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Necropolítica e Lógica Neoliberal no Contexto do COVID-19 Rogério Luís da Rocha Seixas Docente do Departamento de Direitos Humanos, Racismo e Saúde (DIHS)/Fiocruz-RJ Doutor em Filosofia/UFRJ Introdução Em seu curso denominado É Preciso Defender a Sociedade, Michel Foucault faz um alerta, a respeito do caráter paradoxal da biopolítica que se insere no “fazer viver e deixar morrer”, pois se deve reconhecer o poder de morte da biopolítica e por consequência do biopoder. Mas como um poder de fazer viver, promover a vida, e em realidade pode deixar morrer ou mesmo levar à morte? A resposta encontra-se na intervenção do racismo de Estado, gerenciando modos de eliminação de subjetividades constituídas e classificadas enquanto indesejáveis, inúteis e descartáveis, para saúde e bom funcionamento do corpo social. Eliminação que passa pela exclusão de determinados grupos ou indivíduos de seus ditos direitos, por exemplo, à assistência social e serviços de saúde, por serem considerados não gestáveis. Ou como destaca o próprio Foucault: “O fato de expor pessoas à morte, de multiplicar para elas o risco de morte, ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a exclusão, etc.” (Foucault, 2006, p.228-29). Não podemos deixar de destacar um outro ponto essencial: uma ligação direta do biopoder ao capitalismo. Neste caso, trata-se de compreender como o aumento e o confisco das riquezas supõem o desenvolvimento de poderes que capturam as forças vitais para fazer com que participem do processo de criação de riquezas. Citando o pensador: Para a sociedade capitalista, é o biopolítico que importava. Isto é, a condição biológica, o somático, o corporal. Assim, o corpo transforma-se em uma realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica” (Foucault, 2001, p.210). Assim sendo, a gestão biopolítica se inscreve na história do liberalismo político e por consequência para a estrutura neoliberal que experenciamos em nossa atualidade. Ressalte- se que o racismo é a condição para a prática do direito de morte numa configuração neoliberal e biopolítica do poder. O extermínio e os massacres justificam-se segundo a lógica predominante da racionalidade neoliberal atual. Pode-se descrever um mecanismo para promoção da vida, visando o fortalecimento da espécie, explicando e até mesmo justificando, o exercício da violência biopolítica que causa a morte dos inferiores e indesejáveis. Dentro de uma perspectiva onde toda e qualquer dimensão da vida social deve, de alguma forma, estar subsumida e incorporada a lógica do capital, tudo aquilo que se mostrar imune ou representar algum obstáculo a mercantilização plena da vida, deverá ser eliminado. Neoliberalismo, biopolítica e subjetivação As decisões impostas no princípio de qualquer exercício de governamentalidade política embasada pela racionalidade neoliberal, estão sempre direcionadas sobre a vida. Sendo assim, segundo Agamben: “o conflito político decisivo, que governa todo outro conflito é, na nossa cultura, aquele entre a animalidade e a humanidade do homem. A política ocidental é, portanto, co-originariamente biopolítica” (Agamben,2013, p.123). Este autor também aponta que na dinâmica biopolítica descrita por Foucault no exercício de poder viver e deixar morrer, se pode inserir outra formulação que descreva mais acertadamente a biopolítica exercida pelo racismo estatal no século XX: não mais fazer morrer nem fazer viver, mas fazer sobreviver. E nesta condição de sobreviver, o homem se animaliza e passa a apresentar uma condição de vida despolitizada e desprovida de direitos básicos. Uma condição de exclusão da lógica de empresa cada vez mais intensa em nossas sociedades neoliberais, torna passível de morte o indesejável e o nocivo. Esta é uma percepção de Agamben do que denominará como nuta vida. Com o neoliberalismo, a economia transforma-se em uma técnica de análise para programação estratégica das atividades e dos comportamentos dos indivíduos, objetivando tratar de questões como: qual o modo mais eficaz de se produzir e acumular o capital humano? Como manipular e utilizar sua composição? Tais questões envolvem a racionalidade governamental neoliberal, destacando-se o papel do mercado enquanto um tribunal permanente que regula as metas da economia política, a partir do governo sobre o capital humano. A prática de governar do poder soberano é agora, recoberta pela “capacidade de administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (Foucault, 2010, p.150). O exercício do biopoder, “elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, garantiu a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção, ajustando também a população aos processos econômicos” (Foucault,2010, p.152). Foucault vai destacar que nas sociedades liberais e neoliberais principalmente, a biopolítica instaura a normalização que permite o jogo incessante entre formas de saber e de subjetivação, produzindo o homo economicus que se administra e também passa a ser administrado enquanto capital humano, dando ao seu corpo um valor como mercadoria. Contudo, este sujeito é o responsável pelo cuidado de seu corpo, ou em outros termos, deve ser responsável por investir em si mesmo. Investir em si mesmo para se valorizar no mercado do trabalho, calculando racionalmente os riscos, sendo assim responsável pela sua segurança e eventual sucesso ou insucesso. Pois os riscos e também os dispositivos de segurança reduzem a pluralidade humana a um conjunto de funções vitais interessadas apenas no prolongamento da espécie e na proteção da vida. Pode-se questionar se esta subjetividade implica na totalidade do que somos? Claro que não. É, com tudo o que isso implica, a interface entre o indivíduo e o poder que se exerce sobre ele, na condição que ao ser estimulado e normalizado a tornar-se mais voltado a administrar a si mesmo enquanto capital humano a ser explorado, torna-se mais sutilmente passível de ser governável. Mbembe descreve a trajetória da utilização da mão de obra escravizada africana como a alavanca do capitalismo: o indivíduo que é transformado em um corpo-objeto, vendido como mercadoria, uma mercadoria que é transformada em corpo-máquina para produzir riquezas, que destituído de tudo o que lhe garantia a sua humanidade. Desse indivíduo, o negro, tenta-se retirar seu território, a sua cultura, a sua dignidade, e o seu corpo que, agora, à mercê do seu proprietário, está submetido a toda a forma de submissão e degradação. O negro é transformado em mercadoria, condição que perdura no neoliberalismo, ampliando-se para outros sujeitos que podem ser elimináveis e matáveis, podendo ser colocados como hierarquicamente inferiores. A biopolítica necessária ao capitalismo, embasado no exercício do racismo do biopoder do Estado, que objetiva preservar a vida e saúde para garantir a normalidade da acumulação e gestão do capital vital da população converte-se em “necropolítica enquanto política da morte” (Mbembe,2018,p.18), promovendo genocídios e massacres em larga escala Necropoder, soberania e política de morte Logo no início de seu ensaio intitulado de Necropolítica, Achille Mbembe apresenta a ideia de que o sentido de soberania, ganha sua expressão máxima no poder e na capacidade do soberano, decidir sobre quem deve morrer e quem pode viver. Estes são apresentados como os limites do exercício do poder soberano. Aparentemente, Mbembe concorda com a suficiência do conceito de biopoder foucaultiano para explicar os fenômenos que implicam neste poder soberano sobre a vida. Contudo, observa-se ser mesmo aparente esta concordância total, visto que o autor destaca diferentes questões que põe em dúvida a suficiência desta concepção de biopoder. Destaque-se dentre tais questões uma especialmente central: Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas emque o político por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? Assim, Mbembe apresenta outra proposta em seu ensaio: a guerra como forma de atingir a soberania enquanto um modo de exercer o direto de matar. Partindo deste ponto, o autor formula outra importante indagação para a condição política contemporânea: como a vida, a morte e o corpo humano estão inseridos na ordem do poder? Claro que Mbembe de fato se embasa no conceito de biopoder foucaultiano, mas com o objetivo de desafiá-lo ao máximo, explorando sua relação com a soberania e o estado de exceção. Com relação ao estado de exceção, o autor destaca, no capítulo intitulado como política, o trabalho da morte e o devir sujeito, o seu uso em discussões referentes aos regimes totalitários e aos campos de extermínio. Porém, não se limita ao acontecimento singular do extermínio judeu e dos acontecimentos totalitários. Mbembe propõe que a Modernidade sempre esteve nas origens de diferentes e diversificados conceitos de soberania e, por conseguinte, como defende o autor, embasando-se na prática da biopolítica. Destaque-se que o autor critica a reflexão política contemporânea, exatamente por desconsiderar esta multiplicidade conceitual e que privilegiando teorias meramente normativas das bases democráticas e a concepção de razão esclarecida que produziu uma noção de soberania com base nesta normação racional, enquanto um corpo de homens livres e iguais, responsáveis pelo contrato social e pela eventual construção de acordos democráticos. Homens e mulheres que de acordo com a concepção esclarecida de soberania, são considerados sujeitos autônomos e auto representativos. E assim, aponta Mbembe, a política passou a ser definida na modernidade e ainda permanece de certo modo, em nossa contemporaneidade, enquanto um projeto de autonomia, próprio da visão do Esclarecimento e o modo de construção de acordos entre os sujeitos, mediante comunicação e reconhecimento. O autor, critica este paradigma da razão soberana, descrevendo o que denomina como sendo um romance da soberania que ainda embasa o nosso sentido de democracia. Uma visão irreal que mantém presente na reflexão política contemporânea do sujeito como auto instituidor e auto limitador desta soberania romanceada e imaginária. Aqui o pensador recusa seguir na linha crítica deste modelo de luta pela autonomia. Seu objetivo se direciona em analisar o que descreve como a instrumentalização da existência humana e a experiencia da destruição de corpos humanos e populações. Nega-se qualquer tipo de caráter de insanidade ou anomalia que muitas vezes é empregado pelo modelo racional da soberania de autonomia dos sujeitos para justificar e descrever os acontecimentos de destruição e genocídio individual ou populacional. No ensaio, propõe-se que tanto a instrumentalização quanto a destruição de corpos e populações, representam o verdadeiro nomos que embasa o nosso espaço político contemporâneo. Assim sendo, a partir das experiencias de destruição humana, o autor propõe outras análises de soberania, que fogem do paradigma romanceado da soberania racional do sujeito e do ideal democrático de igualdade e acordos. Na seção intitulada O Biopoder e a relação de inimizade, Mbembe trata do tema que implica diretamente a soberania com o direito de matar. Para traçar esta análise, o autor relaciona a noção de biopoder foucaultiana com os conceitos de exceção e o estado de sítio. Examinando o estado de exceção e a relação de inimizade, enquanto a base normativa do direito soberano de matar, o poder utiliza-se da figura ficcional do inimigo, apelando para a exceção e a emergência. A raça é reconhecida enquanto fator essencial para justificar, neste exercício de poder, a desumanização de povos estranhos e a sua eventual dominação. O autor ainda observa que no exercício do biopoder, “a função do racismo é a de regulação da distribuição da morte e de tornar totalmente possível e justificável a função assassina do Estado, expressando explicitamente a ligação direta entre o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder, além de sua inscrição na atuação do Estado Moderno e que se tornou permanente em nossos modelos de estados democráticos liberais” (Mbembe, 2018, p.18). Com o necropoder, tem-se uma política de gestão da morte, denominada como necropolítica e podendo ser descrita enquanto a submissão da vida ao poder da morte. Qualifica- se assim a necropolítica enquanto uma “política da morte”, ilustrando que “a noção de biopoder é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da morte” (Mbembe,2018, p.71). Escravidão do corpo negro e vida nua no Brasil Traçando a relação entre necropolítica e neoliberalismo, pode-se afirmar que a noção da ação política da morte, se configura enquanto a forma política mais adequada ao neoliberalismo atual, no sentido de que atende a um dos seus objetivos principais, que Mbembe captou com grande perspicácia: “a destruição material dos corpos e populações humanas julgados como descartáveis e supérfluos”34. Em seu ensaio Crítica da Razão Negra, o autor descreve esses corpos supérfluos e descartáveis, que são assim classificados, quando as suas capacidades de trabalho diminuem ou cessam, ou ainda, ao não se constituírem mais como necessários ao modo de reprodução próprio ao neoliberalismo. Tal situação representa a inexistência de trabalhadores propriamente ditos e ainda acrescenta que a raça, assim como o racismo, possua um lugar de destaque na racionalidade do exercício do biopoder, pois afinal, “a raça foi a sombra sempre presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros ou a dominação a ser exercida sobre eles” ( Mbembe, 2014,p.41). Verifica-se assim a condição de “vida nua”, desprovida de qualquer valor para a produção e consumo, “assinalando o ponto em que a biopolítica se converte, a necropolítica enquanto política da morte” (Mbembe,2018, p.18). Assim, a necropolítica se coadunando com a condição do Estado de exceção, como aponta o autor camaronês, distribui de forma excludente e desigual recursos políticos e econômicos, exercendo-se um exercício de veto por parte do soberano, sobre as condições de vida dos que são classificados como descartáveis e indesejáveis e, consequentemente, estabelece-se um poder de decisão de exposição à morte dos grupos considerados e constituídos como impuros ou marginalizados. Esta exposição a morte, pode ser exemplificada quando se observa que o “Negro” é aquele que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Essa invisibilidade está no cerne do racismo, que, além de negar a humanidade do outro, se desenvolve como modelo legitimador da opressão e da exploração. Mais do que isso, exercício máximo do biopoder, o racismo representa a escolha de quem deve ser eliminado, numa morte que pode ser tanto física quanto política ou simbólica. Enquanto construção social, o conceito de negro ou outro tipo de indesejável, representa uma noção que designa a imagem de uma existência subalterna e de uma humanidade castrada. O negro capturado, exportado da África e escravizado é privado de qualquer estatuto jurídico. Ele é vítima de uma tripla perda: “perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda de estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social” (expulsão da humanidade de modo geral) (Mbembe, 2018, p.28- 32). Essa percepção econômica da questão racial tem início na fase mercantilista do capitalismo (quando o negro é transformado em mercadoria) e perdura no neoliberalismo. A escravidão na condição de estratégia biopolítica, se fundamenta em leis, incentivosfinanceiros, apoios militares, instituições políticas, etc., que viabilizaram o comércio da CARNE OU CORPO NEGRO em grande escala como um produto altamente lucrativo para o mercado em todos seus processos. Tirar-lhes a vida e a dignidade era uma das estratégias para colonizá-los em terras distantes e depois na sua própria terra. Milhões foram assassinados, outros tantos mutilados. Eram corpos que ou produziam riquezas para os seus senhores ou sucumbiam aos sofrimentos e torturas até a morte. Em uma sociedade como a brasileira, marcada pela questão histórica da escravidão e por consequência sobre a discussão do racismo, dizer que observamos muitos sinais das práticas desta violência depuradora da biopolítica não se configura em um exagero. Indicando as práticas de racismo de Estado, voltando-nos mais diretamente para o contexto social brasileiro, ressaltando um elemento particular e essencial que não pode ser negligenciado: a questão histórica do racismo que perpassa pela escravidão que segundo Castor Ruiz: “existiu como estratégia biopolítica do Estado Moderno. A senzala tem o privilégio de ser a primeira experiência de campo criado pelo Estado Moderno” (Ruiz, 2012, pp.15-16). Desta forma, seria a senzala enquanto um espaço da prática biopolítica, a representação do paradigma do racismo de Estado, assemelhando-se à descrição de Agamben quando destaca o campo de concentração ser “o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a se tornar regra”?(Agamben,2002,p.175). Todavia, a leitura da senzala e da própria escravidão como experiência biopolítica, amplia a noção de filósofo italiano, que determina o surgimento do campo de exceção apenas no período moderno e marcadamente, com a experiência do holocausto. Para Daniel Arruda: “A senzala pode ser compreendida como um campo biopolítico e, quanto a isso, não me parece haver motivos para titubear” (Arruda, 2016, Cadernos de Ética e Filosofia Política, p23). Assim, a senzala é o paradigma de Exceção biopolítica do campo de concentração, constituindo-se na primeira experiência de espaço de exceção moderno em que a vida humana é confinada fora do direito e abandonada ao arbítrio de uma vontade soberana, embora nunca permaneça totalmente externa ao direito. O escravo brasileiro é vida nua. Se alguma condição jurídica o envolve, é a de ser propriedade do senhor. Ele mesmo está desprovido de quaisquer direitos, o direito de propriedade protege o senhor e não a coisa que é possuída. O corpo negro, enquanto máquina e mera propriedade. Em tal condição, perante o seu senhor ele é inteiramente uma vida nua e diante dos outros, ele não passa de uma aleatória vida nua. Mesmo que o direito de propriedade tenha alguma influência, sobre o modo como seu corpo será tratado pelos outros, o proteja em princípio de quem não exerce sobre ele o domínio direto, não o salva da exposição à violência e à morte, assim como um bem material não escapa do risco da destruição por outro. Aqui destacamos um ponto importante: a vida nua. Temos uma vida desprovida de direitos, muito ao contrário, pois enquanto escravo, seu corpo pertence a um senhor que dele dispõe como mercadoria, encontrando-se expropriado ao máximo, inclusive no que diz respeito à possibilidade de ter suas experiências. Partimos então da premissa que se torna impossível negar a influência perversa da herança da escravidão, enquanto estratégia biopolítica de racismo que se fez muito influente na formação de nossa sociedade e nas práticas de violência contra os corpos negros. O escravo brasileiro é vida nua. Se alguma condição jurídica o envolve, é a de ser propriedade do senhor. Ele mesmo está desprovido de quaisquer direitos, o direito de propriedade protege o senhor e não a coisa. Partindo desta análise, Arruda afirma que: Tão absurdo quanto supor que o campo biopolítico surge apenas no nosso século, é supor que a escravidão não mereça mais qualquer análise, que ela não possa ser novamente investigada, inclusive por um viés filosófico, ou que essa investigação seja de pouca monta – assim como supor que seus traumas tenham sido todos superados na nossa sociedade e que a experiência da escravidão pertença tão somente ao passado remoto( Arruda, 2016, p.24) Racismo de Estado, necropolítica e extermínio dos corpos negros Os corpos negros são ainda relegados em nossa sociedade a uma condição subalterna, marginal, colonizada e à exclusão geográfica das comunidades, locais onde, a morte é rotineira comum, não se tornando público e noticiado o luto, mas só a morte de inimigos ou criminosos. Almeida observa que nessas áreas se revela o necropoder onde a norma jurídica não alcança e o direito estatal não consegue domesticar o seu direito de matar, sendo reconhecido como um direito de guerra” (Almeida, 2019, p.48). Desta forma, as “zonas policiais” nas periferias de nossas principais cidades, representam campos de exceção, semelhantes ao modelo da senzala, expondo a vida dos indivíduos que compõe esta população, sendo aplicada uma higienização para eliminação dos assim qualificados segundo uma norma, como sujeitos delinquentes que precisam ser eliminados para a preservação da vida que vale a pena ser protegida, pela ação direta do exercício de matar por parte do Estado. Tal situação se torna possível segundo Silvio Almeida, quando o racismo, enquanto processo político e histórico, ganha a característica estrutural em uma sociedade como a nossa, se estabelecendo também em um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja consciência e os afetos encontram-se conectados com as práticas socias racistas. Almeida aponta que “subjetividades racializadas e categorizadas como subgrupos ou subalternas, são constituídas por condições estruturais e institucionais” (Almeida, 2019, p.50). Assim sendo, pode-se afirmar que o racismo produz a raça e os sujeitos racializados. Sendo assim, implanta-se um estado de sítio por parte do Estado, como regra e o inimigo a ser eliminado, será criado. Com o estado de exceção, são suspensas garantias legais aos indivíduos, pois todos em potencial, na zona policial ou comunidade marginal, são considerados inimigos. Impõe-se a necropolítica estatal de modo violento no cotidiano destes indivíduos, expondo seus corpos negro a morte, mas exercido como sendo uma prática natural. Silvio de Almeida ressalta que é o racismo que permite “que se naturalize a morte de crianças por “balas perdidas” e que se exterminem milhares de jovens negros por ano, no que vem sendo denunciado há anos pelo movimento negro como genocídio” (Almeida, 2018, p. 94). Não por acaso, sobre o estado de exceção, Mbembe refere que as colônias são espaços, que por exercício do poder soberano, tornou-se e torna-se possível a suspensão de direitos e garantias. No racismo, a constituição dos corpos negros, segundo Grada Kilomba, vai afirma-los como “corpos que estão fora do lugar e por essa razão, corpos que não podem pertencer a um todo social” (Kilomba,2019, p.56). São Subjetividades radicalizadas sob as quais aplica-se uma gestão de política da morte, a partir do exercício do necropoder e assim se estabelece a necropolítica, assemelhando-se estas zonas policiais e a senzala, a noção de plantation que de acordo com Mbembe “a estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a figura emblemática e paradoxal do estado de exceção”(Mbembe,2018,p.27). Este sistema de plantation é descrito pelo autor africano como “uma das primeiras manifestações da experiencia biopolítica” (Idem, p.27-28), estando relacionada com a prática da escravidão. A plantation, representa enquanto estrutura jurídica e econômica “um espaço em que o escravo pertence ao senhor” (Idem, p.27). Instaurando a partir do sistema de plantation, praticasse uma forma de genocídio que apresenta um modo peculiar de terror, que se apresenta como a concatenaçãoentre biopoder, o Estado de exceção e o Estado de sítio. Silvio de Almeida afirma que o “racismo estrutural age no contexto da normalidade, mantendo vivos discursos que afastam tentativas mais consistentes para coibir as práticas racistas” (Almeida, 2018, p.89). Isso significa dizer que a visão estrutural (e estruturante) se expressa como uma forma de racionalidade, algo que vai muito além de uma interpretação simplista que venha a entender o preconceito como um desvio de caráter A necropolítica manifesta-se, em uma sociedade que retém muito de sua herança escravocrata, que mantém fortes resquícios coloniais e marcadamente, apresenta um intenso racismo estrutural. Silvio de Almeida sustenta que o modelo de poder do Estado no Brasil, sofrendo exatamente os reflexos da escravidão e colonialismo, exerce-se o livre poder de matar, ou o necropoder, colocando os indivíduos racializados como negros e subjetividades matáveis, em situação sempre comum de extermínio, constituindo-se assim um cenário em que a “guerra, a política, o homicídio e o suicídio tornam-se indistinguíveis”(Almeida, 2018, p. 90). Praticam- se violências que se tornaram banais, pois são até corroboradas pelo corpo político-social e oficial, como as que observamos nas comunidades que podem ser consideradas como “zonas policiais”, onde a população é qualificada enquanto potencialmente nociva e perigosa, motivo pelo qual deve ser vigiada, pois a partir de uma prática necropolítica, se estabeleceu o binômio “inimigo-guerra”, configurando-se ainda enquanto referência no campo das formulações teóricas e práticas da “segurança pública” no país. Temos, portanto, uma sociedade militarizada e punitivista que continua a produzir incessantemente “inimigos”, que pela lógica da guerra, necessitam ser executados, mortos. Referimo-nos explicitamente aos “descartáveis” e “indignos” que sob esta dupla ótica “merecem” morrer. O pensador camaronês, ao tratar do conceito política de morte, aponta que a erradicação de subgrupos de uma população biopoliticamente administrada, configura-se como uma forma justificável de preocupação com a pureza ou saúde racial de uma determinada sociedade. Afirma-se neste contexto que “o biopoder funciona controlando a distribuição da espécie humana tanto em grupos quanto a subdivisão da população em subgrupos, estabelecendo uma divisão biológica entre uns e outros” (Mbembe,2018, p.17). Mbembe acrescenta que em termos foucaultianos “o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder” (Mbembe, 2018, p.19). Sua função seria a de regular a distribuição da morte e possibilitar as funções biopolíticas de matar por parte do Estado. Fazer matar sob uma perspectiva que decide justamente em que momento uma vida deixa de ser política e economicamente relevante e, consequentemente, pode ser eliminada do tecido social. Conclusão Ao colocarmos a discussão referente ao Racismo de Estado, a Vida nua e a Necropolítica como questões essenciais para a filosofia política e voltando-nos para a realidade nacional, buscamos refletir uma atualidade marcada pelos abusos de poder político, a violência política contra os estranhos e também contra os cidadãos de um corpo social, pelas guerras, extermínios e genocídios, além de cada vez mais a intensa repressão das liberdades e direitos. Outrossim, a reflexão política, histórica e filosófica sobre racismo em nossa sociedade, mesmo apresentando avanços, continua a ser tratada em muitos setores da sociedade, inclusive na própria academia, como questão menor, ou ainda se percebe o esforço e o desejo que sua problematização permaneça velada. Mesmo que bastante desconstruído pelo avanço dos movimentos sociais e antirracistas, ainda permanece em nosso ideário social um resquício da ideia de “democracia racial”, negando que haja racismo no Brasil e neste estado democrático de igualdade racial e também social, as relações étnico-raciais são harmônicas. Se analisarmos nossa realidade com o auxílio da categoria de necropolítica, perceberemos que o suplício continua sendo utilizado como uma técnica do poder na atualidade, se voltando contra corpos negros e indígenas que são, não apenas mortos, mas o são em cenas espetaculares de crueldade, que faz com que em nosso contexto, o imperativo político frente às relações entre vida e morte, marcada pelos corpos racializados não seja o “fazer viver e deixar morrer” da biopolítica, mas o fazer viver (os corpos brancos) e fazer morrer (os outros corpos), que parece reger mais precisamente o funcionamento da necropolítica no Brasil. Este ideal defendido por representantes dos setores políticos e acadêmicos disfarça a prática da biopolítica racista institucionalizada e permite que a exceção de direitos seja a regra de nosso espaço democrático, ainda um tanto frágil e ameaçado com retrocessos. Bibliografias: AGAMBEN, G. HOMO SACER. O poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte; Ed. UFMG, 2002. ______________ O aberto. O homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Ed. Pólen, 2018. ARRUDA, D. 2016, Cadernos de Ética e Filosofia Política, p23 FOUCAULT, M. Dits et Écrits II, 1976-1988. 2. ed. Paris; Gallimard, 2001. _____________. É Preciso Defender a Sociedade. Curso do Collége de France (1975- 1976). Tradução de Carlos Correia M. de Oliveira. Lisboa: Livros Brasil, 2006. _____________. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010. KILOMBA, G. Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Tradução Jess Oliveira, Rio de Janeiro: editora Cobogó, 2019. MBEMBE, A. NECROPOLÌTICA. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018. _______________ Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014. RUIZ, C. M. M. B. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re) leituras biopolíticas de Giorgio Agamben. Cadernos IHU, n. 39, São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2012.
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