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Autora: Profa. Carmem Lia Nobre Lemos Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva Profa. Angélica Carlini Antropologia: Desafios Contemporâneos SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Professora conteudista: Carmem Lia Nobre Lemos Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), em 2002, e mestre em Antropologia em 2005, pela mesma instituição. É professora da Universidade Paulista (UNIP) desde 2008, onde atua com as disciplinas de Homem e Sociedade, Ciências Sociais, Antropologia e Cultura Brasileira, nos cursos de Psicologia, Pedagogia, Administração e Nutrição, além de ser professora e líder das disciplinas Relações Étnico-Raciais no Brasil, do Instituto de Ciências Humanas, e Antropologia da Alimentação, do Instituto de Ciências da Saúde, no curso de Nutrição. Sua área de pesquisa é a de Antropologia Urbana, com estudos em cultura popular nas artes, atividades esportivas, lazer na sociedade contemporânea, tendo artigos publicados sobre o tema. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L557a Lemos, Carmem Lia Nobre. Antropologia: desafios contemporâneos. / Carmem Lia Nobre Lemos. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 104 p. il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2-057/16, ISSN 1517-9230. 1. Antropologia. 2. Desafios contemporâneos. 3. Movimentos sociais. I. Título. CDU 572 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Gustavo Guiral Vitor Andrade SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Sumário Antropologia: Desafios Contemporâneos APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 ESTRUTURALISMO E CRÍTICAS AO ESTRUTURALISMO ........................................................................9 1.1 Estruturalismo de Lévi-Strauss ..........................................................................................................9 1.1.1 O papel dos mitos ................................................................................................................................... 13 1.2 Críticas de Antony Giddens e Pierre Bourdieu ......................................................................... 15 2 ANTROPOLOGIA E INTERPRETAÇÃO ......................................................................................................... 20 2.1 Antropologia interpretativa de Clifford Geertz ....................................................................... 21 2.2 Visões complementares à interpretação de Geertz ................................................................ 25 3 INTERCONEXÕES ENTRE CULTURA E HISTÓRIA .................................................................................. 30 3.1 História, etnografia e etnologia ..................................................................................................... 30 3.1.1 Culturas arcaicas, primitivas e contemporâneas ....................................................................... 33 3.2 Temporalidade e história ................................................................................................................... 36 4 DEBATES ATUAIS SOBRE MÉTODO ........................................................................................................... 39 4.1 Ética, escrita etnográfica e a questão da autoria ................................................................... 39 4.1.1 Códigos de ética: questões técnicas ............................................................................................... 39 4.1.2 Antropólogo como mediador ............................................................................................................ 43 4.1.3 Questão da autoria................................................................................................................................. 44 4.2 A pesquisa em áreas urbanas e a produção do distanciamento ....................................... 46 Unidade II 5 ARTE, CULTURA E PATRIMÔNIO ................................................................................................................. 54 5.1 Ampliando o conceito de patrimônio .......................................................................................... 54 5.2 Estudos de casos diversos ................................................................................................................. 59 6 ANTROPOLOGIA E CONSUMO .................................................................................................................... 65 6.1 Quebrando a resistência para um estudo do consumo ........................................................ 65 6.2 Antropologia do consumo ................................................................................................................ 69 7 ANTROPOLOGIA, POLÍTICA E MOVIMENTOS SOCIAIS ....................................................................... 74 7.1 Antropologia da política .................................................................................................................... 75 7.2 Novos movimentos culturais ........................................................................................................... 80 8 INTERSECCIONALIDADES E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA ......................................... 85 8.1 Interseccionalidade estrutural e sistemas de opressão ........................................................ 85 8.2 Interseccionalidade construcionista e os marcadores sociais da diferença ................. 90 7 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 APRESENTAÇÃO A disciplina de Antropologia: desafios contemporâneos, do curso de licenciatura em Ciências Sociais, oferta ao graduando estudos atuais antropológicos, com o intuito de possibilitar uma compreensão da diversidade de interpretações sobre a nossa cultura contemporânea, a partir da premissa de que uma percepção mais ampla de nossa cultura nos permitirá construir relações culturais mais respeitosas com as diversidades internas que permeiam nosso dia a dia. Estadisciplina trata do debate acerca das transformações e reconfigurações da antropologia como disciplina acadêmica. A antropologia sempre trabalhou com a lógica do distanciamento: entre pesquisador e pesquisado, entre civilizações e culturas, no tempo e no espaço, entre europeu e não europeu. Essas distâncias foram se tornando mais próximas ao longo da História e da crescente internacionalização do capitalismo. Interessa aqui o debate das relações entre as reconfigurações do campo da disciplina e as políticas científicas em voga, a relação da pesquisa antropológica com a ação política e a formação de antropólogos e as demandas do mundo do trabalho. O objetivo da disciplina é habilitar profissionais para o exercício da docência que sejam capazes de analisar e apreender a realidade social em seus múltiplos aspectos. Preparar profissionais éticos e competentes, com sólida formação teórica e metodológica nas áreas que compõem o campo científico das Ciências Sociais: Antropologia, Sociologia e Ciência Política. No mais, pretende contribuir com as seguintes competências: • apresentar os diálogos atuais da antropologia, relacionando-os aos problemas teóricos e metodológicos da antropologia clássica, de modo a compreender os debates atuais produzidos dentro da disciplina; • refletir sobre a antropologia nos últimos 40 anos, privilegiando diferentes rumos das indagações e recortes que constituem a disciplina; • incitar reflexões críticas sobre a dimensão política da antropologia e seus desdobramentos na vida social, como a formulação de políticas públicas e propostas para a sociedade; • promover o conhecimento, o estudo e a capacidade crítica dos alunos a respeito dos temas e das teorias antropológicas contemporâneas. A antropologia contemporânea nos permite refletir sobre a nossa própria cultura e as diversidades internas que nos circundam enquanto cidadão, profissionais e estudiosos. Compreender a nós mesmos é saber ouvir e dar voz aos nossos semelhantes e assimilar as diversas lógicas, práticas e sentimentos que coexistem, bem como das relações de poder entre os grupos que as vivenciam. Nesse sentido, buscamos analisar e interpretar as falas e experiências de diferentes grupos culturais considerados minorias que historicamente tiveram poucas chances de demonstrar os seus pontos de vistas e suas formas de vida, sendo invisibilizado por uma suposta sociedade hegemônica e universal nas construções de suas identidades. 8 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Esta disciplina dialoga com outras disciplinas de Antropologia já estudadas no decorrer do curso de licenciatura em Sociologia, e busca relembrar e relacionar os estudos anteriores dando uma continuidade à compreensão do que é Antropologia e seus métodos de estudos. INTRODUÇÃO A intenção deste livro-texto é possibilitar ao graduando do curso de licenciatura em Ciências Sociais um material de orientação e reflexão sobre a Antropologia e seus desafios contemporâneos. Durante o texto, você entrará em contato com estudos de diversos antropólogos tanto brasileiros como as principais referências internacionais sobre os temas trabalhados. No mais, o texto traz indicação de onde encontrar material adicional para que você possa se aprofundar ainda mais nas temáticas. O material de base para as reflexões foram selecionados para que você entre em contato com reflexões e autores recentes que trouxeram e ainda trazem grandes contribuições para a ciência. Nesta disciplina, analisaremos tanto a estrutura social como suas regras, normas e sistema de dominação como interpretar os atos dos sujeitos em busca da construção de suas identidades e seus modos de sobreviver dentro dessa estrutura social. Caminharemos por duas abordagens da antropologia, a estruturalista e a interpretativa, para assimilarmos como se estuda a antropologia na sociedade atual; percorreremos também as críticas quanto à falta de historicidade da antropologia e as metodologias que a disciplina foi desenvolvendo para superar os novos obstáculos apresentados à ciência. Adiante, abordaremos os diversos desafios que a disciplina vem enfrentando ao tentar compreender a própria cultura, as formas de construção da nossa identidade, bem como as marcas das nossas diversidades. Para tanto, investigaremos temáticas, como a de patrimônio cultural, consumo, movimentos sociais e interseccionalidade, como características da nossa cultura contemporânea e como marcas de nossa identidade. Durante todo o livro, a presença de visões críticas e complementares servem para enriquecer a multiplicidade de leituras e métodos que podemos utilizar para melhor concebermos nosso objeto de estudo. Assim, você vai poder observar como os antropólogos estão atuando não só em pesquisas, mas também, e ativamente, na construção e na transformação de nossa realidade. 9 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Unidade I 1 ESTRUTURALISMO E CRÍTICAS AO ESTRUTURALISMO Em disciplinas anteriores, já estudamos o funcionalismo como uma corrente de pensamento antropológico. O estruturalismo desenvolveu-se paralelamente, mas estendeu-se para a contemporaneidade com mais força e mais adeptos. Segundo Marconi e Pressotto (2001), há alguns pontos em comum entre essas duas correntes, como: “1. visão sincrônica da cultura, 2. visão sistêmica e globalizante do fenômeno cultural, 3. adoção do termo estrutura, 4. influência da escola francesa” (MARCONI; PRESSOTTO, 2001, p. 269). A antropologia estruturalista ganha força a partir dos anos 1970, quando a França já não tinha mais suas colônias, no entanto, as sociedades primitivas demonstravam uma recusa pelo surgimento do Estado. Ou seja, as sociedades sem Estado que receberam o contato com as sociedades colonizadoras mantinham suas estruturas sociais sem a presença política de um Estado vinculado ao sistema capitalista. São essas estruturas sociais os objetos de estudos dos estruturalistas. Ao falar em estruturalismo não podemos deixar de citar Claude Lévi-Strauss, fundador do Laboratório de Antropologia Social na Escola francesa. Herdeiro de Durkheim e Mauss, suas principais obras são As estruturas elementares do parentesco, de 1949, Mythologiques (série de quatro volumes entre 1964- 1971) e Tristes Trópicos, de 1957, no mais, temos a compilação de diversos artigos em Antropologia Estrutural, de 1958, e Antropologia Estrutural 2, de 1973. Com a grande produção de antropologia estrutural, evidentemente, começaram a surgir críticas e reflexões. Veremos algumas das ideias de Lévi-Strauss e seus seguidores, como críticas partindo de Anthony Giddens, sociólogo britânico, e Pierre Bourdieu, sociólogo francês. 1.1 Estruturalismo de Lévi-Strauss Lévi-Strauss trabalha com a ideia estrutural de pares binários ou opostos para a compreensão das relações sociais e culturais, organizações sociais e categorias do pensamento, como no primeiro volume de Mythologiques, o livro O cru e o cozido (1964), no qual o cru representa as sociedades primitivas e o cozido, as civilizadas. Fez ensaios também sobre a cidade e o campo, o homem e a mulher. As relações sociais estudadas servirão de modelos para explicar a estrutura social. Ao estudar diversos mitos, o antropólogo percebeu a existência dessa estrutura nas ideias e conceitos de uma cultura. Designa-se com o nome de organização dualista um tipo de estrutura social frequentemente encontrado na América, Ásia e Oceania, caracterizado pela divisão do grupo social – tribo, clã ou aldeia – em duas metades cujos membros mantêm, uns com os outros, relações que podem ir da colaboração 10 SO CI - R ev isã o: G usta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I mais íntima à uma hostilidade latente, e associando geralmente ambos os tipos de comportamento. Às vezes, a finalidade das metades parece ser regulamentar os casamentos: são então ditas exogâmicas. […] Em alguns casos, a filiação à metade se transmite em linha materna, em outra pela linha paterna (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 23-4). Como elemento fundamental das relações, temos a divisão homem/mulher, que são referências tanto para a construção das referências de parentesco, bem como para a organização social do trabalho. Cada cultura elabora suas regras para a identidade do masculino e do feminino, comportamentos e atividades destinadas a cada gênero. Uma estrutura de parentesco realmente elementar – um átomo de parentesco, se podemos dizer – consiste em um marido, uma mulher, um filho e um representante do grupo do qual o primeiro recebeu a segunda (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 91). Isso significa que, para existir uma família, é necessário que um membro da família da mulher conceda-a direta ou indiretamente ao seu futuro esposo. Normalmente, o pai ou o tio materno representam essa função. Dessa forma, percebe-se que há vários laços sociais: • o consanguíneo – entre tio e sobrinho ou irmãos; • o de aliança – entre marido e mulher; • e o de filiação – entre pais e filhos. Muitos outros pesquisadores buscaram definições para as relações de parentesco, e essas definições e relações são mais amplas e complexas do que se apresentam à primeira vista. Para Lévi-Strauss (2003), a família se constitui a partir de três colunas: divisão sexual do trabalho, exogamia e forma legítima de união entre homem e mulher. É a partir da definição de família de cada povo que podemos compreender a proibição do incesto. Observação Incesto é a proibição de relação sexual entre determinadas categorias de parentesco, como pais/filhos, tios/sobrinhos, avós/netos. Essa relação binária dos sexos mostra também a oposição entre alteridade/identidade, entre o “nós” e o “outro”. Aqueles que possuem referências em comum a nós e àqueles que são diferentes. A proibição do incesto tem a ver com a restrição das relações entre os que têm identidades iguais, sejam elas consanguíneas, sejam espirituais. A título de exemplo, tomemos emprestadas as pesquisas de Lévi-Strauss sobre os Xerente, população indígena do Brasil, com suas relações de parentesco, casamento e incesto. Segundo o autor: 11 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Esta população […] distribui-se em aldeias, cada uma composta de duas metades patrilineares exogâmicas subdivididas em quatro clãs, sendo três considerados originais, pelos índios, e um suplementar, atribuído pela lenda a uma tribo estrangeira ‘capturada’. Estes oitos clãs – quatro por metade – distinguem-se por funções cerimoniais e privilégios (LÉVI- STRAUSS, 2003, p. 142). Por essa pequena citação, já podemos perceber a existência das estruturas sociais das quais se refere à teoria estruturalista e parte da complexidade de compreender as relações de parentesco e casamento. Vale lembrar que nas sociedades patrilineares os filhos pertencem à metade da aldeia, que é de seu pai, e, por exogamia, entende-se o casamento com alguém de fora dessa metade. Lévi-Strauss traz três formas de casamento para as sociedades indígenas: • casamento entre primos cruzados bilaterais; • casamento entre filho da irmã (masculino/feminino) e filha do irmão (feminino/masculino); • e casamento entre o filho do irmão (masculino/masculino) e a filha da irmã (feminino/feminino). No casamento patrilateral, o filho macho pode se casar com a prima patrilateral, filha da sua tia paterna; mas não com a filha de seu tio paterno. Outra curiosidade seria o papel dos tios: o tio materno da noiva tem uma função de “pai”, protegendo ela em caso de violência ou divórcio; já o tio paterno é o responsável pela iniciação dos sobrinhos homens. Outro exemplo do papel de tio pode ser colhido entre os Lambumbu (uma população da Oceania): por exemplo, a relação do sobrinho com seu tio materno é de liberdade e obediência, mas o filho não deve obediência ao pai, além do quê, o tio ainda pode contradizer as ordens paternas. Dessas relações de parentesco, há exemplos dos mais diversos, porém podemos nomeá-los em relações matrilineares ou patrilineares, nas quais os filhos pertencem à família da mãe ou do pai, respectivamente. Pode haver num mesmo povo as duas formas, sendo patrilinear para as meninas e matrilinear para os meninos, por exemplo. A relação entre irmãos também pode ser de proximidade ou rivalidade, ou de proximidade entre irmãos de mesmo gênero e de rivalidade entre irmão de gêneros diferentes. O mesmo pode-se observar na relação entre tios e sobrinhos, nas suas várias combinações: tio materno com a sobrinha ou com o sobrinho, e tio paterno com a sobrinha ou sobrinho. Em alguns povos, a relação com cunhados também pode ser observada. A seguir, observamos um diagrama de uma família patrilinear. As siglas estão no sistema de abreviaturas em inglês apresentado por Marconi e Pressotto (2001, p. 120): Quadro 1 – Sistema de abreviaturas para uma família patrilinear Fa = father = pai Mo = mother = mãe Br = brother = irmão Si = sister = irmã So = son = filho Da = daugther = filha 12 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Para designar irmão do pai, insere-se FaBr; para indicar filho do irmão, BrSo e assim por diante. A simbologia utilizada por Marconi e Pressotto (2001) ilustra o sexo masculino por um triângulo e o feminino por um círculo; uma linha indica consanguinidade e duas linhas paralelas indica afinidade. FaSi FaBrSo BrSo BrDa So DaFaBr SoSo FaBr SoDa FaBrDa FaBr = = = = = = = = = Fa Br Ego Si Mo Figura 1 – Diagrama de família patrilinear No diagrama, podemos observar que os símbolos cujos pontos ocupados sejam o centro são os pertencentes à família do indivíduo-referência, chamado Ego. Sendo assim, os parentes da família materna (à direita no diagrama) não pertencem à sua família, assim como alguns parentes da linhagem paterna que são filhos/filhas de tias e primas paternas. Apenas tios homens, primos homens paternos e seus filhos são considerados da mesma família. Tentar compreender essas estruturas como um antropólogo não é tarefa fácil, mas precisamos ter em mente neste momento a diversidade cultural e uma visão relativista. A compreensão dessas estruturas diversas é o que impulsiona a paixão antropológica. Muitas outras estruturas de parentesco, de casamento e de incesto são possíveis e existentes. Magaret Mead e Mary Douglas também fizeram suas análises de parentescos que muito contribuíram para o estruturalismo. O que é possível concluir desse enorme acervo de análises que a ideia de dualismo ou opostos é muito mais complexa do que simples. Seus múltiplos desdobramentos permitem diversas relações entre cada elemento apresentado. Saiba mais Para conhecer outros exemplos de estruturas e análises de regras de parentesco, leia o capítulo: LÉVI-STRAUSS, C. Reflexões sobre o átomo de parentesco. In: ___. Antropologia estrutural, v. 2. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993. Para ser considerado uma estrutura, o modelo deve satisfazer a quatro condições, segundo Lévi- Strauss (2003, p. 316): 13 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS • A estrutura funciona como um sistema no qual a modificaçãode um elemento provoca a alteração em todos os outros. • Os modelos pertencem a um grupo de transformações, e cada uma corresponde a um modelo da mesma família, e o conjunto das variações constitui um grupo de modelos. • Os elementos, as transformações e os modelos permitem prever o que acontecerá dentro do modelo, caso ocorra a modificação de um elemento. • O funcionamento do modelo construído deve explicar todos os fatos observados. Assim, é possível explicar como pensam e agem as pessoas da cultura estudada. A utilidade de toda essa estruturação da organização social de um povo não é apenas uma curiosidade antropológica e um exercício de dedução e compreensão das relações humanas, mas é a partir da análise dessa estrutura que se entende a diversidade cultural, as regras sociais, as atuações políticas e religiosas, as funções trabalhistas etc. 1.1.1 O papel dos mitos Para compreender as culturas de povos indígenas brasileiros, Lévi-Strauss estudou não apenas as estruturas de parentesco, mas também os mitos e a linguagem. A nomenclatura que designa os parentes permite o reconhecimento de quais são os casamentos permitidos e os proibidos. Essa nomenclatura aparece tanto no relato de informantes como em mitos. Ao estudar os mitos, temos que nos ater à significação do mito, é ali que se encontrará a organização lógica e o sentido dos elementos fundantes da estrutura social. Qualquer modificação nos elementos de um mito vai interferir no sistema como um todo. Ou seja, para assimilarmos o sistema cultural, teremos de perceber as partes integrantes desse sistema e como elas se relacionam entre si. Nas palavras de Lévi-Strauss: “o mito faz parte integrante da língua; é pela palavra que ele se nos dá a conhecer, ele provém do discurso” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 240). O mito está na linguagem e além dela, possui uma língua e palavras que pertencem a um tempo passado, ou seja, possui um sistema temporal e, ao mesmo tempo forma uma estrutura permanente que se relaciona ao passado, ao presente e ao futuro que pode ser estudado e depreendido. Assim, os elementos que provêm de um mito são grandes unidades constitutivas, portanto estruturas possíveis de serem avaliadas e absorvidas. Para concebermos um mito, três princípios básicos deverão ser observados: 1) Se os mitos têm um sentido, este não pode se ater aos elementos isolados que entram em sua composição, mas a maneira pela qual estes elementos se encontram combinados. 2) O mito provém da ordem da linguagem, e faz parte integrante dela; entretanto, a linguagem, tal como é utilizado no mito, manifesta propriedades específicas. 3) Essas propriedades só podem ser pesquisadas acima do nível habitual da 14 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I expressão linguística; dito de outro modo, elas são de natureza mais complexa do que as que se encontram em uma expressão linguística de qualquer tipo (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 242). Diante desses princípios e aplicando um método de estudo emprestado da linguística, é possível chegar a estruturas de duas dimensões estudando um mito recolhido apenas dentro de uma tribo, mas, quando se estudam diversas versões do mesmo mito, em diversas tribos, o esquema se torna tri ou multidimensional. Afinal, como se diz: “quem conta um conto, aumenta um ponto”. Em Antropologia Estrutural, segundo volume, é possível compreender o método estrutural de leitura dos mitos. Há vários exemplos de métodos de estudo dos mitos, citemos apenas um dos exemplos sobre “o sexo dos astros”. Diversas culturas indígenas das Américas possuem mitos sobre o Sol e a Lua. As palavras para ambos podem ser a mesma, como ter a mesma raiz, em alguns casos, ou ter nomes diversos, com gêneros diferentes. Nos casos de mesma palavra para designar os astros, cada um deles pode ser classificado de acordo com uma qualidade de iluminação ou calor que os distinguirá, ou então o mito acaba mostrando a qual gênero pertence cada um, pois o Sol nasce do homem e a Lua nasce da mulher, ou, ainda, a Lua tem qualidades masculinas e o Sol, femininas. É isso mesmo: não há consenso quanto ao gênero de Lua e Sol. Em outros mitos, eles podem ser parentes (irmãos, por exemplo). Isso ajuda a transmitir o que é incestuoso em cada cultura, podendo ainda tratar-se de incesto homossexual ou heterossexual. Em algumas tribos, ao invés dos astros terem gêneros diferentes, é a divergência de idade que se torna importante, sendo o Sol mais velho que a Lua. Ou, ainda, trabalha-se a dualidade sagrado/profano. Sendo assim, existe a oposição física de gêneros ou a oposição moral, mas sempre há fatos e casos discordantes. Chega-se, portanto, à seguinte conclusão: Ou os astros não são distintos, ou o são. Se eles não são distintos, o Sol é um modo da Lua, ou o contrário. Se eles são distintos, a diferença é sexual, ou não sexual. Se ela é sexual, o Sol é macho e a Lua fêmea, ou o inverso, e em cada caso, os astros podem ser marido e mulher, irmão e irmã, ou as duas coisas o mesmo tempo. Se a diferença não afeta o sexo, eles podem ser duas mulheres ou dois homens, que se opõem então por seu caráter ou por seu poder. Esta última oposição se enfraquece às vezes a tal ponto[,] que um dos germanos perde sua individualidade e se torna uma espécie de cópia do outro (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 225). Tanto mais se estuda, mais variantes surgem, mas pode-se concluir “que os mitos não tratam o sexo dos astros como um problema isolado” (LÉVI-STRAUSS, 1993, p. 228). O pensamento mítico mantém em si estruturas do pensamento, da linguagem e da organização social de seu povo. 15 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Diante de tantas análises, o próprio Lévi-Strauss (1993, p. 91) conclui que: [...] a análise não deve jamais contentar-se em considerar os termos, mas deve, para além dos termos, apreender as relações que os unem. Apenas as relações constituem o seu verdadeiro objeto. Portanto, é nas relações entre termos, conceitos e definições que conseguiremos absorver, entender e compreender a essência do nosso objeto de estudo. Resumindo, de acordo com Marconi e Pressotto (2001, p. 273): […] o estruturalismo é […] um conjunto de teorias e um método de análise, cujos postulados básicos podem ser assim configurados: 1. visão sincrônica e sistêmica da cultura, 2. visão globalizada do fenômeno cultural (o conhecimento do todo leva à compreensão das partes), 3. adoção das noções de estrutura social e relações sociais, 4. utilização de modelos de análise cultural, 5. unidade de análise: estruturas mentais inconscientes, 6. compreensão ampla da realidade cultural. 1.2 Críticas de Antony Giddens e Pierre Bourdieu A sociologia de Giddens e Bourdieu tenta superar o estruturalismo dual e trazer uma nova metodologia de investigação baseada principalmente na divisão entre agência e estrutura. O conceito de “estrutura”, tomado de Lévi-Strauss, é um modelo abstrato de dualidade nas relações humanas, mas não no tempo e espaço; dessa forma, as estruturas são “virtuais”, pois existem fora do tempo e espaço, são “sem sujeito” e reproduzidas involuntariamente em práticas cotidianas. Giddens incorpora à discussão o fato de a estrutura não ser limitadora, mas um ato de ação e reprodução social. Há, nas estruturas, as regras, mas também a possibilidade de ação, ou seja, as estruturas são regras implícitas ou explícitas em formas de leis ou práticas socialmente conhecidas que nos capacitam e nos dão competência para nos comportarmos diante das situações sociais encontradas. Junto ao conceito de estrutura, temos de pensar o conceito de agente, que seria a consciênciado ator social. Aqui, a contribuição de Giddens: Em seu modelo estratificado de ação, ele se vale de e modifica esquemas freudianos de agência, que afirma que a consciência do ator tem três aspectos: consciência discursiva, consciência prática e inconsciência. Correspondendo livremente a essa divisão tripartite da consciência, ele faz referência a monitoração reflexiva, racionalização e motivação profunda para a ação. A consciência prática e sua racionalização, enquanto conhecimento tácito ou ‘mútuo’ que proporciona agentes com a habilidade de ‘seguir em frente’ em relação à vida social fadada ao seguimento de regras, são absolutamente importantes para a vida social (LOYAL apud SCOTT, 2015, p. 119-20). 16 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Portanto, as regras e as estruturas sociais existem, mas existe também o sujeito consciente que escolhe ou não seguir determinadas regras. São as escolhas desses agentes, sejam elas conscientes, sejam inconscientes, que trarão à realidade presente novidades e mudanças na sociedade e na sua organização social. As ações sociais estão imersas nas estruturas coletivas, as quais pertencem, no entanto, ao indivíduo dotado de capacidade e motivações para seguir as regras ou reconstruí-las. Neste ponto, nota-se a grande influência weberiana na leitura de Giddens, contraposta à herança durkheimiana de Lévi-Strauss, para que se compreendam as diferentes leituras aqui apresentadas. Observação Em disciplinas anteriores, tanto de antropologia como de sociologia, já foram apresentadas teorias e conceitos de Weber e Durkheim, mas vale lembrar que Weber estuda as ações sociais, tomando como ponto de partida a motivação individual, e Durkheim, o fato social do ponto de vista das regras sociais impostas e incorporadas pelos indivíduos. Giddens traz à tona a discussão sobre a participação dos indivíduos na construção da sociedade: os indivíduos, grupos e instituições fazem parte dessa estrutura, portanto não apenas a legitimam, como a constroem e a modificam. Ou seja, a dicotomia pode ser vista pelos conceitos agência/estrutura ou indivíduo/sociedade. Gabriel Moura Peters, em sua dissertação de mestrado (2006) intitulada Percursos na teoria das práticas sociais: Anthony Giddens e Pierre Bourdieu, elucida bem essa conduta individual: […] podemos sublinhar que o conceito de estrutura social também pode implicar a referência implícita ou explícita a: a) teias ou sistemas sócio-simbólicos de orientação e interpretação da conduta, isto é, complexo de símbolos, representações, significados, valores e normas coletivamente tecidos e veiculados no interior de determinadas formações sócio-históricas, sendo subjetivamente mobilizados na constituição dos atos linguísticos-cognitivos, prático-morais e estético-expressivos dos agentes individuais nelas imersos, no que constitui a dimensão fenomênica comumente recoberta pelo conceito de cultura; b) padrões típicos de comportamento que configuram as propriedades de qualquer sociedade ou contexto sócio-histórico particular e que tendem a se constituir como condicionamentos ou coerções que incidem, consciente ou inconscientemente, sobre a personalidade e sobre o modo de atuação de qualquer indivíduo particular situado neste contexto (PETERS, 2006, p. 14). 17 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Saiba mais Para conhecer melhor as teorias de Giddens, leia seu livro a seguir: GIDDENS, A. Estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. Sendo assim, tanto a contribuição de Lévi-Strauss como a de Giddens apontam para um método de estudo das organizações sociais e suas dinâmicas. Não apenas as sociedades ditas primitivas, mas também as ditas civilizadas possuem essa estrutura de pensamento dualista e são altamente complexas. Lévi-Strauss tratou de temas fundamentais para a antropologia, como relações de parentesco, práticas culinárias, lendas e mitos. Giddens traz o método e o conceito para as sociedades ditas complexas. O estudo das estruturas sociais mostra quais são as regras, como funcionam, qual a ordem social existente a qual os indivíduos estão submetidos, o universo de comportamento mais provável, mas não significa que não haja comportamentos desviantes, como o próprio Lévi-Strauss elucida durante seus estudos. Aqui, vale a máxima: “para todas as regras, existe uma exceção”. Então, não devemos tomar a ideia de estrutura social como algo certo, fixo, imutável e absoluto. Por isso, é importante incluir a participação do agente, o indivíduo que atua nessa sociedade. Ele é dotado de motivações, vontades, interesses diversos, que podem levá-lo a romper com a ordem social vigente. A noção de estrutura sem os agentes passa a sensação de que tais sociedades são harmoniosas, sem conflitos, cooperativas e sem disputa de poder. Contudo os indivíduos, consciente ou inconscientemente, acabam por tomar decisões que não necessariamente respeitam a ordem social, basta lembrar das motivações weberianas (racional, tradicional, emocional) ou ainda a noção de habitus de Bourdieu, aquele “impulso inconsciente internalizado através da experiência” (PETERS, 2006, p. 38-9). Os indivíduos, então, têm participação ativa na construção da sociedade, eles assumem papéis sociais, possuem uma identidade e uma posição social que lhes dá permissão para atuar na estrutura. É esse papel social que insere o indivíduo na estrutura. Por exemplo, o tio paterno em algumas sociedades patrilineares. Ele tem a função de protetor da noiva, isso lhe permite intervir e orientar a vida da sobrinha. A forma como ele vai ou não realizar essa atribuição mostrará a diversidade dentro da estrutura social. Um tio que não assume seu papel, deixa a sobrinha à mercê da sociedade. Ou então, entre as mulheres de algumas etnias indígenas, cabe-lhes, ao darem à luz, observar a criança para saber se deve ou não amamentá-la; caso essa mulher escolha alimentar uma criança com desenvolvimento incompleto, o que acarretará deficiência e dificuldade de adaptação à vida social, essa mãe rompe com a regra social e poderá ser excluída ou marginalizada em sua sociedade. Esses são exemplos de como os indivíduos são também agentes dentro das estruturas sociais, e como as suas escolhas podem interferir na estrutura preestabelecida. 18 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Dessa forma, cada indivíduo tem referências externas e internas para desempenhar seu papel social, e estas norteiam as várias possibilidades de ação dentro de cada sociedade. As referências internas foram transmitidas e aprendidas em um universo simbólico de regras da estrutura social no qual o indivíduo está inserido. As externas são as coerções das regras sociais explícita ou implicitamente conhecidas. Isso não significa que o indivíduo, ao agir motivado por parâmetros internos ou externos, tenha consciência das consequências de sua ação, mas que um conjunto de ações desviantes da regra tradicional pode ocasionar uma transformação da estrutura social como um todo (PETERS, 2006). As críticas, todavia, evidenciam a ausência de uma visão sócio-histórica das estruturas sociais e o papel dos agentes na construção e transformação de tais estruturas. Mais adiante, refletiremos melhor sobre esse referencial histórico nas análises antropológicas. Pierre Bourdieu, ao fazer suas críticas ao estruturalismo straussiano, argumenta que, conforme o estruturalista, os indivíduos seriam vistos como “marionetes” dentro da estrutura social,ou seja, seriam atores totalmente controlados externamente. Bourdieu analisa, ao contrário, como se fosse um jogo, no qual existem regras, mas cada jogador tem variáveis para fazer suas ações e escolhas. Em entrevista, Bourdieu comenta como ele chegou à noção de “agentes sociais”: A ação não é a simples execução de uma regra, a obediência a uma regra. Os agentes sociais, tanto nas sociedades arcaicas como nas nossas, não são apenas autômatos regulados como relógios, segundo leis mecânicas que lhes escapam. [...] Assim, substituí as regras de parentesco por estratégias matrimoniais. Onde todo mundo falava de “regras”, de “modelo”, de “estrutura”, quase indiferentemente, colocando-se num ponto de vista objetivista, o de Deus Pai olhando os atores sociais como marionetes cujos fios seriam as estruturas, hoje todo mundo fala de estratégias matrimoniais (o que implica situar-se no ponto de vista dos agentes, sem por isso transformá-los em calculadores racionais) (BOURDIEU, 2004, p. 21-2). Saiba mais Um famoso filme traça um preciso enredo sobre este ponto: todos os personagens são atores controlados pelo diretor, exceto o principal, Truman (encenado por Jim Carrey), o único que não sabe estar em um reality show. No desenrolar da trama, Truman questiona o comportamento dos demais que lhe parece sempre repetitivo e artificial. Para saber mais, assista ao filme: O SHOW de Truman: o show da vida. Dir. Peter Weir e Andrew Niccol. Estados Unidos da América: Paramount Pictures, 1998. 103 min. 19 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Se as sociedades fossem tão estruturadas e sem a ação de seus atores, nós apenas representaríamos constantemente o papel que nos teria sido destinado, sem jamais questionar ou alterar nossos gestos. Por isso, importa a reflexão sobre a ação e os agentes. Bourdieu, apesar de não gostar de rótulos, autodefine-se como estruturalista-construtivista e explica: Por estruturalismo, ou estruturalista, quero dizer que existem, no próprio mundo social[,] e não apenas nos sistemas simbólicos – linguagem, mito, etc. -, estruturas objetivas, independentes da consciência e da vontade dos agentes, as quais são capazes de orientar ou coagir suas práticas e representações. Por construtivismo, quero dizer que há, de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ação que são constitutivos daquilo que chamo de habitus e, de outro, das estruturas sociais, em particular do que chamo de campos e grupos, e particularmente do que se costuma chamar de classes sociais (BOURDIEU, 2004, p. 149). Ou, ainda, como estruturalista genético, busca estudar: […] a análise das estruturas objetivas – as estruturas dos diferentes campos – é inseparável da análise da gênese, nos indivíduos biológicos, das estruturas mentais (que são em parte produto da incorporação das estruturas sociais) e da análise da gênese das próprias estruturas sociais: o espaço social, bem como os grupos que nele se distribuem, são produto de lutas históricas (nas quais os agentes se comprometem em função [virtude] de sua posição no espaço social e das estruturas mentais através das quais eles apreendem esse espaço) (BOURDIEU, 2004, p. 149). Quando investiga as sociedades, procura: [...] descobrir as estruturas enterradas de maneira mais profunda nos diversos mundos sociais que compõem o universo societário, bem como os “mecanismos” que tendem a assegurar sua reprodução ou transformação (BOURDIEU apud PETERS, 2006, p. 53). Com isso, importa compreendermos quais são esses “mecanismos”’ de reprodução ou transformação das estruturas sociais. Ao estudar a sociedade argelina, na região de Cabila, Bourdieu pôde desenvolver parte de sua teoria e compreender a existência de agentes sociais que são distribuídos de forma desigual, com diferentes capitais simbólicos e que atuam em diversos campos de atividades. Esses agentes internalizaram, ao longo da vida, diversos esquemas simbólicos, por meio da socialização, que orientarão o modo de pensar, agir, sentir, interpretar etc. (PETERS, 2006). Bourdieu quer trazer à baila a discussão sobre a relação entre objetivismo e subjetivismo. O estruturalismo não leva em consideração os aspectos subjetivos dos agentes. Os indivíduos 20 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I possuem competências práticas que são utilizadas cotidianamente de modo subjetivo nas suas relações sociais. Para o autor, existe uma correspondência entre as estruturas mentais de percepção do mundo e a estrutura objetiva da organização social. Por exemplo, na organização social de Cabila, existe uma relação objetiva entre os agentes homem/mulher, são agentes diferentes, com funções e papéis distintos, e essa divisão é legitimada subjetivamente pelo habitus masculino/ feminino. Isso pôde ser observado nos rituais, nas relações domésticas, nas atividades cotidianas da sociedade. Construir a noção de habitus como sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como princípios organizadores da ação, significava construir o agente social na sua verdade de operador prático de construção de objetos (BOURDIEU, 2004, p. 26). A noção de habitus é fundamental para compreender a subjetividade do agente no sentido de jogo do qual todos estamos participando. O habitus é uma decisão instantânea que o jogador toma com efeitos práticos. Não há uma aspiração consciente ou conhecimento adequado para essa escolha, mas uma ação ajustada à situação imediata. É um conhecimento sem consciência que leva o agente a tal ação, existe um domínio prático das regularidades do mundo. O que o autor coloca em discussão é a prática do agente, sua capacidade de invenção e improvisação, que não está presente no estruturalismo (BOURDIEU, 2004). Assim, o que podemos perceber com as críticas e conceitos bourdieunianos é a existência de agentes que participam da construção e transformação da sociedade, e essa participação pode ser observada nas práticas e nos habitus que mostram um conhecimento sem consciência das regras do jogo e sua participação ativa na sociedade. 2 ANTROPOLOGIA E INTERPRETAÇÃO Outra abordagem contemporânea vem da antropologia interpretativa ou hermenêutica de Clifford Geertz (1926-2006), antropólogo estadunidense. Em dois de seus livros, A interpretação das culturas (1973) e O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa (1998), traz ensaios sobre o conceito de cultura. Parte da herança weberiana, com a premissa de que “o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu” (GEERTZ, 2008, p. 4). A cultura são essas teias e a antropologia interpretativa analisa seus significados. A cultura é compreendida como uma linguagem que, a partir da noção de Kenneth Burke, é uma ação, não apenas uma descrição. Assim, Geertz entende que a cultura é também uma ação, a interação humana é feita por meio de linguagens, em um “drama social”. Assim, a antropologia deve “descrever o que acontece no interior de cada interação ‘dramática’ em termos daquilo que ela significa para os participantes naquele tempo e lugar particulares” (TERRI apud SCOTT, 2015). Para tanto, o antropólogo deve viver um tempo na sociedade que pretende estudar para poder observar, registrar, descrever e interpretar. As interpretações são provisórias e relativas, não absolutas. 21 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS Veremostambém algumas leituras complementares à de Geertz com a contribuição dos antropólogos brasileiros Roberto Cardoso de Oliveira e seu orientando Celso Azzan Junior. Ambos refletirão sobre a diferença entre as antropologias straussiana e geertziana. 2.1 Antropologia interpretativa de Clifford Geertz Uma das tarefas centrais da antropologia é a interpretação das culturas estudadas, e por interpretação podemos entender que é necessário o binômio explicar e compreender, é isso que se entende por antropologia pós-moderna ou antropologia interpretativa ou ainda antropologia hermenêutica. Esse relativismo é o cerne da antropologia contemporânea e o afasta da antropologia clássica de Radcliffe-Brown e Evans-Pitchard. Geertz esclarece ainda que o pesquisador não deve julgar, mas manter o subjetivismo de lado, examinar a cultura estudada de modo profundo e detalhado (esse estudo pode gerar conclusões e teoria gerais) (SCOTT, 2015). O antropólogo, na maioria das vezes, vale-se da etnografia como método de pesquisa, a coleta de dados por meio de relações, informantes, genealogia, diários de observações etc. Com essas informações, ele faz uma descrição densa dos fatos e fenômenos observados. A ideia de descrição densa, ele toma emprestado de Gilbert Ryle e explica: Vamos considerar, diz ele, dois garotos piscando rapidamente o olho direito. Num deles, esse é um tique involuntário; no outro, é uma piscadela conspiratória a um amigo. Como movimentos, os dois são idênticos; observando os dois sozinhos, como se fosse uma câmara, numa observação “fenomenalista”, ninguém poderia dizer qual delas seria um tique nervoso ou uma piscadela ou, na verdade, se ambas eram piscadelas ou tiques nervosos. No entanto, embora não retratável, a diferença entre um tique nervoso e uma piscadela é grande, como bem sabe aquele que teve a infelicidade de ver o primeiro tomado pela segunda. O piscador está se comunicando e, de fato, comunicando de uma forma precisa e especial: (1) deliberadamente, (2) a alguém em particular, (3) transmitindo uma mensagem particular, (4) de acordo com um código socialmente estabelecido e (5) sem o conhecimento dos demais companheiros. Conforme salienta Ryle, o piscador executou duas ações — contrair a pálpebra e piscar — enquanto o que tem um tique nervoso apenas executou uma — contraiu a pálpebra. Contrair as pálpebras de propósito, quando existe um código público no qual agir assim significa um sinal conspiratório, é piscar. É tudo que há a respeito: uma partícula de comportamento, um sinal de cultura e – voilá! – um gesto (GEERTZ, 2008, p. 11). No exemplo anterior, podemos notar o que são a descrição densa e a análise de seus significados; assim, o ato de piscar pode ser interpretado também em outras situações, desde que se explique e compreenda o significado de cada piscadela. A observação e a transcrição dos fatos examinados já contêm em si uma parte da explicação. Para narrar nossa verificação, temos de explicar os códigos já conhecidos ou dar sentido àqueles que não são de conhecimento do nosso público leitor. 22 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Sendo assim, a descrição densa é tarefa fundamental da etnografia, os dados coletados, as observações, as genealogias fazem parte do emaranhado complexo da cultura, a tal teia de significados de que falávamos anteriormente. Geertz (2008) diz que a etnografia é como a interpretação de um texto que é cheio de informações implícitas, regras e códigos já introjetados no inconsciente, a linguagem é cheia de significados que devem ser traduzidos, explicados, revelados para uma linguagem científica, antropológica. Geertz (2008) entende a cultura como um documento público de atuação, não importa se é objetiva ou subjetiva, entende que é ela um produto que transmite, comunica algo dotado de sentido. Produto esse que pode ser um pensamento, um sentimento ou uma ação, um comportamento realizado por um agente. Mas isso não significa que a cultura é apenas algo que está na mente e no coração das pessoas, como diria Goodenough, nem que é a soma das ações observáveis é a cultura, ou ainda que cultura é uma realidade “superorgânica autocontida”. Explicar e compreender uma cultura não torna ninguém um nativo, saber o que é uma piscada e saber fazê-la não é pertencer a uma cultura. A descrição densa do etnólogo não o torna uma pessoa da cultura estudada, pois não basta apenas saber e conhecer as regras, comportamentos, significados. Mesmo sabendo falar a língua e conhecendo regras de outra cultura nós não os assimilamos, não nos situamos entre eles (GEERTZ, 2008). Em italiano, existe uma expressão que explica bem essa situação, a pessoa de fora está ou se sente spaesata, algo como: deslocada, fora de seu país ou território de origem, perdida, desorientada, sem pontos de referência. A pesquisa etnográfica tenta dar esses pontos de referência, apreender para poder se situar, conversar com o outro, ampliando, portanto, o discurso humano. Os signos culturais, assim como as palavras de um texto, são interpretáveis; a cultura é o contexto, é dentro dela que os signos têm sentido e podem ser descritos (na analogia com o texto: a sociedade, o período histórico, as relações sociais na qual vive o autor/locutor/emitente são o contexto de produção). Fora de seu contexto, os signos nada significam, não sendo possível interpretar, encontrar sentido (ou seja, um texto, sem seu contexto de produção, possui palavras que perdem a relação com o mundo, e se torna incompreensível). Compreender a cultura de um povo expõe a sua normalidade sem reduzir sua particularidade (Quanto mais eu tento seguir o que fazem os marroquinos, mais lógicos e singulares eles me parecem). Isso os torna acessíveis: colocá- los no quadro de suas próprias banalidades dissolve sua opacidade (GEERTZ, 2008, p. 10). Para avaliarmos melhor a outra cultura, temos de olhar pelo ponto de vista do outro. A antropologia é uma interpretação, não a compreensão exata do sistema simbólico de outros povos. Como qualquer interpretação, ela está limitada a um texto e um contexto específico, às falas e aos agentes envolvidos na observação. As descrições antropológicas são análises científicas dos dados, das falas, das estruturas observadas, mas não são a cultura em si – uma coisa é o objeto de 23 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS estudo, outra é o estudo. O que se lê é o resultado do estudo, é a interpretação feita dos dados, é uma interpretação de segunda ou terceira mão, uma vez que a apreciação de primeira mão apenas os agentes nativos podem fazer. Portanto, o que se faz é uma “compreensão da compreensão”, como diria o próprio Geertz (1998) anos mais tarde, em seu livro O saber local: ensaios em antropologia interpretativa. A nossa percepção de nós mesmos e dos outros é influenciada pelo intercâmbio cultural entre o nosso modo de pensar e o modo dos outros de interpretar (FREHSE, 1998). É como se o antropólogo escrevesse uma ficção, um livro ou uma peça sobre o outro não no sentido de falso ou imaginário, mas de algo construído, modelado. A antropologia existe nos livros, artigos, conferências. A cultura existe na realidade vivida. Dessa forma, diria Geertz (2008), para ter acesso ao sistema simbólico, é preciso inspecionar os acontecimentos, e não arrumar entidades abstratas em padrões unificados; por isso, a necessidade da descrição densa. Esses sistemas têm coerência, porém isso não significa que existam repetição e frequência dos mesmos fenômenos ou ações em situações similares, ou seja, não necessariamente ocorrerá o mesmo fenômeno novamente no mesmo lugar,mesmo que se for com as mesmas pessoas. Assim, a interpretação antropológica traça um discurso social, transforma o ocorrido em um relato que pode ser consultado para melhor analisar. Registra-se o que foi dito, o que foi considerado importante para aquela situação, e reconstrói-se a lógica da realidade. A descrição é interpretativa, pois interpreta o fluxo do discurso social, tentando salvar o que foi dito em um discurso que seja possível pesquisar. Essa visão é microscópica. Como na descrição da piscada conspiratória, ela explica o que é a piscada, busca assimilar o seu significado social, avalia a comunicação entre os dois agentes envolvidos, cria um discurso que poderá ser pesquisado e consultado novamente, mas é a observação daquele momento entre aqueles agentes específicos. Dessa análise microscópica, é possível tirar conclusões gerais como fazem outros nas ciências humanas (GEERTZ, 2008). A observação participante do etnógrafo permitirá que ele tenha várias passagens, vários relatos, diversas observações, que lhe permitirão compreender uma ampla paisagem cultural. O autor alerta para que os exames não sejam considerados mais do que eles realmente nos podem mostrar. Não é possível de um caso apreciado presumir que todos os outros membros da sociedade agiriam de maneira semelhante, ou que em outros períodos as ações seriam as mesmas, ou mesmo que todas as sociedades possuem comportamentos iguais. E lembra do caso do complexo de Édipo, que foi tido como regra geral, mas que, conhecendo melhor outras culturas, como na ilha de Trobiand, pode se dar o contrário, como o papel dos sexos estar invertido, em Tchambuli, ou nem haver agressividade entre os índios Pueblo. O mesmo se pensarmos no kula, hoje ele já não existe mais na realidade, porém pode ser lido e compreendido por meio dos livros. As avaliações antropológicas têm sua profundidade e seus limites. 24 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Nessa descrição densa, deve-se manter a subjetividade do pesquisador de lado, para se buscar uma explanação sem julgamentos ou para não cair em uma visão etnocêntrica sobre a sociedade estudada. Por exemplo, quando Geertz estudou a briga de galos em uma comunidade da Indonésia, fez a descrição da importância e das relações sociais existentes sem se apegar à crueldade ou à violência que existe na rinha, pois esses conceitos são da sociedade de fora. A briga de galos não é vista como violenta ou cruel entre seus praticantes, porém como parte da vida masculina, do comércio, da economia, das relações locais. A teoria de Geertz tem uma abordagem semiótica da cultura, apreendem-se e analisam-se pequenos casos ou situações para compreender a lógica dos pensamentos e comportamentos envolvidos: O ponto global da abordagem semiótica da cultura é, como já disse, auxiliar- nos a ganhar acesso ao mundo conceptual no qual vivem os nossos sujeitos, de forma a podermos, num sentido um tanto mais amplo, conversar com eles (GEERTZ, 2008, p. 17). Para Geertz é difícil uma teoria da interpretação cultural, pois as interpretações são sempre microscópicas, e a teoria deveria ficar sempre próxima a cada terreno da avaliação. Diferente das ciências biológicas ou exatas, na antropologia, é difícil construir teorias verificáveis, que se possa testar em laboratórios, manipular objetos etc. As descobertas antropológicas não seguem uma curva ascendente ou um conhecimento cumulativo, são sequências desconexas, estudos seguem outros estudos. Cada novo estudo, munido de informações, conceitos, fatos e hipóteses anteriores buscam se aprofundar mais na mesma coisa, não para quebrar ou construir teorias, mas para avançar nos estudos. As formulações teóricas das análises se esgotam em si mesmas, pouco funcionam fora delas. A interpretação cultural não busca “codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar através dos casos, mas generalizar dentro deles” (GEERTZ, 2008, p. 18). Outra característica da teoria cultural é que ela não é profética, não busca antecipar o que vai ou pode acontecer, mas também não é apenas post facto. As teorias culturais devem sobreviver intelectualmente às realidades que estão por vir, e as formulações feitas sobre piscadelas ou brigas de galos devem continuar servindo para outras interpretação para que sejam refinadas, afinal, as ideias teóricas são retomadas de um estudo anterior para novas problemáticas interpretativas. Existe uma dupla tarefa na interpretação cultural: • a descrição densa, que é a anotação dos significados que as ações sociais têm para seus atores, ou seja, a descoberta das estruturas que informam os atos dos sujeitos e; • a explicação, a especificação, isto é, a afirmação o mais explícito possível do que o acontecimento descrito demonstra sobre sua sociedade e a vida social, ou seja, a construção de um sistema de análise fornecendo um vocabulário para dizer qual o papel da cultura na vida humana. O vocabulário do próprio Geertz é composto pelos conceitos de integração, racionalização, símbolo, ideologia, ethos, revolução, identidade, metáfora, estrutura, ritual, visão de mundo, ator, 25 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS função, sagrado e cultura. Fatos pequenos do nosso cotidiano mostram como esses conceitos se entrelaçam na descrição, e é a partir deles que se tiram grandes conclusões para assimilar o papel da cultura nas nossas vidas. Por fim, a antropologia interpretativa é incompleta por natureza, é sempre possível ir mais a fundo, refinar mais, buscar novos relatos e significados. Geertz critica quem transforma a cultura em folclore, quem coleciona relatos, quem transforma as análises em instituições ou classificações. A visão semiótica e subjetiva é essencialmente contestável e assim deve permanecer. A vocação essencial da antropologia interpretativa não é responder às nossas questões mais profundas, mas colocar à nossa disposição as respostas que outros deram [...] e assim incluí-las no registro de consultas sobre o que o homem falou (GEERTZ, 2008, p. 21). 2.2 Visões complementares à interpretação de Geertz Celso Azzan Júnior, um grande estudioso de Lévi-Strauss e Geertz, em sua dissertação de mestrado defendida em 1991, salienta a diferença entre as duas metodologias: Lévi-Strauss é mais objetivista e Geertz intersubjetivista, que seria o mesmo que essa visão da oposição entre explicação e compreensão. Lévi-Strauss busca explicar uma infraestrutura do processo de significação, ele explica a sintaxe, busca os códigos a serem decodificados e desvendados; enquanto Geertz busca entender a semântica, a leitura da cultura em si, de seu sentido, e não dos seus códigos de significados. Segundo Azzan Jr. (1991), Geertz generaliza um conjunto de diferenças que acaba evidenciando as particularidades da cultura. Os dados singulares que se têm de determinada cultura induz a percepção de verdades sobre ela. Já Lévi-Strauss, ao codificar as regularidades, deduz qual é a estrutura social. Mas, no fim, por um método ou outro, a antropologia é capaz de transformar a realidade em conhecimento. Assim, tanto a parte é capaz dar sentido ao todo, como o todo é capaz de conferir absorção das partes. Ambas as metodologias chegam ao mesmo objetivo, no entanto, uma explica e a outra compreende, e o processo dialético entre explicar e compreender gera um conhecimento antropológico de dupla interpretação. Roberto Cardoso de Oliveira (2006) traz à discussão a questão da dupla interpretação a qual todo antropólogo está destinado: a primeira é o resultado da descrição, a segunda é a avaliação dessa descrição.Qualquer descrição passa pela análise, uma vez que deve informar e apreender. O que Cardoso de Oliveira (2006) quer mostrar é que existe uma interpretação explicativa e uma interpretação compreensiva. A relação entre essas duas modalidades subjetivas permitirá uma visão sábia e profunda, enquanto uma leitura tendendo para uma ou outra modalidade ocasiona uma interpretação superficial. A interpretação explicativa são análises formais, que buscam uma síntese, um código, a identificação das regras e padrões; a interpretação compreensiva busca o significado desses códigos, regras e padrões, é também o resultado da observação participante. 26 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Reproduzo aqui um modelo explicativo disso: Se colocarmos lado a lado explicação e compreensão, encabeçando duas colunas imaginária A e B, e associarmos a elas os valores sim e não para expressar validade ou falsidade de uma ou de outra forma de cognição, teremos as seguintes quatro formas de combinações: 1 – Quando explicação e compreensão não são, nenhuma das duas, reconhecidas como suscetíveis de oferecer-nos conhecimento, portanto são falsas, podemos dizer que estamos frente a uma postura cética. 2 – Quando na coluna A, da explicação, temos o não e na coluna B, na mesma linha, temos o sim, estamos diante de uma hermenêutica tradicional, pois negamos a validade da explicação para reconhecer a da compreensão – portanto, uma postura romântica. 3 – Ao relacionar novamente explicação e compreensão e aduzindo sim para a primeira e não para a segunda, teremos a expressão clara da postura nomológica e, em sua manifestação mais radical, positivista, finalmente. 4 – Quando relacionamos explicação e compreensão, porém considerando ambas perfeitamente válidas em proporcionar-nos conhecimento antropológico, estamos assumindo uma postura hermenêutica moderna dialógica, ou ainda, dialética, portanto exercitando o que estou chamando de dupla interpretação (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2006, p. 103-4). Quadro 2 – Modelo antropológico de interpretação Coluna A Explicação Coluna B Compreensão Posições epistemológicas NÃO NÃO Cética (1) NÃO SIM Romântica (2) SIM NÃO Nomológica (3) SIM SIM Dialética (4) Fonte: Oliveira (2006, p. 105). Por postura nomológica, o autor quer trazer a importância da análise etnocientífica dos anos 1960, que devem posteriormente ser refinadas na busca de uma compreensão sábia, ou seja, seria essa postura uma parte da análise hermenêutica. A análise metódica formal ou formalizante do estruturalismo e da observação participante deve depois buscar uma apreensão dos sentidos, ir além do objetivismo para chegar à dialética. Portanto, deve-se passar pelas duas interpretações para uma visão mais sábia. Tanto Geertz como Lévi-Strauss possuem essa leitura dialética para explicar a cultura observada, no entanto, um dá mais ênfase ao explicar e o outro ao compreender. Lembremos que Lévi-Strauss 27 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS começa suas pesquisas nos anos 1930 e publica diversos livros importantes até os anos 1970; já as pesquisas de Geertz, iniciadas nos anos 1950, começam a ganhar notoriedade em seu percurso acadêmico nos anos 1970. Segundo esse ponto de vista, podemos perceber que um se torna a continuidade do outro: primeiro explicar para então compreender. Segundo Azzan Jr. (1991), a preocupação na antropologia interpretativa está no caso particular e sua interpretação, não se busca a lei ou a instância mais geral ou classificações. Para tal interpretação, deve-se passar por uma densa descrição. Isso para poder penetrar no modo de pensamento de outros povos. Parte-se do senso comum de casos particulares para uma interpretação profunda, filosófica, psicológica, histórica, literária. Nesse momento, transforma-se o caso em uma análise científica. Assim, o caminho para atingir uma análise antropológica passa primeiramente pela descrição das formas simbólicas particulares, e em seguida para sua contextualização dentro da estrutura total de significados. Para chegar a essa abordagem, é fundamental pressupor que a cultura são “símbolos interpretáveis”, ou seja, a própria cultura é interpretável, ao invés de codificável; esse é o conceito de cultura semiótica. A possibilidade de interpretar, é mais do que codificar, classificar, encontrar leis e regras gerais, e isso que torna a cultura produtora e construtora de sentido, e não apenas de signos. As ações que cada sujeito toma é dotada de significado, e quando agimos a ação é viva apenas naquele momento; quando o antropólogo registra a ação do sujeito, o significado dessa ação persistirá para a interpretação, para a análise e compreensão. Então, o registro das ações se torna um documento sobre o qual o antropólogo pode trabalhar como as pinturas rupestres, inscrições em pedras, pergaminhos etc. É assim que a cultura passa a ser um texto interpretável, ou melhor, um conjunto de textos interpretáveis que formam uma teia. Segundo Azzan Jr. (1991), o que Geertz pretende fazer é uma etnografia do pensamento, pois existe uma variedade radical do modo como se pensa, isso que significa um estudo da intersubjetividade: as estruturas do pensamento mudam, as províncias de pensamento são demarcadas, normas de pensamento são mantidas, modelos de pensamento são adquiridos. Compreender isso nos permite aprofundar no sentido da cultura. Com isso, a etnografia geertziana se demonstra muito mais descritiva que interpretativa, mas a abundância de descrição é que permite a assimilação. Na visão de Geertz, a abordagem interpretativa era superior às outras abordagens, sejam elas românticas, positivistas ou tradicionais. De certo, a abordagem interpretativa se afasta do reducionismo positivista e do idealismo alemão, no entanto, é possível concluir que ela se tornou mais humanista, porém não superior. Geertz traz de novidade o fato de a sociedade não ser mecânica (como analogia das ciências exatas), nem um organismo (como analogia das ciências biológicas), mas que existe um jogo, um drama, um texto. Nesta analogia, podemos compreender melhor o conceito semiótico de cultura que Geertz coloca nas ciências sociais (AZZAN JR., 1991). Por exemplo, ao tratar da briga de galo balinesa como um texto, permite um afastamento emocional para uma análise e uma compreensão do jogo, do drama que existe entre os diversos personagens envolvidos. A briga de galo é apenas um de tantos textos da vida balinesa. Junto com esses outros textos, o antropólogo pode aprofundar a concepção e o diálogo com a cultura balinesa. 28 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I Uma crítica que se faz dessa leitura da cultura é que não se conhece o autor, o destinatário ou o contexto desse texto antropológico. As narrativas e descrições estão descontextualizadas socialmente. Nesse momento, Azzan Jr. (1991) faz uma crítica à noção de texto de Geertz. A elaboração de textos sobre culturas exótica permite a construção de um documento inscrito que poderá servir para compreender a historicidade de tal cultura. Mas, uma vez que o próprio texto está descontextualizado, ele se torna um objeto de frágil potencial histórico. Para a história, é importante saber quem é o falante, o ouvinte e o dito dentro de seu contexto. Uma vez feita a descrição do que foi visto e dito, perdem-se a caracterização e a dimensão dos personagens envolvidos. É como se nós estivéssemos lendo um livro ou vendo um filme no qual existem muitos personagens e figurantes, masnão protagonistas. A história é sempre contada por um narrador externo a ela. Ao fazer uma leitura da interpretação da briga de galos de Geertz, Azzan Jr. comenta: Nota-se que há interpretações, algumas até bastante interessantes. Porém, é de se notar que elas ainda são muito tímidas para um projeto interpretativo. Todas as interpretações que Geertz oferece no texto não correspondem, juntas, às questões mais cruciais para uma hermenêutica (AZZAN JR., 1991, p. 141). Segundo a crítica falta dizer o que os balineses compreendem de sua própria realidade. A hermenêutica pretendida ou projetada por Geertz não é atingida, pois o texto, sendo uma parte de um todo, exige que se recupere essa conexão. Apenas apresentar vários textos densamente descritivos e sem autoria (ou protagonistas) não permite chegar na hermenêutica, ou na interpretação e compreensão do todo. Seria necessário um julgamento reflexivo relacionando os diversos textos, os mais centrais e os mais periféricos para poder reconstruir o todo. Na ausência dessa reconstrução, pode- se cair no engano de concluir que a sociedade balinesa funciona em torno da briga de galos, sendo que esse evento não é tão central assim, do mesmo modo que as touradas na Espanha não o são. Não há como interpretar os atores sociais que são descritos nas etnografias geertziana, pois não conhecemos suas intenções. A ausência das falas e das intenções dos sujeitos faz com que os textos não possuam autores. Por autores, nesse caso, estamos querendo dizer os autores no texto, e não o autor do texto. Azzan Jr. (1991) esclarece: os autores do texto são a sociedade, uma vez que a cultura é pública; os autores no texto e seriam os sujeitos, e esses sujeitos fazem parte da descrição e desempenham seus papéis e têm consciência desses papéis, no entanto, eles não constroem o texto que querem. Existe ainda uma terceira autoria, a do antropólogo. Afinal, é o antropólogo que transforma a experiência observada e vivida em textos, para serem analisados cientificamente. Esse texto é que Geertz aproxima de uma ficção, pois a realidade já está em um tempo e espaço distantes. Neste sentido, Geertz afasta a etnografia da ciência e a aproxima da literatura – por isso, a ideia de ficção. No mais, o etnógrafo não deve ser uma autoridade no discurso, mas permitir que o nativo fale de modo direto, igual, ao lado do antropólogo. A experiência do antropólogo não pode valer mais do que a realidade. O texto antropológico é a versão escrita do que foi dito pelos personagens. O que Geertz propõe é uma “autoria dispersa”, ou seja, uma autoria pública. Com essa visão, Geertz distancia o trabalho etnográfico de interpretações feitas por colonizadores nas décadas e séculos anteriores, as quais a subjetividade do colonizador ditava a interpretação do 29 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 ANTROPOLOGIA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS colonizado. O que se fazia no período colonial era a construção de uma representação do outro segundo a lógica do colonizador, com uma metodologia das ciências exatas e biológicas para se atingir um suposto objetivismo. Diferente da proposta geertziana, que busca a intersubjetividade, ou seja, a descrição do ponto de vista de quem está sendo descrito, afastando-se dos preconceitos do subjetivismo do colonizador (AZZAN JR., 1991). É devido à impossibilidade de uma objetividade por parte do etnógrafo que Geertz insere a antropologia nas humanidades e na literatura, ao invés das ciências. No entanto, esclarece: […] a intersubjetividade é um traço objetivo exatamente na medida em que não é mais a subjetividade do autor do texto, nem tão pouco apenas a subjetividade do leitor, mas uma espécie de mediação possibilitada pela linguagem entre essas subjetividades (AZZAN JR., 1991, p. 167). Para compreender melhor essa passagem, é importante lembrar que o texto tem quatro características: 1º a fixação de significados, 2º sua dissociação para com a intenção mental do autor, 3º a abertura de referenciais não ostensivos, 4º o leque universal dos destinatários. Esses quatro traços, tomados conjuntamente, constitu[em] a objetividade do texto. (RICOEUR in AZZAN JR., 1991, p. 168). Desse modo, vimos que a objetividade está cristalizada no texto, apesar de tanto o autor como o leitor possuírem e utilizarem suas subjetividades para interpretar o texto, é isso que Geertz entende por intersubjetividade e de que falávamos anteriormente sobre dupla interpretação. Azzan Jr. (1991) refletiu mais profunda e minuciosamente sobre a teoria de Geertz. A abordagem interpretativa trouxe um novo olhar para a antropologia e uma nova metodologia. Estruturalismo e interpretativismo não se excluem, são um a continuidade do outro e a busca por uma antropologia dialética. Ambas buscam se afastar dos preconceitos e etnocentrismos gerados por abordagens ou más leituras anteriores e trazer um relativismo para a antropologia contemporânea, maior compreensão sobre as diversidades culturais, estruturais e de pensamento. Saiba mais Para saber mais sobre tais reflexões, leia: AZZAN JR., C. Antropologia e interpretação. São Paulo: Unicamp, 1993. A seguir, veremos algumas críticas feitas à antropologia contemporânea em relação à disciplina de História, tema que aqui já foi superficialmente sugerido antes. 30 SO CI - R ev isã o: G us ta vo - D ia gr am aç ão : F ab io - 1 1/ 06 /2 01 6 Unidade I 3 INTERCONEXÕES ENTRE CULTURA E HISTÓRIA “Os homens fazem sua própria história, mas não sabem que a fazem”. (Karl Marx) Houve um momento das ciências humanas em que foi necessária a divisão metodológica entre a história e as ciências sociais. Essa divisão se deu muito mais nas questões de método do que de conteúdo. Com o passar do tempo, a história desenvolveu e definiu seus próprios métodos, já as ciências sociais, segundo Lévi-Strauss (2003, p. 13), desenvolveram-se às custas de muitos “conflitos, discórdias e confusões”. Acompanharemos debates atuais sobre a relação entre as disciplinas de Antropologia e História, as similaridades e diferenças nos métodos, metodologias, objetivos, materiais de pesquisa e perspectivas. Sobre esse debate, faremos reflexões sobre a noção de tempo, história, temporalidade, progresso e sociedades arcaicas, primitivas e contemporâneas. Vamos nos apoiar no que antropólogos já conhecidos disseram, como Lévi-Strauss, Geertz, o brasileiro Roberto DaMatta, e exemplos clássicos de Malinowski e Franz Boas. 3.1 História, etnografia e etnologia Não se trata de esboçar uma história da antropologia (tema trabalhado em outra disciplina), mas de compreender como essas duas áreas do conhecimento estão próximas e em que aspectos elas se distanciam. DaMatta diria que há duas perspectivas: • a da Antropologia, sendo uma variante da História na qual a disciplina enfatiza as perspectivas temporais; • e a da “antropologia da história”, pensando nas “diversas modalidades de oposição e contraste com a própria ideia de tempo” (DAMATTA, 1987, p. 87), ou seja, o tempo ao qual todas as culturas estão submetidas, e a “história” desenvolvida em algumas sociedades. O que pretendemos agora é trabalhar a antropologia da história. Para entrarmos nessa discussão, precisamos lembrar dos métodos de pesquisa da antropologia: os estudos etnográficos mostram uma viagem de ida para a descoberta do desconhecido do exótico, o etnógrafo observa uma outra cultura; e os estudos etnológicos é a viagem de volta, de análise dos dados coletados do que parecia exótico e que acaba revelando traços implícitos com a sociedade do próprio antropólogo (DAMATTA, 1987). Ao explicar o curso da etnografia e da etnologia, Lévi-Strauss traz pontos em comum e discordantes dos métodos
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