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1053 INTRODUÇÃO A doença meningocócica é, sem dúvida, muito antiga, po- rém foi reconhecida como entidade autônoma apenas no início do século XIX. Isso ocorreu em virtude da semelhança clínica e da dificuldade para diferenciá-la de outras meningites. Era de- signada “febre cerebral’’, “febre maculosa” ou “torpor profundo”. Foi reconhecida como forma epidêmica em 1805, por Vi- cusseaux, em Genebra, na Suíça. Um ano mais tarde, Danielson e Mann descreveram outra epidemia nos Estados Unidos. Nos anos seguintes, vários surtos de meningite cerebrospinal epidê- mica foram descritos, na Europa e nos Estados Unidos, com base em elementos epidemiológicos e clínicos. No final do sécu- lo, também foi reconhecida na Ásia, na África e na Austrália. Foi Weichselbaum, em 1887, que descreveu o agente etiológico, a Neisseria meningitidis, isolada do liquor de um doente. Com a descoberta da etiologia, tornou-se possível reconhecer a forma endêmica da doença meningocócica, do mesmo modo que se identificou a sua apresentação septicêmica, denominada me- ningococcemia, na qual o comprometimento do sistema nervo- so central (SNC) pode estar ausente. O isolamento da N. menin- gitidis da nasofaringe de indivíduos sadios durante inquéritos epidemiológicos permitiu estabelecer-se o conceito de porta- dor. Em 1909, Dopter, baseando-se em estudos sorológicos, re- conheceu a existência de tipos específicos de meningococos. A doença meningocócica, por definição de caso, com- preende: infecção de orofaringe; meningite; meningococce- mia (sepse meningocócica); e, excepcionalmente, infecção em outros órgãos. Doença meningocócica Roberto Focaccia 42 O tratamento moderno da doença meningocócica ini- ciou-se em 1939, com a quimioterapia, pela utilização dos sulfamídicos. Apesar do progresso dos conhecimentos, das possibili- dades terapêuticas e profiláticas, a doença continua ocorren- do como doença endêmica ou epidêmica em países desenvol- vidos e em desenvolvimento. ETIOLOGIA A N. meningitidis é um pequeno coco gram-negativo, imóvel, não esporulado e de forma redonda ou oval. As bac- térias, em geral, apresentam-se aos pares, com as superfícies opostas achatadas, conferindo-lhes a forma de “biscoito”, e por isso são consideradas diplococos (Figura 42.1). O meningococo é exigente em relação ao seu cultivo, necessitando de meios adequados, onde cresce formando colônias convexas, lisas, cintilantes e com 1 a 5 mm de diâ- metro. Nas culturas, as colônias podem assumir aparência monoide, quando é formada grande quantidade de polissa- carídeo capsular, substância esta integrante da cápsula bacteriana e responsável pelo sistema básico, para a tipa- gem dos sorogrupos. Entre os meios adequados para o cul- tivo do meningococo, destacam-se os de Mueller-Hinton, ágar-chocolate suplementado, triptcase-ágar-soja e Thyer- -Martin. Esses meios devem ser especialmente preparados a fim de reduzir ou eliminar componentes tóxicos, como metais pesados e ácidos graxos, que inibem o crescimento do meningococo. 1054 Parte VI | Bactérias e micobactérias FIGURA 42.1 Neisseria meningitidis. Diplococo gram-negativo, 0,7 a 1 micra de diâmetro, imóvel, não esporulado e de forma redonda ou oval. As bactérias, em geral, apresentam-se aos pares, com as superfícies opostas achatadas. A N. meningitidis é aeróbica e tem seu isolamento e crescimento facilitado na presença de concentrações de 5 a 10% de dióxido de carbono, em ambiente úmido a 37°C. A identificação do meningococo, isolado de pacientes, depende da sua capacidade de fermentar carboidratos. Esse microrganismo metaboliza glicose e maltose e as transforma em ácido sem produzir gás, mas não é capaz de metabolizar a sacarose ou a lactose. Ele possui uma enzima, a citocromo- -oxidase, na sua parede celular, que oxida o corante tetrame- tilfenilenodiamina (TMPD), partindo do descorado para o rosa-forte. Esta última característica não é, entretanto, espe- cífica da Neisseria, ocorre também com outros gêneros como Pseudomonas e Aeromonas. O ferro parece ter importância no metabolismo dessa bactéria. Assim se tem demonstrado que camundongos trata- dos com ferro ligado à transferrina são mais suscetíveis à in- fecção fatal pelo meningococo. Depois da descoberta do agente etiológico e dos porta- dores sãos de N. meningitidis na nasofaringe, inúmeros estu- dos foram realizados, principalmente de natureza imunoló- gica, a fim de estabelecer diferentes tipos de meningococo, com base em sua constituição antigênica. A estrutura da N. meningitidis inclui uma cápsula ex- terna, parede celular, membrana externa, membrana cito- plasmática e a massa protoplasmática interna (Figura 42.2). A maioria das cepas do meningococo possui polissaca- rídeo capsular de natureza antigênica. Demonstrou-se, expe- rimentalmente, que esses antígenos despertam a produção de anticorpos que conferem proteção específica. Atualmente, os meningococos podem ser classificados, por soroaglutinação, em 13 sorogrupos: A, B, C, D, X, Y, Z, E-29, W-135, H, I, K e L. No Quadro 42.1, encontra-se a composição química dos oito sorogrupos que causam doença em humanos. Os polissacarídeos do grupo C podem ser divididos, bioquimica- mente, em neuraminidase-sensível e neuraminidase-resistente. A capacidade imunogênica dos polissacarídeos capsu- lares serviu de base para o estudo das vacinas antimeningo- cócicas, que foi, de certa forma, desestimulado com o advento da quimioterapia e, posteriormente, da antibioticoterapia, que se mostraram muito eficazes, inclusive como terapêutica profilática. Entretanto, com o surgimento do fenômeno da resistência do meningococo à sulfa, cresceu novamente o in- teresse pelo estudo das vacinas. As vacinas que têm mostrado imunogenicidade são as dos grupos A, C, Y e W-135, ao passo que o grupo B não tem apresentado essa capacidade. Cápsula externa Polissacáride capsular Sorogrupo especí�co Membrana externa Ag proteico Sorotipo especí�co Membrana citoplasmática Massa protoplasmática interna Fímbria Parede celular FIGURA 42.2 Desenho esquemático do diplococo (Neisseria). 1055 Capítulo 42 | Doença meningocócica QUADRO 42.1 Composição química dos polissacarídeos capsulares dos principais sorogrupos de meningococos responsáveis por doença humana Sorogrupo Composição química A Fosfato parcialmente O‑acetilado‑2‑acetamido‑deoxi‑D manosamina 6 B Ácido N‑acetilneuramínico (2‑8) Cl+ Ácido N‑acetilneuramínico ligado‑O acetilado (2‑9) C1– Ácido N‑acetilneuramínico ligado (2‑9) X Fosfato 2‑acetamido‑2 deoxi‑D‑glicose‑4 Y Ácido N‑acetilmuramínico e D‑glicose, alternando a sequência parcialmente O‑acetilado W‑135 Ácido N‑acetilmuramínico e D‑galactose, alternando a sequência L Fosfato N‑acetilglucosamina O meningococo pode ser encontrado, em períodos variá veis, no orofaríngeo de todos os indivíduos durante a vida, sem causar transtorno (estado de portador assintomáti- co). Na dependência de condições intrínsecas ao microrga- nismo e das defesas imunitárias do portador, ele pode se colo- nizar nesse local, produzindo faringite ou tonsilite purulenta. Essa condição clínica não difere sintomatologicamente das faringotonsilites estreptocócicas; o organismo, então, produz anticorpos protetores. Na ausência de imunidade protetora, o meningococo pode ganhar a corrente sanguínea, produzindo bacteremia. A seguir, a infecção pode atingir vários órgãos. Como a N. meningitidis tem tropismo pelo SNC, produz com maior frequência meningite ou meningocefalite. Em decor- rência de fatores intrínsecos e extrínsecos ainda não bem es- tabelecidos, a infecção pode se disseminar, causando sepse de extrema gravidade (meningococcemia). Podem ser consideradas pessoas com maior risco de ad- quirir a doença: comunicantes íntimos de casos; viajantes para áreas que tenham níveis hiperendêmicos ou epidêmicos; pes- soas com asplenia funcional ou anatômica, deficiência de pro- perdina e/ou deficiência de complemento (C5 a C8) e/ou produ- ção de anticorpos bactericidasdo soro específicos contra o meningococo. Entretanto, o Centers for Disease Control and Prevention (CDC) recomenda a vacinação contra N. meningitidis aos portadores de HIV, apesar dos estudos epidemiológicos con- flitantes sobre risco aumentado em homossexuais masculinos. Durante a gestação, pode haver transferência materna de anticorpos bactericidas anti-N. meningitidis para cerca da metade dos recém-nascidos. Os títulos desses anticorpos caem, desaparecendo entre 6 e 24 meses de vida; a partir de então, pode haver ascensão linear dos títulos até os 12 anos. Existe variação desses títulos de anticorpos em relação aos grupos de meningococos. Goldschneider, estudando porta- dores de meningococos dos grupos B, C ou Y, concluiu que indivíduos que colonizam cepas causadoras de doença me- ningocócica na nasofaringe, se não tiverem anticorpos bacte- ricidas antimeningocócicos, têm elevada probabilidade de adoecer. Demonstrou-se que o estado de portador de menin- gococo pode representar processo de imunização, pois duas semanas após o estabelecimento da colonização são suficientes Existem outros antígenos na membrana externa do me- ningococo que estão implicados na patogenia e na sorotipa- gem dos diferentes grupos desse microrganismo. Os antíge- nos principais são lipo-oligossacarídeos (endotoxinas), iguais aos encontrados em bacilos entéricos gram-negativos e que diferem entre si por sorotipagem. Mandrell e Zollinger de- monstraram pelo menos 12 sorotipos diferentes de lipopolis- sacarídeos na N. meningitidis. A sorotipagem tem especial interesse para a epidemiologia da doença meningocócica. Frasch e Chapman identificaram 11 sorotipos diferentes de meningococos do grupo B. Esses antígenos são de natureza proteica e estão na membrana externa, como parte integrante do complexo lipoproteína-oligossacarídeos. Foi demonstra- do que os meningococos B e C podem ser classificados em 15 sorotipos proteicos diferentes. Essas observações permitiram mostrar que os meningococos associados à endemia parecem pertencer a uma ampla variedade de sorotipos, ao passo que as epidemias, ao contrário, são causadas por um único soro- tipo. Métodos de biologia molecular resultaram na clonagem de inúmeros antígenos proteicos da membrana externa do meningococo, criando nova perspectiva para a classificação desses agentes. Estudo nesse sentido mostrou que epidemias ocorridas no mundo inteiro, causadas pelo sorogrupo A do meningoco- co, eram decorrentes de um único tipo clonado. Os meningococos podem apresentar filamentos (ou fím- bria), que parecem desempenhar papel importante na aderência desses microrganismos no epitélio da nasofaringe. Dessa forma, os meningococos com filamentos aderem em maior número ao epitélio da nasofaringe, em relação aos que não os possuem. EPIDEMIOLOGIA A N. meningitidis é transmitida por via respiratória. Fora dos períodos epidêmicos, o meningococo está presente em cerca de 1% da população urbana. Essa prevalência se eleva a 10% durante as epidemias e atinge quase 100% dos indivíduos confinados (creches, orfanatos, prisões, escolas etc.). Trata-se de uma doença ubiquitária endêmica, que pode ocorrer sob microepidemias explosivas em ambientes restritos ou sob a forma de epidemias abertas, atingindo toda uma população. 1056 Parte VI | Bactérias e micobactérias para que se identifiquem anticorpos antimeningococo. Tem sido também demonstrada reação cruzada entre os sorogru- pos C e A. Utilizando anticorpo monoclonal antipolissacarí- deo capsular do sorogrupo B, observou-se reação cruzada com vários tecidos de ratos recém-nascidos e contra compo- nentes epiteliais humanos, como a neuraminidase e o ácido siálico da pele, que também faz parte da composição do cor- po bacteriano. Esta observação talvez explique a razão da bai- xa imunogenicidade do polissacarídeo B, em virtude da sua semelhança com antígenos do hospedeiro. O anticorpo bactericida do soro parece ser o imunócito mais importante na proteção contra a disseminação da infecção. O sistema do complemento e a properdina sérica aparentemente também têm ação de defesa. Ainda não está claro se o papel dos anticorpos específicos da classe IgA, em relação ao estado de portador, oferece algum grau de proteção contra a colonização do meningococo no orofaríngeo e/ou na sua disseminação. Vários fatores são provavelmente responsáveis pela transformação de portador em doente. Observações realiza- das em períodos epidêmicos demonstraram que a cultura de material proveniente da orofaringe é negativa quando coleta- da no período compreendido entre duas semanas e a véspera do início dos sintomas. Outros estudos mostraram que as epi- demias ocorrem quando a taxa de aquisição da infecção está aumentada, e não quando há elevado número de portadores. A transmissão do meningococo de portador para porta- dor é provavelmente pela via respiratória. O estado de porta- dor persiste por dias, semanas ou meses. Nos períodos epidê- micos, cerca de 10% da população apresenta o meningococo na orofaringe, contra apenas 1% dos períodos interepidêmi- cos. E, em ambientes confinados (quartéis, creches, orfana- tos, prisões etc.), durante as epidemias, cerca de 100% dos indivíduos são portadores da N. meningitidis em orofaringe. O estado de portador assintomático pode ser um pro- cesso imunizante. Desse modo, anticorpos bactericidas têm sido encontrados em indivíduos colonizados com meningo- cocos não grupados contra cepas homólogas e também con- tra meningococos grupados. É necessário, entretanto, men- cionar novamente que essa imunidade não é absoluta. A N. meningitidis afeta apenas humanos. A infecção se ini- cia quando o indivíduo inala aerossol originário de secreção respiratória de portadores de meningococo na orofaringe ou na rinofaringe. O período de colonização, antes do desenvolvimen- to da doença, pode ser extremamente curto (menor que um dia). Contudo, embora o meningococo possa causar faringite, muitas vezes ele coloniza sem causar manifestações clínicas. O estado de portador de N. meningitidis é de conhecimento antigo. A doença meningocócica, em que pese o avanço no co- nhecimento de vários de seus aspectos e da disponibilidade de medidas de controle, ainda é problema de saúde pública em todo o mundo. A situação é mais grave, entretanto, nas regiões tropicais, caso, por exemplo, dos países do continente africano, principalmente naqueles situados ao sul do deserto do Saara e ao norte da África do Sul, onde grandes epidemias têm ocorri- do, resultando na estimativa de 500 mil mortes nos últimos 50 anos. A China, na Ásia, é outro exemplo de situação semelhan- te, pois grande epidemia aconteceu entre 1963 e 1970, com mais de 3 milhões de casos e 166 mil mortes. O maior coefi- ciente registrado nessa epidemia foi de 400 casos por 100 mil habitantes em 1967. A Figura 42.3 mostra as epidemias globais. A Tabela 42.1 mostra os casos confirmados por sorogru- pos e notificados ao Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) do estado de São Paulo entre 1998 e 2014. É possível verificar a crescente ascensão do sorogrupo C e a queda contí- nua do B. O sorogrupo A, quase sempre epidêmico, tem tendên- cia de nulidade de prevalência nos períodos interepidêmicos. 1980-1984 1986 1993 1971-1972 1974 1992 1978 1992 19921977 1986-1987 1983-1985 1995 1979 1986 1991 1994-1995 1979 1988 1988 1991-1982 1989 1991-1993 1989 1990-1992 1976 1980-1981 1975-1978 1973-1974 1973-1974 1994-1995 1982-1984 1985 1977 FIGURA 42.3 Principais epidemias de doença meningocócica, de 1971 a 1997. 1057 Capítulo 42 | Doença meningocócica TABELA 42.1 Doença meningocócica: casos e porcentagens por sorogrupo no estado de São Paulo, 1998 a 2014 Sorogrupo B (casos) % C (casos) % W-135 (casos) % Y (casos) % Outros (casos) % TOTAL % Ano 1998 367 63,4 197 34 12 2,1 0 0 3 0,5 579 100 1999 370 64,1 185 32,1 14 2,4 1 0,2 7 12 577 100 2000 369 60 221 35,9 22 3,6 0 0 3 0,5 615 100 2001 246 54,5 17739,2 22 4,9 1 0,2 5 1,1 451 100 2002 228 50,9 197 44 15 3,3 2 0,4 6 1,3 448 100 2003 164 37,6 252 57,8 14 3,2 3 0,7 3 0,7 436 100 2004 187 35,8 303 58 24 4,6 1 0,2 7 1,3 522 100 2005 154 30,2 328 64,3 16 3,1 7 1,4 5 1 510 100 2006 125 24,3 352 68,3 26 5 2 0,2 10 1,9 515 100 2007 91 16,5 420 76,2 32 5,8 4 0,7 4 0,7 551 100 2008 98 14,3 512 75 58 8,5 8 1,2 7 1 683 100 2009 86 12,1 557 78,6 52 7,3 13 1,8 1 0,1 709 100 2010 90 10,7 686 81,9 47 5,6 9 1,1 6 0,7 838 100 2011 110 13,1 657 78,3 44 5,2 24 2,9 4 0,5 839 100 2012 115 15,2 571 75,4 34 4,5 33 4,4 4 0,5 757 100 2013 122 21,1 405 70,1 30 5,2 20 3,5 1 0,2 578 100 2014 68 22,7 188 64,6 23 7,9 11 3,8 3 1 291 100 Total: total de sorogrupados. Fonte: SINAN/DDTR/CVE/CCD/SES‑SP – dados de 22 out. 2014. A Tabela 42.2 revela o número de casos, coeficientes de incidência por 100 mil habitantes/ano e percentagem de doen- ça meningocócica segundo grupos etários no estado de São Paulo, entre 1998 e 2014, segundo o CVE/São Paulo. A Figura 42.4 mostra a incidência de doença meningo- cócica, número de óbitos e letalidade até 2014 no estado de São Paulo, segundo o CVE/SP. No Brasil, a doença meningocócica é endêmica e de no- tificação compulsória. Apresenta sazonalidade, é mais fre- quente no inverno, mas ocorre durante todo o ano. A letalidade média nos últimos dez anos foi de 19,4%, muito maior na forma clínica de meningococcemia sem me- ningite, quando comparada com a de meningite sem menin- gococcemia (56,2 e 7,7%, respectivamente). O coeficiente de letalidade tem se mantido entre 3,5 e 4 habitantes/ano. Supõe-se que tenha havido algumas epidemias impor- tantes de doença meningocócica no passado. Entretanto, entre 1971 e 1975, ocorreu uma das maiores epidemias registradas no mundo em área urbana. Seu pico máximo foi registrado em julho de 1974. Começando em São Paulo, causada pelo menin- gococo do sorogrupo C, que atingiu o seu pico com 50 casos por 100 mil habitantes/ano, a epidemia se disseminou por todo o país. Somente no estado de São Paulo, ocorreram cerca de 40 mil casos. Em seguida, o meningococo do sorogrupo A predo- minou, superpondo-se, então, duas grandes epidemias (a inci- dência, em 1974, atingiu 179 casos por 100 mil habitantes/ano). Em 1975, no dia 25 de abril, com a epidemia já em pleno declínio espontâneo, foi feita uma grande vacinação contra os sorogrupos A e C. Após cerca de três dias, a epidemia esta- va sob controle, demonstrando que a população estava alta- mente sensibilizada pelo meningococo e que a vacinação pro- duziu nítido efeito booster (Figura 42.5). A seguir, repetindo o padrão pós-epidêmico já cons- tatado em outras epidemias globais, o meningococo B pas- sou a prevalecer em nosso país, até o ano de 2002, quando o sorogrupo C voltou a predominar até 2014, chegando, por vezes, a apresentar, em curtos períodos, comporta- mento tecnicamente epidêmico (número de casos maior que o esperado). O risco de adquirir a doença existe para todas as faixas etárias, mas é inversamente proporcional à idade; dos 6 me- ses a 1 ano de vida, a criança encontra-se no período mais suscetível, quando perde a proteção dos anticorpos mater- nos transferidos no ambiente intrauterino. No estado de São Paulo, em 2013, o coeficiente de incidência para maio- res de 5 anos foi de 5,2, casos/100 mil habitantes, ao passo que para os menores de 5 anos foi de 19 casos/100 mil habi- tantes. Esta proporção vem se mantendo ao longo dos últi- mos anos. A letalidade depende de vários fatores, como a preva- lência da doença na comunidade, o tipo de quadro clínico, as condições socioeconômicas da região considerada e a rapidez do início da terapia antibiótica. A letalidade é baixa para os casos de meningite (3 a 7%) e mais elevada para as formas septicêmicas (16 a 19%). O meningococo do sorogrupo B ge- ralmente está associado a casos mais graves, que evoluem com meningococcemia, e com tempo maior de evolução para cura na meningite sem sepse. Os meningococos dos sorogru- pos A e C são os mais epidêmicos. 1058 Parte VI | Bactérias e micobactérias TABELA 42.2 Doença meningocócica: casos, óbitos e letalidade segundo faixa etária no estado de São Paulo, 1998 a 2014 Ano Faixa etária 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 C 494 476 523 413 325 308 359 341 321 387 288 301 328 199 151 134 94 < 2 a OB 120 106 119 94 77 62 72 75 68 63 75 66 74 29 28 15 17 LET 24,3 22,1 22,8 22,8 23,7 20,1 20,1 22 21,2 22 26 21,9 22,6 14,6 18,5 11,2 18,1 C 368 364 404 245 250 248 257 211 225 195 242 210 245 223 151 109 54 2‑1 a OB 68 68 68 41 28 40 54 44 29 28 35 37 43 29 24 15 3 LET 18,5 18,7 16,8 16,7 11,2 16,1 21 20,9 12,9 14,4 14,5 17,6 17,5 13 15,9 13,8 5,6 C 271 298 266 183 197 146 199 193 175 209 191 172 229 198 192 153 77 5‑9 a OB 18 30 35 21 20 28 32 24 32 34 24 22 38 33 27 23 10 LET 6,6 10,1 13,2 11,5 10,2 19,2 16,1 12,4 18,3 16,3 12,6 12,8 15,5 16,7 14,1 15 13 C 159 123 104 80 101 80 100 91 112 99 122 111 134 135 136 102 58 10‑14 a OB 21 20 17 9 10 8 13 18 14 11 12 20 21 19 31 12 8 LET 13,2 16,3 16,3 11,3 9,9 10 13 19,8 12,5 11,1 9,8 18 15,7 14,1 22,8 11,8 13,8 C 104 102 88 70 56 62 72 68 79 83 87 107 123 132 112 94 36 15‑19 a OB 10 14 9 10 6 7 8 13 15 15 19 22 26 27 22 21 9 LET 9,6 13,7 10,2 14,3 10,7 13,5 11,1 19,1 19 18,1 21,8 20,6 21,1 20,5 19,6 22,3 25 C 139 168 163 121 116 131 154 139 163 165 202 185 203 256 219 190 105 20‑39 a OB 23 32 31 22 19 26 43 20 30 32 45 36 45 53 47 43 18 LET 15,5 19 19 18,2 16,4 19,8 27,9 14,4 18,4 19,4 22,3 19,5 22,2 20,7 21,5 22,6 17,1 C 82 96 86 72 86 78 78 95 91 105 160 150 184 217 207 185 113 ≥ 40 a OB 20 27 23 28 28 24 27 26 27 34 47 34 44 63 52 55 22 LET 24,4 28,1 26,7 38,9 32,6 30,8 34,6 27,4 29,7 32,4 29,4 22,7 23,9 29 25,1 29,7 19,5 C 1.617 1.627 1.634 1.184 1.131 1.043 1.219 1.138 1.166 1.143 1.292 1.236 1.447 1.360 1.168 967 537 TOTAL OB 280 296 302 225 188 195 249 220 215 217 257 237 291 253 231 184 87 LET 17,3 18,2 18,5 19 16,6 18,7 20,4 19,3 18,4 19 19,9 19,2 20,1 18,6 19,8 19 16,2 Co ef ./1 00 .0 00 h ab . Letalidade1,3 25 20 15 10 5 0 5 4,5 4 3,5 3 2,5 2 1,5 1 0,5 0 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 Coef Let 4,6 4,5 4,4 3,1 3 2,7 3,1 2,8 2,8 2,7 3,2 3 3,5 3,3 2,8 2,3 FIGURA 42.4 Doença meningocócica: incidência e letalidade, estado de São Paulo, de 1998 a 2014. Fonte: SINAN/DDTR/CVE. Atualizada em 22 out. 2014. 1059 Capítulo 42 | Doença meningocócica MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS Podem variar desde formas benignas, caracterizadas por febre e bacteremia, até quadros muito graves, que levam à morte em poucas horas. As várias formas clínicas são: ■ Infecção da orofaringe com bacteremia, sem sep- ticemia: quadro benigno que simula infecção respiratória superior. Quase sempre, o diagnóstico é estabelecido pela hemocultura e a remissão dos sintomas pode ocorrer até sem antibioticoterapia específica, porém esta acelera a cura e im- pede a evolução para outras formas clínicas. ■ Meningococcemia, às vezes sem meningite: evolui, em poucas horas, para estado de choque. O paciente apre- senta-se septicêmico, toxemiado, com febre alta, leucocitose, exantema maculopapular do tipo petequial ou sob forma de verdadeiras sufusões hemorrágicas, com mal-estar geral, ce- faleia, fraqueza, hipotensão, coagulopatia de consumo com sangramentos, hiperpneia decorrente da acidose metabólica, hipovolemia em razão da retenção de líquidos na microcir- culação, miocardite e comprometimento sistêmico geral. É a forma mais grave e letal. ■ Meningite: caracteriza-se por cefaleia holocraniana, vômitos em jato, febre alta, alterações sensoriais (paciente so- nolento, torporoso ou em coma superficial), sinais meníngeos e liquor turvo. Ocasionalmente, meningocefalite mais pro- funda em coma profundo (reflexos superficiais e osteotendi- nosos estão alterados, e reflexos patológicos estão presentes), às vezes parestesias, paralisias e outrossinais neurológicos. Embora haja diferentes apresentações clínicas, a menin- gite e, a seguir, a meningocefalite, são as formas mais fre- quentes com que se exterioriza a doença meningocócica. Os casos típicos de meningite (ver capítulo 60) incluem três síndromes ou três grupos de manifestações: síndrome infec ciosa; síndrome de hipertensão intracraniana; e síndrome de compressão radicular. A síndrome infecciosa caracteriza-se por febre, mal-estar, cefaleia, anorexia e dores musculares. Es- sas manifestações não são específicas, ao contrário, estão pre- sentes com frequência em estados infecciosos de diferentes etiologias e decorrem da ação de citoquinas no sistema nervoso (febre, cefaleia, anorexia) e na indução da proteólise (dores musculares). Comprometimento sensorial, cefaleia persistente e latejante, vômitos em jato ou necessidade imperiosa de vomi- tar e perturbações visuais, correspondem, em geral, à síndro- me de hipertensão intracraniana. Rigidez de nuca e sinais de meningismo como Kernig, Brudzinski e variantes da manobra de Lasègue, caracterizam a síndrome da compressão radicular. O período de incubação varia entre 2 e 5 dias. O início das manifestações é, na maioria das vezes, súbito, ou seja, os sintomas e os sinais surgem de repente e atingem o acme em curto espaço de tempo, 24 horas em média. Na forma aguda, o início é brusco, com cefaleia holocraniana, febre alta, vômi- tos em jato (não relacionados com a alimentação), lesões pe- tequiais características (Figuras 42.6 a 42.8) e alteração sen- sorial, manifestações que se exteriorizam dentro de 24 horas. A febre alta, a cefaleia holocraniana, os vômitos e a rigidez de nuca sempre sugerem o diagnóstico de meningite. Contudo, dependendo do grupo etário, pode haver variação das mani- festações clínicas. Crianças, principalmente lactentes, e indi- víduos idosos podem não apresentar todas as manifestações mencionadas. Em lactentes ou crianças pequenas, as queixas mais frequentes no início são hipotermia e vômitos. Nesses casos, muitas vezes, as crianças doentes são levadas para o 6 5 4 3 2 1 0 1974 Vacinação em massa 1975 Meningite meningocócica em hospitais de São Paulo (1971 a 1976) 1973 197619721971 J F M A M J J A S O N D J F M A M J J A S DO N J F M A M J J A S O N D Casos (× 1.000) FIGURA 42.5 Número de casos de doença meningocócica ocorridos em São Paulo, entre 1971 e 1976. Ver o nítido efeito booster após a vacinação em massa de uma população com alto grau de imunidade natural. 1060 Parte VI | Bactérias e micobactérias socorro médico dias após o início dos sintomas, quando há piora do seu estado de consciência ou quando surgem con- vulsões. Rigidez de nuca pode estar ausente em mais da me- tade desses casos. Os idosos apresentam, com mais frequên- cia, febre, confusão mental, torpor e desorientação. Menos da metade deles têm rigidez de nuca e cefaleia. O componente de encefalite, dos casos que evoluem com meningocefalite, corresponde à depressão sensorial mais profunda, à alteração dos reflexos superficiais e osteo- tendinosos, ao surgimento de reflexos patológicos, com ou sem a presença de sinais neurológicos focais como paresias ou paralisias e convulsões. Nesses casos, em geral, a manifes- tação que sugere essa forma da doença para o clínico é a de- pressão profunda do sensório. Na maioria das vezes, o pa- ciente está em coma que não se superficializa rapidamente com o início da terapêutica adequada. Na doença meningo- cócica, é frequente o aparecimento súbito de exantema macu- lopapular petequial, purpúrico ou hemorrágico. A rápida disseminação das petéquias e/ou a evolução para sufusões hemorrágicas constituem um dos melhores parâmetros clíni- cos de gravidade (Figuras 42.6, 42.7, 42.8, 42.9). Por isso, é fundamental examinar o doente, cuidadosamente, sem as vestes. Essas lesões podem ser vistas também nas mucosas, sendo frequentes na conjuntiva palpebral ou ocular. Deve ser referido que, se a presença de petéquias sugere o diagnóstico, a sua ausência não o excluí. É recomendável, portanto, que se desenhem círculos em torno das petéquias e que, a cada hora, seja verificado se outras lesões surgiram no interior dos cír- culos. A contagem das novas lesões em algumas horas poderá dar ideia da gravidade do quadro e das medidas terapêuticas que podem ser adotadas. Contudo, o não surgimento de no- vas lesões pode indicar a estabilização do quadro. As petéquias podem coalescer e atingir planos mais pro- fundos, transformando-se em sufusões hemorrágicas ou equi- moses, especialmente na presença de sepse meningocócica sem meningite. Já observou-se, em pacientes que evoluíram com meningococcemia fulminante, ausência de petéquias na ad- missão, com aparecimento das primeiras uma hora depois, FIGURA 42.6 Adolescente com meningococcemia grave, causada por meningococo do sorogrupo B e exantema purpúrico. Notar lesões na região da pele pressionada pelas vestes. FIGURA 42.7 Lesões petequiais em meningite meningocócica. Fonte: Acervo do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. A B FIGURA 42.8 (A) equimoses coalescentes e sufusões hemor- rágicas em planos fundos; (B) complicações tardias no mesmo paciente: infecção, insuficiência arterial e perda de substância. Evolução para amputação dos membros. Fonte: Acervo do Instituto de Infectologia Emílio Ribas. 1061 Capítulo 42 | Doença meningocócica seguidas por sufusões hemorrágicas e colapso vascular perifé- rico. A Figura 42.8 mostra quadro inicial e complicações tar- dias das lesões hemorrágicas (injeção e perda de substância). A meningococcemia fulminante, que corresponde a cerca de 1% dos casos de doença meningocócica fora de perío- dos epidêmicos e 10% durante as epidemias, é a mais temida de todas as formas, pela velocidade com que se instala e pela elevada letalidade que a caracteriza. Geralmente, ao primeiro atendimento no pronto-socorro, o liquor é normal, porque não houve tempo para o desenvolvimento da meningite. Ape- sar da normalidade liquórica, deve-se realçar que o meningo- coco está presente no SNC. Na meningococcemia, o estado de choque domina o quadro, com vasoconstrição periférica fisiológica em respos- ta à vasodilatação e à hipovolemia que se instalam, de início, em decorrência de vasculite produzida por uma endotoxina bacteriana. A partir daí, estabelecem-se fenômenos interme- diários de doença, como: intensa acidose metabólica; coagu- lação intravascular disseminada; choque tóxico e, às vezes, também cardiogênico decorrente de miocardite. Esses fenô- menos estabelecem um círculo vicioso, um piorando o outro. Então, começam a surgir fortes sangramentos, cianose, baixa perfusão nas extremidades e hiperpneia, em virtude da aci- dose metabólica, e hipóxia tecidual envolvendo múltiplos ór- gãos. O paciente apresenta forte ansiedade e sensação de morte iminente. As petéquias continuam aumentando em número e tamanho e surgem sufusões hemorrágicas. Sinal clínico de valor preditivo positivo constitui a parada do surgimento de novas petéquias. A sorte do paciente se deci- de em 24 horas. O quadro é dramático. A ausência de resposta terapêutica antibiótica e de resposta à reposição da volemia são indicadores preditivos de morte. Inicia-se, então falência fun- cional de múltiplos órgãos, sangramentos incontroláveis e óbi- to. Se o doente alcançar superação dessa fase inicial, o quadro clínico regride rapidamente e evolui para a cura em 5 a 7 dias. Pacientes que evoluíram para a cura, mas sofreram sufu- sões hemorrágicas profundas, podem apresentar sequelas im- portantes, como necroses teciduais com perda de substância e, às vezes, mumificação de tecidos, necessitando amputação de algumas extremidades ou até mesmo de membros (Figura 42.9). Com frequência, desenvolvem infecções secundárias de alta gravidade. FIGURA 42.9 Necrose e mumificação de extremidades, com evolução para amputação, em criança sobrevivente de meningococcemia. Fonte: Acervo do Instituto de InfectologiaEmílio Ribas. Tem sido descrita como raridade a meningococcemia crônica caracterizada por febre baixa, exantema e compro- metimento articular. O exantema se assemelha ao que ocor- re na infecção gonocócica disseminada e é caracterizado por pápulas e pústulas, frequentemente com componente hemorrágico. A Equipe Médica do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, que suportou quase toda a grande epidemia de doen- ça meningocócica em 1971 a 1975 na assistência aos pacien- tes da Grande São Paulo, conseguiu manter a mortalidade em apenas 32%, graças ao esforço, à dedicação e à capacita- ção técnica. Complicações neurológicas, como convulsões, surdez, paralisias e sinais focais, associadas à meningite meningo- cócica, são menos frequentes do que as que ocorrem nas me- ningites pelo pneumococo. Pneumonia por meningococo tem sido assinalada evoluindo com tosse, dores torácicas, ca- lafrios, febre, sendo mais frequente o envolvimento dos lobos médios e inferior do pulmão direito. Nesses casos, é comum antecedente de infecção respiratória superior por vírus e o prognóstico, em geral, é bom. Abrahão e colaboradores des- creveram maior prevalência de esquizofrenia nos pacientes que desenvolveram meningite meningocócica durante a epi- demia de 1971 a 1975, em São Paulo, do que na população em geral. A doença meningocócica, em cerca de 10 a 20% dos ca- sos, evolui com herpes labial (Figura 42.10). ASPECTOS FISIOPATOLÓGICOS A N. meningitidis utiliza os seus pili (fímbria) para pro- ceder à aderência nos receptores específicos dessas células do hospedeiro. Para escapar da IgA secretória existente na mu- cosa, o meningococo utiliza protease, que desarma esse anti- corpo. Em seguida, o meningococo necessita atingir a cor- rente sanguínea, o que consegue por mecanismo ainda desconhecido. No sangue, a bactéria precisa escapar dos me- canismos de imunidade, representados pelo sistema comple- mento e pela fagocitose leucocitária. O meningococo é prote- gido contra esses mecanismos pelo polissacarídeo capsular, atingindo, dessa forma, os capilares do SNC. O próximo FIGURA 42.10 Herpes simples labial em paciente com doença meningocócica. 1062 Parte VI | Bactérias e micobactérias passo será atravessar a barreira hematoliquórica para se esta- belecer no espaço subaracnóideo. O meningococo atinge o liquor pelos capilares do plexo coroide dos ventrículos late- rais, por mecanismo desconhecido. O liquor não possui complemento, anticorpo bactericida do soro e células fagoci- tárias, por isso o meningococo se multiplica livremente no espaço subaracnóideo. A meningite expressa, então, o pro- cesso inflamatório, que se desenvolve em resposta à presença da endotoxinas representadas por parte da parede bacteria- na, o lipídeo A. As células endoteliais e da glia liberam cito- quinas: TNF e IL-1. A quebra da barreira hematoliquórica se dá, então, pela sucessão de eventos desencadeados pela ação de citoquinas e outros mediadores químicos, além da IL-1 e do TNF, como leucotrienos, IL-6 e fator de ativação de plaquetas. A quebra de barreira permitirá o acúmulo de leucócitos, complemento e de albumina no espaço subaracnóideo, contribuindo para o edema cerebral. O processo inflamatório intenso também inibe a reabsorção do liquor, contribuindo para o aumento da pressão intracraniana e do edema intersticial cerebral. Bacté- rias como o meningococo podem determinar processo infla matório nos vasos superficiais do cérebro, caracterizan- do a vasculite, predispondo-os à trombose, com consequente dano isquêmico do SNC. A síndrome de Waterhouse-Friderichsen, tem sido fre- quentemente incriminada na literatura médica como fator desencadeante da hipovolemia e do colapso periférico inicial. Porém, nem sempre está presente, fato constado pelas ne- cropsias que não encontram a necrose das suprarrenais, ca- racterística dessa síndrome (Figura 42.11). O mecanismo mais importante de desencadeamento do quadro clínico inicial da meningococcemia decorre da liberação de uma potente endotoxina bacteriana durante a fase logarítmica de multiplicação da bactéria na corrente sanguínea, causando endotelite universal. Esta provoca vasodilatação, hipovole- mia, queda da pressão arterial, que são respondidos pelo or- ganismo com vasoconstrição periférica na microcirculação. O sangue fica retido nesses espaços. Logo se instala hipóxia tecidual com queda do pH em níveis inferiores a 7. Desenca- deia-se coagulação intravascular disseminada e o estado de choque. Estabelece-se cadeia circular, um agravo piorando o outro. Junta-se ao quadro a falência de múltiplos órgãos agre- didos pela hipóxia tecidual. Se a recomposição da volemia não ocorrer com máxima rapidez e sucesso, o paciente evolui para o óbito. Em relação ao envolvimento de outros órgãos na doença meningocócica, devem ser mencionadas a artrite, a miocar- dite, a pericardite e o comprometimento do trato respirató- rio. A artrite pode manifestar-se no início do quadro como pioartrite monoarticular e, tardiamente, como poliartrite. Na primeira punção articular, o meningococo pode ser isola- do pela cultura do líquido sinovial, ao passo que na última, em geral, a cultura é negativa. A artrite tardia é causada por mecanismo imunopatológico, isto é, pela deposição de imu- nocomplexos. A miocardite foi descrita por Gore e Saphir pelos achados anatomopatológicos de casos fatais. Os autores estudaram as alterações eletrocardiográficas de 41 doentes, observados no período de outubro de 1974 a julho de 1995, em três momentos diferentes da evolução da doença menin- gocócica: na fase aguda, durante a convalescença e tardia- mente após a alta. As alterações eletrocardiográficas foram mais frequentes nos dois primeiros períodos. DIAGNÓSTICO O diagnóstico etiológico da doença meningocócica é estabelecido pelo exame bacteriológico, com o isolamento da N. meningitidis no sangue, no liquor, no líquido sinovial, no derrame pleural ou no pericárdico. O liquor e o sangue cons- tituem as principais fontes de isolamento do meningococo. Nos países desenvolvidos, as taxas de positividade do exame bacteriológico são bastante elevadas. Hoyne e Brown obtive- ram, de 727 casos de doença meningocócica, hemoculturas positivas em 51,4%, e exame bacterioscópico ou cultura do liquor positivos em 94% destes procedimentos. No estado de São Paulo, de acordo com o Centro de Vi- gilância Epidemiológica, a proporção de casos diagnostica- dos pela cultura tem diminuído, girando em torno de apenas 50%, em grande parte devido à automedicação antibiótica prévia ao exame liquórico. O isolamento do meningococo é muito importante, pois permite a identificação do sorogrupo, do sorotipo e do subtipo. Esse conhecimento é fundamental para a epidemio- logia e para a adoção das medidas profiláticas adequadas. A identificação do meningococo pode também ser obti- da pela pesquisa de antígenos no liquor, pelo emprego da con- traimunoeletroforese, pela fixação do látex, por ELISA ou por radioimunoensaio. A reação em cadeia da polimerase (PCR) tem sido, recentemente, usada no diagnóstico de me- ningite meningocócica com sensibilidade e especificidade superiores a 99%, porém não se constitui método rotineiro, pelo custo e pela dificuldade no preparo de primes. A coleta de sangue para exames bacteriológicos e cultura deve ser realizada, de preferência, antes da antibioticoterapia. Na meningite meningocócica, como acontece, de modo geral, nas outras meningites bacterianas, o liquor é turvo ou purulento, com pleiocitose, (centenas a milhares de FIGURA 42.11 Corte de suprarrenal corada por hematoxili- na e eosina (HE) de paciente que faleceu com a síndrome de Waterhouse-Friderichsen, causada pelo meningococo do soro- grupo B. Hemorragia e necrose parcial da glândula. 1063 Capítulo 42 | Doença meningocócica células/mm3 ) com predomínio de polimorfonucleares neu- trófilos; concentração de glicose baixa (menor do que 75% da glicemia, coletada simultaneamente aoliquor) e concen- tração elevada de proteínas (em geral, superior a 100 mg/dL). O hemograma, geralmente, apresenta leucocitose, neutrofi- lia e desvio para a esquerda. São indicativos de coagulação intravascular disseminada na meningococcemia: velocida- de da hemossedimentação baixa, plaquetopenia e coagulo- grama alterado. Na meningococcemia com choque, a gaso- metria revela acidose e hipóxia. TRATAMENTO Deve ser instituído precocemente, visando evitar seque- las e reduzir a mortalidade. A utilização precoce de antibióti- cos eficazes reduz a produção de endotoxina, diminuindo o estímulo pró-inflamatório e, consequentemente, reduzindo a mortalidade. O tratamento específico deve ser prontamente instituí- do logo após a coleta de materiais para cultura. Os meningo- cocos geralmente são suscetíveis a penicilinas, cefalos porinas, outros betalactâmicos, cloranfenicol e outros antibióticos. A penicilina G cristalina é o antibiótico tradicionalmente usa- do como primeira escolha. Ainda é eficaz, em nosso meio, mas traz o inconveniente de necessitar doses com intervalo de quatro horas. Além do mais, seu uso em vias periféricas resulta frequentemente em flebite e necessita de cateterismo venoso central para a sua administração. A ampicilina é uma alternativa à penicilina G cristalina, pois tem a mesma eficácia e requer doses menos frequentes (a cada seis horas). Recentemente, com a padronização do trata- mento da meningite bacteriana em crianças, têm sido utiliza- das as cefalosporinas de terceira geração, como a ceftriaxona e a cefotaxima, que, além de serem igualmente eficazes con- tra o meningococo, também são ativas contra o Haemophilus influenzae e o Streptococcus pneumoniae, dois patógenos que constituem diagnóstico diferencial etiológico. Elas têm boa penetração liquórica e seu uso resulta em baixa incidência de efeitos adversos. As posologias de antibióticos para meningo- coccemia estão reportadas na Tabela 42.3. A meningococcemia frequentemente é acompanhada de meningite e, por isso, os corticosteroides devem ser asso- ciados ao tratamento antibacteriano, visando reduzir seque- las neurológicas. Administra-se dexametasona, 15 a 20 mi- nutos antes do antibiótico, na dosagem de 0,4 mg/kg e depois a cada 12 horas por dois dias. Em casos de meningococcemia, indica-se a hidrocortisona em doses fisiológicas de 20 a 25 mg, intravenosa, seguida de infusão contínua de 0,18 mg/kg/hora. O tratamento de suporte é fundamental e deve ser insti- tuído prontamente, em conjunto com o tratamento específico ou até mesmo antes deste, enquanto são coletados os exames laboratoriais. Pacientes que apresentam quadro de choque séptico devem ser priorizados, mas aqueles ainda nas fases iniciais da doença devem ser acompanhados de perto, pois a meningococcemia evolui rapidamente, em poucas horas, para quadros extremamente graves e letais. Como muitos casos de meningococcemia são acompa- nhados de meningite, frequentemente há rebaixamento de ní- vel de consciência e eventual insuficiência respiratória aguda. Pacientes com quadro de choque e coma, mesmo que superfi- cial, ou agitação psicomotora intensa devem ser sedados, into- cados e colocados em ventilação mecânica com suporte de oxi- genação, visando manter a saturação de oxigênio acima de 90%. A reposição volêmica deve ser criteriosa. É necessária a obtenção de acesso venoso calibroso e profundo, para que seja possível administrar grandes quantidades de líquidos por via intravenosa. Em crianças hipotensas, recomenda-se a infusão inicial de 40 mL/kg de soro fisiológico e, persistindo a hi- potensão arterial, administrar novas infusões de 20 mL/kg até estabilizar a pressão arterial. Em adultos, não há reco- mendação específica, mas o objetivo da reposição volêmica deve ser o restabelecimento da perfusão tecidual e a normali- zação do metabolismo celular. A quantidade de fluídos a ser administrada deve ser titulada de acordo com a pressão arte- rial média (manter acima de 60 mmHg), frequência cardíaca normal ou próxima do normal, sem bradicardia e débito uri- nário adequado. A medida da pressão venosa central (PVC) por cateterização da cava superior pode servir de guia para a reposição volêmica adequada. O objetivo é manter a PVC en- tre 10 e 15 mmHg (13 a 20 cmH2O). Em pacientes que evoluem com PVC elevada, a reposição volêmica deve ser tentada com substâncias coloidosmóticas (evitando sobrecarga car- día ca), sendo, provavelmente, mais bem manipulados por meio de monitoração invasiva com cateter de artéria pulmo- nar (Swan-Ganz), apesar de haver controvérsia quanto a sua eficácia no tratamento inicial de pacientes graves. Nos casos persistentemente hipotensivos, após reposi- ção volêmica adequada, é necessária a introdução de drogas vasoativas. A noradrenalina sob infusão contínua é a droga de escolha no choque séptico. As doses recomendadas variam de 0,05 a 3 mg/kg/min ou mais. A noradrenalina aumenta a resistência vascular periférica, mas influi pouco no débito TABELA 42.3 Posologia dos antibióticos utilizados na doença meningocócica Antibiótico Doses diárias para adultos Doses diárias para crianças Intervalos de doses Penicilina G cristalina 18 a 24 MU* 300 MU/kg/dia 4 em 4 horas Ampicilina 8 a 12 g 200 a 400 mg/kg/dia 6 em 6 horas Ceftriaxona 4 g 100 mg/kg/dia 12 em 12 horas Cefotaxima 6 a 12 g 100 a 200 mg/kg/dia 8 em 8 horas Cloranfenicol 2 a 4 g 100 mg/kg/dia 6 em 6 horas *MU: megaunidades ou milhões de unidades. 1064 Parte VI | Bactérias e micobactérias cardíaco. O resultado é o aumento da pressão arterial média e, consequentemente, da perfusão renal e da diurese. O uso de dopamina em doses dopaminérgicas não é mais recomen- dado, pois não há evidência de que este efeito seja importante em pacientes sépticos. A introdução de noradrenalina deve ser precoce se não houver melhora da pressão arterial média após reposição volêmica adequada. Não há indicação de esca- lonamento do uso de drogas vasoativas, podendo a dopamina ser preterida em relação à noradrenalina. A ocorrência de miocardite com disfunção contrátil é frequente e manifesta-se por taquicardia com ritmo de galo- pe, edema pulmonar e PVC elevada, acompanhados de má perfusão periférica e oligúria. A reposição volêmica inicial deve ser feita preferencialmente com coloides, visando redu- zir a ocorrência de edema pulmonar, apesar de haver polêmi- ca na literatura sobre a eficácia desta escolha; para um mesmo nível de objetivos de ressuscitação volêmica, há necessidade de 4 a 6 vezes mais volume de cristaloides em relação a coloi- des, mas o resultado final é o mesmo. Entretanto, pacientes com disfunção cardíaca tendem a fazer mais edema de pul- mões com o uso de cristaloides. Os coloides mais eficazes para este fim são a albumina humana, em concentrações va- riando de 5 a 25% em solução salina fisiológica, ou hidroxie- tilamido a 6%. O suporte inotrópico deve ser feito com a asso- ciação de dobutamina sob infusão contínua, nas doses de 1 a 25 µg/kg/min. Diuréticos, restrição de líquidos e, eventual- mente, vasodilatadores podem ser necessários. A associação de noradrenalina e dobutamina levam a aumento da perfusão visceral e melhora dos fluxos renal, hepático e da mucosa intestinal. Outras terapias de suporte são recomendadas na sepse e no choque séptico, como proteção gástrica com inibidores H2 ou inibidores de bomba de prótons, suporte nutricional, de preferência pela via enteral, e profilaxia de trombose venosa profunda. A heparina deve ser evitada nos casos que apresen- tam coagulopatia intensa com sangramento ativo, plaqueto- penia e hemorragia cerebral recente. Nessas situações, a profilaxia deve ser feita com equipamentos de compressão mecânica dos membros inferiores. Mais recentemente, tem sido preconizado o uso de pro- teína C ativada recombinante como tratamento coadjuvante da sepse grave e do choque séptico, com melhora da sobrevi- da e redução das complicações decorrentes dos fenômenos obstrutivosvasculares que resultam da coagulopatia. Entre- tanto, ainda não existem estudos específicos sobre a utiliza- ção desse medicamento em meningococcemia, mas, conside- rando a fisiopatologia da doença, é bastante provável que haja indicação para seu uso. PROFILAXIA A vacina conjugada de polissacarídeos A = C = W135 = Y , em formulações mono e polivalente, já está disponível. Em períodos de surtos prevalece a indicação da vacina contra o sorogrupo prevalente (ver capítulo 4). A duração da imunida- de conferida por essas vacinas é transitória e incompleta, sen- do menos imunogênicas em crianças (especialmente abaixo de 4 anos) do que em adultos, notadamente contra o sorogru- po C. São seguras e eficazes em epidemias e outbreaks. A ten- dência é o desuso destes tipos de vacinas. As vacinas glicoconjugadas, mono ou polivalentes, pro- duzidas pelo acoplamento de proteínas transportadoras de polissacarídeos capsulares são mais potentes. Duas antime- ningocócicas glicoconjugadas associadas à antitetânica e ou- tra associada à vacina contra H. influenzae. Três vacinas gli- coconjugadas quadrivalentes são utilizadas na América latina, associadas ao toxoide diftérico e ao tetânico. Outra vacina quadrivalente glicoconjugada está licenciada nos Es- tados Unidos para crianças a partir de 1 ano de vida. Em relação ao meningococo do sorogrupo B, várias va- cinas estavam em fase de testes em julho de 2014. No estado de São Paulo, nos anos de 1989 e 1990, foi desencadeada uma campanha de vacinação contra o meningococo B, com o em- prego de vacina produzida pelo Instituto Finlay, em Cuba. De acordo com o Ministério da Saúde, as avaliações realizadas não mostraram boa eficácia nas crianças menores de 4 anos de idade. Estas vacinas são eficazes apenas em epidemias em que a população já apresenta certa imunidade natural, fun- cionando como booster vacinal. Até que seja possível o desenvolvimento de novas vaci- nas, eficazes para todos os sorogrupos de meningococos im- plicados nas epidemias vigentes, há que se considerar outros caminhos, com vistas à proteção dos contatantes suscetíveis. Nesse sentido, se recomenda a quimioprofilaxia, principal- mente para os contatantes íntimos intradomiciliares. A droga recomendada atualmente para a profilaxia é a rifampicina, na dose de 600 mg, via oral, a cada 12 horas, durante dois dias, para adultos, e 10 mg/kg/dia, de 12 em 12 horas, via oral, du- rante dois dias, para crianças. É preciso, entretanto, que não se exagere a indicação da quimioprofilaxia com a rifampici- na, tendo em vista que esta não é uma droga destituída de efeitos colaterais. Alternativas para a rifampicina são a cipro- floxacina (500 mg em dose única), ciprofloxacina (250 mg, IM, dose única). Novas vacinas de alta capacidade imunogênica e contra todos os sorogrupos são necessárias. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA Abrahão AL, Focaccia R, Gattaz WF. Childhood meningitis increases the risk for adult schizophrenia. Eur Arch Psychiatry Clin Neurosci. 2004;254:23-6. Apicella MA. Neisseria meningitidis. In: Mandell GL, Bennett JE, Dolin R, (eds.). Mandell, Douglas and Bennett’s principles and practice of infectious diseases. New York: Churchill Livingstone; 1995. p. 1896-909. 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