Buscar

Pensamento Social Brasileiro

Prévia do material em texto

Autora: Profa. Neusa Meirelles
Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva
 Profa. Ivy Judensnaider
Pensamento Social 
Brasileiro
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Professora conteudista: Neusa Meirelles
Doutora em Ciências Sociais, na área de Ciência Política, pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita 
Filho (1968). Desde 1992 é professora titular de Sociologia da Universidade Paulista, ministrando cursos de Sociologia 
e de Ciência Política nos Institutos de Ciências Sociais e Comunicação, Ciências Jurídicas e de Ciências Humanas 
da Universidade. Desde 1994 é Pesquisadora do Programa de Apoio à Pesquisa do Corpo Docente, da Vice‑Reitoria 
de Pesquisa e Pós‑Graduação da UNIP. Desde então, desenvolveu vários projetos de pesquisa sobre música popular 
e cinema nacional, sob uma abordagem foucaultiana, temas como o discurso das letras, corporeidade, inclusão e 
exclusão social, ordem social e seu avesso, subjetividade e formação social. Concluiu, em 2014, pesquisa sobre a 
subjetividade masculina construída pelo cinema nacional, e, ainda como pesquisadora, passou a integrar o Grupo 
de Pesquisa e Núcleo de Estudos “Interdisciplinaridade: Movimento e Transformação”, desde sua criação, em 2014. 
Desde 2005 produz textos didáticos para cursos presenciais que ministra na UNIP, em Sociologia Geral, Filosofia e 
Ciência Política. No curso de Sociologia da UNIP EaD, Dra. Neusa é professora e autora dos livros‑texto das disciplinas 
Sociologia da Comunicação (2013), Pensamento Político Moderno (2014) e Pensamento Social Brasileiro (2015). É 
membro da SBS, Sociedade Brasileira de Sociologia, e da IASPM‑AL, Associação Internacional para Estudo da Música 
Popular‑América Latina, em cujos congressos nacionais e internacionais tem apresentado trabalhos.
© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou 
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem 
permissão escrita da Universidade Paulista.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
M514p Meirelles, Neusa.
Pensamento Social Brasileiro. / Neusa Meirelles. ‑ São Paulo: 
Editora Sol, 2015.
196 p., il.
Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e 
Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXI, n. 2‑146/15, ISSN 1517‑9230.
1. Pensamento social brasileiro. 2. Sociologia. 3. Formação 
social. I. Título.
CDU 301
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor
Prof. Fábio Romeu de Carvalho
Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças
Profa. Melânia Dalla Torre
Vice-Reitora de Unidades Universitárias
Prof. Dr. Yugo Okida
Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez
Vice-Reitora de Graduação
Unip Interativa – EaD
Profa. Elisabete Brihy 
Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli
 Material Didático – EaD
 Comissão editorial: 
 Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
 Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
 Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
 Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
 Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)
 Apoio:
 Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
 Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos
 Projeto gráfico:
 Prof. Alexandre Ponzetto
 Revisão:
 Vitor Andrade
 Cristina Z. Fraracio
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Sumário
Pensamento Social Brasileiro
APRESENTAçãO ......................................................................................................................................................7
INTRODUçãO ...........................................................................................................................................................7
Unidade I
1 OS PRIMEIROS TEMPOS ...................................................................................................................................9
1.1 O europeu tomou posse da terra e depois pensou o que fazer dela .................................9
1.2 Primeiro bosquejo da formação social, elites e subalternidade ........................................ 10
1.3 Pensamento social inaugural, o europeu e o povo indígena ............................................. 11
1.4 Pensamento social inaugural, o europeu e o escravo africano ......................................... 19
2 PENSAMENTO SOCIAL E BRASIL ................................................................................................................ 26
2.1 O pensamento social e a autonomia política brasileira........................................................ 27
2.2 Pensamento social e as ideias brasileiras abolicionistas ...................................................... 38
2.3 Pensamento social e as ideias liberais e positivistas brasileiras ........................................ 42
2.4 Pensamento social brasileiro, urdidura de ideias e motivos ............................................... 65
3 SOCIEDADE, FORMAçãO SOCIAL E ESTADO NO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO .......... 67
3.1 O contingente negro na formação social brasileira ............................................................... 67
3.2 O sertanejo e sua cultura rústica, a violência do sertão ...................................................... 72
4 OS POVOS INDíGENAS, ESTRANHOS BRASILEIROS NO PENSAMENTO SOCIAL ..................... 78
4.1 Formulação política no pensamento social, Estado e formação social ......................... 96
Unidade II
5 TENDêNCIAS DO PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO E A SOCIOLOGIA ..................................119
6 PENSANDO O BRASIL, INTEGRALISTAS E COMUNISTAS DOS ANOS 1920 E 1930 ..............120
6.1 Pensamento social e os primeiros anos da Sociologia ........................................................124
6.2 Pensando o Brasil com as obras de Caio Prado Jr., Gilberto Freyre, 
Sergio Buarque e outros .........................................................................................................................127
6.3 Pensamento social e político no ambiente do pós‑guerra: tendências .......................131
6.4 A Sociologia paulista, tendências em formação ...................................................................135
6.5 Ambiente político, tendências dos anos 1950 aos primeiros anos 1960 ....................136
7 O SOCIóLOGO, PORTADOR DE FORMAçãO EM SOCIOLOGIA, PENSANDO A 
SOCIEDADE BRASILEIRA EM PROCESSO DE MUDANçA OU DE TRANSFORMAçãO ..............138
7.1 A Sociologia crítica paulista de Florestan Fernandes e de seu grupo 
da Sociologia I .............................................................................................................................................142
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
7.2 Tendências do pensamento social, ideias e personagens dos anos 1960 ao 
Golpe de 1964 .............................................................................................................................................144
7.3 Pensamento social brasileiro, ideias e instituições, Cepal e Iseb .....................................149
7.4 O pensamento autoritário e resistência, bases teóricas e práticas políticas .............153
8 PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO, DEMOCRACIA à BRASILEIRA NO 
NEOLIBERALISMO E NO PóS‑NEOLIBERALISMO ..................................................................................161
8.1 O pensamento social brasileiro à guisa de conclusão .........................................................1647
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
APreSeNtAção
A disciplina Pensamento Social Brasileiro abrange tendências de pensamento que circularam no país 
desde sua constituição como colônia portuguesa, disputada por outras nações europeias, aos dias mais 
recentes, nos quais pensar Brasil, sua cultura e sociedade, se deu de modo sistemático, no campo das 
Ciências Sociais, de modalidades da Arte e no âmbito das alternativas políticas.
Para sistematizar conteúdo tão amplo, esse livro‑texto parte de uma questão simples: “afinal, o que 
se entende por pensamento social?” A pergunta abre uma fresta de questionamento, e por ela o leitor 
vai espiar e entrar em contato com um leque de indagações e de reflexões sobre o Brasil e os brasileiros 
ao longo de sua história, uma trajetória resumida nas unidades deste material.
O livro‑texto se abre com a instauração de um pensamento social brasileiro, partindo da construção 
das sagas das principais personagens: o europeu, o índio e o negro. Nesse momento inaugural é o 
europeu que pensa e conduz o Brasil e sua gente nos rumos do modelo colonial mercantilista. Um 
segundo aspecto compreende o processo de condução da autonomia política, de elaboração da tendência 
abolicionista e dos reflexos das tendências políticas e filosóficas europeias. Como terceiro momento, 
discute‑se a instauração de tendências do pensamento social urdidas na sociedade brasileira, com a 
presença de segmentos diferenciados da formação social e em relação à política nacional e ao Estado.
O material também focaliza tendências do pensamento social afetadas pela institucionalização da 
investigação em Ciências Sociais, notadamente da Sociologia. De fato, em paralelo à investigação científica, 
instauram‑se tendências de pensamento social que incorporaram estudos e pesquisas, então desenvolvidos, 
na proposição de políticas de desenvolvimento econômico, com participação do Estado, e visando a 
reformas políticas e mudança social. Os últimos itens abordados versam: primeiramente, sobre as bases 
teóricas, práticas políticas e repressivas adotadas pelo pensamento conservador, no apoio e sustentação 
da Ditadura civil e militar; na sequência, são focalizados os efeitos do autoritarismo de duas décadas, 
do modelo excludente de economia e reflexos políticos do pensamento neoliberal. No cenário político 
e econômico assim formado, o pensamento social brasileiro ensaia a elaboração de uma modalidade de 
democracia à brasileira, cujas bases emergem da desigualdade social e concentração econômica.
Os temas discutidos pela disciplina fazem parte do cotidiano do sociólogo, surgem nas salas de aula, 
nas conversas de rua, e até mesmo são referências para o entendimento de letras da música brasileira e 
filmes nacionais. Enfim, trata‑se de um conteúdo que integra o perfil profissional do sociólogo brasileiro, 
refletindo a trajetória de problematização que deu origem à profissão.
INtrodução
Iniciamos o livro com a seguinte questão: o que se entende por pensamento social brasileiro?
Representa uma vertente e um conteúdo do pensamento investigativo dirigido para a problematização 
da realidade social e cultural brasileira ao longo da história. Abrange, ainda, processos históricos que 
induziram as características por ela assumidas em algum momento do passado e do presente, assim 
como tendências identificáveis no processo de constituição da formação nacional.
8
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Desse modo, em uma primeira e estrita acepção, o estudo do pensamento social brasileiro abrange o 
exame do conteúdo de distintas reflexões sistemáticas sobre a realidade brasileira, além da exploração, 
dentro do possível, das perspectivas ou abordagens adotadas por seus autores nas condições sociais em 
que elaboraram e fizeram circular aquelas ideias.
Nessa acepção, pensamento social brasileiro abrange uma variada produção, originária de distintos 
campos das ciências, como História, Sociologia, Antropologia, Etnologia, Economia, além da Filosofia e 
do Direito, campos afetados pela influência do iluminismo europeu a partir do século XVIII, e de outras 
tendências de pensamento do mundo ocidental, notadamente nos séculos XIX e XX.
Em suma, trata‑se de uma vertente de pensamento científico, como movimento de problematização, 
que culmina com um discurso de produção da verdade sobre determinada faceta da realidade nacional. 
Assim, marcada pela Ciência e Filosofia, as verdades construídas são submetidas ao processo de crítica 
sistemática, peculiar a esses dois campos.
Em uma acepção mais ampla, o estudo do pensamento social, nesse caso o brasileiro, também 
abrange a arte, o processo de reflexão e produção da literatura e do teatro. Compreende o jornalismo, 
o cinema e letras da música brasileira popular. Em seu conjunto, envolve a constituição de um peculiar 
discurso, não ancorado na lógica científica da reflexão, mas sustentado pela problematização dos fatos; 
nessa dimensão de questionamento, esse discurso circula na sociedade, desvenda a vida, o poder, inspira 
os sentimentos, explica as condições do cotidiano e as formas de sociabilidade.
Conquanto não se lhe possa reconhecer os foros de um discurso de verdade racional, como se 
arrogam os discursos das ciências, os dizeres múltiplos dessa peculiar vertente do pensamento social 
brasileiro se abrem como fresta na qual os brasileiros vêm questionando a existência ao longo das 
gerações. Por isso, admitindo a relação entre emoção e razão, Theo Barros e Geraldo Vandré colocavam 
para a ditadura, na voz de Jair Rodrigues, uma mensagem de reprovação ao movimento de repressão 
que o país enfrentava.
9
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
Unidade I
1 oS PrIMeIroS teMPoS
As condições originais de instauração de um pensamento social brasileiro partem da construção das 
sagas das principais personagens: o europeu, o índio e o negro. Todas elas estão enredadas nas tramas 
históricas do mercantilismo europeu, por isso, os povos indígenas e os africanos trazidos para cá devem 
cumprir a finalidade que lhes foi atribuída, em substituição à vida que esperavam...
1.1 o europeu tomou posse da terra e depois pensou o que fazer dela
Em um primeiro momento, o pensamento social se instaurou brasileiro, porque elaborado aqui, mas 
tinha o Brasil e sua população na posição de Outro, ou de objeto. Como afirma Murilo de Carvalho, 
(2007) “uma das características da chegada de espanhóis e portugueses ao continente hoje chamado de 
América foi a incerteza em relação à natureza da coisa. Eram as índias, era um mundo novo, uma ilha, 
um continente?” Essa interrogação também se aplicou à terra “descoberta” (encontrada seria melhor) por 
Cabral, e um indício nessa direção está na variação de nomes atribuídos à terra. Segundo o mesmo autor:
Ao longo dos séculos XVI e XVII, ela foi batizada com vários nomes. A disputa 
sobre como grafar Brasil estendeu‑se até o século XX. E até hoje se discute 
a origem do nome. Difícil imaginar outro país com tão grande dificuldade 
de decidir até mesmo seu próprio nome. A nova terra foi denominada 
Pindorama (antes de 1500), Ilha (Terra) de Vera Cruz (1500), Terra de Santa 
Cruz (1501), Terra Papagalli (1502), Mundus Novus (1503), América (1507), 
Terra do Brasil (1507), índia Ocidental (1578), Brazil (século XIX), Brasil 
(século XX) (CARVALHO, 2007).
Era a instauração de um discurso europeu elaborado a partir da posição de sujeito, em que se 
situavam distintas personagens da história: o escrivão‑mor enviado de El Rei, os religiosos que avaliaram 
os nativos pesando seus pecados, mercadores, colonizadores, exploradores e invasores. Essas últimasfiguras refletiam aqui os interesses mercantis e religiosos das guerras europeias.
Para o europeu que chegava, não eram os donos da terra o que importava, mas a terra, as 
vantagens econômicas e políticas que adviriam de sua exploração. Aquelas “gentes”, os gentios, 
eram vistos com estranhamento: eram ao mesmo tempo estorvo e fator necessário, amigo e inimigo; 
apresentavam uma temível e inocente natureza humana, homens não apegados à propriedade, mas 
defensores da terra e, com tudo isso, constituíam uma peça central a ser controlada no jogo da 
colonização que se iniciava. Assim, no solo brasileiro, nos planos institucional, militar e comercial 
foram se confrontando os interesses que dividiam o mercantilismo europeu, formando um mosaico 
de conflitos e estratégias de poder.
10
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
O projeto português de exploração colonial da terra exigiu incorporar, aos poucos descobridores, dois 
contingentes populacionais, ambos a serviço do colonizador europeu branco: os índios e os negros, os dois 
representando trabalho e prazer: o trabalho extraído do corpo dos homens, o prazer, e também trabalho, 
do corpo das mulheres, ambos na qualidade de mercadoria semovente, corpos escravizados à disposição 
dos colonizadores e invasores (dos católicos, judeus e huguenotes; dos portugueses, espanhóis, franceses, 
holandeses, todos brancos representantes da civilização europeia dos séculos XVI aos meados do século XIX).
Nesses termos, os interesses de exploração comercial transudavam nos olhares das personagens 
que construíam o pensamento sobre a terra brasileira a partir de uma posição de sujeito. Pelo olhar de 
avaliação interessada foram introduzidos os dois contingentes submetidos ao projeto colonial, ambos 
dominados pela força das armas ou pela sedução da cruz: o índio, que era planta nativa encontrada na 
mata, limpa e alimentada, em alguns casos oferecendo suas mulheres em casamento; o negro, que era 
a “mercadoria resgatada”, originária das colônias do além‑mar, trazida com muito lucro, e algum custo 
político, dada as relações complexas entre as coroas europeias.
1.2 Primeiro bosquejo da formação social, elites e subalternidade
Os dois contingentes ingressavam na “nova” terra, em uma condição de subalternidade que os vai 
marcar, e aos seus descendentes, por gerações, embora tenham construído o país e participado das lutas 
da independência.
Ao fim do século XVIII, a colonização comercial portuguesa dera origem a uma sociedade brasileira 
segmentada em estratos sociais, distinguidos por preconceitos associados à origem, riqueza e cor da 
pele, mas todos eles comportando gentes de todos os matizes, que eram frutos da mestiçagem sem 
preconceito dos amores, dos fugazes, daqueles renegados, e da violência dos estupros.
Pode‑se dizer que a colonização produziu, com base no monopólio da terra, 
três classes de população: o latifundiário, o escravo e o “homem livre”, na 
verdade dependente. Entre os primeiros dois a relação é clara, é a multidão 
dos terceiros que nos interessa. Nem proprietários nem proletários, seu acesso 
à vida social e a seus bens depende materialmente do favor, indireto ou direto, 
de um grande. O agregado é a sua caricatura (SCHWARTZ, 1981, p. 16).
Nessa “multidão” mencionada pelo autor estavam aqueles que tinham suas vozes silenciadas, mas 
que tinham participado das guerras coloniais na defesa do território, os que figuravam na formação 
social em uma diversidade de revoltas e trajetórias de resistência e, partir do final do XVIII, os que 
integraram o processo de independência; mas pensar o Brasil a partir da peculiar posição de inserção 
na formação social, a baseada na dependência ou no favor, como aponta Schwartz, apresenta de início 
a dificuldade de examinar, ou de superar, a própria subalternidade. No entanto, o desenvolvimento do 
pensamento crítico só será formado posteriormente e, por consequência, o pensamento liberal servirá 
de base para pensar a sociedade brasileira.
Então, se membros da elite endinheirada e privilegiada brasileira participaram da criação da 
autonomia política, inspirados no pensamento liberal e em conformidade com interesses ingleses, 
11
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
eles mesmos logo perceberam as diferenças de posições e de interesses que os distinguiam, e ficaram 
evidentes as contradições políticas e econômicas internas e externas às elites, entre elas e a população, 
além das contradições entre interesses regionais e o governo central do Império.
Portanto, a consolidação da autonomia política lastreou um processo de elaboração do pensamento 
social brasileiro pelo qual a posição de sujeito deixou de ser ocupada pelo colonizador para ser partilhada 
entre dois distintos segmentos das elites que se mostraram politicamente relevantes nos respectivos 
papéis: uma elite intelectual peculiar e uma elite patrimonial, em geral, endinheirada, variando a 
composição conforme inserção na economia, período da História, região e dinâmica política instaurada 
na formação social.
Da autonomia política em 1822 à abolição em 1888 foram 66 anos em que os interesses das elites 
preservaram as relações de trabalho no modelo escravocrata, ou o alteraram no mínimo possível, 
resistiram às mudanças de lei, às pressões sociais e mudanças institucionais, políticas e econômicas.
No âmbito das discussões e dos confrontos partidários envolvendo a autonomia política, foi sendo 
construído um liberalismo escravocrata, tendência de pensamento que, em variadas versões, combinou 
interesses das elites com as palavras bonitas do discurso liberal. De qualquer forma, essa tendência 
persistiu na concepção de democracia à brasileira.
A trajetória do pensamento social brasileiro, da colonização ao século XIX, focaliza a presença de 
índios e negros, os dois contingentes inseridos no projeto colonial, e a reflexão sobre a colonização, 
resultando a elaboração de articulações para independência e formação do Estado, embora a autonomia 
política não tenha significado autonomia e modernização econômica.
Em contrapartida, o debate sobre a escravatura dividiu as elites intelectuais e patrimoniais em 
tendências ideológicas e confrontos políticos que provocaram a queda do Império, em ambiente de 
ascensão militar e de vertente teórica, o positivismo. Em que pesem tais desdobramentos do debate 
sobre a escravidão, eles não conduziram a um mercado de trabalho regido por relações capitalistas: no 
meio rural e nas cidades, as relações de dependência e os vínculos de assujeitamento foram mantidos 
por muito tempo, alimentando a subalternidade do trabalhador em geral, especialmente do negro.
1.3 Pensamento social inaugural, o europeu e o povo indígena
Quando da chegada do europeu, a população nativa habitava essas terras há mais de 10 mil anos, 
porém, vários dos grupos que presenciaram a chegada desapareceram, foram exterminados por doenças 
– pelas condições às quais foram expostos – ou pelas guerras.
Darcy Ribeiro (1985) estimou enorme redução da população indígena brasileira: dos 2.431.000 
indivíduos no século XVI, para cerca de 410.000 no século XX. Contudo, os dados do IBGE e Funai de 
2005 registravam uma população indígena total de 358.000 habitantes, distribuídos entre 215 etnias e 
falando 18 línguas. Isso significa uma redução no total da população em torno de 85% entre os séculos 
XVI e XXI, ao contrário do que se passou com a população de africanos, que apresentou crescimento 
populacional.
12
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
Para o europeu, a população nativa pareceu de início um empecilho ao intentode expropriação 
colonial, mas logo ela se mostrou obstáculo manejável, dado que as lutas internas entre povos indígenas 
permitiram tecer intrigas e alimentar guerras, em proveito do colonizador. Além do mais, índios 
representavam braços para o trabalho de extração da madeira, de construir casas, fortalezas, de abrir 
caminhos na mata, além de o conhecimento indígena das plantas, animais e riquezas ter sido elemento 
fundamental à empreitada colonial quando ela teve início.
Depoimentos de náufragos europeus que viveram entre os índios, como o de Jean de Léry, francês, 
e do alemão Hans Staden mostram que havia relações de escambo e trocas de produtos naturais por 
quinquilharias, machados e facas; os europeus que passavam pelas aldeias eram acolhidos como 
visitantes, recebiam uma mulher como “esposa”, tornando‑se aparentado com o chefe local. Os europeus 
também faziam alianças com as aldeias e tribos e se submetiam aos padrões tribais de relacionamento, 
sendo encarados como amigos. Esse nível de relacionamento não foi de monta a alterar o sistema 
de organização tribal, embora introduzisse valores e interesses alheios à cultura indígena, como o do 
trabalho remunerado.
Jean De Léry frequentemente incorpora essas alianças ao descrever sua viagem, mesmo quando ele 
questiona a crueldade dos índios, seus amigos tupinambás.
“Enfurecidos e encarniçados os nossos selvagens já haviam incendiado as choças para desalojar os 
moradores e a muitos já haviam morto”. E como os franceses deram abrigo a alguns portugueses fugitivos, 
comenta Léry: “os tupinambás se mostraram descontentes com o fato de abrigarmos esses infelizes 
e, para acalmá‑los, foi preciso não só muita energia como donativos em mercadorias. Deixaram‑nos 
finalmente conosco como escravos” (1961, p. 160). Aliás, fazer escravos dos prisioneiros de guerra não 
era a praxe entre os índios, eles os devoravam, o que era considerado uma morte honrosa.
Todavia, o sentido maior da vingança, inclusive apontado por Léry, estava em incorporar ao grupo 
vencedor a coragem do inimigo vencido, valorizada durante o ritual tanto pela vítima como pelo 
encarregado de matá‑lo. Segundo Ribeiro (1985, p. 34), foi por faltar coragem que Hans Staden se 
salvou: “por três vezes os índios se recusaram a comê‑lo, porque chorava e se sujava, pedindo clemência. 
Não se comia um covarde”.
Quatro séculos depois, Oswald de Andrade e Mário de Andrade ressignificaram o ritual da antropofagia, 
sempre associado aos tupinambás, mas também adotado pelos tamoios, e o elegeram como metáfora 
para denominar o processo de incorporação cultural e de relação entre cultura brasileira e estrangeira.
As populações indígenas integraram o projeto colonial mercantil de El‑Rei com o propósito de servir 
de braço nos trabalhos agrícolas e de defesa do território; portugueses, colonizadores e padres não se 
sentiam os novos donos da terra, mas emissários do rei, figura distante a quem pertenciam as terras 
descobertas, as vidas e almas dos habitantes por vontade divina, segundo o papa.
Na verdade, ao “colonizador” interessava mesmo o comércio de mercadorias, fossem elas o pau‑brasil, 
peles, penas, escravos, mais tarde o açúcar. O escravo era a mais útil e rentável “mercadoria” e veio 
garantir a sobrevivência das famílias patriarcais paulistas, cujos chefes, impossibilitados de competir 
13
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
com a produção do açúcar no Nordeste, passaram a fornecer índios para engenhos e fazendas, mesmo 
porque ter escravos índios era sinal de abastança e de dignidade.
Incursões pelo sertão em busca de índios já era uma prática desde os tempos de Martim Afonso. 
Contudo, “na primeira metade do século XVII, houve grande incremento no tráfico de índios, devido às 
investidas paulistas contra as missões jesuíticas instaladas na bacia platina” (HOLANDA, 1963a, p. 278). 
Esses índios já estavam “aculturados e aptos para o trabalho”, alcançando bom preço “nos empórios de 
São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco”, embora fossem mais baratos que os escravos 
africanos.
Nesses termos, a presença de brancos que aqui aportaram e que conviviam com índios se tornara 
estratégica: por exemplo, os contatos entre a comitiva de Tomé de Souza, Primeiro Governador‑Geral, 
na Bahia, com os índios foram facilitados pela presença de Diogo Álvares, o Caramuru, um náufrago 
português amancebado com várias índias; assim como fora igualmente fundamental a participação de 
João Ramalho junto a Brás Cubas e Martim Afonso no Sul. Esses portugueses também eram mercadores, 
e praticavam a invasão de aldeias com apresamento; aliás, a escravização da população indígena 
foi uma prática colonial adotada antes mesmo do “resgate” de africanos como escravos. Portanto, a 
dinâmica das relações entre europeus e povos indígenas nas estratégias de colonização revela uma 
posição de sujeito assumida pelo colonizador português, refletindo o discurso absolutista da monarquia 
lusitana. Desse modo, pela “vontade de El‑Rei”, são justificadas as reais práticas de escravizar índios e de 
ocupar as terras mais acessíveis e cuidadas, com os argumentos de moralização e catequização; todavia, 
tais argumentos eram apresentados no ambiente político e religioso europeu. Junto aos indígenas, os 
jesuítas enviados por D. João III mantinham os mesmos propósitos, mas os argumentos eram o medo 
do pecado e a salvação da alma.
Quando povos indígenas reagiam a esse projeto de colonização lutando com as armas de que 
dispunham, os conflitos davam início às “guerras defensivas” ou “guerras justas” que tanto marcaram o 
período; as populações indígenas eram declaradas hostis, resultando apresamento de índios e ocupação 
das terras. Nessas condições, restavam aos nativos duas alternativas: embrenharem‑se na floresta, 
para além das fronteiras atingidas pelos brancos ou conviver com o invasor na posição de um objeto 
submisso aos desígnios por ele determinados. As duas alternativas implicaram perda de elementos 
culturais significativos e até mesmo no desaparecimento da maioria dos povos indígenas.
É importante notar que a ocupação do espaço pelas populações indígenas observava padrão cultural 
associado à organização social, consistindo em núcleos de aldeias autônomas. O espaço das aldeias não 
era demarcado por cercas, mas pelo reconhecimento de limites consensuais, culturais, não só permitindo 
as trocas de produtos entre aldeias, como também dando origem a conflitos e guerras. Em algumas 
culturas, esse padrão de ocupação era deslocado sistematicamente pelo território considerado daquela 
nação ou grupo.
O colonizador, com armas e com evangelho, procedeu a um rearranjo nas peças desse mosaico, 
a fim de facilitar o apresamento e a escravização, necessários à empreitada colonial, assegurando a 
propriedade da terra e defesa do território contra interesses de outras nações. Enquanto o aldeamento 
indígena estabelecia laços de sentido que uniam os povos à mata, aos seus lugares marcados pelos 
14
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
mitos de origem, com implicações religiosas, aos limites culturais estabelecidos ao longo de um tempo 
imemorial, o aldeamento jesuíta estabelecia a mata como um lugar de “coisas” a serem descobertas, 
local habitado por “inimigos” que deveriam ser vencidos, uma organização de espaço projetando a ideia 
da ocupação consentida à propriedade privada, de uma área comum, pública, extensão do poder do rei 
ou dos senhores.
A ameaça estrangeira constituiu argumento para o aldeamento promovido pelos religiosos, 
facilitando a missão de catequese, salvando almas e consumindo corpos no trabalho e na guerra.
Momentos da história colonial brasileira que exemplificamesse processo foram: a Confederação 
dos Tamoios, em meio à invasão francesa no Rio de Janeiro, a França Antártica; e durante a invasão 
holandesa em Pernambuco. Três “heróis” indígenas emergem nesses momentos, os três posicionados a 
favor dos portugueses: Tibiriçá (dos Guayaná), Araribóia (segundo consta, da tribo Temiminó, habitante 
da Ilha de Paranapuã, atual Ilha do Governador), e Poti (ou Felipe Camarão, do grupo Potiguara, em 
Pernambuco). Há semelhanças significativas nas trajetórias dos três chefes, situadas nos dispositivos de 
poder colonial, dos séculos XVI e XVII:
A Confederação dos Tamoios uniu os Tupinambá do Rio, os Carijó do planalto 
paulista, Goitacá e Aimoré da Serra do Mar (estes do grupo linguístico Jê), 
mas foi vencida pelos grupos aliciados pelos Jesuítas, com participação dos 
Guayaná, liderados por Tibiriçá. Na verdade, a Confederação foi desfeita na 
Paz de Iperoig, acertada por Anchieta (RIBEIRO, 1985, p. 33).
Os heróis dessa guerra foram os favoráveis à dominação portuguesa. Já aos chefes dos grupos 
resistentes não é reconhecida a mesma bravura e heroísmo, sequer há notícias de onde foram sepultados. 
Seus nomes são relativamente esquecidos, por exemplo, Cunhambebe, pai e filho, Aimberê, Igaraçu, 
Pindobuçu e seu filho Parabuçu. Sabe‑se apenas que foram mortos, os últimos a 20 de janeiro pelas 
tropas formadas por indígenas e portugueses; quanto às tribos que chefiavam, elas foram extintas por 
doenças e pela ação dos apresadores, sobretudo dos “valorosos” bandeirantes paulistas.
Os chefes citados, Tibiriçá (Guayaná) e Araribóia (Temiminó), tornaram‑se cristãos e batizados, 
mas a lealdade dos Guayaná aos portugueses começara quando Bartira, filha de Tibiriçá, fora dada em 
casamento a João Ramalho, o português e negociante de índios. Essa prática, denominada por Ribeiro 
(1985) cunhadismo, era frequente naqueles tempos, mas Araribóia, chefe Temiminó, levou ao extremo 
a “dedicação” ao português colonizador, arriscando a própria vida para salvar Estácio, o sobrinho do 
governador‑geral Mem de Sá, que se afogava. Assim, foi agraciado com honras pelo rei de Portugal, 
Dom Sebastião.
Para o europeu, não interessava que os povos indígenas se unissem em organização sólida, ao 
contrário, era útil enfraquecer os laços de identidade, e para isso estavam os jesuítas com suas 
promessas de proteção às aldeias à custa da catequização, do batismo e do trabalho. Ser reconhecido 
e agraciado pelo conquistador poderoso, gozar de privilégios para si e para a tribo foram fatores que 
pesaram na decisão desses chefes de negar a identidade indígena em troca de uma ocidentalização, 
aliás, nunca reconhecida.
15
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
A primeira impressão que fizera Pero Vaz de Caminha sobre os índios, de serem eles “uma argila 
moldável”, vai aos poucos sendo substituída por uma imagem de um povo bárbaro, sem lei, sem razão, 
para o qual a religião imprimiria freios de submissão. “A sujeição política é a condição da sujeição 
religiosa” conclui Cunha (1990).
No entanto, não faltava aos diferentes povos indígenas a percepção dos processos em que estavam 
inseridos, aparecendo na reivindicação das terras que lhes pertenciam, e nas revoltas esmagadas com 
violência. Contudo, um testemunho do desencanto diante das promessas do europeu, o entendimento 
das práticas de poder vinha de longe, como se pode entender no depoimento do chefe Momboré‑uaçu, 
da aldeia de Essauap, no Maranhão, em 1612, sob o título “Digo apenas simplesmente o que vi com 
meus olhos”.
O discurso foi registrado pelo missionário Claude d’Abbeville, em sua História da Missão dos Padres 
Capuchinhos na Ilha do Maranhão, de 1614. Beatriz Perrone‑Moisés o resgatou para o instituto 
indigenista, na tradução de Sérgio Milliet (1945). Como explica a antropóloga, naquela situação, os 
franceses buscavam apoio dos índios para a França Equinocial, logo depois retomada pelos portugueses.
O chefe Tupinambá Momboré‑uaçu fala do século XVII, quando as condições em que foram tecidas 
as relações de poder na colônia portuguesa apareciam em novas configurações, e em outros ambientes, 
agora no Nordeste, Maranhão, Bahia, Paraíba e Pernambuco. Seu discurso remete à aliança entre 
Tupinambá e os franceses, cuja origem “é tão antiga quanto as primeiras décadas da Descoberta, mais 
precisamente quando o franciscano André Thevet, embarcado com Villegagnon, publica As Singularidades 
da França Antártica (1558), texto de grande repercussão na França” (MUNIZ SODRÉ, 2009).
O discurso do velho chefe Momboré‑uaçu vale ser ouvido na íntegra porque é a descrição de uma 
experiência vivida:
Vi a chegada dos peró [portugueses] em Pernambuco e Potiú; e começaram 
eles como vós, franceses, fazeis agora. De início, os peró não faziam senão 
traficar sem pretenderem fixar residência. Nessa época, dormiam livremente 
com as raparigas, o que nossos companheiros de Pernambuco reputavam 
grandemente honroso. Mais tarde, disseram que nos devíamos acostumar a 
eles e que precisavam construir fortalezas, para se defenderem, e edificarem 
cidades para morarem conosco. E assim parecia que desejavam que 
constituíssemos uma só nação.
Depois, começaram a dizer que não podiam tomar as raparigas sem mais 
aquela, que Deus somente lhes permitia possuí‑las por meio do casamento 
e que eles não podiam casar sem que elas fossem batizadas. E para isso 
eram necessários paí [padres]. Mandaram vir os paí; e estes ergueram cruzes 
e principiaram a instruir os nossos e a batizá‑los. Mais tarde afirmaram que 
nem eles nem os paí podiam viver sem escravos para os servirem e por eles 
trabalharem. E, assim, se viram os nossos constrangidos a fornecer‑lhos. Mas 
não satisfeitos com os escravos capturados na guerra, quiseram também os 
16
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
filhos dos nossos e acabaram escravizando toda a nação; e com tal tirania e 
crueldade a trataram, que os que ficaram livres foram, como nós, forçados 
a deixar a região.
Assim aconteceu com os franceses. Da primeira vez que viestes aqui, vós o 
fizestes somente para traficar. Como os peró, não recusáveis tomar nossas 
filhas e nós nos julgávamos felizes quando elas tinham filhos. Nesta época, 
não faláveis em aqui vos fixar. Agora já nos falais de vos estabelecerdes aqui, 
de construirdes fortalezas para defender‑vos contra os vossos inimigos. Para 
isso, trouxestes um Morubixaba e vários paí. Em verdade, estamos satisfeitos, 
mas os peró fizeram o mesmo.
Depois da chegada dos paí, plantastes cruzes como os peró. Começais 
agora a instruir e batizar tal qual eles fizeram; dizeis que não podeis tomar 
nossas filhas senão por esposas e após terem sido batizadas. O mesmo 
diziam os peró. Como estes, vós não queríeis escravos, a princípio; agora 
os pedis e quereis como eles no fim. Não creio, entretanto, que tenhais 
o mesmo fito que os peró; aliás, isso não me atemoriza, pois velho como 
estou nada mais temo. Digo apenas, simplesmente o que vi com meus 
olhos (MILLIET, 1945, p. 115‑116).
O conflito com os holandeses no Nordeste oferece outro exemplo de assujeitamento à cultura do 
colonizador, ao mesmo tempo em que aparecem exemplos de manifestações nativistas. Os principais 
grupos indígenas na região do conflito com holandeses eram: os Tabajaras, Caetés e Potiguares. A 
denominação tabajara parece ser uma referência à relação entre índios e portugueses, e não o nome de 
um grupo indígena; dessa forma, os aliados dos portugueses de fato eram os tupinambás. Quanto às 
relações com os caetés e potiguares, elas se mostraram mais complicadas.
Os caetés eram valentes, vigorosos, mas também antropófagos, e provocaram o ódio dos 
portugueses quando, em 1556, matarame comeram o bispo Pero Fernandes Sardinha e os náufragos 
de sua comitiva. Mais tarde, poucos índios restavam da escravização e extinção sistemática decretada 
por Mem de Sá, então governador‑geral, para fazer aliança com os portugueses. Na invasão holandesa, 
os caetés resistiram e se deslocaram para uma aldeia cujas terras foram doadas aos índios em 1698 
pelo governo português.
Os potiguares foram descritos por autores distintos como habitantes de região que abrangia Paraíba, 
Rio Grande do Norte e parte do Ceará, como índios fortes e valorosos, que conseguiram resistir aos 
colonizadores portugueses. Foram aliados dos franceses no litoral nordestino na instalação da França 
Equinocial, de 1586 a 1597, e mesmo quando os franceses foram vencidos perdurou a aliança entre eles 
e os franceses, assim como entre os tabajaras e portugueses.
Em 1599, os potiguares estabeleceram aproximação com os portugueses, por intervenção de um 
xamã de Ilha Grande, mas com a chegada dos holandeses eles fizeram aliança com o novo invasor.
17
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
Como o povo potiguar, que foi aliado dos franceses e holandeses, ao mesmo tempo forneceu um dos 
heróis da “frente nativista”, o índio Felipe Camarão?
A questão remete às tendências religiosas que se defrontavam na Europa e que se refletiam na 
colônia portuguesa, que, do final do século XVI a meados do XVII, esteve sob o domínio espanhol: 
o catolicismo inquisitorial de Portugal e Espanha enfrentava o protestantismo huguenote francês, e 
a Igreja Reformada holandesa. As três igrejas eram proselitistas, centradas nas conversões, sendo a 
católica a de maior alcance. Contudo, apenas a igreja protestante compreendeu a necessidade de formar 
agentes religiosos entre a população indígena, sendo um deles o índio Pedro Poty, considerado herói 
da Igreja Reformada, e que era primo de Felipe Camarão, o herói da frente nativista, católico, e inimigo 
dos holandeses. As trajetórias dos dois potiguara sinalizam divisões internas àquele povo, distribuído na 
vasta região nordestina, e principalmente revelam facetas distintas do processo de assujeitamento às 
condições emergentes.
O índio Pedro Poty, guerreiro potiguar, primo de Felipe Camarão, lutou ao lado dos holandeses e 
era um cristão reformado, assim como Antônio Paraupaba; os dois receberam formação religiosa na 
Holanda, financiados pela WIC (Companhia das índias Ocidentais), ambos considerados regedores da 
Igreja Reformada no Nordeste do século XVII. Viração (2010) focaliza as duas personagens, Pedro Poty e 
Antônio Paraupaba, a partir do vínculo estabelecido com uma Igreja Universal pela conversão religiosa: 
ao primeiro, a autora reconhece a condição de mártir da fé e considera o segundo como legítimo 
representante da mentalidade religiosa reformada: “tudo leva a crer que Paraupaba via o mundo com os 
olhos de sua mentalidade religiosa, seu espaço era religioso” (VIRAçãO, 2010, p. 15).
Antonio Felipe Camarão foi batizado católico no dia 13 de junho de 1612, trazendo em seu nome, 
Antonio em homenagem ao santo do dia, Felipe em homenagem ao Rei de Espanha, e Camarão, uma 
tradução portuguesa para denominação de sua origem, Potiguar, “comedor de camarão”. No batismo 
ele se vincula ao campo europeu católico, com uma “identidade traduzida”, por assim dizer, e deixa de 
ser Poti, escolhe ser camarão. Ao fazê‑lo, também arrasta “uma de suas mulheres” para o batismo e 
casamento católico: ela recebe o nome de Clara (possível referência à Santa Clara, antigo amor de São 
Francisco de Assis).
Nessa nova identidade, nem indígena nem europeia, Clara e Felipe Camarão são reconhecidos 
como valorosos, conforme transcrição da opinião de D. Domingas de Loreto no Dicionário Histórico e 
Geográfico do Rio Grande do Norte:
Na guerra da restauração de Pernambuco, ostentou D. Clara, mulher do 
governador dos índios, D. Antônio Felipe Camarão, o seu insigne valor com 
os mais ilustres realces: porque, armada de espada e broquel, e montada em 
um cavalo, foi vista nos conflitos mais arriscados ao lado do seu marido, 
com admiração do holandês e aplauso dos nossos (SOARES, 1988).
Quanto a Felipe Camarão, ele recebeu o título de Dom, de Felipe IV, Brasão de Armas, foi alçado 
ao cargo de Governador de Todos os índios do Brasil, além de comendas e rendas. Moreira Jr. (2004) 
analisa a constituição de terços, uma composição militar, originalmente espanhola, implantada nas 
18
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
forças militares portuguesas e o processo de mudança operado a partir de então na estratégia de guerra 
na colônia.
Até então as populações indígenas aparecem construídas a partir de olhares europeus, conforme os 
distintos propósitos desses olhares, mas e quanto ao índio? Enraizado em “sua” terra, deveria negá‑la 
como a origem de seus ancestrais e apagá‑los de sua memória; considerar‑se pecador de um pecado 
que não conhecia e abrir mão de sua identidade, tradições, rituais, crenças e saberes. Assim, vazio de 
tudo que lhe dizia respeito, vazio de si, tinha de se submeter ao outro, ao branco, e valorizá‑lo, trabalhar 
para ele, dividir com ele suas mulheres, adquirir as doenças que lhe foram transmitidas, cobrir com panos 
sujos seu corpo orgulhoso, colocar‑se como coisa, qual o barro dócil com que as mulheres modelavam 
potes: exatamente como um pote de cerâmica, receber a civilização e a hóstia. Os bons potes poderiam 
ser vendidos, os maus eram quebrados, ou seja, mortos.
Dessa forma, como entender os fatores responsáveis pela dinâmica de preservação da 
identidade cultural? Quais elementos alimentaram os indígenas contemporâneos de força 
de resistência e de autoidentificação? Tudo indica que tais elementos foram encontrados 
na construção da imagem de grupo, transmitida de forma assistemática, nos rituais e mitos 
contados e recontados ao longo das gerações. Eles foram lidos no avesso dos relatos de viajantes 
ou das narrativas literárias, percebidos no sentido das trajetórias dos chefes catequizados, nas 
condições sociais e culturais que se apresentaram aos indígenas brasileiros ao longo da história 
e que se mostram no cotidiano.
Desse modo, o presente vivido reitera pressões sofridas no passado, e as narrativas da 
memória grupal não idealizam o passado, mas são utilizadas como aproximação ao presente. 
Agora, assim como antes, é a terra indígena o alvo da cobiça do branco, e se a inocência e a fúria 
que marcaram a visão do europeu sobre o índio foram desfeitas ou atenuadas, com o contato e 
mecanismos de assimilação cultural, o índio permanece um estorvo ao avanço das empresas e 
aos interesses do branco.
Se a história vergonhosa da extinção de povos indígenas não ficou limitada ao período colonial 
e se a expropriação das terras continua, as tendências mais contemporâneas se situam na direção 
do resgate de identidades, na constituição de sujeitos coletivos e lideranças que estão fazendo outra 
história, abrindo espaços e se construindo como sujeitos na formação social e, assim, alterando o espaço 
subalterno que lhes foi reservado.
 Saiba mais
Para obter informações importantes sobre o convívio com os povos 
indígenas desde a colonização até hoje, assista ao filme: 
DESCOBRIMENTO do Brasil. Dir. Humberto Mauro. Brasil: 1937. 90 
minutos.
19
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
1.4 Pensamento social inaugural, o europeu e o escravo africano
Os dados estatísticos sobre a escravidão africana no Brasil são imprecisos, variam sensivelmente as 
estimativas, mas inegavelmente o aporte populacional foi crescente e decisivo na constituiçãodo povo 
brasileiro: Pandiá Calógeras em 1927 estimou 13.5 milhões, Rocha Pombo em 1905, 15 milhões, Barão 
de Taunay em 1941, 4.6 milhões, e Roberto Simonsen, 3.3 milhões. Outra estimava mais elaborada, de M. 
Buesan, em 1968, chegou ao total de 6.32 milhões de escravos importados entre 1540 e 1860. Todavia, 
o mesmo autor reconhece que boa parte dos recursos comprometidos com a produção de açúcar tenha 
sido consumida na manutenção da “maldita mercancia”, como a intitulava Vieira, estimando em 160 
milhões de libras ouro “o custo pago pela economia brasileira para aquisição de escravos nos 300 anos 
de tráfico” (RIBEIRO, 1985, p. 160‑164).
Em sua chegada, o negro trazia de si apenas a memória de sua cultura como bagagem, porque tudo 
o mais lhe havia sido arrancado. Logo, dois aspectos são fundamentais à análise da presença africana 
na formação social brasileira: a) sua entrada no país, como escravo, coisa de uso, força de trabalho, 
apropriada segundo critérios externos, de “serventia” para o outro; b) os processos de superação da 
condição de escravo, abrangendo distintas estratégias, individuais e coletivas.
A História registrou nos quilombos não só o processo de rebeldia, mas a constituição de um sujeito 
que se torna objeto da construção de si e organiza comunidades paralelas à ordem. Na verdade, a ordem 
que o submetia suscitou‑lhe a rebeldia, o resgate de práticas de sobrevivência trazidas na memória 
da colonização em África, a utilização de conhecimentos acumulados na empreitada de libertação e 
de construção de comunidades quilombolas. Como diz Machado (1988, p. 19), “o poder é produtor de 
individualidade, o indivíduo é uma produção do poder e do saber”.
Assim, o escravo insurgente buscava ser a si, superando ou contornando diferenças culturais, 
vigilância e disciplina impostas pela ordem. Tais práticas implicaram planejamento e elaboração dos 
possíveis para ação, uma experiência que se passa no âmbito do indivíduo, uma vez que ele busca 
se constituir como senhor de si mesmo ou, mais precisamente, construir‑se como sujeito. O sujeito 
“se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, por meio de práticas de 
liberação, de liberdade [...] a partir, obviamente, de um certo número de regras, de estilos, de convenções 
que podemos encontrar no meio cultural” (FOUCAULT, 2004, p. 291).
Todavia, a construção da identidade negra na formação social brasileira foi um processo complexo, e 
talvez ainda esteja em construção, plasmado nos modelos de subjetividade trazidos de culturas distintas, em 
linguagens distintas, nas condições a que foram submetidos os africanos pela história à qual serviram. Esses 
modelos constituem um campo de referência para análises, mas não são eles que definem o “ser negro” no 
Brasil de hoje. Os relatos do colonizador e dos representantes de interesses europeus constituem o conjunto 
discursivo que estabelece uma primeira versão sobre “essa gente” necessária à empreitada colonial e formação 
do Estado brasileiro, um contingente trazido à força, marcado pela utilidade que teria para o outro.
Contudo, a escravização do africano não era invenção dos portugueses: nas nações coloniais, França, 
Inglaterra, Espanha, Holanda, essa era uma prática corrente, aliás, uma das atividades comerciais das 
companhias europeias para colonização das Américas; enquanto na Europa o negro era utilizado em 
20
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
trabalhos domésticos e em menor número, no continente americano, no Caribe e nas possessões europeias 
em África, o trabalho do escravo foi fator fundamental à sustentação do mercantilismo colonialista.
Buarque de Holanda (1960) registra desde meados do século XVI a entrada de escravos negros 
no Brasil destinados ao trabalho na lavoura e outras atividades de colonização. Os paulistas também 
participaram desse comércio, tanto que o Conselho Ultramarino baixou resolução tentando coibi‑los, 
mas a prática continuou e ainda mais lucrativa.
De qualquer forma, em 1542, Duarte Coelho, então governador‑geral, trouxe uma “partida de 
negros” da Guiné; em 1550, a metrópole autorizou outra partida para Salvador, embora negros escravos 
chegassem também com o colonizador, como parte de sua “bagagem”. Um alvará de 1559 da metrópole, 
dirigido ao capitão‑mor da Ilha de São Tomé, autorizava cada senhor de engenho “resgatar” para o 
Brasil 120 escravos do Congo, pagando um terço dos direitos, ou melhor, dos impostos devidos à Coroa.
O comércio de escravos da África para o Brasil continuou prosperando ao longo do século XVI. No 
entanto, com o domínio espanhol sobre Portugal e, por decorrência, sobre o Brasil, introduziu uma 
alteração: o fluxo de escravos passou a ser formalmente dirigido para as possessões espanholas no 
Caribe, pois os impostos representavam a metade do valor daqueles cobrados para partidas destinadas 
ao Brasil. Nessas condições, o contrabando se tornou a alma do negócio, atendendo à demanda crescente 
da colonização, apesar do controle espanhol.
Em 1587, Gabriel Soares, em seu Tratado Descritivo do Brasil, contabilizava em Salvador uma 
população de 2 mil europeus, 4 mil negros e 6 mil índios. Muito mais tarde, quando Portugal já havia 
recuperado suas possessões na África, Padre Antônio Vieira, defensor dos índios contra a escravização, 
mas dúplice em relação à escravidão negra, sintetizava a situação: “Sem negros não há Pernambuco, 
e sem Angola não há negros” (HOLANDA, 1960, p. 187). As ambições dos senhores de engenhos, assim 
como os interesses econômicos da Coroa, os quais Vieira defendia, falavam mais alto que as dores 
provocadas aos negros “no inferno dos engenhos”.
Na medida em que o escravo era visto como fator de produção, sobre ele incidiam os interesses 
mercantilistas de portugueses, holandeses e espanhóis, e esses mesmos interesses determinavam a 
origem preferencial dos contingentes, portos de embarque, rotas de navegação e portos de desembarque. 
Contudo, o controle sobre o comércio de importação e exportação, mantido como privilégio da Coroa e 
dos portugueses até o final do século XVIII, sofreu alteração substantiva com a abertura dos portos, em 
1808, favorecendo os “negociantes” que se enriqueceram com o tráfico, especialmente na Bahia. Verger 
(1987, p. 9) aponta quatro ciclos de origem dos escravos da Bahia:
1º Ciclo da Guiné, segunda metade do século XVI.
2º Ciclo de Angola e do Congo, no século XVII.
3º Ciclo da Costa da Mina, nos três primeiros quartos do século XVIII.
4º Ciclo da baía de Benin, entre 1770 e 1850, inclusive o tráfico clandestino.
21
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
Portanto, os povos que aportavam no Brasil eram distintos: do Benin chegavam os daomeanos 
(Daomé, antiga denominação da República do Benin) de língua jêje, sendo que os nagô‑yorubá foram os 
últimos a chegar. Os bantos, dos primeiros ciclos, falavam o português e se aculturavam mais facilmente, 
já os que vinham do Benin se mantinham resistentes à aculturação, sobretudo pela presença entre 
eles de prisioneiros de guerra de nível social elevado, além de sacerdotes ciosos de seu status e de sua 
religião. Isso significa que foram trazidos à força para o Brasil, na qualidade de escravos milhões de 
pessoas africanas, de culturas distintas, religiões e línguas distintas. Em três séculos, o trabalho dessa 
população criou a riqueza da elite brasileira, e a combinação dessas culturas integrou a urdidura da 
cultura nacional.
Para a economia colonial, o aporte do braço escravo era um comércio lucrativo, no qual Portugal, 
França e Inglaterra tinham interesses, uma vez que as três nações coloniais tinham possessões na 
África e estavam completamente envolvidas nas tramasda produção mercantil. Além disso, as questões 
da política europeia, que afetavam a posição de Portugal e suas relações com a Holanda, incidiam 
diretamente nas condições de operação do sistema comercial. Portanto, as qualificações da “mercadoria” 
importada eram do conhecimento dos compradores, que faziam exigências sobre a origem do “produto”.
Verger (1987) aponta dificuldades em traficar na Costa da Mina, uma vez que os holandeses atacavam 
as embarcações, fazendo que os preços se elevassem; mesmo assim, os negros da Costa da Mina eram 
“mais procurados para as minas e engenhos que os de Angola, pela facilidade com que estes morrem”. 
Contudo, para Portugal, a importação de escravos de Angola se apresentava mais vantajosa, não só 
porque Angola era possessão portuguesa, mas porque esses escravos se apresentavam mais submissos, 
menos afeitos às rebeliões. Em uma carta do vice‑rei às cortes, em 1723, consta: “os negros de Angola 
não servem para o trabalho nas minas, só para trabalho doméstico, para reprimir rebeliões, devem ser 
tomadas medidas adequadas” (VERGER, 1987, p. 62).
Durante o século XVII, fossem portugueses os importadores de escravos, fossem membros da 
Companhia Geral de Comércio do Brasil, sempre havia a participação do rei de Uidá, interessado em 
construir uma fortaleza que funcionasse como entreposto do comércio. Entendimentos nesse sentido 
não chegaram a bom termo devido à oposição dos negociantes baianos. Somente em 1722 o forte 
foi construído em Uidá, com aprovação e apoio do rei de Portugal, para o comércio de mercadorias 
e escravos. O forte poderia comprometer o comércio inglês na costa africana, mas a African Royal 
Company chegou à conclusão de que a obra poderia ser até interessante, pois “eles [os portugueses] 
podem levar para o Brasil, para trocar por ouro, não somente negros, mas outros produtos que possam 
desejar” (Ibidem, p. 137).
Franceses e holandeses também reagiram à construção do forte. Os primeiros logo perceberam que 
os vínculos entre Portugal e o rei de Uidá não seriam rompidos facilmente: uma longa troca de presentes 
e favoritismos havia garantido a preferência pelos lusitanos e, por decorrência, pelos brasileiros.
Esse fato demonstra o quanto o africano, ao ser tornado escravo, fora esvaziado de sua humanidade, 
e, inserido na cadeia de produção mercantil, devia aguardar o embarque em um “entreposto” igualado 
a outras mercadorias africanas como caroço e óleo de dendê, pimentas etc. Também como mercadoria 
utilizável, esse ser objeto seria examinado nos mercados e apregoado para venda. Quem o comprasse, na 
22
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
qualidade de seu proprietário, adquiria um trabalho em potência, avaliado pelos músculos, canela fina, 
bons dentes, olhos vivos e procedência.
[...] os de Angola são considerados mais trabalhadores; os de Ardra são 
obstinados, maus, preguiçosos, sem iniciativa e difíceis de adaptar‑se ao 
trabalho, mas os que, entre eles, são capazes, sobrepassam todos os demais 
em vivacidade e esforço, de tal modo que parece que os bons e os maus 
pertencem a nações diferentes. Por isso, no tráfico de Ardra, devem ser bem 
considerados, porque esse ramo mau faz os Ardras pouco procurados. Além 
disso, revoltam‑se contra os que os dirigem e muitos fogem para as matas e 
fazem muitas maldades; são audaciosos e valorosos, não respeitam ninguém. 
Os Calabares, ainda menos estimados do que os Ardras, de vez que deles não 
se consegue nem interesse, nem coragem, nem trabalho. Os negros da Guiné 
até Serra Leoa e do Cabo Verde não são muito trabalhadores, mas são limpos 
e vivazes, especialmente as mulheres, pelo que os portugueses os compram 
para fazê‑los trabalhar em suas casas. Os negros que até agora têm vindo 
de sonho têm sido muito bons e é aconselhável incrementar o tráfico tanto 
quanto possível com essa região (MOURA, 1981, p. 167).
Os critérios diziam respeito a atitudes em face das imposições da escravidão e reações em face da 
opressão: o desinteresse pelo trabalho, ausência de iniciativa, revolta, fuga e vingança; respostas comuns 
em situações nas quais o sujeito se vê submetido a trabalhos forçados e em confinamento. Nessa mesma 
situação, a rebeldia se reveste de coragem e audácia. O que é apontado como desinteresse pode ser lido 
hoje como depressão ou banzo, doença que contaminou tantos escravos, levando‑os ao suicídio.
Basicamente, havia cinco alternativas abertas para o africano desembarcado como escravo no Brasil: 
a) fugir para as matas, refugiar‑se em um quilombo, enfrentando capitães de mato e a violência do 
colonizador; b) perambular pelos caminhos e estradas, arriscando‑se a ser pego, mendigar ou roubar, 
tornando‑se assaltante; c) revoltar‑se, organizar movimentos de controle de cidades, libertando‑se à 
força; d) submeter‑se ao sistema, suportando as práticas do colonizador; e) explorar estrategicamente 
as limitadas possibilidades de alcançar a liberdade, ainda dentro do sistema. A história da escravidão 
registra exemplos de todas essas possibilidades desde o período colonial ao longo do século XIX, mas a 
situação do negro liberto por força da lei de 1888 apresenta outros contornos.
A fuga do cativeiro para formação dos quilombos tem início por volta de 1590, mas há dados 
anteriores. Para os quilombos, fugiam escravos, índios e brancos pobres de engenhos e fazendas de todo 
o país. O mais famoso foi sem dúvida o Quilombo dos Palmares, situado na capitania de Pernambuco, 
hoje um município de Alagoas. Os núcleos populacionais ficavam na Serra da Barriga, eram organizados 
e relativamente independentes.
Nina Rodrigues (1977) caracteriza três momentos distintos na história de Palmares: o período 
holandês, destruído por Bareo (1644); Palmares da restauração pernambucana, destruído pela expedição 
de D. Pedro de Almeida; e o Palmares terminal, aniquilado em 1697 por Domingos Jorge Velho. A 
capacidade de organização, de desenvolver atividades produtivas e de preservar a liberdade como 
23
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
princípio fundamental da vida coletiva foram características reconhecidas pelos autores que estudaram 
essa sociedade alternativa em pleno período colonial. Combinavam‑se ali práticas sociais herdadas dos 
colonizadores e aquelas trazidas da África, especialmente no que se refere ao exercício do poder no 
contexto comunitário.
Moura (1981), focalizando o Palmares holandês, ilustra três tendências de reação: a primeira, 
exemplificada pelo próprio Zumbi, seria a de luta e organização; a segunda foi a de participação 
voluntária na luta ao lado dos portugueses, tendência ilustrada por Henrique Dias e outros; a terceira 
foi a de se associar aos holandeses, ilustrada por Calabar.
O caso de Henrique Dias é emblemático: ele foi comandante do Terço dos Homens Pretos e 
Mamelucos nas guerras de expulsão dos holandeses de Pernambuco; lutando a favor dos portugueses, 
como mestre de campo, recebeu o hábito de uma das ordens militares e foi dispensado das ”provanças”, 
que poderiam impedi‑lo, uma vez que, segundo Silva (2003), as leis “de limpeza de sangue da Península 
Ibérica determinam que, para ascender à fidalguia ou receber comendas, o requerente deve estar limpo 
de máculas de sangue mouro, judeu, negro ou índio até a quarta geração de seus ascendentes”.
A coroa portuguesa era tão zelosa da “pureza” de sangue quanto era da escravidão, recurso para 
economia mercantil em que estava inserido o império português; portanto, os critérios de liberalização 
não constituíam uma regra aplicável a todos os casos, mas uma graça ou mercê concedida pela Coroa. 
O efeito era mais local que na Corte, onde os agraciados não deixavam de ser vistos com desprezo.Do 
ponto de vista do agraciado, o título conferia elevação de status social e respeito, não necessariamente 
riqueza. Enfim, uma prática de assimilação ao mundo dos brancos, de submissão aos valores da cultura 
colonial em detrimento de sua própria origem. Desse último aspecto, pode‑se depreender o fato de 
Henrique Dias ter se oferecido para lutar contra o Quilombo dos Palmares e só não foi pela recusa dos 
vereadores de Salvador.
Em 1648, Henrique Dias descreveu seu regimento de homens pretos aos holandeses, mas, segundo 
Nina Rodrigues, Dias estava possivelmente assustando os destinatários, desmentindo a placidez dos 
Angola (os bantos), confirmando a ideia de os Mina (nagô e fanti) serem guerreiros, assim como 
reafirmando a violência e destemor dos ardra (jejês e daomeanos).
De quatro nações se compõe este regimento: minas, ardas, angolas e 
crioulos: estes são tão malévolos que não temem nem devem; os minas tão 
bravos, que aonde não podem chegar com o braço, chegam com o nome; os 
ardas tão fogosos, que tudo querem cortar de um só golpe; e os angolas tão 
robustos, que nenhum trabalho os cansa. Considerem agora se romperão a 
toda Holanda homens que a tudo romperam (RODRIGUES, 1977, p. 35).
A terceira tendência é ilustrada por Calabar, (se mameluco ou mulato, pairam dúvidas), personagem 
histórica que se posicionou do lado dos holandeses depois de ter participado das lutas a favor dos 
portugueses. Não há acordo sobre os reais motivos que levaram Calabar a se associar aos holandeses. 
Contudo, pode‑se aventar a hipótese de que a Holanda representasse a perspectiva de um futuro 
mais favorável aos negócios que o sistema português, e Calabar não foi o único a adotar essa posição 
24
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
colaboracionista. Quanto a caracterizá‑lo por traidor, imagem que ficou na história, vale a pena 
lembrar que Zumbi foi denunciado para as tropas legais por um dos seus lugares‑tenentes sob a 
promessa de liberdade (MOURA, 1981). A se julgar por outros momentos, em que a liberdade foi 
prometida em troca da participação em guerras, como os arqueiros negros do capitão Rodrigo, a 
promessa não deve ter sido cumprida.
Nas condições dadas para sobrevivência no Brasil, não bastava ao africano transportar a experiência 
de luta trazida da África, não era suficiente a identificação do inimigo, era necessário elaborar um 
pensamento estratégico combinando a experiência adquirida de sobrevivência e de luta nas selvas 
africanas com a recusa à submissão ao branco, visando à construção de um futuro, ainda que precário. 
Por isso a luta contra a escravidão abrangeu práticas distintas, que iam da organização social em 
quilombos, portanto uma forma coletiva, prevendo sustentabilidade, às práticas grupais de alcance 
tático, como as guerrilhas, as revoltas localizadas em cidades, a utilização de recursos ou estratégias 
individuais como a delação, sedução sexual, furtos sistemáticos etc. É preciso sublinhar que a adoção de 
quaisquer dessas práticas implicou uma concepção estratégica, e um dado nível de consciência de si por 
parte do grupo ou pessoa envolvida.
Três personagens da história brasileira desenvolveram estratégias particulares e, até certo ponto, 
individuais, de enfrentamento na sociedade colonial, por isso suas trajetórias devem ser mencionadas: 
Aleijadinho, Xica da Silva e Chico Rei.
Antônio Francisco Lisboa, Mestre Antônio ou Aleijadinho, exemplifica no século XVIII a desimportância 
que lhe era atribuída pelos poderosos de Vila Rica, permitindo ao Mestre ironizá‑los em sua arte. O 
escultor personifica o processo de articulação ambivalente entre arte e poder de vários exemplos na 
História: enquanto a arte engrandece o poder e o preserva em uma suposta eternidade, o artista escapa 
aos poderosos, e tentativas de submetê‑lo só lhe atingem na exterioridade, nas condições materiais de 
sobrevivência, e não ao seu trabalho. Semelhante raciocínio é aplicável à música popular e também à 
religião como forma de resistência cultural, a exemplo do Candomblé, a religião dos Orixás.
Xica da Silva e Chico Rei abriram espaço no ambiente das Minas Gerais do ciclo do ouro e diamantes, 
regido pelas regras claras de poder e riqueza, mas que alimentava o avesso de ilegalidades, do qual Chico 
e Xica se valeram. Ela, senhora de escravos ostentando riqueza, vivendo com o tratador de diamantes 
João Fernandes, com quem teve 13 filhos, segundo Junia Furtado (2003), foi transgressora dos padrões 
sociais reservados à mulher negra e pobre.
Chico Rei, na origem Galanga, rei do Congo, com suas festas de Congada e Reisados, valeu‑se 
das normas do sistema para sorrateiramente miná‑lo: foi trabalhar na mina Encardideira e passou a 
surrupiar ouro com a cumplicidade dos demais escravos. Depois de um tempo, conseguiu assumir as 
dívidas do dono da mina e se tornou o primeiro negro dono de mina. Com os ganhos auferidos na 
exploração, passou a comprar a alforria de outros escravos.
Ele ampliou o espaço conquistado no âmbito na sociedade colonial ao criar, na Igreja de Santa 
Ifigênia e Nossa Senhora do Rosário de Alto Cruz, na antiga Vila Rica, em 1747, a primeira festa do 
Congado, no dia de Reis; festa com danças e ao som de percussão na qual o rei do Congo é coroado. Sob 
25
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
a aparência de devoção católica, oculta‑se, preservada, a memória da organização política e da cultura 
tribal. A festa de Reisados espalhou‑se por Minas, provocando conflitos com a Igreja Católica, com as 
elites e os governos.
Sua trajetória exemplifica a tática de subverter as disposições de poder, abrindo espaços ambíguos 
na ordem. “O processo descrito a partir da figura de Galanga/Chico Rei é o da negociação, ou da 
possibilidade de inserção nas instituições, criando a sobrevivência através das brechas do sistema, da 
dicotomia entre a ordem e a desordem” (HABERT, 2005, p. 27).
Sintomaticamente, os quilombos foram organizados em áreas de concentração das atividades 
econômicas, como em Minas Gerais no século XVIII, nas regiões mineradoras de ouro e diamantes, 
como forma de resistência à escravidão e ao sistema de exploração adotado. Grupos guerrilheiros se 
formavam em paralelo aos quilombos, articulados com eles e com os segmentos urbanos da escravaria. 
O comércio de gêneros de primeira necessidade, de sal, de mercadorias, da produção de alimentos em 
pequenas propriedades compreendia uma malha de rotas e trilhas extensas, integrando o Rio Grande 
do Sul, que produzia muares e charque, com o Nordeste, abastecendo as zonas de garimpo com grãos, 
farinhas, carne, açúcar e cachaça. As tropas carregadas com tais produtos eram presas fáceis dos escravos 
fugidos, mal integrados nos quilombos, considerados assaltantes ou guerrilheiros, conforme o ponto de 
vista. Tudo leva a crer que os escravos das vilas, dos povoamentos ou das tropas acabassem por integrar 
tais grupos, ou simplesmente eles fornecessem informações sobre trilhas seguidas.
A violência dos governos só aumentava a resposta igualmente violenta dos grupos que, quilombolas 
ou guerrilheiros, lutavam contra a escravidão. Embora não houvesse um discurso elaborado de 
justificativa para a luta, ela se tornou sistemática, expressando a recusa em permanecer escravo; os 
grupos eram desbaratados, destruídos, mas logo substituídos por outros, apesar da violência crescente 
dos mecanismos de repressão. As penas aplicadas aos escravos capturados iam do enforcamento e 
esquartejamento, às chibatadas em praça pública, envio para as galés por prazo indeterminado, às 
marcas com ferro em brasa no rosto, uso permanente de correntes, máscaras de ferro, e até a proibição 
de usar roupas de seda, mesmo para os libertos,mas os escravos permaneciam em sua luta.
Como o africano fora introduzido no Brasil na qualidade de “fator de produção” da colonização 
portuguesa de base agroexportadora, essa condição original do contingente o tornava sensível 
aos fatores e variáveis internos e externos que alterassem a dinâmica dessa economia, suportada 
basicamente pelo trabalho escravo. Consequentemente, com a autonomia política, a libertação dos 
cativos se torna uma decisão de política econômica das elites nacionais. Dessa perspectiva, Clovis 
Moura (1981) focaliza a abolição da escravatura no jogo de causas externas como a pressão política 
e militar da Inglaterra sobre a economia brasileira, não somente para ampliar o mercado consumidor 
brasileiro para colocação dos produtos manufaturados na órbita do Império Britânico, como também 
do interesse britânico na produção do sucedâneo do açúcar. Essas causas externas repercutiam 
internamente, dando origem, ou mesmo reforçando fatores internos favoráveis à abolição, como: a 
Lei Euzébio de Queirós (de abolição do tráfico); crise da lavoura do açúcar no Nordeste; surgimento 
das indústrias e demanda de trabalho; chegada dos imigrantes para trabalho industrial e agrícola; 
surgimento da lavoura de café, organizada em moldes capitalistas; as campanhas abolicionistas e, 
inclusive, as lutas dos escravos.
26
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Unidade I
Importante assinalar que a incorporação de índios e negros pelo português à economia colonial 
em construção, na qualidade de força de trabalho necessária nas atividades produtivas e na guerra, 
implicou reconhecimento e valorização diferenciada: na guerra, embora a participação fosse obrigatória, 
alguns indivíduos foram distinguidos pela coragem com títulos e privilégios durante a colônia, e com a 
promessa de liberdade depois da independência; aquele contingente dos que trabalhavam nas atividades 
produtivas, nos engenhos, fazendas etc. tem valor econômico, individualmente reconhecido sob a forma 
de preço no mercado, ou no valor da carta de alforria, visto que são, portanto propriedade dos seus 
senhores.
Está subentendida nessa postura a desvalorização de pessoa, tanto dos povos africanos quanto da 
população indígena, como elemento de uma das diferenciações que sinalizam poder, reconstruídas 
na sociedade brasileira em formação, seguindo modelo europeu. Indivíduos desses contingentes são 
tomados sob o critério da utilidade que possam ter em determinada situação ou momento. Esse sentido 
aparece nas discussões do abolicionismo e nas situações de guerra em que emancipação e alforria 
surgem como prêmio aos africanos e brasileiros negros que participassem.
Finalmente, apesar de a população brasileira ser o resultado da combinação de contingentes 
populacionais distintos, não desapareceram as diferenciações que valorizam o sinal de poder na cor 
pele, mas hoje em uma soma algébrica com itens do capitalismo contemporâneo.
2 PeNSAMeNto SocIAl e BrASIl
As páginas anteriores descreveram um processo de mais de cinco séculos, durante os quais a 
população foi assumindo sua nacionalidade brasileira, mas não completamente uma identidade 
brasileira. Na verdade, parece haver maior preocupação em pensar e comentar as diferenças entre os 
vários segmentos da formação social que em reconhecer os elementos culturais que constituem o 
“comum partilhado” de Roraima ao Rio Grande do Sul.
Com certeza, pensar o Brasil é pensar a diversidade, mas também pensar a constituição dessa 
diversidade, processo histórico que abrange a todos. Essa parece ser a grande questão: quem são aqueles 
que se inserem na simples palavra “todos”? A resposta remeteria a uma modalidade de pensamento que 
ultrapassaria as diferenças entre os elementos integrantes como fatos para considerar as condições que 
instalaram a pertinência desses elementos na formação do conjunto de semelhantes.
Já discutimos essas condições nesta obra, embora superficialmente, e agora vamos tratar dos 
assuntos dois quais resultou um processo de individualização do conjunto de população brasileira em 
uma dada organização política, Estado, que correspondeu à dada nacionalidade, brasileira.
Nesse sentido, o pensamento social que se intitulou brasileiro não seria mais pela simples razão de 
ter sido desenvolvido aqui, mas por tomar como objeto o conjunto da população brasileira e por ter 
vínculo originário com essa mesma população. Em outros termos, trata‑se da construção discursiva do 
social a partir da inserção particular na sociedade em formação; o sujeito construtor desse discurso 
estaria munido de certo instrumental teórico, tornando‑o habilitado para superar o nível das simples 
opiniões e impressões para pretender remeter o discurso ao campo de um suposto saber.
27
Re
vi
sã
o:
 V
ito
r -
 D
ia
gr
am
aç
ão
: M
ár
ci
o 
- 
04
/0
8/
20
15
Pensamento social Brasileiro
Nas páginas que se seguem, são examinadas as condições de elaboração desse discurso, pressupostos 
e pretensões que nem sempre o tornaram verdadeiro, bem como algumas variações.
2.1 o pensamento social e a autonomia política brasileira
Várias facetas merecem ser realçadas na análise da constituição do pensamento social brasileiro em 
meio do processo de construção da autonomia política, as quais são comentadas com o foco no processo 
em que ocorreram: a) a peculiaridade do processo brasileiro de rompimento com o vínculo colonial: apesar 
de vários movimentos internos favoráveis, a independência se deu em meio a condições internacionais 
desfavoráveis a Portugal, com a participação do Príncipe Regente e anuência do rei D. João VI; b) o 
discurso político da independência, de fundamento liberal, contraditava a prática conservadora das 
elites e do Imperador instalado no trono brasileiro; c) a constituição de 1824 mantinha um quarto poder 
pessoal e centralizado na figura do Imperador; d) mantinham‑se inalteradas as condições econômicas 
que emperravam a economia brasileira, o trabalho escravo e o acesso à terra; e) a constituição da elite 
patrimonial e a utilização de um discurso liberal escravocrata; f) os mecanismos de assujeitamento na 
preservação da ordem; g) a manutenção da ordem e as raízes do militarismo na política.
A discussão da autonomia política estava nos círculos intelectuais de Minas, Bahia, Rio e Pernambuco, 
e era alimentada com as ideias iluministas de liberdade, independência e racionalidade, pautando‑se no 
descontentamento com o obscurantismo absolutista português.
A Metrópole insistia em uma política de espoliação absolutista, proibia a existência de manufaturas, 
a circulação de livros e exercia censura; as ideias que passam a circular expressam a necessidade de 
mudança e pertencem ao ambiente ideológico europeu do final do século XVIII, e, embora sejam 
historicamente anteriores, são construções das revoluções burguesas.
Conquanto sejam ideias coerentes com o capitalismo europeu, elas são inadequadas para pensar 
uma sociedade em que a maioria da população está fora das relações capitalistas de produção, porque 
constituída por contingentes de agregados e de escravos. Somente algumas áreas oferecem condições 
para circulação daquelas ideias, porque a mineração havia propiciado uma vida urbana e a formação de 
segmentos médios.
Nesse quadro econômico e no esmagamento de uma sociedade que 
parecia apontar para um destino afirmativo está o ambiente capaz de 
proporcionar elementos para compreender a conjuração de Minas em 
1788‑1789, com projetos coerentes e abrangentes de construção de um 
Estado livre, ao qual só faltou o sentido de realidade organizatória, capaz 
de transformar um ideal de mudança em verdadeira mudança. Mesmo 
porque lhe faltou consistência no campo social, detendo‑se antes e apenas 
no político (IGLESIAS, 1989, p. 13).

Continue navegando