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Cirrose Cirrose hepática é um processo patológico irreversível do parênquima hepático caracterizado por (1) fibrose hepática em ponte, com formação de shunts vascula- res no interior de focos fibróticos e (2) rearranjo da arquitetura lobular nos chamados nódulos de regene- ração, desprovidos de comunicação com uma veia centrolobular. É a resposta comum do parênquima hepático a qualquer estímulo lesivo persistente, repre- sentado geralmente por inflamação e necrose hepatoci- tária. Panorama geral da doença Os sinusoides conduzem o sangue da circulação porta e sistêmica (ramos da veia porta e artéria hepática pre- sentes nos espaços porta) para a veia centrolobular (pertencente ao sistema cava). Durante a passagem, substâncias provenientes do sangue são captadas pelos hepatócitos para serem metabolizadas. A difusão do metabólito através do espaço de Disse até os hepatóci- tos depende de duas características dos sinusoides: (1) eles são altamente fenestrados, o que permite a passa- gem de moléculas grandes (p. ex., albumina) e (2) são desprovidos de membrana basal, fato esse que tam- bém facilita o transporte de moléculas para fora do vaso. O espaço de Disse, que fica entre o sinusoides e o hepatócito, representa o interstício lobular, e contém as células mais importantes para a gênese da cirrose hepática – as células estreladas ou células de Ito. As células estreladas normalmente apresentam uma baixa atividade metabólica, e têm como função pri- mordial de armazenar retinoides e vitamina A. Entre- tanto, em resposta a certos estímulos (p. ex., atividade inflamatória crônica no parênquima), podem se trans- formar em células altamente capazes de sintetizar ma- triz extracelular (em particular colágeno tipo I e III), transformação essa induzida por efeitos parácrinos de citocinas pró-inflamatórias secretadas pelas células de Kupffer ativadas e células do sistema imunológico. A deposição de fibras colágenas no espaço de Disse leva ao fenômeno de capilarização dos sinusoides, quando uma camada de colágeno pouco permeável oblitera as fenestras e impede o contato das substâncias que ali circulam com os hepatócitos (inclusive fazendo desaparecer as microvilosidades na membrana do he- patócito). Com isso, a capacidade de função hepática vai se tornando progressivamente comprometida. A capilarização dos sinusoides também reduz seu calibre e elasticidade, o que aumenta a resistência vascular intra-hepática (fato esse importante para a gênese da hipertensão porta). Além disso, as próprias células estreladas adquirem capacidade contrátil (tornando-se miofibroblastos), o que reduz ainda mais o diâmetro sinusoidal. O processo de deposição de fibras colágenas e conse- quente capilarização dos sinusoides, em meio a seg- mentos de necrose hepatocitária, é denominada fibrose em ponte (porta-centro). O fluxo sanguíneo passa por dentro dessas traves fibróticas sem entrar em contato com as placas de hepatócitos, em uma espécie de shunt intra-hepático, indo diretamente dos espaços-porta para as veias centrolobulares. Como existe uma doença hepática crônica, com atividade necroinflamatória persistente, os ciclos de necrose, fibrose e regeneração celular continuam se alternando, até que a regeneração hepatocitária fique restrita aos espaços formados entre as diversas traves fibróticas interligadas, originando os nódulos de regeneração. Ao contrário dos lóbulos hepáticos normais, onde as placas de hepatócitos e a rede de sinusoides são rigoro- samente coordenadas, de modo a fazer o sangue fluir de forma centrípeta (em direção à veia centrolobular), os nódulos de regeneração são constituídos por uma massa de hepatócitos desprovida de funcionalidade, uma vez que tais nódulos não possuem relação com uma veia centrolobular. Assim, os nódulos represen- tam uma tentativa frustrada do fígado em reestabelecer sua citoarquitetura funcional em meio à fibrose secun- dária ao processo necroinflamatório crônico. Patogenia Três processos são essenciais para a patogenia da cir- rose: morte dos hepatócitos, deposição de matriz extracelular (MEC) e reorganização vascular. No fígado normal, a MEC consistindo em fibras cola- genosas intersticiais (tipo I, III, V e XI) está presente somente na cápsula hepática nos tratos portais e ao redor das veias centrais. De forma distinta na cirrose, os colágenos tipo I e III e outros componentes da MEC são depositadas no espaço de Disse. A principal fonte de colágeno na cirrose são as células estreladas perissinusoidais que ocupam o espaço de Disse. Apesar de funcionarem normalmente como depósito de retinoides, durante o desenvolvimento da fibrose, elas são ativadas e transformadas em miofi- broblastos. O estímulo para a ativação das células estreladas e para a produção de colágeno inclui espé- cies reativas de oxigênio, fatores de crescimento e citocinas, como fator de necrose tumoral (TNF), inter- leucina 1 (IL-1) e linfotoxinas, que podem ser produ- zidas por hepatócitos lesionados ou células de Kupffer ativadas e pelas células endoteliais sinusoidais. As células estreladas ativadas produzem fatores de cres- cimento, citocinas e quimiocinas que podem estimular a sua própria proliferação e síntese de colágeno - parti- cularmente o fator de transformação do crescimento β (TGF-β). Durante o curso de uma doença hepática crônica, a fibrose é um processo dinâmico que envolve a síntese, deposição e reabsorção de componentes da MEC, modulados pelo equilíbrio entre metaloproteases e inibidores teciduais de metaloproteases. Dessa forma, mesmo em estágio avançado, se o processo da doença for alterado ou eliminado, pode ocorrer remodelamen- to significativo e talvez até restauração da função he- pática (regressão cirrótica). Lesões e modificações vasculares também interferem no processo de remodelamento hepático. A inflamação e a trombose de veias portais e/ou artérias hepáticas podem promover um estado de perfusão heterogênea, com zonas alternativas de hipoperfusão parenquimato- sa, que resultam na atrofia do parênquima e regenera- ção compensatória. A principal lesão que contribui para defeitos na função hepática é a perda de fenestra- ções das células endoteliais sinusoidais e o desenvol- vimento de shunts vasculares entre veia porta / veia hepática e artéria hepática / veia porta, comprometendo o movimento de proteínas (albumina, fatores de coagu- lação, lipoproteínas etc.) entre os hepatócitos e o plas- ma. Ademais, os shunts vasculares levam a uma pres- são vascular intra-hepática aumentada e contribuem para a disfunção hepática e hipertensão portal. As causas da lesão da célula hepática que dão origem a cirrose são variadas e dependem de sua etiologia (viral, alcoólica, drogas). Etiologia A cirrose hepática possui uma ampla gama etiológica, mas frequentemente resulta da exposição contínua ao vírus da hepatite (B, C e autoimune) e/ou ao álcool. Nesse resumo, ênfase será dada à cirrose causada por doença hepática alcoólica. Principais agentes etiológicos associados à cir- rose hepática no HCFMUSP. Hepatite C 22% Hepatite B 6% Hepatite C + álcool 8% Álcool 8% Cirrose biliar primária 4% Colangite esclerosante primária 4% Hepatite autoimune 6% Hepatopatia criptogênica 7% Deficiência de α-1-antitripsina 2% Outros: atresia das vias biliares; doença de Wil- son; síndrome de Budd-Chiari; hemocromatose etc. 31% Fonte: Clínica Médica do HCFMUSP, volume 4. Doença Hepática Alcoólica (DHA) O consumo excessivo de etanol pode causar três tipos de lesão no fígado: (1) esteatose assintomática (“fí- gado gorduroso”); (2) esteato-hepatite aguda (“hepa- tite alcoólica”); (3) cirrose alcoólica (cirrose de Laen- nec). Patogênese O principal determinante do surgimento de DHA é a quantidade de álcool ingerida. Em homens,as formas graves da doença em geral só aparecem quando o con- sumo é maior que 80 g/dia por mais de 10 anos, ao passo que nas mulheres esse limiar é maior que 30-40 g/dia por mais de 10 anos. Diversos cofatores modulam o risco de DHA. As he- patites virais crônicas, presença de obesidade e outras hepatopatias (como hemocromatose) e desnutrição representam os principais amplificadores de risco. Fatores genéticos específicos, como polimorfismos nos genes do PNPLA-3, TNF-α, citocromo P450 e gluta- tion S-transferase também exacerbam o risco para ocorrência de DHA em faixas altas de consumo etílico. Quando nenhum fator adjuvante está presente, a chan- ce de cirrose alcoólica é significativamente reduzida, mesmo em pacientes com alta libação etílica. O excesso de etanol absorvido pela circulação porta é metabolizado predominantemente na região centrolo- bular do lóbulo hepático, local onde existe a maior concentração da enzima álcool-desidrogenase. Durante tal processo, o oxigênio acaba sendo intensamente consumido, o que gera hipóxia centrolobular. A hi- póxia prejudica o funcionamento das mitocôndrias, bloqueando a oxidação dos ácidos graxos que, desse modo, se acumulam no interior da célula na forma de gotículas de gordura. O principal metabólito do etanol é o acetaldeído, molécula que logo após ser formada se liga de forma covalente a diversas proteínas tecidu- ais, criando “neoantígenos”, induzindo uma resposta autoimune que compõe o processo necroinflamatório do parênquima hepático (hepatite). O acetaldeído tam- bém é diretamente tóxico, promovendo peroxidação das membranas celulares e necrose hepatocitária. Outro fator contribuinte é o aumento da permeabilida- de da mucosa intestinal induzido diretamente pelo álcool, o que faz aumentar a absorção de toxinas bacte- rianas como o lipopolissacarídeo (LPS ou endotoxina, proveniente de Gram-negativos). A translocação de LPS para o fígado através da veia porta estimula as células de Kupffer a produzir citocinas como TNF-α, que amplifica todos os processos já descritos. A persis- tência ou recorrência desses fatores podem culminar em fibrose e desestruturação do parênquima hepático característico de uma cirrose. METABOLISMO DO ÁLCOOL Após absorção no estômago, a maior parte do etanol é trans- portada para o fígado, onde é metabolizado nos hepatócitos em acetaldeído e acetato. O etanol é oxidado principalmen- te pela álcool-desidrogenase, uma enzima dependente de NADH (forma reduzida da nicotinamida adenina dinucleotí- deo). Este mecanismo é conhecido como a via da álcool- desidrogenase (ADH). Uma via metabólica adicional é o sistema de oxidação microssomal do etanol (MEOS), presente no retículo endoplasmático liso. O ADH é a principal via de metabolização. O álcool é oxi- dado em acetaldeído no citoplasma e o acetaldeído é con- vertido em acetato na mitocôndria. Um excesso de H + e acetaldeído causam danos na mitocôndria, ruptura dos mi- crotúbulos e alterações proteicas que podem induzir respos- tas autoimunes provocando lesão no hepatócito. A via da MEOS é importante durante a ingesta crônica de álcool. Em contraste com a via ADH que produz acetaldeído e H + em excesso, a via MEOS produz acetaldeído e um excesso de radicais derivados do oxigênio. O oxigênio reativo produz lesão hepatocitária por causar peroxidação de lipídeos, resultando em lesão na membrana plasmática. Além disso, uma via MEOS altamente estimulada afeta a atividade de desintoxicação do hepatócito, que necessita de citocromo P450 para a oxidação de várias drogas, toxinas, vitaminas A e D e carcinógenos em potencial. A produção de TNF-α é um dos eventos iniciais da lesão hepática. O fator deflagra a produção de outras citocinas, recrutando células inflamatórias que causam lesão hepática e estimula as células estreladas peris- sinusoidais a produzirem as fibras colágenas do tipo I e III. Patologia Existem três estágios na evolução da DHA: esteatose, esteato-hepatite e cirrose. Histologicamente, os três predominam na região central do lóbulo hepático. ESTEATOSE HEPÁTICA. Devido à hipóxia celular ge- rada na metabolização do etanol, os ácidos graxos não são oxidados pelas mitocôndrias e se acumulam no citoplasma do hepatócito, formando gotículas de gor- dura. A esteatose da DHA costuma ser macrovesicular, mas pode ser microvesicular ou mista. É importante reconhecer que a esteatose hepática não neces- sariamente é induzida pela ingesta de álcool – existem di- versas outras causas para este achado histopatológico. A esteatose hepática induzida pelo álcool é reversível com a cessação do etilismo. ESTEATO-HEPATITE. Diz-se que a esteatose hepática está complicada por um quadro de “hepatite alcoólica” sobreposta quando todas as alterações a seguir forem notadas na biópsia hepática: (1) necrose hepatocitária; (2) infiltrado neutrofílico; (3) distribuição perivenular (central) do infiltrado; e (4) corpúsculos de Mallory. Os corpúsculos de Mallory (ou hialino de Mallory) são acúmulos citoplasmáticos de ma- terial eosinofílico. Não parecem ter papel di- reto no dano hepático, representando apenas uma consequência da lesão induzida pelo eta- nol. Também podem aparecer em outras con- dições. Figura 1 – Corpúsculos de Mallory nos hepatócitos. Para receber o diagnóstico de “esteato-hepatite” é pre- ciso que, além de esteatose, exista também necrose hepatocitária e infiltração do parênquima por neutrófi- los. A infiltração por neutrófilos é um dos grandes marcos da esteato-hepatite alcoólica. O TNF-α produ- zido pelas células de Kupffer (em resposta ao aumento da translocação intestinal de LPS) é uma citocina que recruta esse tipo de leucócito. A esteato-hepatite é potencialmente reversível com a abstenção do etilismo. CIRROSE HEPÁTICA. Assim como acontece em outras formas de cirrose, na etiologia alcoólica a deposição de colágeno no parênquima hepático é mediada pelas células estreladas perissinusoidais. Na DHA, a fibrose se inicia na região centrolobular, tornando-se panlobu- lar em um segundo momento. No começo, o processo é potencialmente reversível, porém, nos indivíduos que mantêm a ingesta etílica elevada, a evolução para fi- brose panlobular é geralmente definitiva. Manifestações clínicas e complicações A perda progressiva de hepatócitos funcionantes leva a uma série de alterações que se instalam de maneira insidiosa. Distúrbios endócrinos e hemodinâmicos predominam nas fases iniciais da hepatopatia, enquan- to problemas como encefalopatia hepática, hipoalbu- minemia e coagulopatia aparecem nas fases mais avançadas. Os distúrbios endócrinos são caracterizados pelo hiperestrogenismo e hipoandrogenismo, explican- do em parte alguns achados semiológicos da cirrose, como o eritema palmar, as telangiectasias, a gineco- mastia, a rarefação dos pelos e a atrofia testicular. As alterações hemodinâmicas da cirrose são complexas: ao lado de um estado hiperdinâmico de alto débito cardíaco e retenção hidrossalina, observa-se uma hipo- volemia relativa. Achados periféricos Sinais de hiperestrogenismo e hipoandrogenismo A cirrose hepática altera a homeostase dor hormônios sexuais. O mecanismo envolvido é resultante da depu- ração diminuída de estrogênios endógenos pelo fígado doente em combinação com síntese hepática diminuída da globulina ligadora de hormônios esteroides; esses mecanismos resultam em tecidos recebendo concentra- ções de estrogênios mais altas que o normal. Além disso, uma meia-vida mais longa de androgênio pode permitir um grau mais alto de aromatização periférica (conversão a estrogênios por, p. ex., tecido adiposo, folículos pilosos), aumentando ainda mais efeitos se- melhantes a estrogênios em portadores de cirrose. Alterações hormonais: Hiperestrogenismo + Hipoandrogenismo O hiperestrogenismo é responsávelpelas alterações vasculares cutâneas da cirrose, representadas pelo eri- tema palmar (decorrente da vasodilatação cutânea restrita à região palmar) e pelas telangiectasias (carac- terizadas por dilatação arteriolar central ligando-se a capilares dilatados dispostos radialmente, que desapa- recem à puntipressão) do tipo “aranha vascular”. Altos níveis de estrogênio causam proliferação e dilatação de vasos cutâneos, especialmente na porção superior do corpo. Figura 2 – Telangiectasia do tipo “aranha vascular” Já o hipoandrogenismo é responsável pela queda da libido, impotência masculina, atrofia testicular, redu- ção importante da massa muscular (evidenciada pela atrofia dos músculos interósseos das mãos) e rarefação de pelos. A ginecomastia é decorrente do hipoandro- genismo associado ao hiperestrogenismo. Figura 3 – Ginecomastia Baqueteamento (ou hipocratismo) digital A ponta dos dedos se torna “abaulada” na base da unha, dando ao dedo um aspecto de baqueta de tambor. O que ocorre é um aumento volumétrico de tecido subcutâneo vascularizado da extremidade digital. Vale lembrar que existe o baqueteamento digital here- ditário, de herança autossômica dominante. Além dis- so, a gênese de tal achado não é exclusiva da cirrose hepática: causas por doenças intratorácicas e pulmona- res, doenças cardíacas e doenças gastrointestinais po- dem produzir baqueteamento digital. Figura 4 – Baqueteamento digital Distúrbios hemodinâmicos Embora os distúrbios hemodinâmicos da cirrose hepá- tica sejam altamente dependentes da hipertensão por- tal, a disfunção hepatocelular também pode contribuir para sua gênese. Uma teoria clássica, chamada Teoria do Underfilling, diz o seguinte: a hipertensão portal da cirrose provoca o extravasamento de líquido intravascular para a cavi- dade peritoneal, através dos sinusoides hepáticos. Essa pequena queda da volemia estimula os barorreceptores a ativar o sistema renina-angiotensina-aldosterona, o sistema nervoso simpático e a liberação de ADH. A ativação desses sistemas promove a retenção hidrossa- lina pelos rins na tentativa de restaurar a volemia. Po- rém todo o líquido retido volta a extravasar para a ca- vidade peritoneal, formando um ciclo vicioso no qual quanto mais líquido extravasa, maior a tendência hi- povolêmica e quanto maior a tendência hipovolêmica, maior a retenção hidrossalina renal e quanto maior a retenção hidrossalina renal, mais líquido extravasa para o peritônio. Com isso, o portador de cirrose vai formando ascite e mantém-se sempre com uma ten- dência hipovolêmica. Outras alterações hemodinâmicas são encontradas em cirróticos, como a vasodilatação sistêmica, o aumento do débito cardíaco e o aumento absoluto da volemia total. Essas mudanças são explicadas pela Teoria da Vasodilatação. Teoria da Vasodilatação 1) Uma das primeiras alterações hemodinâmicas que surge na cirrose hepática é a vasodilatação arterio- lar esplâncnica (hiperemia mesentérica). O meca- nismo dessa vasodilatação é o aumento da síntese local de óxido nítrico (NO) pelo endotélio vascu- lar, um potente vasodilatador endógeno. A hiper- tensão portal contribui para a gênese desse fenô- meno – ao desviar sangue mesentérico para a cir- culação cava, sem passar pelo fígado, perde-se o “filtro hepático” contra bactérias Gram-negativas provenientes da translocação intestinal. A endoto- xina oriunda de tais bactérias estimula a síntese endotelial de NO. 2) A vasodilatação esplâncnica desloca uma parte da volemia para este território vascular, reduzindo consequentemente o volume sanguíneo que per- funde outros órgãos e tecidos – chamado de vo- lume arterial efetivo. A queda desse volume esti- mula os barorreceptores renais e carotídeos, tendo como resultado a ativação do sistema renina- angiotensina-aldosterona, sistema nervoso simpá- tico e liberação de ADH. Estes sistemas neuro- hormonais estimulam os rins a reterem sal e água, na tentativa de restaurar o volume arterial efetivo. 3) A retenção hidrossalina aumenta a volemia total, porém esse volume sanguíneo adicional está qua- se todo sequestrado nos vasos esplâncnicos dila- tados e, portanto, não corrige o déficit de volume arterial efetivo. A retenção hidrossalina persiste, e o paciente começa a formar ascite, pois o excesso de líquido presente no território mesentérico co- meça a transudar diretamente para a cavidade pe- ritoneal em consequência ao aumento de permea- bilidade que acompanha a vasodilatação, fenôme- no potencializado pela queda na pressão coloi- dosmótica do plasma (resultante da hipoalbumi- nemia). Conclusão: o paciente apresenta: (1) redução do vo- lume arterial efetivo, comportando-se como um paci- ente hipovolêmico, inclusive com tendência à hipo- tensão arterial e azotemia pré-renal; (2) aumento da volemia total, distribuída no território esplâncnico e portal; (3) aumento do sódio e da água corporal total, que se distribui principalmente no peritônio (ascite) e no interstício (edema); (4) redução da resistência vas- cular periférica, pela intensa vasodilatação; e (5) au- mento do débito cardíaco, já que o coração está bom- beando contra uma baixa resistência (fenômeno seme- lhante ao que ocorre na sepse). Encefalopatia hepática O termo “encefalopatia hepática” se refere a uma sín- drome neuropsiquiátrica potencialmente reversível que pode surgir em pacientes portadores de hepatopatia crônica avançada ou mesmo na insuficiência hepática aguda. É causada pela passagem de substâncias tóxicas provenientes do intestino para o cérebro, que em uma pessoa normal seriam depuradas pelo fígado. Normal- mente é causada por uma disfunção hepatocelular e/ou uma hipertensão portal que cria um shunt portossistê- mico. Uma das substâncias mais implicadas na gênese da encefalopatia hepática é a amônia (NH3). As principais fontes de amônia intestinal são: Figura 5 - Fisiopatologia da disfunção circulatória na cirrose hepática. SRAA = sistema renina-angiotensina-aldosterona; HAD = hormônio antidiurético. enterócitos - metabolismo do aminoácido glutamina; (2) bactérias colônicas – catabolismo de proteínas alimentares e da ureia secretada no lume intestinal. O fígado normal depura quase toda a amônia presente no sistema porta. Os hepatócitos transformam esse com- posto de alta toxicidade no aminoácido glutamina ou em ureia. Patogênese A encefalopatia hepática, em sua natureza metabólica da disfunção cerebral, possui reversibilidade do quadro (pelo menos parcial) e ausência de alterações neuropa- tológicas orgânicas. Porém, a encefalopatia hepática crônica pode produzir alterações orgânicas degenerati- vas no cérebro, consequentes do processo patológico. A principal alteração descrita consiste em mudanças morfológicas e funcionais dos astrócitos tipo II decor- rentes de edema celular (astrocitose tipo II de Alzhei- mer). Surge, nesses casos, degeneração de células nervosas e de fibras axonais do cérebro, cerebelo e medula espi- nhal, com áreas de cavitação microscópicas, conferin- do uma aparência esponjosa. Para esse tipo de altera- ção patológica, emprega-se o termo “degeneração he- patocerebral adquirida”. As substâncias relacionadas com a encefalopatia são: amônia, mercaptanos, manganês, oxindoles, ácidos graxos de cadeia curta, “falsos neurotransmissores” (octopamina, feniletanolamina), aminoácidos aromáti- cos (triptofano, fenilananina, tirosina), benzodiazepi- nas endógenas. A hiperamonemia é um achado quase universal na insuficiência hepática grave. A amônia é uma impor- tante neurotoxina. Os efeitos da amônia no metabolis- mo cerebral incluem: (1) aumento da captação de ami- noácidos aromáticos pela barreira hematoencefálica; (2) aumenta a osmolaridade de células da glia (astróci- tos), fazendo com que estas se tornem edemaciadas (edema cerebral do tipo celular);(3) inibe a atividade elétrica neuronal pós-sináptica; (4) estimula a produ- ção de GABA, um importante depressor da atividade cortical. Os aminoácidos aromáticos dão origem a neurotransmissores inibitórios do tipo serotonina e aos falsos neurotransmissores. Outro ponto importante na patogênese da encefalopatia hepática é a hiperatividade do sistema neurotransmis- sor GABAérgico. O GABA é um neurotransmissor inibitório cujo receptor pós-sináptico pode ser estimu- lado por benzodiazepínicos. Neurotoxinas como a amônia aumentam indiretamente a atividade desse sistema, através da estimulação da síntese de neuroes- teroides, que são moduladores do GABA. Sinais e sintomas Pode-se classificar a encefalopatia hepática (EH) de acordo com a apresentação clínica: (1) EH mínima (ou subclínica). Definida pela pre- sença de alteração neuropsiquiátrica só detectada por testes neuropsicométricos. Tais alterações são tão sutis que geralmente não são percebidas nem pelo paciente nem pelo médico, mas estão presen- tes em até 70% dos cirróticos. O que mais preocu- pa nesse tipo de EH é a dificuldade para dirigir, devendo o paciente ser orientado em relação a isso. (2) EH aguda esporádica, espontânea ou desenca- deada por fatores precipitantes. Normalmente, são os casos em que o paciente é trazido ao hospi- tal por familiares, com quadro de desorientação, agitação psicomotora, torpor, obnubilado ou até mesmo em estado de coma (“coma hepático”). A grande maioria dos pacientes melhora do quadro neurológico com uma terapia voltada para a EH e com controle do fator precipitante. A EH desse tipo compreende várias anormalidades neurológicas e psiquiátricas, tais como distúrbios de comportamento (agressividade, agitação), so- nolência e/ou letargia, inversão do ciclo sono- vigília (insônia noturna com sonolência diurna), fala arrastada com bradipsiquismo, hálito he- pático (ou fetor hepaticus), asterixis (flapping), incoordenação muscular e hipertonia, escrita irregular, reflexos tendinosos exacerbados ou alentecidos, sinal de Babinski, crises convulsivas e postura de descerebração. Os fatores precipitantes da EH incluem: hemorra- gia digestiva alta, hipocalemia, alcalose metabólica ou respiratória, desidratação/hipovolemia, diuréti- cos, infecções, sedativos, dieta hiperproteica, pro- cedimentos cirúrgicos, constipação intestinal, hi- póxia e shunts portossistêmicos e cirúrgicos. (3) EH crônica, continuamente sintomática. (4) EH associada à insuficiência hepática fulminan- te. O diagnóstico clínico da EH é baseado na presença de alterações cognitivas que variam conforme o seu grau: Classificação da EH de acordo com a gravidade Grau I Confusão leve, euforia, ansiedade ou depres- são, voz arrastada, alteração do ritmo de sono, irritabilidade, dificuldade de atenção. Grau II Acentuação dos sintomas anteriores, sono- lência, letargia, comportamento inadequado, confusão mental e flapping. Grau III Confusão pronunciada, desorientação no tempo e espaço, torpor. Grau IV Coma com ou sem resposta a estímulos do- lorosos. Icterícia A icterícia resulta da retenção da bile. A formação da bile pelo fígado serve como via de eliminação de bilir- rubina, colesterol em excesso e xenobióticos insufici- entemente hidrossolúveis para serem excretados na urina e serve como emulsificador de gordura da dieta na luz do tubo digestório, através dos ácidos biliares. A formação da bile é um processo que pode ser facilmen- te interrompido por lesão hepática. A icterícia ocorre devido à retenção sistêmica de produtos da bilirrubina em valores séricos acima de 2 mg/dL (VR: < 1,2 mg/dL em adultos). Bilirrubina e ácidos biliares A bilirrubina é o produto final da degradação do grupo heme proveniente dos eritrócitos pelo sistema fagocíti- co mononuclear. A bilirrubina assim formada fora do fígado, no interior de células do sistema fagocítico mononuclear (inclusive o baço) é liberada para se ligar à albumina sérica. O processamento hepático da bilir- rubina envolve a seguinte sequência de eventos: (1) Captação mediada por transportador na membrana sinusoidal (2) Ligação à proteína citosólica e entrega ao retículo endoplasmático (3) Conjugação com moléculas de ácido glicurônico pela bilirrubina UDP-glicuroniltransferase (4) Excreção de glicuronídeos de bilirrubina atóxicos hidrossolúveis na bile. A maioria desses compos- tos são desconjugados por β-glicuronidases bacte- rianas e degradados a urobilinogênios incolores. Os urobilinogênios e o resíduo de pigmento intacto são 80% excretados pelas fezes e 20% reabsorvi- dos, retornando ao fígado e re-excretados na bile. Os ácidos biliares conjugados e não conjugados também são reabsorvidos no íleo e retornam ao fí- gado pela circulação êntero-hepática. No adulto normal, a taxa de produção sistêmica de bilirrubina é igual às taxas de captação hepática, con- jugação e excreção biliar. A icterícia ocorre quando o equilíbrio entre a produção e a remoção de bilirrubina é perturbado. A icterícia possui uma ampla gama etiológica, poden- do ser pré-hepática (por destruição excessiva de hemá- cias), intra-hepática (no caso da cirrose, por captação e conjugação reduzida de bilirrubina e lesão hepatocelu- lar) e pós-hepática (obstrução do fluxo da bile). Figura 6 - Metabolismo e eliminação da bilirrubina. (1) A produção normal de bilirrubina provém da degradação de eritrócitos circulan- tes senescentes. (2) A bilirrubina extra-hepática liga-se à albumina sérica e é transportada ao fígado. A (3) glicuronidação pela (4) glicuronosiltransferase nos hepatócitos geram glicuronídeos de bilirrubina, que são hidrossolúveis e excretados na bile. (5) Bacté- rias intestinais desconjugam a bilirrubina e a degradam até urobili- nogênios incolores, que ou são excretados nas fezes ou sofrem reabsorção para retornar ao fígado através da circulação êntero- hepática. Na icterícia intra-hepática ou hepatocelular, todas as etapas do metabolismo da bilirrubina – captação con- jugação e excreção – estão comprometidas. Os níveis das frações conjugada e não conjugada aumentam, a urina geralmente é escura em consequência da presen- ça de bilirrubina na urina e o nível sérico de fosfatase alcalina está ligeiramente elevado. Outras manifestações clínicas... ALTERAÇÕES NUTRICIONAIS E ICTERÍCIA. Fadiga, anorexia e perda de massa muscular pode ser manifes- tação da desnutrição proteico-calórica, associada à insuficiência hepatocelular, ou podem ser reflexo da ação de citocinas pró-inflamatórias, desencadeadas pelos mecanismos de agressão hepatocelular. Icterícia, por outro lado, pode ser decorrente da necrose de célu- las hepáticas, dos defeitos na conjugação da bilirrubina e dos distúrbios na excreção biliar em virtude da de- sorganização da estrutura hepática. COAGULOPATIA. O fígado é o principal local de sínte- se de todos os fatores de coagulação (com exceção do fator von Willebrand), do plasminogênio e dos inibido- res de protease antitrombina III e proteínas C e S. O fígado também é o principal local de degradação de fatores de coagulação ativados. Ou seja, na cirrose hepática, ocorre redução da síntese de fatores pró- coagulantes e antocoagulantes e diminuição dos fatores de coagulação ativados. Concomitantemente, observa- se plaquetopenia, secundária na maioria das vezes ao hiperesplenismo e disfunção plaquetária de origem multifatorial. SÍNDROME HEPATORRENAL. Constitui a manifestação terminal da disfunção circulatória, secundária à isque- mia renal por redução acentuada da taxa de filtração glomerular, associada a níveis elevados de angiotensi- na e hormônio antidiurético. Pode ser desencadeada por perda da auto-regulação do fluxo sanguíneo renal em consequência da diminuição da produção local de prostaglandinas. HEMORRAGIA POR VARIZES GASTROESOFÁGICAS. Caracterizadopor sangramento secundário à rotura de colaterais portossistêmicos localizados habitualmente na transição gastroesofágica (varizes esofágicas), e menos frequentemente no estomago, duodeno, intesti- no delgado, cólon e reto. Ocorre quando a pressão portal (medida pelo gradiente entre a veia hepática livre e ocluída) está acima de 12 mmHg e quando há varizes de médio e grosso calibre. SÍNDROME HEPATOPULMONAR. Caracterizada pela tríade (1) doença hepática crônica; (2) hipoxemia, com gradiente alvéolo-arterial aumentado (indicando pre- sença de shunt arteriovenoso) e (3) evidencias de alte- rações vasculares intrapulmonares. Manifesta-se como dispneia, cianose de lábios e extremidades, baquetea- mento digital e platipneia (dispneia que piora com a posição sentada ou em pé), acompanhada de ortodeo- xia (hipoxemia desencadeada ou agravada pela posição ortostática). SÍNDROME PORTOPULMONAR. Uma síndrome seme- lhante à hipertensão pulmonar primária, porém associ- ada à hipertensão porta. Pelo acúmulo de substâncias endotélio-tóxicas não depuradas pelo fígado, as arté- rias pulmonares periféricas sofrem remodelamento, com vasoconstrição, hiperplasia da média, espessa- mento da íntima e formação de trombos in situ. É ca- racterizada por dispneia progressiva aos esforços e sinais de sobrecarga de VD ao exame clínico, além de hiperfonese componente P2 da segunda bulha. Pode haver síncope e dor torácica. HIPOALBUMINEMIA E EDEMA PERIFÉRICO. A piora progressiva da função hepatocelular pode resultar na queda da concentração de albumina e outras proteínas séricas sintetizadas pelo fígado. Quando a concentra- ção dessas proteínas plasmáticas diminui, a pressão coloidosmótica do plasma também diminui, deslocan- do o equilíbrio das forças hemodinâmicas em direção ao desenvolvimento tanto de edema periférico quanto de ascite. PERITONITE BACTERIANA ESPONTÂNEA. O líquido ascítico previamente existente é infectado por bactérias do próprio organismo, sem perfuração visível ou contaminação direta. Ocorre secundariamente a translocação de bactérias intestinais até o líquido ascí- tico, com pouco conteúdo proteico e baixo poder bac- tericida. O quadro clínico é inespecífico. Dor abdomi- nal e febre são os sintomas mais frequentes, mais si- nais de peritonite, como descompressão brusca doloro- sa, são poucos frequentes. RESUMINDO... Sinais do complexo hiperestrogenismo e hipoan- drogenismo Eritema palmar Telangiectasias Ginecomastia Atrofia testicular Perda da libido Disfunção erétil Rarefação de pelos (padrão feminino nos homens) Sinais de hipertensão portal Ascite Varizes gastroesofágicas Sangramento digestivo Esplenomegalia congestiva – hiperesplenismo – trombocitopenia, leucopenia, anemia Circulação porta visível no abdome (cabeça de medusa) Síndrome de hipertensão portopulmonar Sinais de insuficiência hepatocelular descompen- sada (estágio mais avançado) Icterícia Encefalopatia hepática Coagulopatia Hipoalbuminemia Desnutrição Imunodepressão Síndromes hepatorrenal e hepatopulmonar Ainda, sinais clínicos de cirrose hepática de etiologia alcoólica incluem: Intumescimento de parótidas; Contratura palmar de Dupuytren; Neuropatia; Pancreatite crônica associada. Figura 7 - Consequências clínicas da hipertensão portal, no contex- to da cirrose. Diagnóstico Cirrose hepática é um termo anatomopatológico que deve ser empregado quando forem observadas à bióp- sia hepática as alterações estruturais características da doença. No entanto, o seu diagnóstico pode ser basea- do em parâmetros clínicos e laboratoriais, corrobora- dos por resultados de exames de bioimagem e por en- doscopia digestiva. Anamnese e exame físico Os portadores de cirrose hepática podem se apresentar de variadas maneiras: Hemorragia digestiva alta ou baixa; Ascite; Hepatomegalia e/ou esplenomegalia; Estigmas periféricos (Figura 7) Assintomático, sendo o diagnóstico associado a achados laboratoriais ou radiológicos sugestivos da doença; Sinais manifestos de encefalopatia hepática; Sinais sugestivos de carcinoma hepatocelular. Exames laboratoriais Existem certas anormalidades que sugerem a presença de cirrose hepática independente de causa subjacente. PROVAS DE LESÃO HEPÁTICA Aminotransferases As aminotransferases constituem indicadores sensíveis de lesão das células hepáticas. A aspartato aminotrans- ferase sérica (AST, ou TGO) é encontrada no fígado, músculo cardíaco, músculo esquelético, rins, cérebro, pâncreas, pulmões, leucócitos e eritrócitos, em ordem decrescente de concentração. A alanina aminotransfe- rase sérica (ALT, ou TGP) é encontrada principalmen- te no fígado, constituindo um marcador mais específi- co para lesão hepática. Não necessariamente precisa haver necrose de hepatócitos para haver a liberação de aminotransferases. Na cirrose inativa (sem atividade inflamatória), as aminotransferases podem estar completamente nor- mais. Logo, as aminotransferases não possuem acurá- cia o suficiente para estimar a gravidade da doença hepática. Quando aumentadas, sugerem atividade in- flamatória no parênquima. Nos casos em que há cirrose, a alanina e a aspartato aminotransferases séricas (ALT, AST) estão elevadas, sobretudo nos pacientes que mantêm libação etílica, com os níveis de AST sendo mais altos do que os ní- veis de ALT, habitualmente em uma relação de 2:1 (AST/ALT > 1). ENZIMAS QUE REFLETEM A COLESTASE Fosfatase alcalina e gama-Glutamil Transpeptidase (gama-GT) A fosfatase alcalina é encontrada dentro ou perto da membrana dos canalículos biliares dos hepatócitos, enquanto que a GGT fica localizada no retículo endo- plasmático e nas células epiteliais dos ductos biliares. Elevam-se de maneira mais significativa nas hepatopa- tias colestáticas, apresentando elevações menos pro- nunciadas nas lesões predominantemente hepatocelula- res. Logo, diante da suspeita de cirrose hepática, o encontro de elevados níveis de FA e GGT sugere etio- logias como cirrose biliar primária e colangite escle- rosante. EXAMES GERAIS BASEADOS NA FUNÇÃO HE- PÁTICA Bilirrubinas A bilirrubina é encontrada em duas frações – conjuga- da e não conjugada. A fração não conjugada (indireta) é insolúvel na água e está acoplada à albumina no san- gue. A fração conjugada (direta) é hidrossolúvel, po- dendo, portanto, ser excretada pelos rins. A hiperbilirrubinemia não conjugada raramente se deve a doença hepática, e está relacionada principal- mente com distúrbios hemolíticos. Já a hiperbilirrubi- nemia conjugada implica quase sempre em doença do fígado ou do trato biliar. Na verdade, a etapa que limita o ritmo no metabolismo da bilirrubina não é sua con- jugação, mas sim o transporte da bilirrubina conjugada para dentro dos canalículos biliares. Dessa forma, a elevação da fração conjugada pode ser observado em qualquer tipo de hepatopatia. A hiperbilirrubinemia é um fator de mau prognóstico na cirrose hepática, ocorrendo principalmente à custa de fração direta. A dosagem de bilirrubina também constitui um componente de importância crítica no escore MELD (Model for End-Stage Liver Disease) E Child-Pugh, instrumentos importantes usados como escalas prognósticas no estadiamento da hepatopatia. Classificações Child-Pugh A possuem sobrevida de 1 ano de 100%; classificação B possui sobrevida de 1 ano de 80%; e classificação C possui sobrevida de 1 ano de 45%. Classificação de Child-Turcotte-Pugh Escore 1 2 3 Bilirrubinas mg/dL < 2 2,0-3,0 > 3 Albumina g/dL > 3,5 3,0-3,5 < 3 Ascite Não Fácil controle Difícil controle Encefalopatia Não I/II III/IV Tempo de protombina (seg>controle) < 4 4-6 > 6 Child A – 5 a 6 pontos (sobrevida de 1 ano de 100%) Child B – 7 a 9 pontos (sobrevida de 1 ano de 80%)Child C – 10 a 15 pontos (sobrevida de 1 ano de 45%) Hipoalbuminemia Denota insuficiência crônica de síntese hepatocelular. O déficit de síntese costuma ser associado à desnutri- ção proteico-calórica, comum ao paciente cirrótico, o que piora ainda mais a hipoalbuminemia. Isso é fre- quente nos etilistas crônicos portadores de cirrose al- coólica. Alargamento do tempo de protrombina e diminui- ção da atividade de protrombina Considerando que o fígado é o principal sítio de sínte- se de fatores de coagulação (incluindo os fatores vita- mina K dependentes), uma redução significativa da função hepática resulta em coagulopatia (tendência hemorrágica). Hipergamaglobulinemia O cirrótico apresenta tendência aumentada à ocorrên- cia do fenômeno translocação intestinal bacteriana (bacteriemia espontânea a partir do trato GI). Assim, os linfócitos B sofrem certo grau de hiperestimulação constante na cirrose hepática, podendo resultar em hipergamaglobulinemia quando há presença de cirrose hepática avançada e hipertensão porta grave. Sódio sérico A hiponatremia é um marcador de péssimo prognósti- co na cirrose avançada com ascite. Seu mecanismo é a incapacidade de excretar água livre, decorrente do excesso de ADH. Esse excesso, por sua vez, é estimu- lado pela redução do volume circulante efetivo. Pancitopenia Na cirrose avançada complicada por hipertensão por- tal, há esplenomegalia e hiperesplenismo, com conse- quente redução do número de plaquetas circulantes (sinal mais precoce), mas também da hematimetria e da contagem de leucócitos (sinais mais tardios). A anemia do paciente cirrótico costuma ser multifatorial (desnutrição, sangramento digestivo crônico, supressão medular pelo álcool ou vírus), sendo mais comum ainda a ocorrência de anemia de doença crônica, se- cundária à doença de base. EM RESUMO... Na cirrose e na hepatite alcoólica, tem-se que: Bilirrubina: ambas as frações podem estar eleva- das; pode haver bilirrubinúria. Aminotransferases: AST/ALT > 1 sugere hepatite alcoólica ou cirrose Fosfatase alcalina: Normal até uma elevação de < 3 vezes o valor normal. Albumina: frequentemente diminuída. Tempo de protombina: frequentemente prolon- gada. Diagnóstico por exames de imagem O papel da radiologia na avaliação da cirrose inclui (1) avaliar as alterações morfológicas da doença; (2) ava- liar a vascularização hepática e extra-hepática; (3) detectar e estimar os efeitos da hipertensão portal; e (4) identificar tumores hepáticos, diferenciando o carci- noma hepatocelular de outros tipos de tumor. Tendo esses objetivos em mente, várias técnicas de imagem podem ser utilizadas: Ultrassonografia convencional do abdome (USG). Ultrassonografia do abdome com Doppler (USGD) Tomografia computadorizada do abdome (TC). Ressonância magnética (RM). Angiorressonância magnética (ARM). Arteriografia com ou sem lipiodol (AG). Nas fases iniciais da cirrose, todos esses exames po- dem ter resultados normais. Por outro lado, nas fases mais avançadas, a USG, TC e RM costumam detectar alterações sugestivas da doença. Desse modo, o papel da radiologia é corroborar uma forte suspeita clínica de cirrose. As alterações mais encontradas na cirrose bem estabelecida incluem: Nodularidade da superfície hepática Heterogeneidade do parênquima hepático Alargamento da porta hepatis e da fissura interlo- bar Redução volumetria do lobo hepático direito e do segmento médio do lobo hepático esquerdo Aumento volumétrico do lobo caudado e do seg- mento lateral do lobo hepático esquerdo Identificação de nódulos regenerativos. Nesse ca- so, a ARM constitui o método superior aos demais. Figura 8 - RM de abdome O padrão ouro para o diagnóstico de cirrose hepática é a histopatologia, com base no achado de espessos e completos septos fibrosos porta-centro e porta-porta, os quais delimitam nódulos. Quando os dados clínicos, laboratoriais e radiológi- cos são extremamente sugestivos de cirrose avança- da (ascite, esplenomegalia, hipoalbuminemia, fíga- do atrofiado, heterogêneo e nodular), a biópsia ge- ralmente é desnecessária. A biópsia hepática, além de confirmar o diagnóstico de cirrose, também pode fornecer pistas quanto a sua etio- logia. A biópsia percutânea não deve ser realizada em pacientes com atividade de protrombina < 50% ou INR > 1,3 ou plaquetas < 80 mil/mm³. Referências Bibliográficas GROSSMAN, Sheila C; PORTH, Carol Mattson. Porth’s pathophysiology concepts of altered health states. Philadelphia [u.a.: Wolters Kluwer Lippincott Williams & Wilkins, 2014. KASPER, Dennis L. (Org.). Harrison’s princi- ples of internal medicine. 19th edition / editors, Dennis L. Kasper, MD, William Ellery Channing, Professor of Medicine, Professor of Microbiology, Department of Microbiology and Immunobiology, Harvard Medical School, Division of Infectious Diseases, Brigham and Women's Hospital, Bos- ton, Massachusetts [and five others]. New York: McGraw Hill Education, 2015. KIERSZENBAUM, Abraham L.; TRES, Laura L. Histology and cell biology: an introduction to pathology. Fourth edition. Philadelphia, PA: Elsevier, 2016. KUMAR, Vinay; ABBAS, Abul K; ASTER, Jon C. Robbins patologia básica. Rio de Janeiro: Elsevier Editora, 2013. Disponível em: <http://public.eblib.com/choice/publicfullrecord.a spx?p=1746527>. Acesso em: 16 abr. 2019. MARTINS, Mílton de Arruda; CARRILHO, Flair José; ALVES, Venâncio Avancini Ferreira; et al. Clínica médica. Barueri, SP: Manole, 2009. MCPHEE, Stephen J; HAMMER, Gary D. Path- ophysiology of disease: an introduction to clini- cal medicine. [s.l.: s.n.], 2019. http://public.eblib.com/choice/publicfullrecord.aspx?p=1746527 http://public.eblib.com/choice/publicfullrecord.aspx?p=1746527
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