuldade de se adaptar às superfícies que emitem luz e podem causar desconforto ao se ler, não são maiores do que os históricos entraves enfrentados no processo de disseminação da escrita e da leitura em impressos, a grande maioria já superada. Pois foi assim, por exemplo, com a dificuldade de ler nos volumen, Os entraves materiais, como a dificuldade de acesso aos meios digitais, os custos, a complexidade das interfaces e a dificuldade de se adaptar às superfícies que emitem luz e podem causar desconforto ao se ler, não são maiores do que os históricos entraves enfrentados no processo de disseminação da escrita e da leitura em impressos, a grande maioria já superada. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 9 como eram chamados pelos romanos os grossos rolos de papiro, antes da invenção do códex, que inovou ao costurar as páginas em uma lombada ao invés de colar umas nas outras para depois formar o rolo. Ou então a dificuldade de se costurar o papiro, que rasgava fa‑ cilmente, até que se passou a usar o pergaminho, feito de pele de animal e por isso mais resistente à costura. Ou, ainda, a dificuldade de se obter papel suficiente para a demanda ampliada pela prensa de Gutenberg, até que uma tecnologia de produção a partir da polpa da madeira fosse criada em 1860, ou então o gargalo de produção provocado pela morosa composição das li‑ nhas de texto com os tipos móveis, até que o desenvol‑ vimento do linotipo em 1884 por Ottmar Mergenthaler multiplicasse a velocidade por dez. Os entraves materiais do momento de fato dificul‑ tam as pretensões de expandir o trabalho de leitura e escrita em meios digitais, mas, como a história já nos ensinou, é preciso considerar que esses obstáculos se‑ rão e já estão sendo superados. A questão, portanto, é prevermos o tempo que será necessário até que haja solução técnica acessível e adequada em cada caso. O custo, por exemplo, se ainda não é confortável em todos os contextos, ao menos vem caindo progressi‑ vamente, como já previa a Lei de Moore: em janeiro de 2010, o precursor dos tablets, o iPAD 1, custava U$ 499 nos EUA; em 2015, o iPAD Mini 2 pode custar U$ 269, quase metade do valor em cinco anos e com diversas vantagens técnicas, que não é o caso descrever. Talvez ainda seja caro para os padrões brasileiros, mas temos boas perspectivas como os números mostram. Conec‑ tar um equipamento à Internet já foi um desafio para poucos, no entanto, hoje, até mesmo os televisores podem ser conectados seguindo instruções simples e com alguns poucos cliques. A verdade é que está cada vez mais fácil lidar com as interfaces, que já respondem até mesmo a comandos de voz, e tudo indica que se tornarão ainda mais amigáveis ano a ano. Em relação ao conforto da leitura em telas, há muito investimento da indústria nessa questão, e algumas tecnologias já em uso são realmente muito confortáveis, mesmo para leitores assíduos em papel e para longos períodos de leitura, como é o caso dos displays com tecnologias do tipo e‑ink. Especificamente em relação aos livros digitais, a grande maioria dos ecossistemas que articulam o aplicativo de leitura e o livro digital propriamente dito ainda causa desconforto e embaraços. As soluções dis‑ poníveis exigem certa dedicação do leitor, que, muitas vezes, se confunde com a operação de baixar o apli‑ cativo de leitura, acessar e utilizar os serviços de uma livraria ou biblioteca virtual, realizar os procedimentos de liberação e baixar o livro criptografado, para só então poder abrir e finalmente ler. No entanto, para aqueles que fazem uso de tais sistemas há alguns anos, é muito evidente que importantes melhorias têm sido implantadas conforme os designers de interfaces e engenheiros de sistemas analisam as experiências dos usuários. Por fim, não há quem não tenha tido dificul‑ dades com a conexão às redes, especialmente fora das grandes cidades. A configuração das redes locais e a de Wi‑Fi também precisam ser melhoradas, especial‑ mente nas escolas, que, na grande maioria dos casos, não têm esses dispositivos instalados ou têm soluções adequadas para o uso doméstico, mas não para o uso intensivo que uma escola é capaz de fazer. Por tudo isso, é preciso considerar todos esses argumentos, mas temos que admitir que não podemos deixar de prosse‑ guir com o projeto de incorporar as novas dimensões da leitura e da escrita ao núcleo do trabalho pedagó‑ gico das escolas. No que concerne ao “desequilíbrio” na relação entre professores e alunos, diz‑se que “as crianças que estão agora no ensino fundamental são crianças que nas‑ ceram com os computadores instalados na sociedade [...]. São crianças que, só por esse motivo, apresentam uma diferença radical em relação às suas professoras (quase todas atacadas por esse vírus do computer illite‑ racy)”. (FERREIRO, p.42). Precisamos sopesar, antes de outras considerações, em que medida essa alegação de “desequilíbrio“ encobre a crença de que na cena Precisamos sopesar, antes de outras considerações, em que medida essa alegação de “desequilíbrio“ encobre a crença de que na cena pedagógica o professor é o protagonista e para ter preservadoesse papel deve garantir a hegemonia do saber e o máximo controle das ações NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 10 pedagógica o professor é o protagonista e para ter preservado esse papel deve garantir a hegemonia do saber e o máximo controle das ações (MAGALHÃES e COSTA, 1988; FREITAG e SANTOS, 2012). Trata‑se, sem dúvida, do desdobramento de uma questão de fundo, relacionada à matriz de pensamento hegemônica sobre as relações de poder no processo educativo e, em par‑ ticular, no processo educativo escolar, cuja função últi‑ ma é disciplinar os corpos para a consumação de uma forma de poder própria de uma “sociedade disciplinar”, como designou Foucault (1984). Nessa perspectiva, a assimetria da relação professor‑aluno constitui a ma‑ nifestação prática desse projeto de sociedade. Por isso mesmo, não se trata, obviamente, de valores restritos apenas aos educadores por profissão, mas, sobretudo, à sociedade em geral. Essa cosmovisão tem sido questio‑ nada e corroída desde que perspectivas emancipadoras de educação propuseram o protagonismo dos alunos como forma de desenvolver um sujeito crítico e au‑ tônomo, sobretudo pelo compromisso ético implícito nessa abordagem. Nesse sentido, aluno e professor são igualmente sujeitos de conhecimento, cada qual com domínios próprios, que se articulam em busca do desenvolvimento mútuo. Para aqueles que concor‑ dam com esta concepção, nenhum conhecimento dos alunos pode ser considerado a priori um entrave para o estabelecimento dos vínculos e articulações neces‑ sários para o bom trabalho educativo, e, assim sendo, tampouco pode obstruir a introdução sistemática da leitura e da escrita nos meios digitais se considerarmos tal fato importante. Nesse sentido, mesmo reconhecendo que a maior parte dos alunos tem mais facilidade no entendimento das interfaces e manipulação dos dispositivos digitais do que a maior parte de seus professores, o mesmo não se pode afirmar quanto às habilidades leitoras e escritoras necessárias para o rigor do trabalho acadê‑ mico que a escola pretende que sejam desenvolvidas. Sabemos que as habilidades dos alunos na lida com o digital em geral se circunscrevem a determinadas práticas sociais e gêneros discursivos, como, por exem‑ plo, aqueles próprios dos jogos e da interlocução em redes sociais, que raramente contribuem do ponto de vista das necessidades leitoras e escritoras para o ple‑ no desenvolvimento acadêmico. Portanto, temos aqui uma excelente oportunidade de tornar as diferenças dos saberes de professores e alunos em uma experiên‑ cia simétrica de cooperação, trocas e aprendizagens mútuas, na qual cada um irá aportar habilidades e co‑ nhecimentos complementares aos do outro. Por meio dos conhecimentos já desenvolvidos por seus alunos, o professor poderá potencializar suas competências e habilidades nos meios digitais, assim como poderá contribuir para a transposição das habilidades leitoras e escritoras que o aluno já constituiu nos meios di‑ gitais para o aprimoramento acadêmico, ampliando e refinando seu repertório. Em relação à alegada má qualidade dos textos e da leitura nos meios digitais, trata‑se de argumentos que merecem análise cautelosa, pois colocam‑se no núcleo do fenômeno. Em primeiro lugar, é necessário ser mais preciso em relação ao significado dessas expressões. Vamos assumir aqui, com base no interacionismo so‑ ciodiscursivo, que um texto de má qualidade é, antes de mais nada, aquele cujo gênero não se coaduna com a prática social na qual é aplicado. É preciso, como afir‑ mou Bazerman, “[...] levar em consideração o sistema de atividades com o sistema de gêneros [...] focalizando no que as pessoas fazem e em como os textos ajudam as pessoas a fazê‑lo, em vez de focar nos textos como fins em si mesmo”. (BAZERMAN, p.34). Nessa perspectiva, aspectos como coesão, coerência, sentido, intertextuali‑ dade, nível de redundância ou concisão, abrangência ou, mesmo, compatibilidade com a norma‑padrão devem ser considerados no âmbito estrito do gênero determi‑ nado no e pelo seu contexto de uso. Dessa forma, a aná‑ lise dos aspectos formais do texto deve ser precedida da análise da adequação do gênero com a prática social. No entanto, raramente se verifica essa abordagem nas escolas. “O reconhecimento da natureza essencialmen‑ te heterogênea, variável e mutante das línguas humanas ainda não ganhou senso comum, e o imaginário linguís‑ tico que vigora na sociedade se estrutura em torno de uma noção estática de língua, sempre encarada como o modelo de ‘pureza’ e ‘correção’ cristalizado na obra dos grandes escritores e descrito‑prescrito nos compêndios [...] um texto de má qualidade é, antes de mais nada, aquele cujo gênero não se coaduna com a prática social na qual é aplicado. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 11 gramaticais normativos. Nesse conjunto de crenças, o que se entende por ‘língua’ é uma entidade homogênea, monolítica, não só exterior ao indivíduo, mas que neces‑ sita, inclusive, de ser ‘protegida’ do ‘mau uso’ ou do ‘abu‑ so’ que esse mesmo indivíduo possa vir a ‘cometer’ con‑ tra ela. A variação, quando reconhecida, é simplesmente sinônimo de ‘erro’ . [...] Espera‑se, pois, uma educação linguística que ofereça estratégias para um tratamento da variação linguística [...] que evidencie o fato de que a língua apresenta variação em todos os seus níveis [...] e que a língua está em constante transformação [...] e que a mudança não é nem para pior nem para melhor, mas que é simplesmente mudança, adequação do siste‑ ma linguístico às necessidades de interação social dos falantes, necessidades que se modificam ao longo da história.” (BAGNO, 2005). Um “blz!” no WhatsApp está adequado, mas em um texto jurídico pode não estar, pois, no primeiro caso, ao contrário do segundo, se dá em uma prática social que privilegia a instantaneidade e que se realiza em um suporte que não favorece a digitação – teclados minús‑ culos, e eventualmente em uma situação incômoda à escrita –, como escrever enquanto se anda, por exem‑ plo; por fim, e certamente o que sustenta a prática, nes‑ se contexto não haverá dificuldades em interpretar a mensagem, uma vez que todos os envolvidos esperam que ela se dê precisamente dessa forma. Não há, de acordo com essa concepção, texto que exclusivamente por sua forma ou conteúdo seja de boa ou má quali‑ dade, mas textos apropriados ou não para a interação constituída no âmbito de uma determinada atividade social. Desse modo, somos remetidos à necessidade de diferenciar textos de má qualidade de textos utilizados inadvertidamente em práticas sociais não apropriadas ao seu gênero. De todo modo, não parece que tenhamos razões fundamentadas para duvidar da qualidade dos textos em meios digitais mais do que em outros meios. Tudo indica que essa percepção se deva, ao menos em parte, ao surgimento ainda recente de novos gêneros nesses meios e à transposição de gêneros já consagrados, que, ao se expressarem nos novos meios, acabam por ter sua estrutura alterada. Ocorre que a transposição do gêne‑ ro a um novo meio acaba por constituir uma espécie de variante do gênero de referência, uma vez que o meio é um dos elementos determinantes na constituição de qualquer gênero, quer seja pelas limitações e potencia‑ lidades que apresenta como espaço de expressão, quer seja pelo que representa nas práticas sociais às quais está associado. Ao longo do processo de constituição dessa variante pode haver certo estranhamento por se esperar que se mantenham no novo meio os mes‑ mos atributos do gênero de referência, estranhamento esse que também ocorre, obviamente, com os gêneros genuinamentenovos que emergem, em geral, circuns‑ critos a esferas de circulação restritas antes de serem disseminados. Como escreveu Emília Ferreiro (p.25), as “tecnologias [digitais] exigem capacidades mais fle‑ xíveis de uso da língua escrita que as que estávamos habituados a aceitar. Novos estilos de fala e de escrita estão sendo gerados graças a esses meios”. Um bom exemplo desse fenômeno de transposição e eventualmente de estranhamento é o que vem ocor‑ rendo com os gêneros jornalísticos, ainda não total‑ mente amadurecidos nos meios digitais. Muitas vezes nos deparamos com textos informativos ou opinativos “superficiais” na Internet, se comparados a um eventual padrão da mídia impressa de boa qualidade. Essa “su‑ perficialidade” poderá ser interpretada como falta de qualidade, quando, na verdade, uma análise mais detida irá revelar que, além das evidentes diferenças que ca‑ racterizam o acesso a esse meio (diferenças do acesso ao papel), um complexo de causas socioeconômicas impulsiona novas práticas sociais associadas à escrita e à leitura de textos jornalísticos em meio digital. A busca de uma nova estrutura que incorpore al‑ gumas possibilidades inauguradas pelo novo meio no âmbito de novas práticas sociais se ancora em múlti‑ plos aspectos, como (a) a distribuição capilarizada da rede de informação – qualquer pessoa pode publicar um fato e compor uma notícia; (b) a natureza ágil do meio que resulta da quase instantaneidade entre Um “blz!” no WhatsApp está adequado, mas em um texto jurídico pode não estar, pois, no primeiro caso, ao contrário do segundo, se dá em uma prática social que privilegia a instantaneidade e que se realiza em um suporte que não favorece a digitação NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 12 a ocorrência dos fatos, a produção das informações correspondentes e a leitura – o que permite tornar a notícia um instrumento de mobilização social imedia‑ ta em resposta aos acontecimentos; (c) a necessidade de atender aos novos modelos de negócio sem destruir outros já estabelecidos – o que acarreta esforços para evitar sobreposições entre os diferentes veículos, como já ocorria entre jornal, rádio e TV, entre outras razões. Se por motivos históricos “os jornais foram particular‑ mente associados à expansão das classes comerciais urbanas educadas na Inglaterra e nos EUA nos sécu‑ los XVIII e XIX em conjunção com o surgimento dos partidos políticos” (BAZERMAN, p.116), eis que atual‑ mente as notícias (já não exatamente com as mesmas formas) são veiculadas na Internet e por meio dela vinculam‑se a novos grupos e novas práticas sociais em um novo tempo histórico. Este é um bom exemplo de como os meios, os gêneros discursivos e as práticas sociais se configuram mutuamente e constituem um todo que empresta um sentido específico ao fenôme‑ no da escrita e leitura. As diferenças intrínsecas aos meios digitais tam‑ bém cooperam para o desenvolvimento de novas formas de organização dos textos. Na longa história de desenvolvimento da escrita, pouco alterou‑se a linearidade típica das narrativas orais, o que de fato ainda é incomum na escrita, embora seja mais comum a partir do surgimento do romance e posteriormente do cinema. A escrita e a leitura como as conhecemos hoje desenvolveram‑se a partir do códex que impu‑ nha a sequência de páginas, uma após a outra. Não é de estranhar que tenhamos demorado tanto tempo para desenvolver e tornar naturais instrumentos para a quebra da linearidade, como notas de rodapé ou no final dos livros, e referências externas, mas o avan‑ ço mais significativo sem dúvida ocorreu na própria linguagem: recursos discursivos capazes de realizar recortes do tipo “enquanto isso” ou “muito tempo antes” e de nos deslocar não só de cena, mas também no tempo, para a frente e para trás, mesmo que as páginas só nos levem pouco a pouco para a frente. Por outro lado, as linguagens e gêneros discursivos de‑ senvolvidos ou adaptados a partir dos meios digitais contam com poderosos recursos para a construção de narrativas com topologias variadas. O link é um atributo “natural” desse meio, e os sistemas de nave‑ gação e leitura facilitaram uma escrita e uma leitura não lineares. Por isso, muitos dos gêneros nativos ou adaptados às mídias digitais possuem uma estrutura não linear, mais fragmentada, concisa e eventualmen‑ te simplificada que aquela utilizada pela maioria dos textos impressos. Isso não significa dizer que essas novas formas me‑ nos lineares de escrever sejam sempre mais adequadas que as formas mais lineares, mas que os recursos para a escrita se ampliaram, oferecendo novas opções a quem escreve. Contudo, a despeito dessa característica intrínseca do texto nos meios digitais, é fácil constatar que é possível encontrar uma ampla tipologia de textos nesses espaços, inclusive densos textos acadêmicos, literários e jornalísticos, considerando‑se a tendência de incorporarem pouco a pouco toda a produção de texto já realizada, além de constituírem cada vez mais a primeira frente de publicação. Torna‑se inescapável concluir, portanto, que a concisão e a simplificação observadas constituem tão‑somente uma camada dos textos disponíveis nos suportes digitais, gêneros emer‑ gentes apropriados a determinados contextos e práticas sociais que privilegiam a agilidade e a instantaneidade, muitos dos quais circulando exclusivamente nesses espaços, e, nesse sentido, é preciso reconhecer que nos‑ sos alunos precisam e devem aprender a lidar com essa nova diversidade que caracteriza os textos no suporte com o qual têm mais conexão. Em relação à leitura de má qualidade, é impor‑ tante aprofundarmos a análise, pois as consequências de uma eventual confirmação seriam extremamente impactantes para o desenvolvimento das práticas de ensino na escola. Para avançar, precisamos ser mais es‑ pecíficos, pois, como vimos, há muitos tipos de leitura, muitas formas e motivações para ler e, talvez, nem [...] a concisão e a simplificação observadas constituem tão‑somente uma camada dos textos disponíveis nos suportes digitais, gêneros emergentes apropriados a determinados contextos e práticas sociais que privilegiam a agilidade e a instantaneidade [...] NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 13 todas elas sejam igualmente impactadas nos novos meios. É claro que qualquer leitura pode ser realizada com graus variados de qualidade, que, em um nível mais elementar, seria a mera interpretação correta do sentido do texto. Ler sem “pular” palavras ou distor‑ cê‑las e compreendendo‑as, ler e assimilar os tempos verbais, identificar a estrutura do texto, sua introdução, desenvolvimento e fechamento, ler e entender as iro‑ nias, as analogias, as figuras de linguagem, identificar as intenções do autor, enfim, há muito o que aprender na leitura de todo e qualquer texto de todo e qualquer gênero discursivo. Mas vamos assumir aqui a hipótese de que a leitura de má qualidade eventualmente pro‑ movida pelos meios digitais refere‑se a alguns tipos de leitura mais do que a outros. Parece razoável supor que seriam potencialmente impactadas as leituras que exigem uma experiência concentrada, profunda e radical na interpretação de textos densos, nos quais cada frase e por vezes cada palavra precisam ser sopesadas em relação às demais, textos em que seja indispensável identificar claramen‑ te as premissas e axiomas, enumerar os argumentos, perceber as generalizações para deduzir as particulari‑ dades ou vice‑versa, induzir generalizações a partir da constatação de particularidades, reconstituir de um modo autônomo as conclusões, perfazendo o caminho lógico que as sustenta. Como em tais leiturasrara‑ mente a compreensão é imediata, é necessário ainda um esforço cognitivo extra, na verdade metacognitivo, avaliando a cada momento se o que está sendo delimi‑ tado pela leitura está razoavelmente claro ou se merece mais atenção. Por isso, textos que definem conceitos, princípios ou teses são mais exigentes do que textos jornalísticos ou mensagens de e‑mail, por exemplo. Em síntese, vamos considerar que a má qualidade da leitu‑ ra em um nível mais elementar pode tornar o sujeito disfuncional, e que em um nível mais sofisticado pode dificultar consideravelmente seu avanço acadêmico. Pelo exposto, creio que estamos de acordo que o tema da qualidade das leituras é altamente relevante para o projeto de desenvolvimento das habilidades e compe‑ tências leitoras na escola. Antes de avançar para a questão específica, convém ainda salientar que a dificuldade de desenvolver leitu‑ ras de boa qualidade não é um problema inaugurado com as telas e meios digitais, mas uma fratura exposta em nosso sistema educacional, como há muito de‑ monstram inúmeros estudos. Para nos atermos apenas a alguns dos mais aceitos indicadores fornecidos pelos testes padronizados SAEB e PISA, há tempo estão diag‑ nosticados imensos déficits na qualidade da leitura em todas as etapas de escolarização. No SAEB, que abran‑ ge toda a educação básica, o desempenho em 2013 em Língua Portuguesa no último ano do primeiro ciclo é de apenas 41,5%, muito abaixo do que seria desejá‑ vel, quadro esse agravado nos anos finais do segundo ciclo com 28,7% e ainda pior nos anos finais do ensino médio com 27,2%. Ou seja, segundo os dados cole‑ tados pelo SAEB, a qualidade da leitura piora com o passar da escolarização se considerarmos os sucessivos níveis de desempenho esperados. O PISA de 2012 de‑ monstra, com outra metodologia e em outro contexto, resultados equivalentes aos do teste nacional: a nota geral dos alunos brasileiros na avaliação de leitura foi de 410 pontos, menos do que os 412 do exame an‑ terior, o que nos colocou na 45ª posição no ranking de 65 países participantes. Como sabemos, resultados ruins nas competências e habilidades leitoras têm gra‑ ves repercussões no desempenho dos estudantes em todos os demais componentes curriculares, limitando seriamente a evolução positiva do desenvolvimento acadêmico escolar. Parece, portanto, que a crítica à má qualidade da leitura precisa ser tratada como um fenômeno amplo e que afeta não apenas os textos nos meios digitais, mas, antes, no próprio papel, o suporte no qual esse resultado foi construído. É pouco razoável supor que a leitura em meio digital contribua para a má formação dos leitores, já que, em primeiro lugar, ela é pratica‑ mente inexistente na prática pedagógica, e, depois, pelo pífio desempenho verificado, não há dúvida de que essas dificuldades de leitura estão sendo produzi‑ das por um fenômeno de ampla dimensão histórica e [...] a dificuldade de desenvolver leituras de boa qualidade não é um problema inaugurado com as telas e meios digitais, mas uma fratura exposta em nosso sistema educacional, como há muito demonstram inúmeros estudos. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 14 social que se constrói além da escola: antes de tudo, o que faz o bom leitor é o contexto no qual ele se desenvolve, não os suportes que utiliza. “Todas as pes‑ quisas coincidem num fato muito simples: a criança que esteve em contato com leitores antes de entrar na escola aprenderá mais facilmente a escrever e ler do que aquelas crianças que não tiveram contato com leitores.” (FERREIRO, p.25). Esta é a questão: a imensa herança educacional e cultural negativa que caracteri‑ za a formação do povo brasileiro, historicamente sub‑ metido a políticas educacionais de má qualidade ou sem continuidade. O esforço da escola tem sido capaz de superar essas dificuldades, mas em um ritmo e em uma escala de tempo incompatíveis com a urgência do resgate necessário. Sem mudanças de paradigmas nas estratégias de superação, muitas gerações ainda serão sacrificadas. No entanto, a despeito de que os fundamentos desse problema não tenham qualquer relação com a leitura em meios digitais, vamos analisar a seguir al‑ guns aspectos relacionados especificamente à leitura nos meios digitais e seus possíveis desdobramentos sobre a qualidade da leitura. Em nossa avaliação, al‑ gumas características podem representar obstáculos à boa leitura em meio digital: (1) o desenvolvimento de habilidades e competências específicas na manipu‑ lação de textos nas interfaces digitais; (2) o surgimen‑ to – ou reconfiguração – de gêneros discursivos com uma constituição mais pictográfica e multimídia; e (3) a fragmentação da leitura. Tais aspectos estão profun‑ damente relacionados, o que nos conduz a uma abor‑ dagem que os articule. Sabemos que o meio é um importante componente do gênero e da prática social nos quais é aplicado, e não devemos desprezar as dificuldades que impõe até que esteja assimilado. A leitura se modifica com o tem‑ po, quer seja pela evolução dos textos, quer seja pela evolução dos meios e das práticas sociais nas quais a leitura se dá. Até meados da Idade Média, por exemplo, a leitura era um exercício público, realizada em voz alta. Pouco a pouco, tornou‑se uma atividade privada, em‑ preendida em voz baixa. “Em uma famosa passagem de suas Confissões, Santo Agostinho descreve sua surpresa quando, por volta do ano 380, viu a São Ambrósio, o bispo de Milão, ler em silêncio para si mesmo. ‘Sua vista percorria a página, seu coração explorava o significado, mas sua voz guardava silêncio e não movia sua língua.’” (CARR, 2011). Fomos ensinados a usar o livro, a ler de diferentes modos, a fazer marcações na leitura, a en‑ cadeá‑las de modo a atingir determinado objetivo, a discernir os diferentes formatos de impresso e a asso‑ ciá‑los com diferentes gêneros discursivos e contextos de uso. Aprender a ler é um longo processo que se inicia muito antes da alfabetização, com a paulatina expo‑ sição da criança aos livros e outras formas impressas nos mais variados contextos sociais. Há mesmo algu‑ mas formas de livro desenvolvidas especialmente para crianças ainda não alfabetizadas. A criança manipula re‑ vistas, livros em pano, plástico, papel. Em alguns casos, esse processo começa na família e depois é assumido pela escola em um trabalho mais sistematizado. Há um gigantesco esforço social para a construção de determi‑ nados valores e significados em torno do livro, de ou‑ tros impressos e da leitura, e a criança invariavelmente assimila esses valores e significados. Contudo, o mesmo não ocorre com os meios digi‑ tais. Em geral, nossa mediação é apenas no sentido de restringir o uso ou controlá‑lo de algum modo, pois, ao que parece, consideramos que os conhecimentos necessários à sua plena utilização estão naturalizados nas novas gerações, o que, aliás, é muito reforçado pela especial disposição que têm em nos demonstrar suas preferências. Os valores e significados socialmen‑ te associados aos meios digitais para as crianças são geralmente ambíguos, quando não claramente negati‑ vos. Encontramos, inclusive, determinadas concepções educacionais que tentam impedir ou retardar o contato das crianças com tais meios, ora buscando argumentos na psicologia, ora na medicina, e por vezes na filosofia. Os valores e significados socialmente associados aos meios digitais para as crianças são geralmente ambíguos, quando não claramente negativos. Encontramos, inclusive, determinadas concepções educacionais que tentam impedir ou retardar o contato das crianças com tais meios [...] NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR15 Não estranha que as leituras em meios digitais ocorram na idade escolar como leituras marginais. No entanto, a presunção quase sempre verdadeira de que as crianças e jovens têm grande desenvoltura com os meios digitais pode fazer supor que não seja necessário um trabalho escolar visando à consolidação, à ampliação e ao refinamento do repertório existente. Precisamos reconsiderar o papel da família e da escola na aprendizagem dos meios digitais. O fato de mani‑ pularem com destreza os dispositivos deve ser tomado com reservas se o que procuramos é o máximo desem‑ penho das competências e habilidades leitoras em um nível que exceda o da comunicação ordinária e alcance patamares apropriados para o desenvolvimento acadê‑ mico no âmbito escolar. A palavra destreza designa pre‑ cisamente a relação das crianças com os dispositivos digitais: agilidade de movimentos exploratórios e inter‑ pretação dos resultados para o ajuste dos movimentos e expectativas. Tentativa, erro e acerto pouco a pouco vão ajustando o comportamento e resultam no desen‑ volvimento de habilidades e competências, como, por exemplo, o discernimento de formas e movimentos, a percepção espacial e mesmo os processos de tomada de decisão. Essas habilidades e competências, contudo, não são suficientes para o máximo desenvolvimento do pen‑ samento estruturado, abstrato e rigoroso, para o que a leitura e a escrita são decisivas. A ausência de trabalhos pedagógicos sistemáticos envolvendo o uso mediado de textos em meios digitais anda na contramão da neces‑ sidade de habilitar o aluno para o pleno aproveitamento da leitura em meios digitais, que certamente será o su‑ porte que mais utilizará ao longo de sua vida. Sem essa mediação, a experiência nos meios digitais tenderá a fi‑ car restrita a um número limitado de gêneros e práticas sociais, muito aquém do potencial efetivo desses meios. Neste ponto é preciso fazer uma importante distin‑ ção entre os diferentes meios digitais. Um programa de TV traz oportunidades de leitura que são diferentes daquelas verificadas em um e‑reader ou em um com‑ putador, smartphone ou tablet conectado à Internet, por exemplo. No primeiro caso há apenas o consumo de informações enviadas a todos os leitores em uma mesma ordem e ritmo. Ao leitor cabe fruir a leitura ou trocar de canal. No e‑reader, a leitura predominante de ebooks será mais caracterizada pela simulação do contorno “físico” semelhante ao livro impresso, com as capas delimitando um conteúdo (a despeito de que nos e‑readers em geral há conexões com outros conteúdos, como dicionários externos, por exemplo). Já no caso de computadores, smartphones e tablets, não só teremos uma variedade maior de formatos para leitura além de ebooks como, em muitos casos, a ordem e o ritmo da leitura podem ser muito alterados por processos advin‑ dos das interações com a interface, e mesmo resultar de interações, simultâneas ou não, com outros leitores em outros dispositivos. Ler em um ambiente como esse pode ser uma atividade bem mais complexa do que ler um impresso. A leitura conectada ou com conexão potencial pode se assemelhar a um folhear de “infinitas” páginas, vincu‑ lando uma quantidade “ilimitada” de conteúdos, muito distinta da leitura de um volume único, por exemplo. Nessas condições, ganha renovada importância a ca‑ pacidade de buscar, identificar e selecionar as leituras adequadas a um determinado propósito, distinguindo se contêm afirmações verdadeiras ou falsas e, como proposto por Echeverría (p.88), se contêm afirmações relevantes ou irrelevantes em relação às nossas inquie‑ tações. A falta do desenvolvimento dessas habilidades e competências é um antigo problema educacional agora potencializado com o acesso ao Google. “Para fazer seu dever, os alunos vão pescar na Internet as informações de que necessitam sem saber se essas informações são exatas.” (ECO, p.62). Se antes nossos alunos em geral trabalhavam com textos pré‑selecionados por editores e professores, agora trabalham com textos pré‑selecionados pelo Google ou outros engines de busca. A pré‑seleção de textos é importante por uma série de razões, mas, por outro lado, retarda o desenvolvimento de habilidades e competências essenciais, e por isso precisa ser mitigada com outras estratégias. Se antes o problema maior era identificar, localizar e acessar as informações necessá‑ Se antes nossos alunos em geral trabalhavam com textos pré‑selecionados por editores e professores, agora trabalham com textos pré‑selecionados pelo Google ou outros engines de busca. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 16 rias, agora é lidar com a quantidade astronômica de informações disponíveis e com sua extrema variação de qualidade e profundidade em um meio no qual a publicação tornou‑se menos mediada por especialistas. Ainda mais complexo é aprender a lidar com a indis‑ pensável interação com os algoritmos, que cada dia mais medeiam nossa relação com as informações. Se um algoritmo coloca no topo de uma lista de busca as entradas mais clicadas, isso terá um efeito brutal sobre o resultado de cada busca. Se um engine localiza com mais facilidade informações classificadas com determi‑ nados tags, isso também terá um efeito brutal sobre o resultado de cada busca. Tudo isso nos obriga a repen‑ sar nossas estratégias de ensino. Parece igualmente importante aceitar que o meio digital oferece novas possibilidades para a organização de processos de comunicação associados a determina‑ das práticas sociais, com estruturas narrativas especí‑ ficas e sentidos próprios. Decorre dessas possibilidades o surgimento de gêneros discursivos nativos do meio digital, caracterizados pela existência de forte inter‑ textualidade – estruturalmente inserida nos textos por meio de links, com a predominância do uso de ima‑ gens, de recursos multimídia e, em muitos casos, de comportamentos definidos por códigos de programa‑ ção e persistência de dados. “É possível que estejamos assistindo a uma nova estética textual, uma espécie de ‘estética da fragmentação’ [...]. Se aceitarmos que estamos num momento de transição, os critérios de ‘texto bem‑construído’ devem necessariamente mu‑ dar.” (FERREIRO, p.57). Na Internet, a facilidade de navegação por meio dos links inseridos no próprio texto (o que favorece a proposição da intertextualidade como parte in‑ trínseca da narrativa) ou outras portas de conexão (e eventualmente de saída) oferecidas pelas interfaces dos sistemas (como a seta de voltar do navegador), em muitos casos resulta na ampliação ou alteração do escopo de leitura, além de induzir sua fragmentação, o que poderia tornar a experiência menos adequada ao desenvolvimento de um entendimento profundo dos temas. “[...] Tão logo injetamos em um livro links e o conectamos à web – tão logo o ‘estendemos’ e o ‘intensificamos’ e o tornamos mais ‘dinâmico’ – muda‑ mos o que ele é e também mudamos a experiência de lê‑lo. Um ebook não é um livro, da mesma forma que um jornal on‑line não é um jornal.” (CARR, p.146). Por isso, consolida‑se a convicção de que “ler por alto” está se tornando a prática de leitura mais habitual: rápida, saltitante e espasmódica, como anuncia Nicholas Carr em A geração superficial. Ainda que a influência das características do meio sejam muito relevantes, talvez o aspecto isolado que mais contribua para a fragmentação da leitura seja a intertextualidade inerente à maioria dos textos nos meios digitais. Se o códex viabilizou uma forma con‑ fortável de percorrer textos lineares com a ponta dos dedos, as telas e a Internet viabilizaram percorrer essa infinidade simultânea de textos em múltiplos forma‑ tos na ponta dos mesmos dedos. Ainda não é possível precisar em que medidaa facilidade da transposição de textos e temas no ambiente digital acaba por dificultar a manutenção da concentração e do foco – o que nos levaria a concluir que os meios digitais ou parte deles precisam ser tratados de um modo específico quan‑ do do desenvolvimento das habilidades leitoras, e em que medida o macroambiente social está induzindo o desenvolvimento de características emocionais e cog‑ nitivas que nos tornariam mais propensos à dispersão, qualquer que seja o meio utilizado para leitura (e mes‑ mo para outras práticas) – o que certamente ensejaria outras consequências do ponto de vista educacional. Essas questões estão na ordem do dia de boa parte dos professores, como demonstram trabalhos como os de Abreu: “Todos os entrevistados concordam que os alunos, hoje, estão diferentes. São mais dispersivos, mais excitados, têm mais dificuldades de concentração, apresentam uma escrita oralizada e simplificada (como aquela encontrada nos chats e e‑mails), decodificam com facilidade a linguagem não verbal”. (ABREU, p.174). “[...] os alunos, hoje, estão diferentes. São mais dispersivos, mais excitados, têm mais dificuldades de concentração, apresentam uma escrita oralizada e simplificada (como aquela encontrada nos chats e e‑mails), decodificam com facilidade a linguagem não verbal”. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 17 Será de fundamental importância que mais investi‑ gações sejam empreendidas sobre tais temas para que tenhamos bases mais sólidas para propor a ação pe‑ dagógica, mas, antes que os resultados se apresentem de modo claro, é razoável supor que esse fenômeno seja largamente abrangente, muito além da leitura de textos. Consideremos, por exemplo, o ritmo da edição dos filmes. Já não existem mais longos planos como os de Tarkovsky, cineasta russo, autor de Stalker e Nostalgia”, ou longos silêncios como os de Bergman, sueco, autor de O sétimo selo e Gritos e sussurros: há muito essa estética está sendo alterada, tornando a edição mais ágil, com diálogos e cenas curtas. O mes‑ mo ocorreu com os games, basta comparar as versões atuais como Battlrfield ou Bioshock Infinite com os velhos e ingênuos Space Invaders ou Pac‑Man. As nar‑ rativas foram ultrafragmentadas e aceleradas, como nos comerciais de TV. Ainda temos muito trabalho a fazer na busca de um entendimento sobre as origens e causas desse fenômeno, mas o fato é que a Aldeia Global de McLuhan se caracteriza por lidar de um modo diferente com o tempo. Convém também considerarmos o impacto do hibridismo de formas na constituição dos textos em suporte digital e mesmo a influência que esses novos formatos vêm exercendo em meios tradicionais, como ocorre com o uso de imagens e multimídias. Pesquisa‑ dores como GUTIERREZ (1978) e COSTA (2005) vêm demonstrando a crescente importância desses compo‑ nentes em detrimento da palavra escrita na composi‑ ção das novas formas de comunicação, na leitura e na escrita. “Vivemos num mundo saturado de imagens e sons. Ninguém, há cinquenta anos, poderia sequer ima‑ ginar os alcances qualitativos e quantitativos deste fe‑ nômeno social. Com a imagem, entramos em uma nova etapa da história, que tem, para a humanidade, grandes repercussões sociais, intelectuais e religiosas. Passamos vertiginosamente de uma civilização verbal para uma civilização visual e auditiva. É esse caminhar do inteligí‑ vel ao sensível que está caracterizando o novo processo cultural que hoje vivemos.” (GUTIERREZ, p.15). A cons‑ tituição do atual projeto de escola assentou‑se, como já vimos, no texto escrito e no livro como principais tecnologias para o ensino e a aprendizagem. Entretanto, a partir do final do século XIX e especialmente na últi‑ ma metade do século XX, com a disseminação do rádio, do cinema e da televisão e, posteriormente, do compu‑ tador, smartphones e tablets, entre outros dispositivos, construímos formas de comunicação progressivamente mais baseadas em imagens e sons, ainda que em mui‑ tos casos articuladas com textos escritos. Assim, as linguagens audiovisuais e multimídia vêm compondo o repertório dos alunos desde as fases ini‑ ciais da escolarização, já há décadas. Como demonstrei (FONSECA, p.70), “em 2007, segundo dados do Todos pela Educação (2008), o ensino fundamental atendia 90,4% das crianças em idade escolar e, de acordo com a pesquisa do Comitê Gestor Internet do Brasil (BALBONI, 2007), a TV estava presente em 97,3% das residências do país em 2006. Em países onde a univer‑ salização do ensino está mais adiantada, como é o caso da França, 99,1% dos domicílios possuem aparelhos de TV, segundo dados da Audience Le Mag. A importância dessas experiências com a escola e a TV no desenvol‑ vimento humano pode ser inferida, também, pelo nú‑ mero de horas que crianças e jovens despendem com escola e TV: em média, 4h00 horas na escola e 3h31 horas na frente da TV, segundo dados da Eurodata TV WorldWide. Pesquisas mostram, ainda, que a eventua‑ lidade da diminuição da permanência na escola é, em grande parte, compensada pelo aumento proporcional de horas em frente à TV.” (BEVAN, 2009). O tempo dedicado à televisão é, em geral, equivalen‑ te ao dedicado à escola, e na maior parte das vezes precede a essa na vida das crianças. Esse dado, por si só, nos ajuda a compreender a impressionante importância das linguagens não baseadas na palavra escrita. Depen‑ dendo do contexto social, temos ainda o cinema e os games somando‑se a essa experiência, de modo que não é exagerado considerar que as horas de exposição às linguagens audiovisuais superam muito a exposição O tempo dedicado à televisão é, em geral, equivalente ao dedicado à escola, e na maior parte das vezes precede a essa na vida das crianças. Esse dado, por si só, nos ajuda a compreender a impressionante importância das linguagens não baseadas na palavra escrita. NOVOS TEMPOS DA LEITURA E DA ESCRITA FERNANDO MORAES FONSECA JR PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA FTD EDUCAÇÃO WWW.FTD.COM.BR 18 aos textos escritos na formação de muitas crianças e jovens. O domínio da linguagem audiovisual pode ser facilmente constatado pela habilidade com que crian‑ ças e jovens compreendem diferentes e complexos modelos narrativos não lineares, cronologicamente invertidos, que alternam representações da realidade figurada com a realidade intrapsíquica dos persona‑ gens, assim como a habilidade que muitos têm para roteirizar, captar e editar, como o demonstram inúme‑ ras experiências nas escolas. A leitura e a escrita desse tipo de linguagem compartilham alguns elementos da leitura e da escrita de textos estritamente escritos, mas destacam‑se diversas habilidades específicas, como bem o demonstram pesquisadores como AUMONT (1993), COSTA (2005) e DUBOIS (2004). O simples fato de que, em geral, nas linguagens audiovisuais o ritmo da leitura é exógeno ao leitor, determinado pela velocidade do encadeamento su‑ cessivo de cenas, ou, no caso dos jogos, determinado também pelas escolhas que o leitor faz consoante é instado a solucionar problemas, altera profundamente os componentes cognitivos e emocionais mobiliza‑ dos. A considerar essa realidade, não podemos ser surpreendidos que haja dificuldades na condução de “boas” leituras naqueles casos em que o texto se desenvolve com linguagem baseada estritamente em palavras escritas. Talvez nesses contextos estejamos exigindo um elevado patamar de habilidades não su‑ ficientemente desenvolvidas pelas crianças e jovens (e que talvez não tenham que desenvolver na mesma pro‑ porção que as gerações precedentes, pois, ao contrário daquelas, possuem novos instrumentos), ao mesmo tempo que desperdiçamos um vasto repertório de ha‑ bilidades com linguagens multimídia não mobilizadas. É provável que
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