Buscar

Necropolítica e Lógica Neoliberal no Contexto da COVID-19

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 12 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 12 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 12 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Necropolítica e Lógica Neoliberal no Contexto do COVID-19 
 
Rogério Luís da Rocha Seixas 
Docente do Departamento de Direitos Humanos, Racismo e Saúde (DIHS)/Fiocruz-RJ 
Doutor em Filosofia/UFRJ 
 
 
Introdução 
 
Em seu curso denominado É Preciso Defender a Sociedade, Michel Foucault faz um 
alerta, a respeito do caráter paradoxal da biopolítica que se insere no “fazer viver e deixar 
morrer”, pois se deve reconhecer o poder de morte da biopolítica e por consequência do 
biopoder. Mas como um poder de fazer viver, promover a vida, e em realidade pode deixar 
morrer ou mesmo levar à morte? A resposta encontra-se na intervenção do racismo de 
Estado, gerenciando modos de eliminação de subjetividades constituídas e classificadas 
enquanto indesejáveis, inúteis e descartáveis, para saúde e bom funcionamento do corpo 
social. Eliminação que passa pela exclusão de determinados grupos ou indivíduos de seus 
ditos direitos, por exemplo, à assistência social e serviços de saúde, por serem considerados 
não gestáveis. Ou como destaca o próprio Foucault: “O fato de expor pessoas à morte, de 
multiplicar para elas o risco de morte, ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, 
a exclusão, etc.” (Foucault, 2006, p.228-29). Não podemos deixar de destacar um outro ponto 
essencial: uma ligação direta do biopoder ao capitalismo. Neste caso, trata-se de 
compreender como o aumento e o confisco das riquezas supõem o desenvolvimento de 
poderes que capturam as forças vitais para fazer com que participem do processo de criação 
de riquezas. Citando o pensador: Para a sociedade capitalista, é o biopolítico que importava. 
Isto é, a condição biológica, o somático, o corporal. Assim, o corpo transforma-se em uma 
realidade biopolítica; a medicina é uma estratégia biopolítica” (Foucault, 2001, p.210). 
Assim sendo, a gestão biopolítica se inscreve na história do liberalismo político e por 
consequência para a estrutura neoliberal que experenciamos em nossa atualidade. Ressalte-
se que o racismo é a condição para a prática do direito de morte numa configuração neoliberal 
e biopolítica do poder. O extermínio e os massacres justificam-se segundo a lógica 
predominante da racionalidade neoliberal atual. Pode-se descrever um mecanismo para 
promoção da vida, visando o fortalecimento da espécie, explicando e até mesmo justificando, 
o exercício da violência biopolítica que causa a morte dos inferiores e indesejáveis. Dentro 
de uma perspectiva onde toda e qualquer dimensão da vida social deve, de alguma forma, 
estar subsumida e incorporada a lógica do capital, tudo aquilo que se mostrar imune ou 
representar algum obstáculo a mercantilização plena da vida, deverá ser eliminado. 
 
Neoliberalismo, biopolítica e subjetivação 
 
As decisões impostas no princípio de qualquer exercício de governamentalidade 
política embasada pela racionalidade neoliberal, estão sempre direcionadas sobre a vida. 
Sendo assim, segundo Agamben: “o conflito político decisivo, que governa todo outro 
conflito é, na nossa cultura, aquele entre a animalidade e a humanidade do homem. A política 
ocidental é, portanto, co-originariamente biopolítica” (Agamben,2013, p.123). Este autor 
também aponta que na dinâmica biopolítica descrita por Foucault no exercício de poder viver 
e deixar morrer, se pode inserir outra formulação que descreva mais acertadamente a 
biopolítica exercida pelo racismo estatal no século XX: não mais fazer morrer nem fazer 
viver, mas fazer sobreviver. E nesta condição de sobreviver, o homem se animaliza e passa 
a apresentar uma condição de vida despolitizada e desprovida de direitos básicos. Uma 
condição de exclusão da lógica de empresa cada vez mais intensa em nossas sociedades 
neoliberais, torna passível de morte o indesejável e o nocivo. Esta é uma percepção de 
Agamben do que denominará como nuta vida. 
 Com o neoliberalismo, a economia transforma-se em uma técnica de análise para 
programação estratégica das atividades e dos comportamentos dos indivíduos, objetivando 
tratar de questões como: qual o modo mais eficaz de se produzir e acumular o capital 
humano? Como manipular e utilizar sua composição? Tais questões envolvem a 
racionalidade governamental neoliberal, destacando-se o papel do mercado enquanto um 
tribunal permanente que regula as metas da economia política, a partir do governo sobre o 
capital humano. A prática de governar do poder soberano é agora, recoberta pela “capacidade 
de administração dos corpos e pela gestão calculista da vida” (Foucault, 2010, p.150). O 
exercício do biopoder, “elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, garantiu 
a inserção controlada dos corpos no aparelho de produção, ajustando também a população 
aos processos econômicos” (Foucault,2010, p.152). 
Foucault vai destacar que nas sociedades liberais e neoliberais principalmente, a 
biopolítica instaura a normalização que permite o jogo incessante entre formas de saber e de 
subjetivação, produzindo o homo economicus que se administra e também passa a ser 
administrado enquanto capital humano, dando ao seu corpo um valor como mercadoria. 
Contudo, este sujeito é o responsável pelo cuidado de seu corpo, ou em outros termos, deve 
ser responsável por investir em si mesmo. Investir em si mesmo para se valorizar no mercado 
do trabalho, calculando racionalmente os riscos, sendo assim responsável pela sua segurança 
e eventual sucesso ou insucesso. Pois os riscos e também os dispositivos de segurança 
reduzem a pluralidade humana a um conjunto de funções vitais interessadas apenas no 
prolongamento da espécie e na proteção da vida. Pode-se questionar se esta subjetividade 
implica na totalidade do que somos? Claro que não. É, com tudo o que isso implica, a 
interface entre o indivíduo e o poder que se exerce sobre ele, na condição que ao ser 
estimulado e normalizado a tornar-se mais voltado a administrar a si mesmo enquanto capital 
humano a ser explorado, torna-se mais sutilmente passível de ser governável. 
 Mbembe descreve a trajetória da utilização da mão de obra escravizada africana como 
a alavanca do capitalismo: o indivíduo que é transformado em um corpo-objeto, vendido como 
mercadoria, uma mercadoria que é transformada em corpo-máquina para produzir riquezas, que 
destituído de tudo o que lhe garantia a sua humanidade. Desse indivíduo, o negro, tenta-se 
retirar seu território, a sua cultura, a sua dignidade, e o seu corpo que, agora, à mercê do seu 
proprietário, está submetido a toda a forma de submissão e degradação. O negro é transformado 
em mercadoria, condição que perdura no neoliberalismo, ampliando-se para outros sujeitos que 
podem ser elimináveis e matáveis, podendo ser colocados como hierarquicamente inferiores. A 
biopolítica necessária ao capitalismo, embasado no exercício do racismo do biopoder do 
Estado, que objetiva preservar a vida e saúde para garantir a normalidade da acumulação e 
gestão do capital vital da população converte-se em “necropolítica enquanto política da 
morte” (Mbembe,2018,p.18), promovendo genocídios e massacres em larga escala 
 
Necropoder, soberania e política de morte 
 
Logo no início de seu ensaio intitulado de Necropolítica, Achille Mbembe apresenta a 
ideia de que o sentido de soberania, ganha sua expressão máxima no poder e na capacidade do 
soberano, decidir sobre quem deve morrer e quem pode viver. Estes são apresentados como os 
limites do exercício do poder soberano. Aparentemente, Mbembe concorda com a suficiência 
do conceito de biopoder foucaultiano para explicar os fenômenos que implicam neste poder 
soberano sobre a vida. Contudo, observa-se ser mesmo aparente esta concordância total, visto 
que o autor destaca diferentes questões que põe em dúvida a suficiência desta concepção de 
biopoder. Destaque-se dentre tais questões uma especialmente central: Essa noção de biopoder 
é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas emque o político por meio da guerra, 
da resistência ou da luta contra o terror, faz do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? Assim, 
Mbembe apresenta outra proposta em seu ensaio: a guerra como forma de atingir a soberania 
enquanto um modo de exercer o direto de matar. Partindo deste ponto, o autor formula outra 
importante indagação para a condição política contemporânea: como a vida, a morte e o corpo 
humano estão inseridos na ordem do poder? 
Claro que Mbembe de fato se embasa no conceito de biopoder foucaultiano, mas com o 
objetivo de desafiá-lo ao máximo, explorando sua relação com a soberania e o estado de 
exceção. Com relação ao estado de exceção, o autor destaca, no capítulo intitulado como 
política, o trabalho da morte e o devir sujeito, o seu uso em discussões referentes aos regimes 
totalitários e aos campos de extermínio. Porém, não se limita ao acontecimento singular do 
extermínio judeu e dos acontecimentos totalitários. Mbembe propõe que a Modernidade sempre 
esteve nas origens de diferentes e diversificados conceitos de soberania e, por conseguinte, 
como defende o autor, embasando-se na prática da biopolítica. Destaque-se que o autor critica 
a reflexão política contemporânea, exatamente por desconsiderar esta multiplicidade conceitual 
e que privilegiando teorias meramente normativas das bases democráticas e a concepção de 
razão esclarecida que produziu uma noção de soberania com base nesta normação racional, 
enquanto um corpo de homens livres e iguais, responsáveis pelo contrato social e pela eventual 
construção de acordos democráticos. Homens e mulheres que de acordo com a concepção 
esclarecida de soberania, são considerados sujeitos autônomos e auto representativos. E assim, 
aponta Mbembe, a política passou a ser definida na modernidade e ainda permanece de certo 
modo, em nossa contemporaneidade, enquanto um projeto de autonomia, próprio da visão do 
Esclarecimento e o modo de construção de acordos entre os sujeitos, mediante comunicação e 
reconhecimento. 
O autor, critica este paradigma da razão soberana, descrevendo o que denomina como 
sendo um romance da soberania que ainda embasa o nosso sentido de democracia. Uma visão 
irreal que mantém presente na reflexão política contemporânea do sujeito como auto instituidor 
e auto limitador desta soberania romanceada e imaginária. Aqui o pensador recusa seguir na 
linha crítica deste modelo de luta pela autonomia. Seu objetivo se direciona em analisar o que 
descreve como a instrumentalização da existência humana e a experiencia da destruição de 
corpos humanos e populações. Nega-se qualquer tipo de caráter de insanidade ou anomalia que 
muitas vezes é empregado pelo modelo racional da soberania de autonomia dos sujeitos para 
justificar e descrever os acontecimentos de destruição e genocídio individual ou populacional. 
No ensaio, propõe-se que tanto a instrumentalização quanto a destruição de corpos e 
populações, representam o verdadeiro nomos que embasa o nosso espaço político 
contemporâneo. Assim sendo, a partir das experiencias de destruição humana, o autor propõe 
outras análises de soberania, que fogem do paradigma romanceado da soberania racional do 
sujeito e do ideal democrático de igualdade e acordos. 
Na seção intitulada O Biopoder e a relação de inimizade, Mbembe trata do tema que 
implica diretamente a soberania com o direito de matar. Para traçar esta análise, o autor 
relaciona a noção de biopoder foucaultiana com os conceitos de exceção e o estado de sítio. 
Examinando o estado de exceção e a relação de inimizade, enquanto a base normativa do direito 
soberano de matar, o poder utiliza-se da figura ficcional do inimigo, apelando para a exceção e 
a emergência. A raça é reconhecida enquanto fator essencial para justificar, neste exercício de 
poder, a desumanização de povos estranhos e a sua eventual dominação. O autor ainda observa 
que no exercício do biopoder, “a função do racismo é a de regulação da distribuição da morte 
e de tornar totalmente possível e justificável a função assassina do Estado, expressando 
explicitamente a ligação direta entre o direito soberano de matar e os mecanismos de biopoder, 
além de sua inscrição na atuação do Estado Moderno e que se tornou permanente em nossos 
modelos de estados democráticos liberais” (Mbembe, 2018, p.18). 
Com o necropoder, tem-se uma política de gestão da morte, denominada como 
necropolítica e podendo ser descrita enquanto a submissão da vida ao poder da morte. Qualifica-
se assim a necropolítica enquanto uma “política da morte”, ilustrando que “a noção de biopoder 
é insuficiente para dar conta das formas contemporâneas de submissão da vida ao poder da 
morte” (Mbembe,2018, p.71). 
 
Escravidão do corpo negro e vida nua no Brasil 
 
Traçando a relação entre necropolítica e neoliberalismo, pode-se afirmar que a noção da 
ação política da morte, se configura enquanto a forma política mais adequada ao 
neoliberalismo atual, no sentido de que atende a um dos seus objetivos principais, que 
Mbembe captou com grande perspicácia: “a destruição material dos corpos e populações 
humanas julgados como descartáveis e supérfluos”34. 
Em seu ensaio Crítica da Razão Negra, o autor descreve esses corpos supérfluos e 
descartáveis, que são assim classificados, quando as suas capacidades de trabalho diminuem 
ou cessam, ou ainda, ao não se constituírem mais como necessários ao modo de reprodução 
próprio ao neoliberalismo. Tal situação representa a inexistência de trabalhadores 
propriamente ditos e ainda acrescenta que a raça, assim como o racismo, possua um lugar de 
destaque na racionalidade do exercício do biopoder, pois afinal, “a raça foi a sombra sempre 
presente no pensamento e na prática das políticas do Ocidente, especialmente quando se trata 
de imaginar a desumanidade de povos estrangeiros ou a dominação a ser exercida sobre eles” 
( Mbembe, 2014,p.41). 
Verifica-se assim a condição de “vida nua”, desprovida de qualquer valor para a 
produção e consumo, “assinalando o ponto em que a biopolítica se converte, a necropolítica 
enquanto política da morte” (Mbembe,2018, p.18). Assim, a necropolítica se coadunando 
com a condição do Estado de exceção, como aponta o autor camaronês, distribui de forma 
excludente e desigual recursos políticos e econômicos, exercendo-se um exercício de veto 
por parte do soberano, sobre as condições de vida dos que são classificados como 
descartáveis e indesejáveis e, consequentemente, estabelece-se um poder de decisão de 
exposição à morte dos grupos considerados e constituídos como impuros ou marginalizados. 
Esta exposição a morte, pode ser exemplificada quando se observa que o “Negro” é aquele 
que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada 
queremos compreender. Essa invisibilidade está no cerne do racismo, que, além de negar a 
humanidade do outro, se desenvolve como modelo legitimador da opressão e da exploração. 
Mais do que isso, exercício máximo do biopoder, o racismo representa a escolha de quem deve 
ser eliminado, numa morte que pode ser tanto física quanto política ou simbólica. Enquanto 
construção social, o conceito de negro ou outro tipo de indesejável, representa uma noção que 
designa a imagem de uma existência subalterna e de uma humanidade castrada. O negro 
capturado, exportado da África e escravizado é privado de qualquer estatuto jurídico. Ele é 
vítima de uma tripla perda: “perda de um lar, perda de direitos sobre seu corpo e perda de 
estatuto político. Essa tripla perda equivale a uma dominação absoluta, uma alienação de 
nascença e uma morte social” (expulsão da humanidade de modo geral) (Mbembe, 2018, p.28-
32). Essa percepção econômica da questão racial tem início na fase mercantilista do capitalismo 
(quando o negro é transformado em mercadoria) e perdura no neoliberalismo. A escravidão na 
condição de estratégia biopolítica, se fundamenta em leis, incentivosfinanceiros, apoios 
militares, instituições políticas, etc., que viabilizaram o comércio da CARNE OU CORPO 
NEGRO em grande escala como um produto altamente lucrativo para o mercado em todos seus 
processos. Tirar-lhes a vida e a dignidade era uma das estratégias para colonizá-los em terras 
distantes e depois na sua própria terra. Milhões foram assassinados, outros tantos mutilados. 
Eram corpos que ou produziam riquezas para os seus senhores ou sucumbiam aos sofrimentos 
e torturas até a morte. 
Em uma sociedade como a brasileira, marcada pela questão histórica da escravidão e 
por consequência sobre a discussão do racismo, dizer que observamos muitos sinais das 
práticas desta violência depuradora da biopolítica não se configura em um exagero. 
Indicando as práticas de racismo de Estado, voltando-nos mais diretamente para o contexto 
social brasileiro, ressaltando um elemento particular e essencial que não pode ser 
negligenciado: a questão histórica do racismo que perpassa pela escravidão que segundo 
Castor Ruiz: “existiu como estratégia biopolítica do Estado Moderno. A senzala tem o 
privilégio de ser a primeira experiência de campo criado pelo Estado Moderno” (Ruiz, 2012, 
pp.15-16). Desta forma, seria a senzala enquanto um espaço da prática biopolítica, a 
representação do paradigma do racismo de Estado, assemelhando-se à descrição de 
Agamben quando destaca o campo de concentração ser “o espaço que se abre quando o 
estado de exceção começa a se tornar regra”?(Agamben,2002,p.175). Todavia, a leitura da 
senzala e da própria escravidão como experiência biopolítica, amplia a noção de filósofo 
italiano, que determina o surgimento do campo de exceção apenas no período moderno e 
marcadamente, com a experiência do holocausto. 
Para Daniel Arruda: “A senzala pode ser compreendida como um campo biopolítico 
e, quanto a isso, não me parece haver motivos para titubear” (Arruda, 2016, Cadernos de 
Ética e Filosofia Política, p23). Assim, a senzala é o paradigma de Exceção biopolítica do 
campo de concentração, constituindo-se na primeira experiência de espaço de exceção 
moderno em que a vida humana é confinada fora do direito e abandonada ao arbítrio de uma 
vontade soberana, embora nunca permaneça totalmente externa ao direito. O escravo 
brasileiro é vida nua. Se alguma condição jurídica o envolve, é a de ser propriedade do 
senhor. Ele mesmo está desprovido de quaisquer direitos, o direito de propriedade protege o 
senhor e não a coisa que é possuída. O corpo negro, enquanto máquina e mera propriedade. 
Em tal condição, perante o seu senhor ele é inteiramente uma vida nua e diante dos outros, 
ele não passa de uma aleatória vida nua. Mesmo que o direito de propriedade tenha alguma 
influência, sobre o modo como seu corpo será tratado pelos outros, o proteja em princípio de 
quem não exerce sobre ele o domínio direto, não o salva da exposição à violência e à morte, 
assim como um bem material não escapa do risco da destruição por outro. 
Aqui destacamos um ponto importante: a vida nua. Temos uma vida desprovida de 
direitos, muito ao contrário, pois enquanto escravo, seu corpo pertence a um senhor que dele 
dispõe como mercadoria, encontrando-se expropriado ao máximo, inclusive no que diz 
respeito à possibilidade de ter suas experiências. Partimos então da premissa que se torna 
impossível negar a influência perversa da herança da escravidão, enquanto estratégia 
biopolítica de racismo que se fez muito influente na formação de nossa sociedade e nas 
práticas de violência contra os corpos negros. O escravo brasileiro é vida nua. Se alguma 
condição jurídica o envolve, é a de ser propriedade do senhor. Ele mesmo está desprovido 
de quaisquer direitos, o direito de propriedade protege o senhor e não a coisa. Partindo desta 
análise, Arruda afirma que: 
Tão absurdo quanto supor que o campo biopolítico surge apenas no nosso 
século, é supor que a escravidão não mereça mais qualquer análise, que ela 
não possa ser novamente investigada, inclusive por um viés filosófico, ou 
que essa investigação seja de pouca monta – assim como supor que seus 
traumas tenham sido todos superados na nossa sociedade e que a 
experiência da escravidão pertença tão somente ao passado 
remoto( Arruda, 2016, p.24) 
 
Racismo de Estado, necropolítica e extermínio dos corpos negros 
 
Os corpos negros são ainda relegados em nossa sociedade a uma condição subalterna, 
marginal, colonizada e à exclusão geográfica das comunidades, locais onde, a morte é 
rotineira comum, não se tornando público e noticiado o luto, mas só a morte de inimigos ou 
criminosos. Almeida observa que nessas áreas se revela o necropoder onde a norma jurídica 
não alcança e o direito estatal não consegue domesticar o seu direito de matar, sendo 
reconhecido como um direito de guerra” (Almeida, 2019, p.48). Desta forma, as “zonas 
policiais” nas periferias de nossas principais cidades, representam campos de exceção, 
semelhantes ao modelo da senzala, expondo a vida dos indivíduos que compõe esta 
população, sendo aplicada uma higienização para eliminação dos assim qualificados segundo 
uma norma, como sujeitos delinquentes que precisam ser eliminados para a preservação da 
vida que vale a pena ser protegida, pela ação direta do exercício de matar por parte do Estado. 
Tal situação se torna possível segundo Silvio Almeida, quando o racismo, enquanto processo 
político e histórico, ganha a característica estrutural em uma sociedade como a nossa, se 
estabelecendo também em um processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja 
consciência e os afetos encontram-se conectados com as práticas socias racistas. Almeida 
aponta que “subjetividades racializadas e categorizadas como subgrupos ou subalternas, são 
constituídas por condições estruturais e institucionais” (Almeida, 2019, p.50). Assim sendo, 
pode-se afirmar que o racismo produz a raça e os sujeitos racializados. 
Sendo assim, implanta-se um estado de sítio por parte do Estado, como regra e o 
inimigo a ser eliminado, será criado. Com o estado de exceção, são suspensas garantias legais 
aos indivíduos, pois todos em potencial, na zona policial ou comunidade marginal, são 
considerados inimigos. Impõe-se a necropolítica estatal de modo violento no cotidiano destes 
indivíduos, expondo seus corpos negro a morte, mas exercido como sendo uma prática 
natural. Silvio de Almeida ressalta que é o racismo que permite “que se naturalize a morte 
de crianças por “balas perdidas” e que se exterminem milhares de jovens negros por ano, no 
que vem sendo denunciado há anos pelo movimento negro como genocídio” (Almeida, 2018, 
p. 94). Não por acaso, sobre o estado de exceção, Mbembe refere que as colônias são espaços, 
que por exercício do poder soberano, tornou-se e torna-se possível a suspensão de direitos e 
garantias. 
No racismo, a constituição dos corpos negros, segundo Grada Kilomba, vai afirma-los 
como “corpos que estão fora do lugar e por essa razão, corpos que não podem pertencer a um 
todo social” (Kilomba,2019, p.56). São Subjetividades radicalizadas sob as quais aplica-se uma 
gestão de política da morte, a partir do exercício do necropoder e assim se estabelece a 
necropolítica, assemelhando-se estas zonas policiais e a senzala, a noção de plantation que de 
acordo com Mbembe “a estrutura do sistema de plantation e suas consequências manifesta a 
figura emblemática e paradoxal do estado de exceção”(Mbembe,2018,p.27). Este sistema de 
plantation é descrito pelo autor africano como “uma das primeiras manifestações da experiencia 
biopolítica” (Idem, p.27-28), estando relacionada com a prática da escravidão. A plantation, 
representa enquanto estrutura jurídica e econômica “um espaço em que o escravo pertence ao 
senhor” (Idem, p.27). Instaurando a partir do sistema de plantation, praticasse uma forma de 
genocídio que apresenta um modo peculiar de terror, que se apresenta como a concatenaçãoentre biopoder, o Estado de exceção e o Estado de sítio. Silvio de Almeida afirma que o 
“racismo estrutural age no contexto da normalidade, mantendo vivos discursos que afastam 
tentativas mais consistentes para coibir as práticas racistas” (Almeida, 2018, p.89). Isso 
significa dizer que a visão estrutural (e estruturante) se expressa como uma forma de 
racionalidade, algo que vai muito além de uma interpretação simplista que venha a entender o 
preconceito como um desvio de caráter 
A necropolítica manifesta-se, em uma sociedade que retém muito de sua herança 
escravocrata, que mantém fortes resquícios coloniais e marcadamente, apresenta um intenso 
racismo estrutural. Silvio de Almeida sustenta que o modelo de poder do Estado no Brasil, 
sofrendo exatamente os reflexos da escravidão e colonialismo, exerce-se o livre poder de matar, 
ou o necropoder, colocando os indivíduos racializados como negros e subjetividades matáveis, 
em situação sempre comum de extermínio, constituindo-se assim um cenário em que a “guerra, 
a política, o homicídio e o suicídio tornam-se indistinguíveis”(Almeida, 2018, p. 90). Praticam-
se violências que se tornaram banais, pois são até corroboradas pelo corpo político-social e 
oficial, como as que observamos nas comunidades que podem ser consideradas como “zonas 
policiais”, onde a população é qualificada enquanto potencialmente nociva e perigosa, motivo 
pelo qual deve ser vigiada, pois a partir de uma prática necropolítica, se estabeleceu o binômio 
“inimigo-guerra”, configurando-se ainda enquanto referência no campo das formulações 
teóricas e práticas da “segurança pública” no país. Temos, portanto, uma sociedade militarizada 
e punitivista que continua a produzir incessantemente “inimigos”, que pela lógica da guerra, 
necessitam ser executados, mortos. Referimo-nos explicitamente aos “descartáveis” e 
“indignos” que sob esta dupla ótica “merecem” morrer. 
O pensador camaronês, ao tratar do conceito política de morte, aponta que a erradicação 
de subgrupos de uma população biopoliticamente administrada, configura-se como uma forma 
justificável de preocupação com a pureza ou saúde racial de uma determinada sociedade. 
Afirma-se neste contexto que “o biopoder funciona controlando a distribuição da espécie 
humana tanto em grupos quanto a subdivisão da população em subgrupos, estabelecendo uma 
divisão biológica entre uns e outros” (Mbembe,2018, p.17). Mbembe acrescenta que em termos 
foucaultianos “o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do 
biopoder” (Mbembe, 2018, p.19). Sua função seria a de regular a distribuição da morte e 
possibilitar as funções biopolíticas de matar por parte do Estado. Fazer matar sob uma 
perspectiva que decide justamente em que momento uma vida deixa de ser política e 
economicamente relevante e, consequentemente, pode ser eliminada do tecido social. 
 
 
Conclusão 
 
 Ao colocarmos a discussão referente ao Racismo de Estado, a Vida nua e a 
Necropolítica como questões essenciais para a filosofia política e voltando-nos para a realidade 
nacional, buscamos refletir uma atualidade marcada pelos abusos de poder político, a violência 
política contra os estranhos e também contra os cidadãos de um corpo social, pelas guerras, 
extermínios e genocídios, além de cada vez mais a intensa repressão das liberdades e direitos. 
Outrossim, a reflexão política, histórica e filosófica sobre racismo em nossa sociedade, mesmo 
apresentando avanços, continua a ser tratada em muitos setores da sociedade, inclusive na 
própria academia, como questão menor, ou ainda se percebe o esforço e o desejo que sua 
problematização permaneça velada. Mesmo que bastante desconstruído pelo avanço dos 
movimentos sociais e antirracistas, ainda permanece em nosso ideário social um resquício da 
ideia de “democracia racial”, negando que haja racismo no Brasil e neste estado democrático 
de igualdade racial e também social, as relações étnico-raciais são harmônicas. Se analisarmos 
nossa realidade com o auxílio da categoria de necropolítica, perceberemos que o suplício 
continua sendo utilizado como uma técnica do poder na atualidade, se voltando contra corpos 
negros e indígenas que são, não apenas mortos, mas o são em cenas espetaculares de crueldade, 
que faz com que em nosso contexto, o imperativo político frente às relações entre vida e morte, 
marcada pelos corpos racializados não seja o “fazer viver e deixar morrer” da biopolítica, mas 
o fazer viver (os corpos brancos) e fazer morrer (os outros corpos), que parece reger mais 
precisamente o funcionamento da necropolítica no Brasil. Este ideal defendido por 
representantes dos setores políticos e acadêmicos disfarça a prática da biopolítica racista 
institucionalizada e permite que a exceção de direitos seja a regra de nosso espaço democrático, 
ainda um tanto frágil e ameaçado com retrocessos. 
 
Bibliografias: 
 
AGAMBEN, G. HOMO SACER. O poder soberano e a vida nua. Tradução de 
Henrique Burigo. Belo Horizonte; Ed. UFMG, 2002. 
 
 ______________ O aberto. O homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes. 
 Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 
 
 ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Ed. Pólen, 2018. 
 
ARRUDA, D. 2016, Cadernos de Ética e Filosofia Política, p23 
 
 
FOUCAULT, M. Dits et Écrits II, 1976-1988. 2. ed. Paris; Gallimard, 2001. 
 
 
_____________. É Preciso Defender a Sociedade. Curso do Collége de France (1975-
1976). Tradução de Carlos Correia M. de Oliveira. Lisboa: Livros Brasil, 2006. 
 
 
_____________. Nascimento da Biopolítica. Tradução de Pedro Elói Duarte. Lisboa: 
Edições 70, 2010. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 KILOMBA, G. Memórias da Plantação. Episódios de racismo cotidiano. Tradução 
 Jess Oliveira, Rio de Janeiro: editora Cobogó, 2019. 
 
 
MBEMBE, A. NECROPOLÌTICA. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da 
morte. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018. 
 
 _______________ Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona, 2014. 
 
RUIZ, C. M. M. B. A sacralidade da vida na exceção soberana, a testemunha e sua 
linguagem: (re) leituras biopolíticas de Giorgio Agamben. Cadernos IHU, n. 39, São 
Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2012.

Continue navegando