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FUNDAMENTOS HISTÓRICOS, TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DO SERVIÇO SOCIAL II UNIDADE 2: O MOVIMENTO DE RECONCEITUAÇÃO DO SERVIÇO SOCIAL WEBAULA 2 Caro aluno (a) Agora você vai começar a compreender por que o Serviço Social possui o contorno que vemos hoje. Se na contemporaneidade a profissão está articulada e comprometida com a classe trabalhadora, você poderá observar nesta web aula que nem sempre foi assim. O rompimento com o Serviço Social conservador se deu diferentemente em cada país da América Latina e com perspectivas distintas nos chamados países do cone sul – Argentina, Chile, Uruguai e Brasil. Esses países, assim, como o Brasil, vivenciaram, a partir, do contexto da década de 1960, diversos golpes de Estado. Em nossa profissão, ocorre nesse mesmo período o Movimento de Reconceituação Latino- Americano, que buscou a superação do Serviço Social tradicional rompendo com a visão e a metodologia importadas. Essa crítica se estendia à leitura ultrapassada da realidade, em que se culpabilizava o sujeito frente às demandas. Aqui no Brasil, vivíamos sob o Regime “Autocrata-Burguês”, nome dado pelo sociólogo Florestan Fernandes, e que Netto (2015) destaca como sendo um regime político ditatorial-terrorista. O Movimento de Reconceituação do Serviço Social, iniciado na década de 1960, representou uma tomada de consciência crítica e política dos assistentes sociais em toda a América Latina – muitas vezes, diante de regimes ditatoriais –, não obstante, no Brasil as condições políticas em que o movimento ocorreu trouxeram elementos muito diversos dos traçados em outros países. DO SERVIÇO SOCIAL TRADICIONAL AO PROCESSO DE RENOVAÇÃO DA PROFISSÃO Até a década de 1960, o Serviço Social não apresentava polêmicas de relevo (NETTO, 2015, p. 168), mas o que isso significa? No debate profissional, oriundo das décadas de 1930-1950, destacava-se um certo consenso em torno do que Iamamoto (1992, p. 21) definiu como “arranjo teórico doutrinário”, um certo ecletismo, uma mistura de elementos científicos e religiosos, como exemplo destacam-se o Neotomismo, da chamada Doutrina Social da Igreja Católica, e o Positivismo. (O Neotomismo é uma filosofia que, entre os séculos XIX e XX, orientou as encíclicas papais Rerum Novarum, de 1891, e Quadragesimo Anno, de 1931, defendendo uma sociedade unida para atingir o “bem comum”, para isso, era preciso uma renovação moral e a realização de ações sociais vinculadas ao catolicismo, ou seja, a prática da caridade cristã). Por outro lado, representando uma cientificidade na profissão, destaca-se o Positivismo (teoria sociológica elaborada pelo francês Augusto Comte, no século XIX, que assimilava o método das ciências naturais para a nascente ciência social. Em seus primórdios no Brasil, a profissão no Serviço Social assimilou em sua formação esses elementos (Neotomismo e Positivismo). No fim da década de 1950, no governo de Juscelino Kubitschek (50 anos em 5), ocorre uma aceleração da industrialização, o que provocou um agravamento das expressões da “Questão Social”, por conta da intensificação da exploração da classe trabalhadora, sobretudo nas grandes cidades. Por expressões da “Questão Social”, lembremos que se tratam de: [...] expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo seu reconhecimento como classe por parte do Empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção, mais além da caridade e da repressão. (IAMAMOTO, 2009, p. 77) Nesse momento, a profissão começa um movimento de laicização, ou seja, com a entrada nos círculos universitários, verifica-se cada vez mais o afastamento da Igreja Católica. Os(as) assistentes sociais, por conta da “Questão Social”, passam a ser contratados(as) em novos campos de trabalho, principalmente nas indústrias, com a “missão” de pacificar/docilizar as relações patrão x trabalhadores, o que exigiu, essencialmente uma cientificidade e tecnificação. Uma incorporação de elementos da Administração, da Psicologia, para atender as requisições da profissão: Destaquemos, imediatamente, este ponto: tal laicização, com tudo que implicou e implica, é um dos elementos caracterizadores da renovação do Serviço Social sob a autocracia burguesa. Se é verdade que ela vinha se operando desde os finais da década de 1950, a sua culminação está longe de resultar de um acúmulo “natural” – foi precipitada pelo desenvolvimento das relações capitalistas durante a “modernização conservadora” e só é apreensível levando-se em conta as suas incidências no mercado nacional de trabalho e nas agências de formação profissional. (NETTO, 2015, p. 169, itálico e aspas do autor). Tem início a chamada erosão do Serviço Social tradicional ou conservador, termo adotado pelo professor José Paulo Netto, em seu livro Ditadura e Serviço Social, um texto de referência para compreender as alterações vivenciadas pela profissão. O modelo pautado pelo tradicionalismo, calcado nos princípios neotomistas e positivistas, já não produzia mais respostas concretas às demandas que o Brasil vivia. As metodologias tradicionais (caso, grupo e comunidade) se mostravam inadequadas, para a “missão” atribuída à profissão, a partir dos anos 1960. O Estado brasileiro, do ponto de vista econômico, adota como estratégia do projeto de industrialização o “desenvolvimentismo”, que consistia na ideia de que era preciso garantir o desenvolvimento econômico, em primeiro plano, e a reboque, na sequência, atingiríamos o desenvolvimento social. Esse conceito legitimou o projeto industrial brasileiro das décadas de 1950-1980, estando presente em governos de diferentes espectros políticos-ideológicos (tanto em governos populistas, como os de JK, Jânio Quadros e Jango, como nos governos ditatoriais). O economista Celso Furtado, aprofundou o conceito de desenvolvimentismo em seu livro Formação econômica do Brasil (2009). Para exemplificar, no auge do “milagre” econômico brasileiro, lembremos-nos da frase do então ministro da Fazenda do governo Médici, [...] “é preciso deixar o bolo crescer, para depois dividir”. O projeto desenvolvimentista intensificou a transferência da mão de obra do campo para as cidades, no conhecido fenômeno do “êxodo rural”. Porém, sem o mínimo planejamento urbano. Logo, a classe trabalhadora sofreu as inúmeras expressões da “Questão Social”, advindas desse processo: falta de moradia para todos; meios de transporte público precários; intensa exploração; salários baixos; fome; miséria absoluta; falta de serviços públicos de saúde, educação, assistência social, enfim, uma variedade de fatores que dificultaram as condições de vida. Especificamente em relação ao Serviço Social, no discurso e na ação governamentais havia um claro componente de validação e reforço do que Netto caracterizou como Serviço Social “tradicional”, ou seja, [...] prática empirista, reiterativa, paliativa e burocratizada dos profissionais, parametrada por uma ética liberal-burguesa e cuja teleologia consiste na correção de resultados psicossociais considerados negativos ou indesejáveis, sobre o substrato de uma concepção idealista e/ou mecanicista da dinâmica social, sempre pressuposta a ordenação capitalista da vida social como um dado factual ineliminável. (NETTO, 1981, p. 44) Em 1961, no II Congresso Nacional de Serviço Social promovido pelo CBCISS (Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviço Social), há a incorporação do discurso desenvolvimentista, contou inclusive com a presença de Jânio Quadros, presidente de honra do Congresso. No evento, o discurso profissional foi permeado por palavras como crescimento e mudança: A preocupação central do que poderia ser caracterizado como projeto desenvolvimentistajanista estaria na formação de uma nação forte, com um povo forte e uma economia globalmente forte. Desse eixo central decorre uma atenção especial ao social; a meta prioritária é o homem e não o crescimento econômico em si mesmo. [...] A vitória do janismo representa, assim, a colocação na ordem do dia uma nova estratégia desenvolvimentista, que, mantendo os grandes eixos do crescimento econômico, passaria a centrar-se no homem, no pleno florescimento de suas capacidades, tudo dentro da ordem e do respeito à dignidade da pessoa humana. (NETTO, 2015, p. 365-366) Claramente, o Serviço Social, na entrada dos anos de 1960, vivia uma efervescência. Primeiro, pelo agravamento das expressões da “Questão Social”, fator, este, que legitimava a intervenção profissional com a população que sofria essas consequências, em segundo plano, o reconhecimento social, conferido à profissão, tanto pelo Estado brasileiro, quanto pelos meios empresariais, o que aumentou a sua participação na esfera da Universidade, durante o período, surgem outras escolas de Serviço Social, sem origem católica, também, nesta que, em seus primórdios, era uma profissão “quase” que exclusivamente feminina observa-se, agora, a crescente presença de homens assistentes sociais. Entretanto, a “questão social” era entendida como “problema social”. A leitura predominante nos meios profissionais era a de que a intervenção adequada resolveria esse “problema”. Assim, o Serviço Social atuava na lógica do “ajustamento” dos indivíduos à ordem social vigente. Como metodologia, ou as formas de atuação, a disseminação do tripé: caso, grupo e comunidade. Apontando um breve balanço do que debatemos até aqui: o Estado brasileiro, entre o fim dos anos de 1950 até a década de 1980, promoveu um intenso processo de industrialização, o que provocou um agravamento das condições de vida das populações pobres, sobretudo nas grandes cidades, o nosso Serviço Social é chamado, tanto pelo Estado como pelo empresariado, a colaborar com a conjuntura, por meio de ações, métodos de ajustamento dos indivíduos. Mas e no plano internacional? Qual era a conjuntura política e econômica? Tinha algo a ver com nosso país? Para responder a essas indagações, vamos apontar alguns acontecimentos, tanto em nível de América Latina como em nível mundial. No pós-guerra (1945-1990), o mundo se polarizou entre duas potências: Estados Unidos da América, influenciando o bloco capitalista, e, do outro lado, a União Soviética, representante do bloco socialista. Esses dois países protagonizaram um pesado embate no plano internacional, que foi denominado Guerra Fria. Embora ambos não tenham chegado a entrar em guerra entre si, buscavam, com a chamada Guerra Fria, garantir hegemonia sobre outros países. Só para exemplificar, em 1959, a Revolução Cubana, comandada pelos irmãos Castro, que depôs o ditador Fulgêncio Batista e teve forte apoio da União Soviética. Esse acontecimento abalou os EUA, pois em uma pequena ilha, geograficamente muito próxima, agora havia um governo aliado dos soviéticos. Assim, os EUA começam, a partir dos anos 1960, uma intensa política ofensiva imperialista para garantir a sua hegemonia, o seu controle, sobre a América Latina. O ano de 1968 é outro marco bastante emblemático para o mundo, ficou para a História como “o ano que não terminou”. Na Europa, a organização política do movimento estudantil na França, questionando o status quo, ganha o apoio dos trabalhadores e sindicatos. Nos Estados Unidos, acontecem os assassinatos de Martin Luther King e de Robert Kennedy. Nesse mesmo ano, a intensificação do conflito na Guerra do Vietnã provoca uma onda de protestos de jovens. Na Tchecoslováquia, houve a Primavera de Praga; percebam, esses inúmeros acontecimentos marcaram profundamente o mundo todo. Esses movimentos, bastante heterogêneos, aconteceram em uma época em que o Brasil era fortemente influenciado pelos Estados Unidos da América, lembrando que estávamos em plena Guerra Fria. No nosso país, já vivíamos sob a Ditadura Militar, instalada em 1964; e “no ano que não terminou”, temos um contexto político bastante violento, o presidente Costa e Silva assina o Ato institucional n. 5, demonstrando o “endurecimento” do regime, instituindo forte repressão (inclusive com a tortura) a qualquer forma de contestação. Esse era o “pano de fundo” em que os(as) assistentes sociais latino- americanos iniciaram o Movimento de Reconceituação. Netto (2015) dividiu a erosão do Serviço Social tradicional em três dimensões/momentos, que trataremos a seguir: a perspectiva da modernização conservadora, a perspectiva de reatualização do conservadorismo e a perspectiva de intenção de ruptura. A PERSPECTIVA DA MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA No contexto do Serviço Social brasileiro, é a partir dos anos 1960 que a profissão começa a se questionar quanto aos aspectos teóricos e metodológicos utilizados na formação universitária e intervenção profissionais. O Movimento de Reconceituação da profissão buscava romper com os postulados positivistas/funcionalistas. Esse movimento pretendia um Serviço Social brasileiro e latino-americano pensado a partir da nossa realidade social, criticava fortemente as metodologias importadas dos EUA. Os(as) assistentes sociais iniciam um processo de repensar a profissão que fosse capaz de dar respostas às demandas territoriais e às desigualdades sociais por que passava o continente latino-americano. Esse movimento não foi coeso, pois havia diferentes concepções no interior do debate, também é preciso ressaltar as diferentes conjunturas políticas e econômicas dos países que vivenciaram a Reconceituação. A predominância desse movimento ocorreu sobretudo nos países do Cone Sul do continente: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile. No contexto brasileiro, permeado pela lógica do controle e da repressão instalados pela Ditadura Militar, a partir de 1964 foi cerceado o debate político no interior da profissão, a dimensão política só entrou em questão a partir do final dos anos 1970, quando, já bastante desgastados pela forte oposição, os militares começaram o processo de abertura política, que ocorreu de modo “lento, gradual e seguro”, parafraseando o presidente Ernesto Geisel. Assim, os(as) assistentes sociais brasileiros focaram as discussões em fatores metodológicos e teóricos, evitando polêmicas e embates de ordem política; conjuntural e social do país. Também porque, aqui, esses profissionais estavam fortemente inseridos na estrutura estatal, e no contexto vigente muitos eram chamados a participar da elaboração e gestão das políticas sociais da Ditadura. Porém, muitos profissionais mais críticos ao regime tiveram que se exilar, como, por exemplo, os professores Vicente de Paula Faleiros, perseguido pela ditadura brasileira e chilena, e José Paulo Netto, que se exilou em Portugal. Saiba Mais Disponível em: <http://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/ec/ecd5a070-a4a6-4ba1-8e4a- 81b016479890.pdf>. Acesso em: 07/05/2018 Portanto, o movimento de Reconceituação no país, entre as décadas de 1960 e 1970, ficou sob o comando hegemônico da ala tradicional e conservadora da profissão. http://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/ec/ecd5a070-a4a6-4ba1-8e4a-81b016479890.pdf http://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/ec/ecd5a070-a4a6-4ba1-8e4a-81b016479890.pdf A perspectiva da modernização conservadora foi discutida no Seminário de Araxá, organizado pelo CBCISS (Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais). Esse seminário ocorreu na cidade de Araxá, Minas Gerais, em 26 de março de 1967. Contou com a participação de 38 assistentes sociais dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais e profissionais provenientes de escolas católicas, talvez isso tenha influenciado o seu resultado. Faleiros apud Netto (2015, p. 201) confirma:O Documento de Araxá reflete o pensamento dessa “fina flor” da tecnocracia, pois reúne assistentes sociais que haviam deixado de trabalhar nas obras assistenciais, nos morros, nas favelas, nas fábricas, nos circuitos operários e passaram a ocupar postos e cargos na administração estatal. (aspas e itálico do autor) Como resultado, foi elaborado o Documento de Araxá, no qual já em sua introdução se faz uma reflexão sobre a crise do Serviço Social, refletindo sobre a sua função: “Onde e como se faz o Serviço Social?”. Na introdução, também há uma abordagem acerca da origem da profissão e sua vinculação com a questão das disfunções do indivíduo na sociedade, muitas vezes relacionando tais processos às estruturas sociais vigentes. Figura 1 – Documentos CBCISS Disponível em: <www.cbciss.org>. Acesso em: 9 maio 2018. Saiba Mais O CBCISS (Centro Brasileiro de Cooperação e Intercâmbio de Serviços Sociais). É uma entidade que se preocupa com a produção teórica e metodológica do Serviço Social. Teve forte atuação na Reconceituação brasileira, entre as décadas de 1960- 1970. Pautou o debate, de ordem metodológica e teórica, no interior da profissão. Realizou os conhecidos seminários de Araxá, Teresópolis e de Sumaré, compilados na obra Teorização do Serviço Social, que é referência para conhecer a história da profissão. O Documento de Araxá traz uma concepção de indivíduo baseada na ideia do desajustamento social, assim, os assistentes sociais que participaram do seminário propõem como estratégia de intervenção a promoção de ações de caráter corretivo, preventivo e promocionais, articuladas a cada contexto social. Destaca-se a importância da integração do indivíduo ao processo de industrialização. Nesse sentido, [...] o núcleo central dessa perspectiva é a tematização do Serviço Social como interveniente, dinamizador e integrador, no processo de desenvolvimento. Sob esse aspecto, ela mantém uma direta relação de continuidade com o acúmulo profissional realizado na transição dos anos de 1950 aos 1960; essa continuidade, no entanto, é, em si mesma, parcial e seletiva: o que recupera do acervo anterior a 1964 exclui a vertente que concebia o desenvolvimento brasileiro como função de transformações conducentes à eversão (grande estrago) da ordem estabelecida. (itálicos do autor; parênteses meu) (NETTO, 2015, p. 201) Esse caráter corretivo era carregado dos valores e estruturas morais adotados pelos (as) profissionais que participaram do Seminário, para exemplificar, eram considerados desajustes, o alcoolismo, a homossexualidade, etc. Desse modo, a ação dos (as) assistentes sociais em Araxá é no sentido de corrigir essas posturas consideradas “desviantes”, ou “distorções” do caráter do indivíduo. http://www.cbciss.org/ O preventivo proclamara a evitar que esses “males sociais” ocorressem e, da mesma forma, os promocionais direcionavam para a integração das comunidades ao bem-estar social, já o caráter de integração, citado no Documento, enfatizava a necessidade de o sujeito acatar a realidade social. Predomina em todo o Documento os valores de uma sociedade conservadora e moralizadora, num contexto do capitalismo predatório. A categoria profissional não tinha a dimensão da “questão social”, as políticas sociais se traduziam em investimento do Estado na tentativa de integração. É importante deixar claro que, hoje, o Serviço Social tem outro pensamento, ou seja, não integra ninguém. A sua atuação está pautada no contexto de minimizar as expressões da “questão social”. Três anos mais tarde, se realizou outro encontro, de 10 a 17 de janeiro de 1970 em Teresópolis, RJ. Desse encontro foi elaborado o Documento de Teresópolis, cujo tema foi: “A metodologia do Serviço Social frente à realidade brasileira”. José Lucena Dantas foi o mais representativo dos intelectuais dessa perspectiva modernizadora, ele exerceu papel significativo na teorização profissional até o fim da década de 1970. Dantas considera que a questão da metodologia da ação constitui a parte central do Serviço Social, sendo assim, a definição de um modelo de prática do Serviço Social adequado à problemática social brasileira depende da solução do seu problema metodológico. Conferiu, também, à perspectiva modernizadora uma organicidade teórica de fundo estrutural-funcional e ideológica através do viés da modernização conservadora. Assim, verifica-se a manutenção da mesma perspectiva de homem e mundo que já fazia parte da metodologia tradicional, para Netto (2005, p. 177), “não há rompimento: há a captura do „tradicional‟ sobre novas bases”. A PERSPECTIVA DA REATUALIZAÇÃO DO CONSERVADORISMO Essa vertente teve inspiração da fenomenologia, e teve como produção o Documento de Sumaré. O encontro de Sumaré tem como característica a reatualização do conservadorismo – foi promovido pela arquidiocese do Rio de Janeiro e, por isso mesmo, se buscou a retomada de aspectos tradicionais. Sobre a reatualização do conservadorismo, Netto destaca: Trata-se de uma vertente que recupera os componentes mais estratificados da herança histórica e conservadora da profissão, nos domínios da (auto) representação e da prática, e os repõe sobre uma base teórico-metodológica que se reclama nova, repudiando, simultaneamente, os padrões mais nitidamente vinculados à tradição positivista e às referências conectadas ao pensamento crítico-dialético, de raiz marxiana. (NETTO, 2015, p. 204) A tarefa do Serviço Social, nessa vertente, era auxiliar o sujeito existente, singular para a autorresolução dos “problemas”, ou seja, empoderar o sujeito. O foco de atuação era o atendimento e a ajuda psicossocial por meio do diálogo, com forte apelo às terapias grupais. Coloca para o Serviço Social a tarefa de “auxiliar na abertura desse sujeito existente, singular, em relação aos outros, ao mundo de pessoas” (ALMEIDA, 1980, p. 114). Configurou-se num retorno aos aspectos moralistas de dicas e regras de convívio social. Assim, é fundamental que se compreenda o extremo conservadorismo dessa perspectiva que, [...] não reside apenas no seu referencial ideocultural (cujo eixo aparece congruente com consagrada interpretação vaticana do cristianismo); antes, ela é perceptível no embasamento científico com que constrói a sua relação do Serviço Social com os seus “objetos” – como mais adiante se verá, trata-se de uma “cientificidade” evanescente, onde, em nome da “compreensão”, dissolvem-se quaisquer possibilidades de uma análise rigorosa e críticas da realidade macrossocietárias e, derivadamente, de invenções profissionais que possam ser permeadas e avaliadas por critérios teóricos e sociais objetivos. (aspas do autor) (NETTO, 2015, p. 206) A PERSPECTIVA DA INTENÇÃO DE RUPTURA Embora a tendência de rompimento com o histórico tradicional do Serviço Social já fosse presente desde o final dos anos de 1950, os seminários ocorridos em Araxá, Teresópolis, Sumaré e Alto da Boa Vista não empreenderam efetivamente uma ruptura com a herança conservadora. É somente a partir dos anos 1970, com a forte oposição ao contexto ditatorial, e o já citado processo de abertura política, no Governo Geisel, que foi possível a alguns profissionais, mais precisamente aqueles que estavam na docência, se encaminharem para pesquisas que se vinculavam com um projeto de ruptura com o Serviço Social tradicional. Aqui vale destacar a experiência dos docentes da Escola de Serviço Social da Universidade Católica de Belo Horizonte, durante o período de 1972 a 1975, conhecido como “Método de BH”. O Método de BH consistiu no primeiro projeto para a profissão que pretendia romper com o Serviço Social tradicional do ponto de vista teórico-metodológico, formativo e interventivo. Assim, esse método configura-se num dos mais importantes marcos para se entender a trajetória do Serviço Social no Brasil e, sobretudo, a aproximaçãocom o pensamento marxista. Ainda que um marxismo vulgar, tomado a partir de uma leitura “manualesca”, com base em comentadores de Marx, de maneira bastante eclética. Para exemplificar, há uma tendência no Método BH de misturar alguns pressupostos do marxismo à perspectiva pedagógica e filosófica de Paulo Freire. Nas palavras de Netto (2015 p. 341): No momento de sua emersão, o projeto da ruptura aproxima-se da tradição marxista especialmente pelo viés posto pela militância política – no que, recorde-se, conjuga-se o protagonismo oposicionista das camadas médias urbanas e a mobilização estudantil do período de 1964-1968. Todas as indicações disponíveis convergem no sentido de sugerir que a interação entre os profissionais originalmente envolvidos no projeto da ruptura e a tradição marxista opera-se pela via política (frequentemente, político-partidária: mormente via os agrupamentos de esquerda influenciados pela Igreja, situados fora do leio histórico PCB). No III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (CBAS), realizado em São Paulo em 1979, conhecido como “Congresso da Virada”, ocorre o marco fundamental do diálogo do Serviço Social com a teoria social de Karl Marx. A “virada” possibilitou o descortinamento de novas possibilidades de análise da vida social, da profissão e dos sujeitos com os quais o Serviço Social trabalha. (CFESS, 2009), ou seja, a aproximação da profissão com as suas bases – a classe trabalhadora, excluídos e os subalternizados. É na década de 1980 que o Serviço Social brasileiro realiza uma profunda autocrítica, descobre a dimensão política da profissão e adensa seus estudos, com base na perspectiva da Teoria Social Crítica de Karl Marx. Destacam-se as produções do CELATS (Centro Latinoamericano de Trabajo Social), que passa a ter hegemonia no debate profissional em todo o continente, e patrocina projetos de pesquisa visando o rompimento com o tradicionalismo e o conservadorismo. No contexto brasileiro, exemplificamos a publicação do livro: Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação teórico-metodológica, de autoria dos professores Raul de Carvalho e Marilda Vilella Iamamoto. Esse texto é referência para conhecer nossa história e demonstra o adensamento da leitura marxiana em nossa profissão. Tem início, na década de 1980, a construção de um novo projeto ético-político profissional, atrelado com as lutas pela implementação do Estado de Direito, após o devastador período da ditadura militar. Vídeo: Serviço Social no Brasil – 80 anos de história, ousadia e lutas. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qExDNXsdy2A>. Acesso em: 07/05/2018. Disponível em: <http://www.cress-pa.org.br/videos/conteudo.php?id=346>. Acesso em: 07/05/2018. RESUMO: O movimento de reconceituação do Serviço Social na América Latina constituiu-se num processo de ruptura com a profissão na sua forma tradicional e conservadora. Esse movimento foi resultado da necessidade emergencial da classe operária no cenário político-social, em que foi exigido o seu reconhecimento como classe operária. Um movimento marcante que abrangeu a categoria profissional do Brasil e da América Latina possibilitou ao Serviço Social a identificação político-ideológica da existência de suas classes sociais antagônicas, negando a neutralidade profissional, uma marca constante do Serviço Social tradicional. Questão para reflexão: Quais são as perspectivas presentes no direcionamento do Movimento de Reconceituação brasileiro? Apresente-as e comente seus principais pressupostos. Para discutir: Como se constituiu a intervenção profissional do Serviço Social brasileiro, entre as décadas de 1950 e 1960? https://www.youtube.com/watch?v=qExDNXsdy2A http://www.cress-pa.org.br/videos/conteudo.php?id=346 REFERÊNCIAS ALMEIDA, A. A. A metodologia dialógica: o Serviço Social num caminhar fenomenológico. In: Pesquisa em Serviço Social. Rio de Janeiro: ANPESS/CBCISS, 1990. CFESS Manifesta. 30 Anos do Congresso da Virada. São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.cfess.org.br/arquivos/congresso.pdf>. Acesso em: 20 fev. 2018. IAMAMOTO, M. V.; CARVALHO, R. Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. 27. ed. Lima/São Paulo: CELATS/Cortez, 2009. NETTO, J. P. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. 17. ed. São Paulo: Cortez, 2015. REFERÊNCIAS RECOMENDADAS: ANDER-EGG, Ezequiel. Hacia una metodologia del trabajo social. In: Temas de Trabajo Social, n. 9. Buenos Aires: ECRO, 1976. CASTRO, Manuel Manrique. História do Serviço Social na América Latina. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2011. CBCISS. Teorização do Serviço Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1986. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. Edição comemorativa: 50 anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. GALPER, Jeffry. Política Social e Trabalho Social. São Paulo: Cortez, 1986. RECONCEITUAÇÃO do Serviço Social: 40 anos. Serviço Social e Sociedade, n. 84, ano XXVI, nov. 2005. São Paulo: Cortez Editora, 2005. SANTOS, Leila Lima. Textos de Serviço Social. São Paulo: Cortez, 1987. http://www.cfess.org.br/arquivos/congresso.pdf
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