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O campo expandido da arte - Parte 1 Pós-modernidade sem modernidade? Paulo Sergio Duarte Ainda encontramos resistência e piadas sobre a arte moderna e, de repente, nos damos conta de que, para muitos autores, esta não é mais vigente: estaríamos, agora, diante de manifestações pós- modernas, com o desaparecimento de certos postulados, e a utilização de novos meios, como este que você agora está utilizando: a internet ou, como também é chamada, a world wide web (rede de amplitude mundial). Essa série de artigos - "o campo expandido da arte" - dirige-se ao chamado "grande público" e, muito especialmente, ao estudante, para aproximá-lo de conceitos e noções que se encontram na base dessas discussões do sistema da arte. Uma perspectiva histórica é adotada, não somente como método, mas porque a arte, em culturas como a nossa, continua sendo sobretudo um fenômeno histórico e, portanto, a história é o quadro de referência teórico a que se pode recorrer para encontrar as razões de suas mudanças. O desafio será combinar uma escrita acessível com o mínimo de rigor necessário para esse tipo de abordagem. De nada adianta ficar discutindo pós-modernidade se não se conhece os fundamentos da modernidade. E há muita confusão por aí num universo que, por si só, é muito confuso. Para fundamentar as transformações da arte suscitadas pela modernidade, os historiadores e críticos detectaram uma questão central: a crise da representação. A arte progressivamente abandonava os códigos estabelecidos no século XV, na renascença italiana - a representação segundo as leis da perspectiva geométrica para a representação do espaço, as lições de anatomia, zoologia e botânica, para a representação de seres humanos, animais e plantas, etc..., diante das novas exigências socioculturais. O pano de fundo dessas transformações foram o crescente peso da vida urbana sobre o modo de vida rural, as revoluções burguesa e industrial dos séculos XVIII e XIX, tendo como consequência a crescente divisão social e técnica do trabalho e a fragmentação da ciência e do saber no mundo das especialidades. São essas múltiplas determinações que dão origem ao que se chama sujeito moderno. Essas mudanças afetam todo o quadro de vida humano. Com o advento das democracias burguesas, desaba a origem divina do poder monárquico que justificava a ordem dinástica de reis e rainhas. A sociedade, tampouco, é vista como um tecido homogêneo dividido em duas categorias: nobres e plebeus. Descobre-se dividida em diversas classes sociais, com interesses por vezes antagônicos, fonte de conflitos, lutas e revoluções, numa trama complexa. A economia assiste ao declínio dos artesãos e, com a passagem das manufaturas à grande indústria, uma nova classe social entra em cena: o proletariado urbano. O saber não pode mais ser encerrado na obra de uma única pessoa - enciclopedista - paradigma do intelectual do século XVIII, para se fragmentar nos campos dos especialistas. Paradigmas que governaram o sistema de Kant, como a geometria euclidiana e a física de Newton, encontram seus limites e são relativizados. Para culminar, o início do século XX assiste à emergência da hipótese do inconsciente freudiano: a pessoa não é mais soberana de sua própria consciência, esta só se constrói a partir da operação fundadora do recalque. O sujeito estaria, assim, encerrado, além das tramas sociais que lhe condicionam, numa estrutura que, por princípio, não lhe é acessível e que o determina. Num universo de tal modo transformado - o mundo moderno - por que a arte permaneceria coesa e solidária de valores ditados no século XV, o mundo da representação? É esse mundo, como veremos nos próximos artigos, que entra em crise, da mesma forma que outras esferas da vida humana. O campo expandido da arte - Parte 2 A arte moderna e a crise da representação Paulo Sergio Duarte A crise da representação encontra-se na origem da arte moderna. Localizamos no tempo o início dos princípios que irão entrar em crise, mas é preciso localizar também no espaço. Vimos que a representação segundo as leis da perspectiva geométrica é sistematizada na Europa, mais precisamente na Itália, no século XV - o quatrocento, como é conhecido o século da Renascença Italiana. Expande-se pela Europa Ocidental e orienta, com raras exceções, todas as escolas artísticas da região. Mas se observarmos a própria Europa Oriental, nessa mesma época, na região onde foi adotado surgidos a partir do século IV da Era Cristã, em Bizâncio, verificamos a completa ausência da ilusão de profundidade construída pelo sistema da representação em perspectiva. Sejam os pequenos esmaltes, sejam os grandes mosaicos, todos os ícones obedecem a uma representação frontal, reduzida aos elementos essenciais, sem ilusão de profundidade, ou seja, sem representação das três dimensões do espaço na superfície. Isso para não falar dos diálogos artísticos entre culturas, por exemplo, pré-colombianas ou do Extremo Oriente, como a chinesa e a japonesa. Nenhuma delas é tributária dos códigos da representação segundo as leis da perspectiva. Portanto, o fenômeno é restrito à cultura européia e por onde esta se disseminou, entre elas as sociedades que se formaram no processo de colonização, como a brasileira. Imaginar esse sistema de representação como ideal foi o ponto de vista do eurocentrismo. No quadro cultural do Ocidente, esse modo de representação manteve-se vigente durante quatro séculos, em que pese as mutações e transgressões que sofre no maneirismo e no barroco, sua retomada no neoclassicismo, e de um espírito mais livre no romantismo. Sua resistência no tempo deve-se à eficácia da ilusão produzida, baseada numa ciência, mas, também, a razões de ordem filosófica e social. A urbis moderna, que se impõe a partir do século XIX, apresenta uma nova realidade e exige um olhar inédito, diferente daquele fundamentado na contemplação estática que se encontra na base da ilusão criada pela perspectiva. O olhar da cidade é, antes de tudo, dinâmico, implica sempre em movimento e mudança. Não deve-se subestimar, também, o papel da invenção da fotografia no advento da arte moderna, um meio típico da era industrial, que irá revolucionar a indústria gráfica e permitir uma formidável socialização das imagens. A nova técnica tinha um poder de captação do real inteiramente novo, expondo detalhes e instantes que o olho nu não percebia. Ela será, igualmente, instrumento de investigações artísticas específicas, além de ferramenta auxiliar dos pintores. A sociedade moderna é, ainda, responsável por outra importante transformação na arte. Os temas ou conteúdos da obra de grandes artistas, até o início do século XIX, eram, preferencialmente, os temas religiosos, mitológicos, históricos e os retratos de nobres, cortesãos ou burgueses abastados. Com exceção dos Países Baixos, onde existia uma burguesia comercial precoce e poderosa, que permitiu o aparecimento de cenas da vida cotidiana como tema principal em algumas obras, as encomendas dos mecenas ou protetores do artista, seja da Igreja, do monarca ou de casas nobres, baseavam-se sempre naqueles "grandes" assuntos. Quando os temas "menores" aparecem nessa época, estão ocupando um papel periférico na obra dos artistas, com exceção de pintores holandeses e do pioneiro Chardin (1699- 1779), na França, que elegeu a natureza-morta o motivo principal de suas pinturas. O século XIX, com suas mudanças sociais, assiste ao aparecimento do artista como profissional liberal - trabalha por conta própria para um mercado constituído de marchands e colecionadores. Essa liberdade aumenta seu risco na medida em que perde seus protetores, mas permite uma enorme ampliação do campo de suas investigações provocada pelas novas condições históricas. Temas como a natureza-morta, as cenas de lazer, nus absolutamente novos pela atitude do modelo e paisagens pintadas com a finalidade de investigaçãode linguagem, passam a ocupar a nova cena da arte. Se a arte moderna encontra, nas suas origens, uma mudança na forma - isto é, no modo como representa seus temas -, estes, também, apontam transformações: muda o que é representado. http://www.ibiblio.org/wm/paint/auth/manet/olympia/olympia.jpg O campo expandido da arte - Parte 3 Mudanças do Regime de Percepção Paulo Sergio Duarte Antes de voltarmos para o século XIX e um dos momentos fundadores da arte moderna é preciso lembrar que uma das principais razões de transformações da arte são as mudanças do regime de percepção. Assim como existem "regimes de verdade", nos quais o ser humano acredita piamente, inclusive dando-lhes, fundamento "científico", existem regimes de percepção que se apresentam como o "verdadeiro" modo de ver. Por isso devemos refletir sobre o modo de perceber que nunca é o mesmo dependendo da situação em que nos encontramos, mas sobretudo nunca é o mesmo dependendo das circunstâncias culturais e históricas que uma determinada sociedade, classe ou grupo étnico experimenta. Portanto, essa "verdade" não é absoluta, muda a cada contexto histórico e cultural, embora mantendo certas invariantes orgânicas e psíquicas. Seguramente, as obras de arte trazem embutidas certas exigências e ditam condições para serem percebidas em consonância com o momento histórico e as condições sociais em que surgiram. É verdade que a liberdade poética da arte permite que se amplie o campo da percepção além do olhar embrutecido pela vida cotidiana e sejam acrescentadas experiências perceptivas além daquelas a que as pessoas estão habituadas a exercitar. Esta é uma das fontes de resistência às mudanças e inovações da arte: sua capacidade de solicitar uma expansão da percepção e do entendimento além das limitações ditadas pelo dia a dia. Mas nenhuma dessas mudanças, introduzidas pelos artistas, é fruto de um dom divino que daria a eles a capacidade de antecipar a história. Elas são o resultado de uma intricada rede de determinações de fatores de diferentes ordens que vamos, apenas, apontar. Do ponto de vista orgânico, o olhar humano é uma função complexa exercida por três elementos principais: o olho - receptor -, o nervo óptico - transmissor - e o cérebro - processador. A oftalmologia e a neurofisiologia podem nos esclarecer sua capacidade, seus limites, sua "normalidade" e suas patologias. É preciso lembrar, por exemplo, que do ponto de vista sensorial, isto é, da sensibilidade, certos animais noturnos e as aves de rapina têm uma acuidade visual muito superior aos seres humanos, enquanto outras espécies, simplesmente não desenvolveram essa função - são cegas. A percepção visual cumpre um papel preponderante na fisiologia, chegando, em espécies como certos insetos, a determinar mutações genéticas. Durante os anos 30 e 40 do século XX, o psicanalista francês Jacques Lacan estudou as relações do olhar com a causalidade psíquica e chegou à descoberta do que chamou de 'estado de espelho'. Momento de júbilo em que a criança, diferenciando-se dos animais, reconhece-se a si mesma diante do espelho. Mas o olhar humano é também construído pela cultura onde vive e, desse ponto de vista, está em constante interação com o meio em que está mergulhado e sua história. Portanto é óbvio que a função do olhar é muito mais do que o olho do ponto de vista puramente orgânico. Em que pese as determinações a que é submetido, o olhar humano nunca foi o receptor passivo da natureza e da cena social em que se encontra. Já na pré-história ele devolvia ao meio sua ação complexa, desde a forma dos utensílios do grupo, até momentos mais elaborados entre os quais a manifestação artística é um fenômeno privilegiado. A partir dos recursos materiais disponíveis, passando pelas suas determinações orgânicas, pela psicologia dos indivíduos, até a densa estrutura sociocultural determinada pelo quadro histórico, o olhar atua e constrói: não é neutro, nem passivo, enfim, não é uma simples janela do ser aberta para o mundo. O olhar age sobre o indivíduo e sobre a sociedade. Hoje, isso é mais evidente nas atividades que geram as formas e imagens que nos cercam. Artistas, arquitetos, designers, cineastas, estilistas, fotógrafos, diretores de teatro e televisão, diretores de arte, cenógrafos e carnavalescos, diretores de criação de agências de publicidade, encontram-se entre esses produtores de formas visuais do cotidiano contemporâneo. Mas também empreendedores imobiliários, urbanistas, e a própria grande massa da população na luta pela sobrevivência e construindo suas próprias habitações encontram-se entre esses geradores de formas e imagens de nosso cotidiano. Individualmente ou junto com equipes de profissionais auxiliares, existem responsáveis por momentos de criatividade ou pela redundante monotonia de formas anacrônicas em todos os meios. São olhos ativos produzindo aspectos da realidade positivos, negativos ou simplesmente insípidos. A arte, quando se manifesta, acrescenta algo mais a esse repertório infindável de formas. Paulo Sergio Duarte é crítico de arte e Coordenador Geral de Estudos Culturais da Universidade Candido Mendes.
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