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•••**• A PARTIR DO SÉCULO XVI I , É A VEZ DE A FRANÇA DITAR AS REGRAS DA BOA MESA: OS CHEFS FRANCESES SE TORNARAM FAMOSOS E, UM SÉCULO DEPOISp SURGIU O RESTAURANTE COMO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO GASTRONÓMICO. Não há dúvida de que o boom do aperfeiçoamento dos profissionais de cozi- nha ocorreu na Idade Moderna, na França. Foi nesse período que os chefs evoluíram em técnica e criatividade. Essa explosão da culinária francesa aconteceu durante a monarquia ab- soluta e centralizadora, que conheceu o apogeu no reinado de Luís XIV, no século XVII . É curioso notar que na mesma época da Revolução Francesa (1789), em que o povo exigia "pão", os restaurantes nasciam para atender não apenas à nobreza, mas à burguesia. Esta classe, tendo cada vez mais poder económico, comia não só brioches como também os mais elaborados acepipes. Com o restaurante, desenvolveu-se também o conceito de restauração, que já vimos no primeiro capítulo. É nesse momento histórico que acontece a profissionalização dos setores da gastronomia. IDADE MODERNA E REVOLUÇÃO ^ ^ ^ ^ ^ -> ->^^ ->^^^^^^^FRANCÉSA o desenvolvimento do comércio desde as Gran- des Navegações acelerou a concentração de r i - quezas e de capital nas mãos de uma nova classe social, a burguesia. Desde o século XV, o poder dessa burguesia foi ganhando força e espaço na sociedade europeia até culminar com a Revolu- ção Francesa, em 1789, marco do f im da Idade Moderna e início da Idade Contemporânea. A Revolução s imbolizou um golpe contra a mo- narquia absolutista na França, que mantinha o poder nas mãos de uma nobreza que ostentava luxo, oprimia o povo e travava o domínio político- econômico da burguesia. Os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade repercut iram em toda a Europa e em várias regiões do mundo, inclusive na América. REIS ABSOLUTISTAS, SEUS HÁBITOS E SEUS CHEFS o incentivo que os reis franceses deram aos chefs e suas equipes foram deci- sivos para a hegemonia** da cozinha francesa. Poderíamos dizer que tudo começou no reinado de Luís X I I I (1610-1643), filho da florentina Maria de Me- díeis. O rei casou-se com uma princesa espanhola, Ana da Áustria, que, por conta de sua paixão pelo chocolate, levou o hábito para as cortes francesas. Após o assassinato Luís X I I I , quem assumiu o poder foi seu jovem filho Luís XIV, o grande incentivador das artes e da gastronomia francesa. E nes- sa época o cardeal Richelieu, figura carismática, tornou-se o homem forte da diplomacia imperial. PETISCOS DA HISTÓRIA O ca rdea l Richel ieu foi o a rqu i teto do abso lu t i smo na França e da l iderança f rancesa na Europa. No âmbito da cozinha, par t ic ipou da cr iação do molho de maionese. O fato oco r reu durante a ação m i l i t a r em Mahon, cap i ta l da ilha de Minorca, no Mediterrâneo. Como usar o fogo chamar ia mui ta atenção do in imigo, o cozinheiro preparou um mo lho f r i o . Para t a l , usou o que t inha disponível na i lha: ovos e azeite de oliva batidos e acresc idos de v inagre, que Richel ieu adorou. Nesse momento , inventava-se a mahonesa, que passou a se chamar mais ta rde de mahonnaise e, por f im , maionese. 104 1 o REI SOL E A HEGEMONIA CULTURAL O poder e o luxo do reino de Luís XIV (1643-1715) criaram uma hegemonia cultural indiscutível: as cortes europeias copiavam o "modelo francês", falan- do a língua e seguindo à risca a moda ditada por Versalhes. Este famoso pa- lácio construído pelo Rei Sol, em 1664, nos arredores de Paris, foi símbolo da monarquia absoluta e, por mais de u m século, modelo de residência real na Europa. Além de grande incentivador da arte, Luís XIV oferecia grandiosos ban- quetes, verdadeiros espetáculos. No que diz respeito aos hábitos à mesa, o monarca não era lá u m refinado gourmet; ao contrário, tinha hábitos panta- gruélicos: recusava-se a usar o garfo e ainda podia comer em uma só refeição quatro pratos de sopa, uma travessa de salada, u m faisão, uma perdiz, uma perna inteira de cabrito, várias costeletas de porco e ainda arrematar com al- gumas frutas e doces. Nessa época, o peru tornou-se prato de luxo. Esse ingrediente do Novo Mundo foi levado pelos padres jesuítas para a Europa. Fez tanto sucesso que por u m bom tempo dominou os banquetes, a despeito do ganso e do pato. No reinado de Luís XIV, os legumes tinham muita importância e divi- diam espaço com as carnes. Nos jardins do Palácio de Versalhes, legumes e verduras como aspargos, ervilhas e alfaces eram cultivados lado a lado com as flores e as plantas ornamentais. Quanto aos profissionais de cozinha, esses tiveram grande reconheci- mento real. Luís XIV prestigiava os que se destacavam e toda sua equipe com 105 títulos de honra. Ao que consta, o clássico serviço à francesa iniciou-se em seu reinado, facilitando e organizando melhor os banquetes. Este tipo de ser- viço, mais elaborado, aprimorou a etiqueta à mesa. Como vimos, foi Luís XIV quem conferiu à gastronomia a suprema- cia nacional. O SUNTUOSO SERVIÇO ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ ^ - > ^ - ^ ^ À FRANCESA ' o serviço à francesa foi usado até 1870, mas seu auge se deu na época de Luís XIV. No suntuoso serviço, todas as travessas eram colocadas sobre a mesa, junto com a decoração feita de cande- labros e flores, incluindo ainda pratos, talheres e guardanapos. O serviço era dividido em três etapas: a primeira compunha os chamados hors- d'oeuvre (os aperitivos) e as entradas (como as so- pas), sendo que essas travessas eram colocadas sobre a mesa antes de os convidados se sentarem; a segunda etapa era formada pelos assados, as peças frias, os legumes e os entremets**; na ter - ceira e última etapa, as sobremesas [pâtisserie] eram dispostas em pièce-montée**-. petit-fours**, bombons, sorvetes, terminando com as frutas. Vatel, o pai dos mestres-de-cerimônia Por sua importância e requinte, o suíço François Vatel (1635-1671) pode ser considerado o pai dos mestres-de-ce- rimônia. Ele servia ao príncipe Conde, da cidade de Chantilly, e fez da mesa de Conde uma das mais requintadas da França no século XVII , com prepara- ções tão delicadas quanto às dos mestres de Florença. Versátil, Vatel dominava por completo seu ofício e suas habilidades iam de chefe de cozinha e confeiteiro a mestre-de-cerimônia, como ficou conhe- cido. Alguns conferem a ele a invenção do chantilly, mas parece que este sur- giu pouco tempo antes. Mas é fato que foi Vatel quem celebrizou, com suas sobremesas, o citado creme. Era obstinado, mas sucumbiu às pressões palacianas. Certa vez, ao ser encarregado de receber o rei Luís XIV e sua comitiva, tentou controlar uma situação embaraçosa por vários dias e até o último momento: a comitiva do rei era bem maior do que a esperada e a quantidade de alimentos não seria suficiente. No último dia, percebendo que o carregamento de peixes não t i - nha chegado para o banquete, levado ao desespero, Vatel se suicidou. Pouco tempo depois, o peixe chegaria, mas era tarde demais. A modernidade no prato: La Varenne Estimulados pelos novos tempos e pela predileção do Rei Sol à boa mesa, os cozinheiros da época deixaram de 106 vez os excessos da culinária medieval. Assim, a França iniciaria u m largo pe- ríodo de hegemonia gastronómica. Com muito rigor, a cozinha francesa foi incorporando teorias e bases técnicas. Parte do pioneirismo desse aprimoramento profissional deveu-se ao res- peitado François Pierre La Varenne, cozinheiro do Marquês d'Uxelles. Em 1651, este publicou o livro Le Cuisinier François (O cozinheiro francês), com re- ceitas até hoje utilizadas. Seu livro é considerado u m dos mais importantes do século XVn, publicado também na Inglaterra, Alemanha e Itália. A obra apresenta instruções sobre o uso da manteiga e da farinha nos molhos, técni- cas culinárias e regras para a sequência dos pratos. Além disso, traz receitas claras, em ordem alfabética, instruções para cozinhar e como usar trufas ne- gras - que se converteram em símbolo de luxo - e cogumelospara aromati- zar as carnes, servidas em seu próprio suco. La Varenne estabeleceu u m princípio básico na culinária francesa, usual até os nossos dias: especiarias e temperos devem fazer aflorar o verdadeiro aroma natural dos alimentos, exaltá-los em vez de disfarçá-los. Ele também difundiu técnicas de reparo, combinações e molhos básicos, contribuindo para que a gastronomia francesa iniciasse o período de glória. O molho héchamel (molho branco feito com leite, sal, manteiga, farinha de trigo, noz-moscada), por exemplo, foi divulgado por La Varenne e é até hoje u m clássico da cozinha francesa. Foi ele quem criou também a técnica de clarificar o consommé (com casca e clara de ovos) e deu grande destaque à preparação de legumes. Como se vê, a maioria dos preciosismos profissionais citados aqui está em voga até hoje na cartilha dos grandes cozinheiros, isto é, fazem parte do conjunto atual das regras culinárias da cozinha profissional. NA CORTE ELEGANTE DE LUÍS XV Luís XV pareceu ter herdado do pai, Luís XIV, a tradição da boa mesa, só que com mais sofisticação. Reinou de 1715 a 1774 e gostava de comer bem. Consi- derado u m gourmet, inaugurou uma cozinha elegante e sem muita pompa. Os primeiros menus apareceram na sua corte, num banquete que u m grupo de aristocratas organizou para agradar ao rei, em 1751. Para dar u m ar de re- quinte, mandaram redigir a lista dos 48 pratos que seriam servidos na festa. Os menus foram ricamente ilustrados por u m artista plástico, o que logo vi- rou moda e foi seguido por outros anfitriões. A predileção de Luís XV por ostras tornou-se ainda mais evidente com o fato de ter encomendado u m prato especial: a ostra frita na manteiga, api- mentada e recolocada na concha com trufas e suco de limão, receita que ofe- receu de presente à sua célebre amante, a marquesa Madame de Pompadour. PETISCOS DA HISTÓRIA Reza a lenda, contada no Museu Donn Pér ignon, em Champagne, que a t a - ça especia l para se rv i r a bebida, em f o rma to de bojo, foi feita sob os m o l - des dos seios de Pompadour. A l iás, pelas m ã o s dessa dama o champanf ie se to rnou a bebida of ic ia l das festas da corte f rancesa e, por conseguinte, f icou celebr izada no mundo como a bebida of ic ia l das c o m e m o r a ç õ e s . Além dos grandes banquetes, com muitos comensais, Luís XV gosta- va também de refeições mais reservadas. Foi graças a ele que se instituiu o petit souper, u m jantar mais íntimo, com menos convidados e sem a rigi- dez dos protocolos reais. Em prol desse novo hábito, adotaram-se aparado- res para apoiar os pratos, pequenas mesas, o uso de u m elevador para levar a comida da cozinha à sala de jantar e de u m tubo acústico que servia para transmitir as ordens. Dessa forma, o petit souper exigia bem menos serviçais (FRANCO, 2001, p. 174). A política externa de Luís XV não foi tão bem-sucedida quanto a gastro- nomia. No seu governo, vários conflitos foram travados, o que levou o reino da França a perder terras e se endividar. Seu sucessor, Luís XVI, deparou-se com uma grande crise financeira, agravada ainda mais com as revoltas so- ciais - afinal faltava ao povo até seu principal alimento, o pão. LUÍS XVI E A REVOLUÇÃO FRANCESA No reinado de Luís XVI (1774-1793), a crise político-econômica ficou insus- tentável: a nobreza vivia com grande ostentação de riqueza, enquanto o povo, no campo e na cidade, passava fome. Aliás, nos palácios de Luís XVI e sua espo- sa, a austríaca Maria Antonieta, os menus eram verdadeiramente grandiosos. 108 [