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EA D 5 Filosofia Política na Modernidade 1. ObjetivOs • Compreender o desenvolvimento da Filosofia Política na Modernidade. • Analisar os principais pensamentos filosóficos do período no que concerne à política. 2. COnteúdOs • Immanuel Kant e a paz perpétua. • Friedrich Hegel e a realização da razão universal. • Texto complementar: Alexis de Tocqueville. • Texto complementar: Marx e Engels. 3. Orientações para O estudO da unidade Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: © Filosofia Política84 1) Lembre-se de que há muitas maneiras de pensar o con- ceito de política. As questões autoavaliativas que se- guem ao final das unidades são abertas e querem ajudar na compreensão das polissemias aí presentes. 2) Lembre-se de que, embora o ato de aprender seja soli- tário, a interação com os seus colegas pode ser de fun- damental importância para a troca de informações, para a familiarização com a linguagem filosófica pertinente e com o método filosófico argumentativo. 3) Leia os livros da bibliografia indicada para que você am- plie seus horizontes teóricos, cotejando-os com o mate- rial didático apresentado. 4) Antes de iniciar os estudos de cada unidade, pode ser interessante conhecer um pouco dos dados históricos da época e da bibliografia dos pensadores em questão. Ainda que sites de caráter genérico, tais como os enci- clopédicos, estejam muito aquém de suas necessidades, eles podem auxiliar neste aspecto. 5) Uma prática reflexiva integral, englobando leitura aten- ta, pesquisa bibliográfica e hábito de questionamento: estes são alguns dos atributos que você precisa adqui- rir e cultivar. Cabe ressaltar que cada exercício realiza- do representa um momento em que você exercita o seu poder de compreensão e análise de conceitos, de inter- pretação de textos e de síntese, seu senso crítico, suas habilidades interpessoais. 4. intrOduçãO à unidade Na Unidade 4, tratamos do desenvolvimento da Filosofia Política no Renascimento e na era das revoluções clássicas. Ana- lisamos os principais pensamentos filosóficos no que concerne à política: Nicolau Maquiavel e o Estado forte; Thomas Hobbes e o pacto social; John Locke e a teoria liberal; Jean-Jacques Rousseau e o contrato social. Poucos autores influenciaram tanto a história do pensamen- to como Kant e Hegel. Não somente por suas próprias produções, Claretiano - Centro Universitário 85© U5 - Filosofia Política na Modernidade extensas e de grande relevância, mas principalmente pelo desdo- bramento que souberam delas auferir um notável número de filó- sofos, historiadores e sociólogos, entre outros. As transformações que advieram ao longo do fecundo século 19, sejam elas na esfera do pensamento, sejam na esfera da realidade prática, devem em boa parte à leitura de Kant e de Hegel. Nesta unidade, veremos como são expostas as filosofias políticas de cada um deles. Novamente, precisamos realizar um grande recorte. Há uma série de pensadores que ocupam o cenário multiforme do sécu- lo 19. Esquecer deles seria ignorar uma fundamental parcela da história do pensamento político. Não poderíamos desprezar, por exemplo, as contribuições do início do século oferecidas por Ben- jamin Constant e por Alexis de Tocqueville. Benjamin Constant, na corrente do liberalismo revisitado, foi um ardente defensor das liberdades individuais e da limitação da autoridade do conjunto, tanto quanto à autoridade estatal, quanto à autoridade dos direitos da maioria contra os da minoria. Nenhum poder poderia ser ilimitado – mesmo os poderes fundados sob o conceito de uma soberania popular não poderiam violar direitos que existem independentemente de qualquer organização social ou política. Levando às últimas consequências a reflexão liberal, promovendo a cisão definitiva entre o público e o privado, Benja- min Constant chegará à conclusão de que um único princípio deve conduzir as nações novas e antigas: liberdade em tudo, na religião, na literatura, na filosofia, na indústria, na política; o direito de ser submetido apenas às leis, não ser preso nem morto em decorrên- cia de qualquer vontade arbitrária, o direito de emitir opinião, de se associar a outros homens, de escolher sua indústria e exercê-la, de dispor da propriedade, o direito de ir e vir sem precisar prestar contas de seus motivos. A Alexis de Tocqueville, historiador e pensador francês, de- vemos um dos principais registros históricos dos períodos que su- cederam as grandes revoluções do século anterior, da consolida- ção de novos regimes de governo e novas convicções políticas. A © Filosofia Política86 observação das experiências democráticas na América e na Europa o deixou bem impressionado. Mas, a partir da análise de dados concretos de tais experiências, ele pode, mesmo oscilando entre a inocência e a perspicácia, enumerar traços de avanço e contra- dições, percebendo que mesmo altos princípios nutridos de um longo processo histórico não constituíam impedimento para a vio- lência e a submissão. Tocqueville estava consciente da inevitabili- dade do fenômeno democrático para as nações do Ocidente, mas isso não o impediu de explorar os elementos conflituais da aliança entre igualdade e liberdade e compreender que muitos dos princí- pios elencados pelos pensadores políticos da época não passavam de realidades metafísicas ou falácias da argumentação. Para que o estudo não fique demasiado incompleto, é preciso que você, aluno interessado, busque em outras fontes uma adequa- da referência a importantes autores que deixaram de ser aqui con- templados. O século 19 é também o século do utilitarismo de John Stuart Mill, do positivismo de Auguste Comte, da teoria crítica de Karl Marx e Friedrich Engels e da filosofia crepuscular de Friedrich Nietzsche. Ao final desta unidade, você encontrará um texto complementar retirado da Democracia na América, de Alexis de Tocqueville, e outro do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels. Navegando por uma corrente contrária ao espírito da época, Marx prevê a ruína da sociedade capitalista. Suas análises estão, contudo, longe de terem um efeito exclusivamente diagnóstico. Os notáveis escritos de Marx são de grande contribuição para que possamos compreender conceitos como materialismo histórico, dialética, luta de classes, divisão do trabalho, alienação, mercado- ria etc. A repercussão da atividade intelectual de Marx, tanto na teoria, quanto na prática, não só influenciou um profícuo número de pensadores, como até hoje ocupa uma considerável parcela da tarefa de cientistas políticos e economistas. Claretiano - Centro Universitário 87© U5 - Filosofia Política na Modernidade 5. immanuel Kant e a paz perpétua No contorno de toda produção intelec- tual de Kant – um filósofo que dispensa apre- sentações para todos aqueles que buscam na modernidade as raízes do quadro político atual – primazia do indivíduo e filosofia moral têm ro- bustas implicações políticas. Se compreender- mos bem em que consiste a moralidade e a sua relação com o direito na obra kantiana, podere- mos daí extrair uma série de consequências te- óricas para a organização do Estado e para a vida política em geral. Tomando como fundamento o inato direito à liberdade do homem, esforçando-se para definir a esfera inviolável da consci- ência individual, Kant oferece à humanidade um peculiar conceito de moralidade: moralidade pode ser entendida como a confor- midade com a norma do dever ser dada pelo próprio indivíduo. Todo homem pode, enquanto ser dotado das faculdades da razão, conhecer e ditar normas de conduta para si mesmo, normas que viabilizariam tanto a vida particular quanto a vida em sociedade. A organização do direito e da política provêm do adequado uso da razão, de comandos assumidos a priori, metafísicos no que concerne à experiência concreta. O imperativo categórico,defini- do por Kant na Fundamentação da metafísica dos costumes como o agir sempre segundo princípios que devem ser tomados como lei universal, mostra-se aqui como o alicerce de todo o edifício em construção. O homem moral obedece ao imperativo categórico apreendido de modo objetivo e universal. Do conceito kantiano de moralidade, subtraímos duas con- sequências: Em primeiro lugar, enquanto ser moral, o homem só obe- dece a leis dadas por ele mesmo – nisso consiste a dignidade e a liberdade do homem: agir sempre conforme a sua razão. O que Figura 1 Immanuel Kant (1724-1804). © Filosofia Política88 antes havia sido definido como a espontaneidade que extrapola as relações de causalidade presentes na natureza, toma na filoso- fia moral kantiana uma dupla coloração que se exprime tanto no conceito negativo de liberdade, manifesto pela ausência de limita- ções eternas do comportamento, quanto do conceito positivo de liberdade, materializado como autonomia, isto é, a propriedade de legislar para si próprio. A segunda consequência é a seguinte: enquanto ser huma- no, o homem é um fim em si mesmo, sua dignidade não depende de qualquer juízo de valor utilitário, não depende de dados cole- tados da sensibilidade empírica e auferidos por seja lá quem for. Qual, então, a relação entre a moralidade, o direito e a po- lítica? Assim como os princípios da moralidade, os princípios do di- reito devem ser conhecidos de modo objetivo e universal. Diz um parágrafo retirado da introdução à teoria do direito de Primeiros princípios metafísicos da doutrina do direito: Que é o Direito em si? Esta questão, se não for pra mergulhar numa tautologia ou referir-se à legislação de determinado país ou tempo, em lugar de dar uma solução geral, é tão grave para o jurisconsulto como o é para o lógico a questão que é a verdade? Seguramente pode-se dizer que é o direito, isto é, que prescrevem ou prescreve- ram as leis determinadas do lugar ou tempo. Porém, a questão de saber se o que prescrevem essas leis é justo, a questão de dar por si o critério geral através do qual possam ser reconhecidos o justo e o injusto jamais poderá ser resolvida a menos que se deixe à parte esses princípios empíricos e se busque a origem desses juízos na razão somente (ainda que essas leis possam muito bem se dirigir a ela nessa investigação), para estabelecer os fundamentos de uma legislação positiva possível. Se a razão controlasse perfeitamente as paixões humanas, haveria sempre conformidade entre as leis morais e as leis posi- tivas do direito, aquelas de obediência sugerida, estas de cumpri- mento exigido coercitivamente. Mas tal não é a condição humana: nem sempre os homens estão aptos a escutarem e seguirem os ditames da razão, muitos se deixam frequentemente ser arrasta- Claretiano - Centro Universitário 89© U5 - Filosofia Política na Modernidade dos pelas paixões. Por isso, o direito precisa regular as relações externas entre os indivíduos de modo a tornar possível a vida em sociedade e o exercício da liberdade por cada um. A fórmula do princípio universal do direito será dada nos Pri- meiros princípios metafísicos da doutrina do direito: é justa toda ação ou máxima da ação que permita a liberdade do arbítrio de cada um com a liberdade do outro segundo uma lei universal. Sur- ge o Estado como necessário agente regulador das liberdades indi- viduais. A seguir, um pequeno trecho do suplemento primeiro de A paz perpétua: O problema do estabelecimento do Estado, por mais áspero que soe, tem solução, inclusive para um povo de demônios (contanto que tenham entendimento), e formula-se assim: ordenar uma mul- tidão de seres racionais que, para a sua conservação, exigem con- juntamente leis universais, às quais, porém, cada um é inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer a sua constituição de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aos outros nas suas dis- posições privadas, se contêm no entanto reciprocamente, de modo que o resultado da conduta pública é o mesmo que se não tivessem essas disposições más. A sociedade civil decorre do imperativo moral e realiza a ideia de liberdade. Quais as características do Estado pensado por Kant? O Estado kantiano é liberal porque garante tão somente o bem público: a manutenção da juridicidade das relações interpessoais, a constituição que permita a cada um exercer sua liberdade sem con- trariar a lei. Convém a cada indivíduo buscar sua felicidade como lhe aprouver contanto que não viole os direitos dos demais membros da sociedade. A fim de que a vontade geral não seja usurpada pelas von- tades particulares, deve o poder estatal obedecer à já consagrada tripartição dos poderes: legislativo, executivo e judiciário. Kant refere-se ainda à constituição de um contrato originá- rio para justificar a legitimidade do governo político. Mas, ao con- trário dos expoentes da tradição do pacto social, a sua intenção © Filosofia Política90 parece estar bem definida e delimitada: instituir a ideia metafísica de fundamento da sociedade civil, negando qualquer direito de resistência por parte dos governados. Não estão os consorciados de uma sociedade autorizados nem à resistência, nem à revolu- ção – isso geraria uma contradição interna insanável no corpo da sociedade. As reformas necessárias ao aperfeiçoamento da ordem constitucional só podem ser realizadas pelo próprio poder sobe- rano, por meio do legislativo. Não podemos, todavia, confundir competência com participação: segundo o filósofo prussiano, para que a vontade geral seja melhor conhecida, a publicidade e o alar- gamento do espaço público são basilares como modo de assegurar a liberdade de expressão e o debate. Afeito ao culto do progresso, Kant alimentou a convicção de que há na história da humanidade uma evolução racional (Ideia de uma história universal a partir de um ponto de vista cosmopoli- ta), embora parecesse saber que a forma de uma sociedade ideal permaneceria sempre distante da realização concreta na história. Isso não o impediu de contribuir para que novos caminhos para a paz fossem encontrados. No âmbito do direito internacional, a paz deve ser estabelecida porque a guerra não interessa aos Estados: este é também um princípio da razão. Kant foi um dos primeiros a conceber teoricamente uma liga das nações como meio de favorecer a concórdia entre diferentes países. Cabe à confederação de Estados, enquanto expressão de vontades livres, a manutenção da paz. Lemos no Segundo artigo definitivo sobre a paz perpétua: O direito das gentes deve fundar-se numa federação de Estados livres. Os povos podem, enquanto Estados, considerar-se como ho- mens singulares que no seu estado de natureza (isto é, na indepen- dência de leis externas) se prejudicam uns aos outros já pela sua simples coexistência e cada um, em vista da sua segurança, pode e deve exigir do outro que entre com ele numa constituição seme- lhante à constituição civil, na qual se possa garantir a cada um o seu direito. Isso seria uma federação de povos que, no entanto, não deveria ser um Estado de povos. Claretiano - Centro Universitário 91© U5 - Filosofia Política na Modernidade 6. FriedriCh hegel e a realizaçãO da razãO universal Ao final de sua vida, Hegel publica o pro- duto de seus cursos sobre a filosofia do direito ministrados na Universidade de Berlim sob o tí- tulo Princípios da filosofia do direito – trata-se de um longo e vasto estudo que viria a ser con- siderado posteriormente como a principal refe- rência de sua obra no que concerne à Filosofia Política. Mas não é fácil entender o seu pensa- mento. Se por um lado a Filosofia Política hege- liana se alimenta de conceitos que possuem um elevado grau de abstração, por outro está intimamente atrelada à sua peculiar acepção de história. Conhecer a intenção de Hegel com a publicação da obra que viria a coroar toda a sua produção filosófica pode nosauxiliar na compreensão do seu pensamento político. Com Massimiliano Tomba, em Poder e constituição em Hegel, poderíamos começar dizendo que: A leitura do Prefácio aos Lineamentos de filosofia do direito permite perceber que o objetivo da filosofia política hegeliana é a compre- ensão da racionalidade do Estado como forma específica do Espíri- to, numa época determinada (DUSO, 2005, p. 305). O Estado aparece então como a realização da história da ra- zão universal, do saber absoluto. Não se pode tomar a natureza humana e a constituição de sua organização política fora do desen- volvimento histórico, o que segundo o filósofo fariam os contratu- alistas clássicos. A base do Estado não reside no contrato, mesmo que auferido de modo puramente lógico, mas na vontade univer- sal e no seu curso histórico. O homem é fruto do seu tempo e a sua organização política, como modo de expressão do seu modo de ser, também deve ser assim compreendida. Figura 2 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770- 1831). © Filosofia Política92 Hegel pensa o Estado soberano como modo de organização necessário à existência da vida social. O indivíduo só pode se de- senvolver plenamente no Estado. O sujeito moral, pela mediação da família e da atividade profissional que exerce, reconhece que a sua existência depende do Estado. Lemos nos parágrafos 257 e 258 dos Princípios da filosofia do direito: O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se co- nhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém a sua liberdade substancial ligando-se ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade. [...] O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o ra- cional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio abso- luto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do Estado têm o seu mais elevado dever. [...] Se o Estado é o espírito objetivo, então só como membro é que o in- divíduo tem objetividade, verdade e moralidade. A associação como tal é o verdadeiro conteúdo e o verdadeiro fim, e o destino dos in- divíduos está em participar de uma vida coletiva; quaisquer outras satisfações, atividades e modalidades de comportamento têm o seu ponto de partida e o seu resultado neste ato substancial e universal. Fiel ao conceito de história como um movimento de negati- vidade e reconciliação, a Filosofia Política de Hegel possui também um forte apelo dialético. O Estado aparece como o fruto dialético entre particularidade e universalidade, na procura da totalidade. O Estado, enquanto realidade que extrapola o cenáculo individual, constitui o limite externo e formal para a liberdade do indivíduo, mas assume, ao mesmo tempo, a própria realização do seu direito à liberdade. Diz Hegel no parágrafo 260 subsequente: É o Estado a realidade em ato da liberdade concreta. Ora, a liber- dade consiste em a liberdade pessoal, com os seus particulares, de tal modo possuir o seu pleno desenvolvimento e o reconhecimento dos seus direitos para si (nos sistemas da família e da sociedade civil) que, em parte, se integram por si mesmos no interesse univer- Claretiano - Centro Universitário 93© U5 - Filosofia Política na Modernidade sal e, em parte, consciente e voluntariamente o reconhecem como seu particular espírito substancial e para ele elegem como seu últi- mo fim. (...) O princípio dos Estados modernos tem esta imensa for- ça e profundidade: permitem que o espírito da subjetividade che- gue até a extrema autonomia da particularidade pessoal ao mesmo tempo que o reconduz à unidade substancial, assim mantendo esta unidade no seu próprio princípio. Hegel distingue em três esferas a família, a sociedade civil e o Estado. Do ponto de vista teórico, o Hegel da Filosofia do direito é o primei- ro – e não Marx – a fixar o conceito de sociedade civil como algo distinto e separado do Estado político (...). A sociedade civil é de- finida como um sistema de carecimentos, estrutura de dependên- cias recíprocas onde os indivíduos satisfazem as suas necessidades através do trabalho, da divisão do trabalho e da troca; e asseguram a defesa de suas liberdades, propriedades e interesses através da administração da justiça e das corporações. Trata-se da esfera dos interesses privados, econômico-corporativos e antagônicos entre si. A ela se contrapõe o Estado político, isto é, a esfera dos interes- ses públicos e universais, na qual aquelas contradições estão me- diatizadas e superadas (BRANDÃO in WEFFORT, 2002, p. 105-106). A rigor, não há liberdade fora do Estado, porque não há povo se desprovido de constituição – antes da organização estatal temos apenas uma multiplicidade inorgânica de indivíduos. A instituição da constituição representa e realiza a unidade. Se o movimento dialético faz da história a expressão da superação e absorção das formas políticas, devem as fases históricas anteriores à instituição da constituição estatal serem entendidas apenas como fases. Hegel extrai dos seus próprios conceitos algumas conclusões de notória relevância e implicações práticas. Vamos a elas. As distinções clássicas quanto aos tipos de governo – monar- quia, aristocracia, democracia – são assumidas como momentos da articulação do Estado. A divisão dos poderes de um Estado político deve compre- ender o poder legislativo, responsável pela determinação do uni- versal, o poder de governo, capaz de absorver o particular no uni- versal, e o poder do príncipe, ao qual cumpre a decisão última e a © Filosofia Política94 reunificação dos poderes na unidade individual, concebida como a cúpula e o início do todo que constitui a monarquia constitucional – esta, por sua vez, o aperfeiçoamento do Estado na forma infinita da ideia (cf. Princípios da filosofia do direito, parágrafo 273). Se a última palavra compete ao monarca, sua decisão não é arbitrária porque se encontra subordinada à unidade da consti- tuição. A soberania não transcende à articulação dos poderes. O monarca dá racionalidade à constituição, mas é menos que uma figura do poder absolutista e mais que uma figura supérflua que apenas encena. Hegel defende a participação popular no governo e os prin- cípios da publicidade. Os integrantes dos poderes públicos devem ser recrutados em função de sua competência, capacidade de ra- cionalmente calcular as intervenções necessárias à vida civil e à consciência do universal. Para que o Estado não se torne uma estrutura engessada e desprovida de sentido, deve estar sempre disponível à modifica- ção, de modo que ao desenvolvimento do Espírito corresponda o desenvolvimento das instituições. Em última instância, o poder le- gislativo absoluto e supremo seria a história. Embora os acontecimentos que o cerquem não o incentivem a pensar de modo inteiramente otimista, Hegel ainda acredita que os conflitos mundiais levarão à superação dos mesmos conflitos e à instau- ração de um Estado universal, como realização final da razão universal. 7. textOs COmplementares Texto 1 - Alexis de Tocqueville –––––––––––––––––––––––––– Introdução de A democracia na América Dentre as coisas novas que, durante minha estada nos Estados Unidos, chamaram-me a atenção, nenhuma impressionou-me tão intensamente quanto a igualdade de condições. Descobri, sem dificuldades, a influência prodigiosa exercida por este fator na marcha da sociedade; dá ao espírito público certa direção; às leis, um ar especial; aos governantes, novos prin- cípios, e aos governados, hábitos particulares. (...) Claretiano - Centro Universitário 95© U5 - Filosofia Políticana Modernidade Desse modo, à medida que estudava a sociedade americana, via, cada vez mais, na igualdade de condições o fato originário de que cada aspecto parecia provir e reencontrava-o, incessantemente, como o ponto central a que chegavam todas as minhas observações. Levei, então, o pensamento ao nosso hemisfério e pareceu-me que aí en- contrava algo semelhante ao espetáculo oferecido pelo Novo Mundo. Via igualdade de condições que, sem atingir, como nos Estados Unidos, seus limites extremos, aproximava-se deles cada dia mais; esta mesma demo- cracia, que reinava nos Estados Unidos, pareceu-me avançar rapidamente em direção ao poder na Europa. Desde este instante, concebi a idéia do livro que se vai ler. Uma grande revolução democrática opera-se entre nós; todos a vêem, mas nem todos a julgam da mesma maneira. Uns consideram-na algo de novo e, tomando-a por coisa acidental, esperam poder ainda sustá-la, en- quanto outros julgam-na irresistível, pois lhes parece o fato mais contínuo, mais antigo e mais permanente que se conhece na história. (...) Não há povo na Europa em que a grande revolução social a que fiz alusão tenha feito progressos mais rápidos do que entre nós; mas a revolução, neste país, desenvolveu-se sempre ao acaso. Nunca os chefes de Es- tado pensaram em preparar, previamente, o que quer que fosse em seu favor; fez-se apesar deles ou sem que tivessem conhecimento. As classes mais poderosas, mais inteligentes e mais honestas da nação não busca- ram apoderar-se dessa revolução para dirigi-la. A democracia foi, portan- to, abandonada a seus instintos selvagens; cresceu como essas crianças privadas dos cuidados paternos, que se criam sós nas ruas das cidades, que só conhecem da sociedade os vícios e as misérias. Parecia-se ignorar, ainda, a existência da revolução, quando apoderou-se, inopinadamente, do poder. Então, cada qual se submeteu servilmente a seus mínimos de- sejos; adoraram-na como imagem da força; quando, depois, enfraqueceu por culpa de seus próprios excessos, os legisladores conceberam o projeto imprudente de destruí-la, ao invés de buscar instruí-la e corrigi-la e, sem pensar em ensiná-la a governar, só quiseram expulsá-la do governo. O resultado foi que a revolução democrática operou-se no plano material da sociedade, sem que houvesse, nas leis, nas idéias, nos hábitos e cos- tumes, a mudança que teria sido necessária para torná-la útil. Assim temos a democracia, menos o que deve atenuar seus vícios e realçar-lhe as van- tagens naturais; já conhecendo os males que provoca, ignoramos os bens que pode proporcionar (1973). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Texto 2 - Marx e Engels –––––––––––––––––––––––––––––––– Manifesto do Partido Comunista, capítulo I: Burgueses e proletários A história de todas as sociedades até hoje é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de cor- poração e companheiro, em suma, opressores e oprimidos, estiveram em cons- tante antagonismo entre si, travando uma luta ininterrupta, umas vezes oculta, outras aberta – uma guerra que sempre terminou ou com a transformação revo- lucionária de toda a sociedade ou com a destruição das classes em luta. © Filosofia Política96 Nas épocas anteriores da história encontramos, quase por toda parte, uma completa estruturação da sociedade em estados ou ordens sociais, uma múltipla gradação das posições sociais. Na Roma antiga, temos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassa- los, mestres das corporações, aprendizes, servos e, além disso, gradações particulares no interior dessas classes. A sociedade burguesa moderna, que surgiu do declínio da sociedade feu- dal, não aboliu os antagonismos de classes. Limitou-se a estabelecer no- vas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta em lugar das anteriores. A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, porém, por ter sim- plificado os antagonismos de classe. Toda a sociedade está se dividindo, cada vez mais, em dois grandes campos hostis, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado. (...) As armas que a burguesia empregou para abater o feudalismo voltam- -se hoje contra a própria burguesia. Mas a burguesia não se limitou a forjar apenas as armas que lhe trarão a morte; produziu também os homens que empunharão essas armas – os operários modernos, os proletários. (...) Todas as sociedades até hoje existentes assentaram, como vimos, no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas, para oprimir uma classe, é necessário assegurar-lhe ao menos as condições mínimas em que possa ir arrastando a sua existência servil. O servo da gleba, sem deixar de ser servo, chegou a membro da comuna, da mesma forma que o pequeno-burguês, sob o absolutismo feudal, chegou a grande burguês. O operário moderno, ao contrário, longe elevar-se com o desen- volvimento da indústria, afunda-se cada vez mais, indo abaixo das condi- ções de sua própria classe. O operário passa a indigente e a indigência cresce mais rapidamente que a população e a riqueza. Torna-se evidente que a burguesia é incapaz de continuar a ser por muito mais tempo a clas- se dominante e impor à sociedade, como lei suprema, as condições de existência da sua classe. (...) A condição essencial para a existência e o domínio da classe burgue- sa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares, a formação e a multiplicação do capital; a condição do capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado baseia-se exclusivamente na concorrência entre os operários. O progresso da indústria, de que a burguesia é portadora indi- ferente e involuntária, substitui o isolamento dos operários, resultante da concorrência, pela sua união revolucionária, resultante da associação. O desenvolvimento da grande indústria, assim, retira da burguesia a própria base sobre a qual assentou o seu regime de produção e apropriação. A burguesia produz, sobretudo, os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis (1998). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 8. questões autOavaliativas Confira, a seguir, as questões propostas para verificar o seu desempenho no estudo desta unidade: Claretiano - Centro Universitário 97© U5 - Filosofia Política na Modernidade 1) Como pensar o conceito de política para Kant? 2) Como pensar o conceito de política para Hegel? 3) É possível conciliar fim da história e estado final de paz? 9. COnsiderações Estudamos, nesta unidade, a Filosofia Política na Moderni- dade. Na próxima unidade, ficaremos com a Filosofia Política na Contemporaneidade, quando conheceremos os pensamentos de Arendt, Foucault e Habermas a respeito da política. 10. e-referências lista de figuras Figura 1 Immanuel Kant (1724-1804). Disponível em: <http://www.substantivoplural. com.br/bacterias-cameras-e-kant/>. Acesso em: 26 jun. 2012. Figura 2 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Disponível em: <http://ast-tok. wikispaces.com/Biographical+Information>. Acesso em: 26 jun. 2012. 11. referências bibliográficas BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versani. Rio de Janeiro: Campus, 2000. ______. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. BORON, A. A. (Org.). Filosofia política moderna: de Hobbes a Marx. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales. São Paulo: USP, 2006. BRANDÃO, G. M. 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