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AULA 3 FUNÇÕES NEUROPSICOLÓGICAS COGNITIVAS – COGNIÇÃO E APRENDIZAGEM Profª Michele Müller 2 TEMA 1 – INTRODUÇÃO À MEMÓRIA O desenvolvimento cognitivo depende da memória, e não existe memória sem atenção. O inverso também é verdade: sem a memória, que nos ajuda a fazer associações e construir significado às informações que recebemos, não conseguimos sustentar a atenção. São duas habilidades, portanto, interdependentes, que estão na base da cognição humana. Nesta e nas próximas aulas, você entenderá um pouco mais sobre como funciona o sistema de armazenagem do cérebro humano. Quando falamos de memória, não nos referimos à capacidade de memorizar eventos ou um determinado conteúdo. O ganho de habilidades motoras — como andar e se equilibrar em uma bicicleta —, o reconhecimento das pessoas, lembranças de episódios da vida, tudo depende da nossa capacidade de guardar e reconstituir as informações. Portanto, existem diversos tipos de memórias, que envolvem diferentes processos mentais e regiões do cérebro. As nossas percepções, conforme explicamos na aula sobre os sentidos, são influenciadas pelas predições que o cérebro faz o tempo todo. Muito do que sentimos é moldado por aquilo que esperamos sentir, com base em experiências anteriores. A memória, portanto, influencia os sentimentos e o comportamento, e está no fundamento da nossa identidade. Somos a somatória das nossas experiências, daquelas que estão registradas em algum lugar do nosso cérebro. Podemos dizer em algum lugar, pois apesar do papel importante do hipocampo na memória, esta não é a única estrutura responsável por guardar as informações, conforme veremos mais tarde. A compreensão de alguns processos na formação da memória é fundamental para repensarmos a forma como aprendemos e como ensinamos. A educação formal, por exemplo, baseia-se em fatos equivocados acerca de como a memória funciona. Ela superestima a capacidade de memorização de fatos e informações que o sistema emocional das crianças considera irrelevante, e não leva em conta o fato de que nosso cérebro não foi projetado para armazenar uma quantidade grande de informações — especialmente se nossas emoções não estão envolvidas para sinalizar a relevância do conteúdo. Conforme coloca o neurocientista Rodrigo Quiroga, em seu livro The Forgetting Machine (2017): 3 Nós não lembramos de quase nada. A ideia de que lembramos de muitos detalhes e sutilezas das nossas experiências, como se estivéssemos vendo um filme do nosso passado, não é nada além de ilusão, de uma construção do cérebro. E esse talvez seja o maior segredo do estudo da memória: a verdade surpreendente que, a partir de pouquíssimas informações, o cérebro cria uma realidade e um passado que nos faz quem somos, apesar do fato que este mesmo passado, essa coleção de memórias, é extremamente evasivo; apesar do fato de o mero ato de trazer uma memória à nossa consciência inevitavelmente a transforma; apesar do fato de que aquilo o que está por trás da minha consciência de um ser (self) único e imutável, que me faz quem eu sou, estar em constante transformação. O cérebro humano, conforme ressalta Quiroga (2017), foi projetado para compreender, dar sentido às informações pouco nítidas que guardamos. Ele defende que em vez de focar a memorização de conteúdo, que certamente será esquecido, um sistema de ensino baseado em como o cérebro humano funciona deveria direcionar a educação a práticas que trabalham compreensão e pensamento crítico. E para dar sentido às informações, detalhes geralmente são dispensáveis. Sabe aquelas figuras que vêm com partes faltando para que as crianças completem-na mentalmente e adivinhem o que está representado? O cérebro funciona dessa forma, tanto com relação às percepções como com relação à memória. As informações e estímulos não precisam estar “mastigadas”. Bastam algumas pistas e o restante o cérebro infere, faz suposições, quase sempre corretas. Veja o caso da visão: o campo em que nosso sistema visual enxerga em foco, por exemplo, é muito pequeno, do tamanho de uma moeda. Mas nossa percepção nos entrega um cenário completo – seja sem ou com óculos – inteiramente em foco. Quase tudo é reconstituição feita pelo cérebro. A memória funciona de acordo com o mesmo princípio: bastam algumas pistas e o resto é construído. As informações são guardadas na forma de conceitos. Os mesmos neurônios serão ativados se você olhar um cachorro da raça beagle ou pastor alemão, de frente, de cima, de porte grande, preto ou branco. Pesquisas recentes mostram que tais neurônios são ativados até mesmo quando ouvimos ou quando lemos a palavra cachorro, por exemplo — o que significa que são multimodais. O que está guardado é o conceito de cachorro, não os detalhes. E esses conceitos são sempre reconstruídos cada vez que precisamos acessá-los. Se a memória fosse um filme, cada vez que fosse assistido seria diferente. As cenas seriam pouco nítidas, os cenários bastante variáveis, a ordem, os diálogos e até as sensações que eles evocam mudariam a cada vez, dependendo de 4 acontecimentos e informações recentes e de como se sente o diretor no dia em que o filme está passando. A memória, portanto, reconstitui as cenas cada vez em que é acionada. E, por isso, não pode ser considerada muito confiável. Muitas das suposições que o cérebro faz, por mais que pareçam nítidas, não refletem a realidade. Tanto é que é possível, conforme apontaram alguns estudos, implantar memórias falsas nas pessoas. Muito daquilo que recordamos da nossa infância pode também ser resultado de memórias criadas a partir de fotografias, histórias ou da imaginação infantil. TEMA 2 – TIPOS DE MEMÓRIA Quando falamos em memória, as pessoas geralmente pensam em cenas de uma experiência do passado ou em fatos que precisaram “decorar” para uma finalidade acadêmica ou de trabalho. Na verdade, esses dois exemplos envolvem processos diferentes e não são os únicos tipos de memória que temos. Nesta aula, você aprenderá sobre as diferentes formas de armazenamento que o nosso cérebro apresenta. Veremos o que significam memória preocedural, memória declarativa, memória semântica, memória episódica e memória de longo e curto prazo. Há dois tipos básicos de memória, que se subdividem em outros: a declarativa e a procedural. 2.1 Memória procedural A procedural é considerada uma memória implícita, aquela que não precisa ser conscientemente acionada quando utilizada. É ela que permite que façamos automaticamente grande parte das tarefas, especialmente as motoras. Por exemplo, quando você aprendeu a dirigir e a andar de bicicleta, essas atividades não eram nada automáticas e precisaram de um bom tempo de prática e de movimentos conscientes. Depois de muita repetição, a aprendizagem ficou registrada de tal forma que hoje essas tarefas são feitas sem que você, conscientemente, acesse a memória para lembrar como se faz. Tudo aquilo o que podemos dizer que fazemos “sem pensar”, de forma automática, é permitido pela memória implícita. Imagine se um tenista precisasse avaliar, conscientemente, quais os melhores movimentos antes de bater na bola, 5 ou se um músico precisasse se lembrar das lições cada vez que escolhe uma nota. Graças à memória implícita, podemos ficar tão bons em algo que temos dificuldade para parar e pensar em como o estamos fazendo. 2.2 Memória declarativa Enquanto a memória procedural está mais relacionada com o sistema motor, a memória declarativa envolve o conhecimento de acontecimentos, fatos e informações. Quando você lista os meses do ano, escreve seu endereço ou conta a história de um filme a alguém, está utilizando memória declarativa que, por sua vez, subdivide-se em dois outros tipos: a episódica e a semântica. Conheça as diferenças: Memória semântica: está relacionada a todos os fatos e conceitos que precisamos memorizar, sem necessariamente estarmos envolvidos neles. Basicamente tudo o que você teve que memorizar na escola e o que você está aprendendo agora envolve sua memória semântica. Memória episódica: como o nome sugere, envolve episódios, ou seja, experiências em que você é o protagonista. É a memória da subjetividade — daquilo o que você viu, sentiu e fez. Quando você lembra como se sentiu e o que pensou quando alguém lhe disse algo, está usando a memória episódica. Ela também ajuda, com base em situações já vivenciadas, a projetar situações futuras e imaginar como seriam tais experiências. Assim, podemos dizer que a memória episódica é aquela que somente você tem. É considerada uma memória mais recente na linha evolutiva e também a mais vulnerável a disfunções neurológicas, ou seja, em algumas condições que afetam a memória, é esse o primeiro sistema a ser prejudicado. Há evidências de que a memória episódica é desenvolvida mais tarde e de que a partir dos 18 meses de idade as crianças começam a ganhar a capacidade de se imaginar como participantes de alguma lembrança, mas apenas a partir dos três ou quatro anos essa lembrança é mais perceptível. Por isso não temos lembranças do período inicial da nossa vida. A memória episódica também nos é dificultada pelo fato de crianças pequenas ainda não terem desenvolvido noção de tempo. 6 2.3 Onde estão guardadas as memórias? Relacionar os sistemas de memória a determinadas partes do cérebro é um grande desafio para a ciência. Sabemos que o hipocampo é crucial tanto para a formação de novas memórias quanto para sua consolidação. Várias pesquisas mostram que o hipocampo é fundamental para a memória episódica, mas está longe de ser a única estrutura envolvida. O hipocampo trabalha em conjunto com os sistemas de processamento sensorial em todo o neocórtex. O reconhecimento de imagens ou de faces envolve o córtex visual. Já memória semântica está distribuída por diversas áreas corticais e subcorticais, ou seja, não está localizada em nenhuma região específica do cérebro. Além desses tipos de memória, costumamos nos referir às memórias consolidadas como de longo prazo. São aquelas que tiveram suas conexões fortalecidas por um envolvimento emocional ou pela repetição. A memória ainda não consolidada pode ser considerada de curto prazo (como aquela que utilizamos quando estudamos informações para responder a uma prova no dia seguinte, mas que depois esquecemos) ou memória de trabalho. Sobre essa última, que nos permite manter informações na mente para que sejam manipuladas, falaremos no módulo sobre funções executivas. Figura 1 – O sistema límbico Crédito: joshya/Shutterstock. 7 TEMA 3 – A CONSTRUÇÃO DAS MEMÓRIAS Nesta aula, veremos que a formação de memória depende de alguns processos cognitivos e biológicos. Ao conhecê-los, podemos ajudar nosso cérebro a guardar melhor as informações importantes. Nesta aula, veremos que alguns elementos são cruciais para a formação de memórias, portanto, para que ocorra a aprendizagem: associação, atenção, emoção — fatores dos quais falaremos na sequência — repetição e sono. Alguns desses tópicos serão apresentados nas próximas aulas. Agora vamos falar da importância do sono e da associação. 3.1 A memória e o sono A privação do sono produz déficit na ativação do hipocampo no processo de formação de novas memórias. Durante alguns estágios do sono, as conexões relacionadas àquilo que foi aprendido e envolveu atenção, emoção ou repetição são reforçadas, ao mesmo tempo em que é feita uma espécie de limpeza de toda a informação irrelevante processada durante o dia. Isso vale também para habilidades que envolvem o sistema motor, como a prática de esporte ou de um instrumento musical. Os movimentos praticados no dia anterior são repassados enquanto dormimos, numa exercício inconsciente que reforça as sinapses e ajuda na consolidação da memória. Em estudos com ratos, foi verificado que, durante o ciclo de ondas lentas do sono — aquele que conhecemos como sono profundo —, habilidades aprendidas durante o dia são ensaiadas repetidamente (Wilson; McNaughton, 1994). De acordo com Wilson e McNaughton (1994), esse replay mental das experiências é fundamental para o fortalecimento das conexões sinápticas e, dessa forma, para que a aprendizagem se consolide. Em seu livro The Secret World of Sleep (O Mundo Secreto do Sono, em tradução livre), a neurocientista e pesquisadora na área do sono Penelope Lewis (2013) revela que as habilidades motoras tendem a se aprimorar em até 20% enquanto dormimos. Conforme vimos nas aulas anteriores, o cérebro foi projetado para trabalhar com poucas informações e muitas suposições. Para que essas poucas informações juntem-se a outras para construir sentido ou para criar novas associações inteligentes precisam se livrar dos dados irrelevantes, mantendo a 8 capacidade de armazenamento. O esquecimento, portanto, é um processo fundamental para as funções cognitivas. O sono também cumpre um importante papel nesse processo de esquecimento, que podemos chamar de limpeza de informações sem importância. Para que o cérebro não fique saturado de conexões fracas referentes a estímulos irrelevantes que foram processados durante o dia, enquanto dormimos é realizada essa faxina, durante o estágio do sono de ondas lentas. 3.2 A associação Toda a memória, assim como a aprendizagem, funciona por associação. Lembre-se de que neurônios que se ativam ao mesmo tempo se conectam. Para uma informação ser retida, ela precisa se relacionar com algum conhecimento prévio já consolidado. Pense no seguinte exemplo: você se depara com caracteres em uma língua que não conhece, como árabe ou mandarim. Não entende a mensagem, mas repara nos símbolos e os acha interessantes. Qual a chance de você se lembrar dos símbolos no dia seguinte, ou mesmo de saber identificá-los entre outros semelhantes? Como eles não faziam nenhum sentido para você, seu cérebro não se dá o trabalho de armazená-los. A única chance de conseguir reproduzir ou mesmo identificar aqueles símbolos seria a seguinte: você olha atentamente os traços e faz associações conscientes, como “parece uma carinha feliz, seguida por um jota espelhado com uma sujeirinha no meio”. Mesmo sem entender a mensagem, seu cérebro associou os símbolos a outros símbolos e isso fez com que posteriormente se lembrasse de como eram. Se você associa a sequência de símbolos a elementos que constituem uma história, a chance de se lembrar deles depois é ainda maior. Os conceitos que memorizamos, portanto, nunca estão isolados. A memória funciona como uma rede, com um elemento necessariamente relacionado a vários outros. Veja o que acontece quando encontra um conhecido: você vai imediatamente lembrar de onde você o conhece e fazer associações desse rosto a algum ambiente, atividade, amigos em comum, acontecimentos marcantes, emoções que ele desperta, outros rostos parecidos com aquele e inúmeras outras informações que o seu cérebro relacionou àquela 9 pessoa. Essas associações formam uma espécie de mapa neural de um determinado conhecimento que conseguiu trilhar seu caminho até nosso sistema de armazenamento. TEMA 4 – A ATENÇÃO SEGUNDO LURIA De acordo com William James, em The Principles of Psychology (1981), Todos sabem o que é atenção. É quando a mente toma posse, de forma clara e vívida, de uma dentre tantas simultâneas possibilidades de assuntos ou direções do pensamento. A focalização, concentração e consciência estão na sua essência. Implica na retirada de informações para que se possa lidar com outras de forma eficaz. Sim, todos sabemos o que é atenção; no entanto, defini-la não é tarefa tão fácil assim. E controlá-la é ainda mais difícil— especialmente na era das distrações em que estamos vivendo. Nesta e na próxima aula, você aprenderá sobre a mais fundamental e também uma das mais vulneráveis das nossas funções cognitivas: a atenção. Quando você chega a um ambiente novo, olha rapidamente ao redor e tem uma impressão geral do espaço, da luminosidade, da quantidade de pessoas. Mas a maior parte das informações que chegam aos seus sentidos, enquanto está naquele ambiente, sua consciência deixa escapar. O tempo inteiro em que está acordado, você processa apenas uma parte dos estímulos e o restante ignora. Em uma conversa, para que compreenda o que o outro fala, você precisa filtrar o som, ignorando todo o barulho de fundo. Se não tivesse a habilidade de ignorar os estímulos, ficaria tão saturado que não conseguiria organizar adequadamente todas as informações. Não haveria aprendizagem alguma. Só conseguimos aprender e memorizar o que aprendemos porque temos a capacidade de selecionar o estímulo ao qual iremos direcionar a atenção. Para o neurologista russo Alexander Luria, considerado o pai da neuropsicologia, a atenção permite a função mais importante da cognição, que é a organização dos estímulos, e, como consequência, das próprias ações e reações de forma adequada. A atenção é, portanto, a mais fundamental função cognitiva, que está na base de qualquer aprendizagem. Já nas primeiras semanas de vida, bebês já têm a habilidade de voltar a atenção a determinados estímulos que, segundo Luria (1930), ajudam-nos a organizar o comportamento, embora essa organização não se sustente por muito 10 tempo. Esse tipo de atenção não arbitrária Luria (1930) chama de reflexo instintivo. Mais tarde, as demandas sociais começam a fazer surgir um tipo de atenção arbitrária, que Luria (1930) chama de civilizada. Trata-se de um mecanismo adquirido que desenvolve na criança a habilidade de selecionar e direcionar a atenção a estímulos mais fracos, mas socialmente mais relevantes, geralmente criados pelo meio social. Hoje, na psicologia, esse tipo de atenção ganhou outras nomenclaturas e se subdividiu: a capacidade de selecionar estímulos, focalizar e manter o foco é chamado de atenção concentrada. Chamamos de atenção sustentada a capacidade de sustentar a atenção a atividades repetitivas por um determinado período de tempo. Já a alternância de foco de um estímulo para outro — o que acontece quando fazemos mais de uma coisa ao mesmo tempo — é chamada de atenção alternada. Sem a capacidade de controlar a própria atenção e ignorar os estímulos irrelevantes, a aprendizagem torna-se impossível. A linguagem, segundo Luria (1930), tem papel fundamental na transição da atenção instintiva para a civilizada, adquirindo a função de operação cultural. TEMA 5 – A ATENÇÃO NO CÉREBRO Nesta aula veremos que, assim como acontece com a memória, a atenção não é um processo único, ou seja, existe mais de um modo de atenção e todos têm seu papel na aprendizagem. Vamos falar também sobre os processos mentais envolvidos nessa função, tanto os conhecidos como bottom-up como os top-down. Luria (1990) dividiu o cérebro em três unidades funcionais, que são, de uma forma geral, responsáveis pelas funções de regulação de estados mentais básicos, tônus, o sono e a vigília (primeira unidade funcional); processamento sensorial e armazenamento (segunda unidade funcional, responsável pela maior parte das habilidades adquiridas nos primeiros anos de vida); e autorregulação e funções psíquicas superiores (terceira unidade funcional). Conforme vimos na aula anterior, Luria (1990) chama de reflexo instintivo aquela atenção mais primitiva, que nos faz olhar para a direção de um alarme um para um reflexo luminoso que aparece de repente. Trata-se de um 11 recurso fundamental para a sobrevivência de qualquer espécie e começa nas áreas subcorticais — a primeira unidade funcional — para então se tornar consciente. Por isso chamamos esse processo, conduzido pelas sensações, de bottom-up. Ele envolve especialmente o hipotálamo, que regula o metabolismo fisiológico. Quando dizemos que uma criança está sempre distraída, ela na verdade está direcionando sua atenção, de forma instintiva, a estímulos irrelevantes e tem dificuldade em manter a atenção que Luria (1990) chama de civilizada e hoje conhecemos como concentrada. 5.1 A atenção concentrada Esse outro modo de atenção que conscientemente controlamos para realizar tarefas cognitivas superiores, como planejamento e resolução de problemas, depende também das áreas corticais (top-bottom), mais especificamente o córtex pré-frontal, que corresponde à terceira unidade funcional de Luria (1990). Processos top-down são conduzidos pelas informações e dependem da nossa capacidade de associar essas novas informações às que estão na memória consolidada para dar sentido a elas. Quando a atenção ocorre nessa direção, é a cognição que influencia as sensações. A analogia da atenção com o foco é perfeita — tanto que geralmente usamos as duas palavras para dizer a mesma coisa. Quando nos concentramos em um único estímulo, é como se jogássemos um foco de luz forte e pontual em cada peça de informação, que será associada ao novo conhecimento para que ele faça sentido. Esse tipo de atenção trabalha o fortalecimento de conexões, sempre dentro de um processo sequencial, lógico, linear. Por exemplo, vamos aprender um novo idioma: devemos estar atentos ao som, ao sentido da palavra e à estrutura semântica da língua. Para isso, jogamos o foco nas palavras que se parecem em som ou significado ou de alguma forma se relacionam ao novo vocabulário e nas imagens mentais que podem ser associadas a ele. Essas associações que a atenção concentrada permite formar estão sempre diretamente relacionadas à nova informação. Quando estamos focados em uma tarefa, nosso cérebro emite ondas eletromagnéticas chamadas beta. 5.2 A atenção difusa 12 A atenção concentrada não é a única envolvida na aprendizagem. A atenção difusa — que envolve processos mentais diferentes e que para muitos é considerada distração — também tem seu papel no ganho cognitivo e deve ser estimulada por quem está ensinando e buscada por quem está aprendendo. Também ocorre de baixo para cima, ou seja, é um processo bottom-up. Mas, ao contrário do reflexo instinto, não é guiada por sensações e estímulos externos. Esse outro tipo de atenção se assemelha a um foco difuso de luz: mais fraco, mas que se dispersa por todo o ambiente. Assim, nesse modo conseguimos ter uma visão mais ampla da informação: o pensamento corre mais livremente por todo o cérebro, o que nos permite fazer associações menos óbvias, conexões mais holísticas entre as informações aprendidas e os conhecimentos pré-existentes. Isso explica por que pessoas mais distraídas tendem a ser mais criativas, e por que, com frequência, é nos momentos de relaxamento que surgem as melhores ideias. Esse modo de atenção é também importante quando se aprende algo completamente novo, em um primeiro momento difícil de ser relacionado a outro conhecimento já consolidado. A atenção difusa entra em cena na aprendizagem permitindo uma familiaridade com o conteúdo a ser aprendido, como folhear um livro antes de começar a ler, observar alguém fazendo antes de começar a aprender, ouvir uma música antes de aprender suas notas. O neurocientista Michael Gazzaniga (2008), pioneiro em estudos com pacientes que passam por cirugia de desconexão dos hemisférios cerebrais (um procedimento chamado split brain, geralmente usado em pessoas com fortes crises epilépticas) explica que a atenção envolve os hemisférios de formas diferentes. A atenção reflexiva ativa ambos hemisférios de forma independente, enquanto a atenção voluntária (top-down) é resultado de uma espécie de jogo de cooperação entre os dois lados do cérebro. Enquantoo esquerdo fica mais no controle, o direito é responsável pela atenção de todo o campo visual. Os processos bottom-up são econômicos em energia; já as funções corticais (top-down) demandam um alto gasto energético e exigem esforço. É muito mais fácil, portanto, deixar a mente vagar sem o controle consciente sobre a atenção. Por consumir tanta energia, a atenção concentrada, essa que chamamos de foco e nos garante a aprendizagem, é um recurso limitado. Ela requer esforço, provoca cansaço e tende a ser inconscientemente evitada. Por isso tendemos 13 fugir das tarefas que requerem muita concentração e deixar a mente escapar quando a atividade requer a sustentação da atenção por muito tempo. O fácil acesso a rotas de fuga sedutoras e que não demandam esforço cognitivo, como smartphones e redes sociais, torna muito mais difícil o controle da atenção. 14 REFERÊNCIAS ALEXANDER L. Katherin de avila salas, 10 ago. 2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-gk0zrs4TbM>. Acesso em: 30 ago. 2018. ATENÇÃO. Psychic Minutes, 26 fev. 2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WhL4ntndnrs>. Acesso em: 30 ago. 2018. COHEN, R. The Neuropsychology of Attention. Nova York: Springer, 2014. GAZZANIGA, M. Human: The Science Behind What Makes Us Unique. Nova York: Harper Collins, 2008. GAZZANIGA, M. S.; MANGUN, G. R.; IVRY, R. B. (Ed.). Cognitive Neuroscience: The Biology of the Mind. Londres: MIT Press, 2014. JAMES, W. The Principles of Psychology. Cambridge: Harvard University Press, 1981. LEWIS, P. A. The Secret World of Sleep: the surprising science of the mind at rest. Nova York: St. Martin’s Press, 2013. LURIA, A. C. Desenvolvimento cognitivo. São Paulo: Ícone, 1990. _____. The Cultural Development of Special Function: Attention. In: LURIA, A. R.; VYGOTSKY, L. S. Ape, Primitive Man, and Child: Essays in the History of Behaviour. 1930. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/luria/works/ 1930/child/ch08.htm>. Acesso em: 30 ago. 2018. QUIROGA, R. Q. The Forgetting Machine. Dallas: BenBella Books, 2017. THE BENEFITS of a good night’s sleep – Shai Marcu. Ted-Ed, 5 jan. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gedoSfZvBgE>. Acesso em: 30 ago. 2018. WILSON M. A.; MCNAUGHTON, B. L. Reactivation of hippocampal ensemble memories during sleep. Science, v. 265, n. 5172, p. 676–679, 1994. Disponível em: <http://science.sciencemag.org/content/265/5172/676>. Acesso em: 30 ago. 2018.
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