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AILLYN DA ROCHA UNGLAUB UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE A LEITURA MUSICAL À PRIMEIRA VISTA REALIZADA POR PIANISTAS FLORIANÓPOLIS – SC 2006 1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC CENTRO DE ARTES – CEART DEPARTAMTENTO DE MÚSICA AILLYN DA ROCHA UNGLAUB UM OLHAR REFLEXIVO SOBRE A LEITURA MUSICAL À PRIMEIRA VISTA REALIZADA POR PIANISTAS Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Piano - oferecido pelo Centro de Artes da UDESC. Orientador: Dr. Guilherme Antonio Sauerbronn de Barros FLORIANÓPOLIS – SC 2006 2 AGRADECIMENTOS Agradecimentos numa monografia para a conclusão de curso se revestem de profundo significado, uma vez que o trabalho intelectual é uma construção coletiva. Agradecer é reconhecer que nosso trabalho é resultado da ação de muitos. Devo a muitos, mas desejo que minhas palavras de gratidão, sejam recebidas como a mínima expressão do que eu gostaria e deveria demonstrar a todos aqueles que, direta ou indiretamente fazem parte desse momento. Agradeço ao meu professor orientador Dr. Guilherme Antonio Sauerbronn de Barros, por ter me ajudado com textos, revisões, enfim, por toda a orientação e apoio que me deu para a realização deste trabalho. Também não poderia deixar de mencionar o nome da professora Dra. Maria Bernadete C. Povoas pelos livros cedidos, bem como, os textos fornecidos pela Mt. Maria Luiza Feres do Amaral. Estes materiais contribuíram para a elaboração deste trabalho. Agradeço aos professores de piano e música de câmara que tive durante a realização do curso de graduação, que me proporcionaram grande 3 conhecimento musical, onde me levaram a pensar na importância de se realizar uma boa leitura à primeira vista. Agradeço aos meus colegas que responderam os questionários, os quais foram fundamentais para a realização deste trabalho. Também agradeço àqueles que sempre estiveram apoiando e dividindo os estudos. À Luana, a Tammy e a Izabela, com quem realizei música de câmara durante esses anos. Não poderia deixar de mencionar minha família, primeiramente meus pais, que mesmo ocupados, arrumavam um tempinho para ler o trabalho que estava sendo desenvolvido, dando sugestões e apoio. Ao meu irmão, com quem brincava muitas vezes de tocar apenas por prazer, onde muitas vezes sem perceber exercitei a leitura à primeira vista, e isso me fez crescer. Ao Henrique que nunca deixou de imprimir e encadernar um trabalho, e sempre esteve ao meu lado me apoiando em todos os momentos. Finalizo agradecendo a Deus por tudo que tem realizado em minha vida. 4 RESUMO Esta pesquisa trata da leitura de música à primeira vista realizada por pianistas. O objetivo geral deste trabalho foi compreender como os estudantes de piano utilizam a leitura à primeira vista em suas atividades musicais e verif icar na bibliografia especializada o que os teóricos dizem sobre o assunto. Para a obtenção de informações para esta pesquisa, foram realizados questionários abertos com os alunos do Ceart/UDESC. Pode-se notar que quando um pianista realiza uma leitura à primeira vista, lança mão de várias ações orgânicas ao mesmo tempo, tanto de caráter cognitivo quanto sinestésico. Ao olhar para a partitura, ele deve ser capaz de captar o máximo de informações possíveis, t ransformar essas informações em ação instrumental e utilizar a audição como auxiliar para saber se o que está sendo tocado condiz com o que está escrito. Através desta pesquisa pode-se concluir que, quando o pianista faz uma análise prévia da partitura que irá tocar, obtém uma interpretação mais satisfatória e completa. A leitura à primeira vista é necessária para se conhecer novas peças e tocar música em conjunto. É uma habilidade musical que deve ser estudada e desenvolvida. PALAVRAS-CHAVE: Leitura à primeira vista. Piano. Memória. Imaginação. 5 ABSTRACT The subject of this research is sight-reading in piano playing. Our aim was to understand how piano students use sight-reading in their daily musical activities. We reviewed the literature on the subject and interviewed the students of the CEART-UDESC. Sight-reading is an activity that relates different kinds of action, cognitively and kinesthetically speaking. The pianist must gather a maximum of information from the score, translate this information into instrumental action and compare the musical results with the written text. We concluded that those who make a previous analysis of the score have better results than those who don’t. Sight-reading is a very useful skill for musicians, specially for those who make chamber music. It is a musical skill that should be studied and developed by every musician. KEYWORDS: Sight-reading. Piano. Memory. Imagination. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .07 1. PROCESSOS COGNITIVOS E A LEITURA À PRIMEIRA VISTA. . .13 1.1. MEMÓRIA VISUAL, MEMÓRIA LÓGICA & LEITURA: A IMPORTÂNCIA DA ATENÇÃO NO ESTUDO MUSICAL.. . . . . . . . . . . . . . .15 1.2. IMAGINANDO E OUVINDO INTERNAMENTE A MÚSICA. .. . . . . . . . . . . .21 2. ASPECTOS TÉCNICOS NA LEITURA MUSICAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .26 2.1. AGRUPANDO AS NOTAS (INTERVALOS E ACORDES).. . . . . . . . . . . . . . . . . .30 2.2. TOPOGRAFIA DO PIANO... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33 2.3. OUTROS ASPECTOS IMPORTANTES NA LEITURA.... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .37 3. ESTUDANTES DE PIANO E A PRÁTICA MUSICAL DA LEITURA À PRIMEIRA VISTA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .50 5. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .54 6. APÊNDICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .56 7 INTRODUÇÃO A leitura musical à primeira vista1 é um tema que está relacionado à minha formação acadêmica e às atividades que venho desenvolvendo. Sendo pianista e aluna do curso de bacharelado em piano, a necessidade de executar músicas que não conheço faz parte do meu quotidiano. Portanto, a idéia central deste trabalho surgiu do seguinte questionamento: Como os estudantes de piano do curso de música do CEART – UDESC têm utilizado a leitura à primeira vista na prática musical? O foco principal deste trabalho esteve centrado nesta habilidade entre pianistas. Este estudo fundamentou-se em uma investigação da bibliografia existente sobre o assunto, a partir da qual se objetivou verif icar de que maneira os métodos e os autores sugerem que se desenvolva a leitura à primeira vista. Na sociedade em que vivemos o espaço para se desenvolver uma carreira de pianista concertista é muito restrito. Por essa razão, o profissional deve buscar alternativas de trabalho, adquirindo diferentes saberes que 1 De acordo com o Dicionár io Oxf ord de Música , a le i tura à pr imeira vis ta é a técnica de executar uma peça mus ical desconhecida t endo como referência apenasa notação musical , sem o auxí l io da audição de uma gravação ou de out ro in térprete que toque a mús ica . Essa prá t ica vem sendo desenvolvida a t ravés de vár ios métodos desde o século XVI, a par t ir do s is tema de hexacordes ut i l izado por Guido D’Arezzo a té os novos si s temas notacionais dos dias de hoje . 8 permitam fazer aquilo que gosta: tocar piano. Neste sentido, a co-repetição é um importante campo de trabalho, pois o piano é um dos instrumentos mais utilizados em qualquer tipo de acompanhamento. Bastante requisitado, o pianista precisa estar apto para tocar qualquer tipo de música. Os problemas implicados na realização da leitura à primeira vista, e que justificam a busca por metodologias, são muitos. Dentre estes, pode-se destacar que o piano é um instrumento harmônico, tocado com ambas as mãos, o que exige a coordenação de movimentos diferentes e simultâneos. Outro fator que dificulta a leitura à primeira vista, talvez o principal deles, é que a partitura para piano é escrita em duas claves diferentes, o que significa que a leitura deve ser feita de forma horizontal e vertical ao mesmo tempo, observando-se a linha melódica e harmônica. Agay apresenta como essa atividade ocorre: Ler e tocar música à pr imeira vis ta é o resul tado de uma sér ie de funções complexas do corpo: 1)Os olhos devem olhar a nota na par t i tura ; 2)O cérebro interpre ta a imagem recebida em dois níve is , audit ivo e tá t i l , e conseqüentemente tr ansmite o impulso muscular adequado para o conta to no tec lado dese jado; 3) As mãos e dedos tocam, tr ansformando a impressão visual e audi t iva em som. 2 Esta prática é muito utilizada em grupos musicais, no acompanhamento vocal e nas reduções3 orquestrais dos concertos para instrumento solo. Para que o pianista seja capaz de efetuar essa ação, necessita estar familiarizado com o instrumento e ter controle sobre alguns aspectos técnicos musicais, os quais este trabalho se propõe a investigar, com o propósito de estabelecer metodologias que possam favorecer seu desenvolvimento. 2 AGAY, Denes. Sight Reading: The Basics, Step by Step. In: Teaching P iano, v.1. Uni ted Sta te s of America: Yorktown Music Press, Inc. 1981, p.197. 3 REDUÇÃO: É o te rmo usado para a adaptação da par t i tura or igina l de orques tra para piano. 9 Para Gabrielsson a leitura à primeira vista se dá por meio da combinação das atividades motora, visual e auditiva4. A visão deve reconhecer o grupo de notas, ritmo, dinâmicas, e outros elementos musicais que estão escritos, enquanto o sistema motor transforma essa informação escrita em ação através dos dedos, produzindo o som; através da audição, o executante percebe se aquilo que está sendo tocado está de acordo com o que está escrito. Para que se tenha uma execução satisfatória à primeira vista, o intérprete, através de seu conhecimento musical, deverá saber visualizar o que é mais importante a ser tocado, enquanto a audição estará atenta ao resultado sonoro obtido. Embora este trabalho tenha seu enfoque na leitura à primeira vista para estudantes de música em estágio avançado, não se deixou de estar atento ao fato de que esta é uma atividade cognitiva desenvolvida desde o primeiro contato com a notação musical. Kaplan, que estudou os processos cognitivos e sua relação com as habilidades motoras, conclui que: Desde que as cé lulas cerebra i s, a t ravés dos nervos, t ransmitem impulsos aos músculos e estes obedecem imediatamente , está c laro que o cont role dos movimentos es tá no s i stema nervoso centra l . O desenvolvimento das habi l idades motoras dos diversos t ipos – pa ra atender à s exigênc ias musica is de uma par t i tura – consi ste, pr incipa lmente, em melhorar a rapidez e precisão com que o s i s tema nervoso centra l coordena a a t ividade. 5 As idéias de Kaplan6 e Kochevitsky7 sobre os processos cognitivos e a leitura à primeira vista fundamentam o primeiro capítulo, onde esta temática é 4 GABRIELSSON, Alf . Music Performance research at the mi llennium . In: Psychology of Music, Nott ingham, U.K., v. 31, n.3, 2003. 5 KAPLAN, José Alberto . Teoria da Aprendizagem Pianíst ica . 2 ª ed. Por to Alegre : Editora Movimento. 1987, p . 20. 6 KAPLAN, 1987. 7 KOCHEVITSKY, George. The Art of Piano Play ing: A Scient if ic Approach. U.S.A: Summy-Bichard Company. 1967. 10 apresentada. Como parte integrante desta seção, é justif icada teoricamente a importância da atenção, da memória e da imaginação sonora no estudo musical, e como os pianistas podem usufruir destas habilidades em sua prática. Além de ter familiaridade com a topografia do teclado, é igualmente importante para a realização da leitura à primeira vista que, antes de começar a tocar, o pianista observe atentamente a peça e identifique seu andamento, título, fórmula de compasso, tonalidade e outras características específicas, a f im de obter um conhecimento prévio da obra. A análise dessas questões faz parte do segundo capítulo deste trabalho, e tem como base os estudos de Last8; Sá Pereira9; e Seashore10. Já o terceiro capítulo responde a questão condutora deste estudo. Esta seção apresenta o resultado das entrevistas com os alunos do curso de Bacharelado em piano do CEART/ UDESC e a reflexão baseada na discussão teórica dos autores estudados no primeiro e segundo capítulos. A abordagem metodológica desta pesquisa fundamentou-se nos princípios da abordagem qualitativa de pesquisa de acordo com Lüdke e André11. Estes autores determinam ser quase impossível entender o comportamento humano sem uma compreensão do quadro referencial, no qual os indivíduos explici tam seus pensamentos, sentimentos e ações e que permite identificar certos padrões e ações sociais. A pesquisa qualitativa tem no 8 LAST, Joan. The Young Pianist . Melbourne, NY: Oxford Universi ty Press . 1972. 9 SÁ PEREIRA, Antonio. Ensino Moderno de Piano. São Paulo: Ricordi . 1964. 10 SEASHORE, Car l E. Psychology of Music . New York: Dover Publ ica tions, Inc . 1967. 11 LÜDKE, Menga & ANDRÉ, Mar li . E. D. Pesquisa em Educação: Abordagens qualitat ivas . 6ª . Edição. São Paulo: EPU, 2001. 11 ambiente natural sua fonte direta de dados e no pesquisador seu principal instrumento. O ambiente em que se desenvolveu este trabalho investigativo foi o Departamento de Música da UDESC. A escolha dessa instituição se deve ao fato de a autora deste trabalho estar efetuando sua formação acadêmica nessa Universidade. Os procedimentos metodológicos de investigação utilizados neste estudo foram norteados pela pesquisa exploratória, que, Tem como ob je t ivo proporc ionar maior famil ia r idade com o problema , com vis tas a torná- lo mais expl íc i to ou cons truir h ipóteses. ( . . . ) Essas pesquisas envolvem levantamento bibliográf ico, entrevis tas com pessoas que t iveram exper iências prá t icas com o problema pesquisado e anál i se de exemplos que est imulem a compreensão. 12 O exame da bibliografia relativa ao tema enfocado nesse estudo compôs uma etapa da estratégia metodológica. De acordo com Lakatos e Marconi, a pesquisa bibliográfica “abrange toda a bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, teses, material cartográfico, até meios de comunicação oral.”13 Portanto, a revisão bibliográfica contribuiu para a obtenção de informações sobre como vários autores discutem e tratam esse assunto, além de proporcionaraos interessados acesso à bibliografia especializada. Como a leitura à primeira vista é um tema de origem prática, considerou-se importante que esta pesquisa incluísse dados empíricos. Portanto, foram aplicados instrumentos metodológicos para a coleta de dados 12 GIL, Antônio Car los. Como Elaborar Projetos de Pesquisa . 3.ed. SP. : Atlas , 1996. p .41 13 LAKATOS Eva Maria & MARCONI, Marina de Andrade . Fundamentos da Metodologia Científ ica . 4 a . edição. São Paulo: Atlas , 2001, p . 44. 12 por meio da elaboração de questionários abertos com pessoas que tiveram experiências práticas com o problema pesquisado. A pesquisa foi realizada com alunos do bacharelado em piano do Departamento de Música da UDESC, a fim de coletar informações sobre como estes estudantes desenvolvem e utilizam a leitura à primeira vista. Com o objetivo de conhecer a problemática que deu origem a este trabalho, foi elaborada entrevista semi-estruturada através de questionário aberto conforme propõem Lüdke e André14. O bacharelado em piano da UDESC é cursado em nove fases. As entrevistas semi-estruturadas por meio de questionários abertos foram respondidas por alguns estudantes desta modalidade de ensino de diversas fases. Como nem todos concederam as informações solicitadas, este trabalho foi feito com uma amostra dos acadêmicos. Para que o estudo não se transformasse meramente em uma justaposição de partes ou compilação de dados encontrados, procurei estar atenta para o fato de que, para se realizar uma pesquisa, “é preciso promover o confronto entre os dados, as evidências e as informações coletadas sobre determinado assunto e o conhecimento teórico acumulado a respeito dele .”15 No final do trabalho, foi efetuada uma análise comparativa dos materiais recolhidos, das leituras e das entrevistas. Através dessa comparação pode-se refletir sobre a relação entre teoria e prática, o que os estudiosos e teóricos dizem sobre esse assunto e o que os alunos têm feito no estudo diário. 14 LÜDKE & ANDRÉ. 2001, p .34. 15 LÜDKE & ANDRÉ. Loc.ci t . 13 1. PROCESSOS COGNITIVOS E A LEITURA À PRIMEIRA VISTA. A leitura à primeira vista é uma atividade que coordena vários tipos de movimentos comandados pelo cérebro, o que torna o ato de tocar piano extremamente complexo. Visão, audição e tato são os três sentidos que devem estar trabalhando simultaneamente na prática instrumental. Quando o pianista inicia a leitura da peça, as mensagens transmitidas ao cérebro precisam ser rapidamente processadas. No mesmo instante em que os olhos captam a imagem, esta já deve ser decodificada e transmitida para os músculos dos braços e das mãos. O ouvido, por sua vez deverá avaliar se o som emitido está de acordo com aquilo que a visão reteve da imagem. Percebe-se então que a leitura pianística é um trabalho que utiliza bastante a mente. Kaplan afirma que, “a didática do ensino do piano deveria se preocupar menos em treinar os músculos e mais em exercitar a mente dos jovens alunos.”16 Nota-se que o leitor precisa ter um determinado contato mental com a peça antes do sinestésico, a f im de obter um resultado mais satisfatório. 16 KAPLAN, José Alberto . 1987, p. 20 14 Segundo Leimer, “a f ixação exata da imagem gráfico-musical através do trabalho mental para o alcance da técnica, é o primeiro problema a ser resolvido.”17 Ou seja, antes de tocar a peça o leitor deveria memorizá-la visualmente, e, através de sua experiência prévia, imaginar o som correspondente ao que está vendo. Sá Pereira concorda com este autor ao dizer que: Trate , pois , de, antes de tocar , ouvir menta lmente o efe i to sonor o da peça, imaginando as diferente s ‘par tes’ como sendo cantadas por diferente s vozes, ou tocadas por instrumentos diversos , e procure combiná- la s com o mesmo cuidado com que um regente de orques tra ensaia separadamente, e depois combina e funde diversos na ipes de instrumentos a té consegui r perfei to equi l íbr io sonoro. 18 Considerando que se trata da leitura de uma partitura com a qual o indivíduo nunca teve qualquer contato, a atividade mental consciente se torna muito importante19. Através da análise lógica, o indivíduo será capaz de formar a imagem daquilo que irá tocar, antes mesmo de ter qualquer contato com o instrumento. Hoffmann, por sua vez, declarou que: “a mais completa imagem (acústica) da partitura deve estar no cérebro, antes que possa ser expressa através das mãos. Tocar é simplesmente a expressão manual de algo que o executante conhece (isto é, tem na mente!).”20 Kaplan complementa: “não devemos concluir que basta possuir uma imagem clara da partitura para dominá-la em termos de desempenho.”21 A leitura à primeira vista dificilmente dar-se-á de forma impecável, uma vez 17. LEIMER, Karl . Rítmica, Dinámica, Pedal . Argentina : Ricordi , 1984. Tradução minha . 18 SÁ PEREIRA, Antônio. 1964, p.99. 19 Não se deve desmerecer que o e studo das obras mus ica is em qualquer instrumento, exige um traba lho menta l para real izar a performance da forma mais sa t i sfatór ia , coe rente e f ie l ao que o composi tor escreveu, est i lo, e época. Mas neste trabalho está sendo f r i sada a importância da anál i se especif icamente para a real ização da le i tura à pr imeira vist a. 20 HOFFMANN. Joseph. Apud. KAPLAN, José Alber to. 1987, p. 31. 21 KAPLAN, José Albert . 1987, p .32. 15 que o executante apenas imaginou a peça e nunca a estudou mas, mesmo assim, é importante que ela seja realizada da melhor forma possível, de modo que o ouvinte possa ter uma boa idéia da música e das intenções do compositor. Também é importante mencionar que a leitura à primeira vista permite ao intérprete conhecer o maior número possível de obras, e, desse modo, ter contato com estilos e linguagens diferentes e contrastantes de diversos compositores e períodos. Mesmo que não chegue a estudar este repertório em profundidade, ele ganhará familiaridade com a forma e a estrutura das obras. 1.1. MEMÓRIA VISUAL, MEMÓRIA LÓGICA & LEITURA – A IMPORTÂNCIA DA ATENÇÃO NO ESTUDO MUSICAL. Embora possa parecer um paradoxo, a utilização da memória na prática da leitura à primeira vista é fundamental. Ela possibilita ao indivíduo conhecer a peça mesmo antes de tocá-la. Para compreender este procedimento, é importante conhecer os tipos de memória e a forma como ela pode ser utilizada no primeiro contato com uma peça desconhecida. Kaplan chama a atenção para a relação do uso da memória com a aprendizagem. Ele distingue quatro tipos de memória22: memória visual, 22 Nes te t rabalho o enfoque se dará apenas a dois t ipos de memória , sendo e la s, a memória visual e a memória lógica, já que a memória s inestésica é aquela que se baseia naqueles movimentos que já foram aprendidos ou tr einados, que é mais ut i l izada na performance e não tanto na lei tura à pr imeira vis ta; e a memória audi t iva , por ser aquela que se ut i l iza daquilo que já lhe é conhecido, não se torna tão út i l na l ei tura à pr imeira vis ta, pr inc ipalmente se o le i tor nunca ouviu a peça. No caso da lei tura a audição se rá de grande 16 memória auditiva, memória sinestésica, memória lógica. Para ele a memória visual retém com certa facilidade as coisas que um indivíduo vê; memória auditiva é a que armazena as imagens sonoras; memória sinestésica é a memória do movimento, podendo estar ligadadiretamente às sensações proprioceptivas; memória lógica é “aquela em que, por um esforço voluntário, os fatos são fixados, evocados ou reconhecidos. Intervém aqui a compreensão inteligente, a crítica e a escolha dos dados.”23 De acordo com este autor, em qualquer ação intelectual para adquirir novo conhecimento, o aprendiz ut iliza um ou vários t ipos simultâneos de memória. Uma vez que a leitura à primeira vista é um ato de aprendizagem, o uso da mesma é indispensável para o músico. Vejamos como isso ocorre: Quando o pianista recebe uma partitura nova e necessita tocá-la sem qualquer estudo minucioso prévio, ele precisará recorrer a hábitos mentais obtidos anteriormente. Muitas vezes o instrumentista senta-se para tocar sem qualquer análise prévia da peça. Neste caso, a probabilidade de não obter um resultado sonoro satisfatório, é maior do que se ele tivesse buscado auxílio nos vários tipos de memória propostos por Kaplan. De acordo com este autor, cada memória tem sua função, mas todas trabalham em conjunto no momento em que a pessoa as utiliza. França define a memória visual como sendo “aquela usada pelo pianista que retém, pela visão, um texto musical, e o conserva na retina, como se, ao fechar os olhos, continuasse a ‘ver’ a imagem do mencionado texto ou f rase musical.”24 ut i l idade para perceber se o que é tocado condiz com o que está escr i to, mas não cre io que i sso es te ja diretamente relac ionado à memória audi t iva . 23 Cf. KAPLAN, José Alber to. Ibidem, p. 69. 24 FRANÇA, Neusa . O piano em Pauta . Brasí l ia : Thesaurus, 2000. 17 Tomando como base minha própria experiência, acredito que a memória visual, empregada simultaneamente com a memória lógica, é de grande auxílio para a realização de uma boa leitura à primeira vista. Ao olhar e analisar a peça, o indivíduo memoriza aquilo que está escrito, deixando a peça de ser completamente desconhecida. Pode-se perceber, portanto, que a memória visual e a memória lógica são utilizadas em conjunto, pois através do segundo tipo mencionado é possível reter de forma mais eficiente aquilo que o indivíduo está vendo. Estes estudos indicam como é importante o uso da reflexão lógica para facilitar a memorização da música antes de tocá-la. Uma vez analisada em linhas gerais, o músico poderá voltar sua atenção para o instrumento, preocupando-se apenas em tocar as notas topograficamente corretas; pois ele já gravou antecipadamente em sua mente os elementos essenciais que compõem a música. Ou seja, a estrutura, a forma, os intervalos e os dados mais pertinentes daquilo que será executado. No entanto, é necessário que, em peças mais complexas, se recorra a um estudo analítico e reflexivo mais profundo do que aquele que é feito numa leitura à primeira vis ta, pois uma análise rápida, feita num primeiro momento, não permitirá ao individuo a compreensão necessária para que este execute toda a complexidade de determinadas peças. A respeito da reflexão Leimer afirma: Frequentemente é mui to fác i l encontrar pontos de referência para o uso da reflexão, mas na tura lmente exis tem também trechos que 18 apresentam grande dif iculdade e são por i sso, mui to dif íce is de gravar na memór ia . 25 Na seqüência de seu argumento, este autor confirma o valor que confere à reflexão, dizendo que, apesar de sua importância e vantagens, ela é pouco reconhecida e raramente utilizada. Segundo seu ponto de vista, a prática da análise musical propicia a memorização e a leitura ao mesmo tempo. Para interiorizar este hábito é necessário realizar este trabalho com muita atenção, até porque a concentração é algo indispensável para a leitura à primeira vista. Kaplan reforça este ponto ao reconhecer que a música se fixa na consciência de forma rápida se o esforço de concentração voluntária e consciente for realizado com grande intensidade26. Em suma, a concentração é essencial para quem lê à primeira vista, pois através de uma análise atenta, ainda que rápida, o indivíduo poderá imaginar o que será executado no instrumento, obtendo a f ixação parcial do material antes mesmo de tocá-lo. Também é possível analisar a peça através de associações por analogias e diferenças. Para obter tal resultado é necessário analisar atentamente o conjunto de elementos musicais que estão escritos na partitura, e reconhecer, a partir de outras peças anteriormente tocadas, situações análogas que permitam determinar qual o dedilhado mais conveniente a ser usado, bem como outros detalhes que fazem parte da peça. Assim, o executante estará utilizando, principalmente, a memória lógica27. Kaplan deixa claro que através da memória lógica é possível ler toda a partitura e decorá-la sem que o pianista tenha tido qualquer contato com o 25 LEIMER. Karl . 1984, p .7. Tradução minha . 26 KAPLAN, José Alberto . 1987, p .70. 27 KAPLAN, José Alberto . 1987, p .78 e 79. 19 instrumento. Ou seja, o estudante irá analisar a peça, observando a tonalidade, a harmonia, os intervalos, o ritmo, as notas. Essa atividade depende da experiência prévia do instrumentista para reconhecer e reter todas as informações da peça musical. O Novo Dicionário Aurélio define a memória como “a faculdade de reter as idéias, impressões e conhecimentos adquiridos anteriormente.”28 Os estudos de Maria Thereza de Jesus Oliveira estão de acordo com a posição de Kaplan. Para ela o indivíduo reterá na mente o essencial do que será tocado num primeiro momento, somente se estiver bastante atento a todos os detalhes que estão na partitura, e esclarece que a atenção deve estar sempre presente, para gravar e f ixar a impressão sonora, pondo em atividade a memória visual e auditiva29. Mas isso não ocorrerá, caso o intérprete se posicione ao piano e comece a tocar de forma desatenta e desconcentrada, sem antes fazer uma leitura mental da peça. Os estudos de Kaplan e Oliveira deixam claro que, para se obter uma boa memória visual e lógica, é necessário fazer uso da concentração e da atenção, pois, desta forma, o pianista captará uma maior quantidade de elementos musicais essenciais para entender auditivamente a peça. Viana concorda com a posição de Kaplan e Oliveira sobre a importância da reflexão na atividade musical ao se referir à leitura, e acrescenta: “Os 28 Novo Dic ionár io Aurél io. Apud FRANÇA, Neusa. 2000, p .127 29 OLIVEIRA, Maria Thereza de Jesus. Da importância do desenvolvimento da atenção no aprendizado da técnica pianíst ica. Tese (Docênc ia l ivre de P iano) – Escola Naciona l de Música, Universidade do Brasi l , Rio de Janeiro, 1953, p.27. 20 animais aprendem pelo processo de ensaio e erro. O homem, além desse processo, tem outro que lhe é exclusivo: a aprendizagem pela reflexão, isto é, a que é dirigida pelo pensamento (juízo, raciocínio e imaginação criadora).”30 França menciona que, a memória não é inata, mas pode tornar-se excelente se bem treinada e desenvolvida. Aqui se pode acrescentar que não só a memória, mas qualquer atividade especializada requer bastante treinamento. É necessário que o cérebro e todos os sistemas do corpo, quer sejam de caráter visual, auditivo, muscular, mental ou quaisquer outros, se acostumem a desenvolver determinada at ividade. Neste caso, nos referimos ao trabalho de memorização que precede uma leiturafeita diretamente no instrumento. Conclui-se, portanto que existe uma forte relação entre a memória e a leitura. Segundo Oliveira, “a memória tem um alto valor na vida da espécie humana. Ela valoriza, desenvolve e enriquece a inteligência de maneira notável.”31 Com isto é possível concluir que a leitura à primeira vista não é apenas a mera execução de uma habilidade profissional ou estudantil , mas se bem desenvolvida e exercitada, com bastante concentração e atenção, irá colaborar para aguçar a capacidade mental do indivíduo. 30 VIANA, Vi lma A. Santos. O siste ma neuro-muscular em função da virtuosidade pianíst ica. Tese (Docência l ivre de P iano) – Escola Nacional de Música, Unive rsidade do Brasi l , Rio de J aneiro, 1956, p. 19. 31 OLIVEIRA, Mar ia Thereza de Jesus, 1953, p.27. 21 1.2 IMAGINANDO E OUVINDO INTERNAMENTE A MÚSICA A audição interna é um dos fatores que auxiliam o músico a imaginar como uma música desconhecida deverá soar. A prática de ouvir internamente o conjunto de elementos presentes na partitura pode ajudar durante a leitura à primeira vista, pois assim, a música, não será tão desconhecida ao intérprete, pelo menos mentalmente. Esta consideração encontra embasamento nos estudos de pesquisadores, como Leimer (1987), Kochevitsky (1967) Friedberg (1993), e Seashore (1967). Embora estes autores abordem a questão da imagem e do ouvido interno em contextos distintos, deixam claro a sua importância para a análise de uma partitura musical. Leimer (1987) comenta que, antes de começar o estudo de qualquer peça, o pianista deveria ter em sua mente uma imagem completa da partitura. Para isso torna-se necessária a utilização da imaginação. O indivíduo será capaz de reconhecer os elementos musicais que aparecem na peça se for capaz de “cantar” mentalmente a melodia e a harmonia que aparecem na música. Utilizando este método reiteradas vezes, criar uma imagem mental de qualquer música torna-se um hábito natural para o pianista. Assim como para um artista plástico é natural imaginar cores e formas antes de desenhá-las, um músico deveria ter melodias e canções em sua mente, antes de executá-las. Para Seashore essa atividade não requer grande esforço por parte do 22 indivíduo, pois “o músico vive num mundo de imagens por vezes tão vivo, que chega a um ponto em que isso se torna uma ilusão natural.”32 O piano é um instrumento com uma vasta gama de sonoridades, o que representa um incentivo à exploração dos sons. No momento em que uma pessoa inicia suas aulas de música, começa a arquivar em sua mente desenhos melódicos e, com isso, imagens sonoras. É muito importante o método pelo qual alguém foi iniciado no seu aprendizado musical, pois disso dependerá sua habilidade na criação de estratégias próprias para a realização da leitura. Quem não teve uma boa iniciação musical, deveria invest igar maneiras pelas quais pudesse completar as lacunas que não foram preenchidas no seu estudo inicial, ampliando assim suas condições técnicas. Entretanto qualquer que seja a estratégia de leitura desenvolvida, deve- se levar em conta que ela envolve a imaginação. Beethoven compôs muitas peças estando totalmente surdo, o que pode ser explicado pelo fato de que, enquanto ainda podia ouvir, soube cultivar e educar uma boa audição interna. O que o ajudou foi a imagem musical auditiva que tão claramente estava guardada em sua mente. Embora não seja o foco deste estudo a temática sobre composição e sim a leitura, convém lembrar que a audição interna e a imaginação sonora parecem ser sinônimas33, contribuindo não só para a composição, mas também para a identificação auditiva dos elementos musicais, favorecendo a leitura. Se o pianista tiver um ouvido interno bem treinado será mais capaz de 32 Seashore , 1967, p.5 33 Não há uma def inição exa ta que di ferencie o ouvido interno da imaginação, mas pode-se perceber que eles andam em conjunto, sendo dif íc i l a separação de ambos, tendo a imaginação como um concei to mais abrangente, responsável pe la produção de imagens, desenhos e melodias , enquanto que o ouvido interno se a tém à sonoridade produzida. 23 perceber se aquilo que está tocando mesmo à primeira vista está soando corretamente ou não. Para Friedberg: “Todo pianista dever ia t rabalhar com um sól ido cont role audi t ivo da música pelo ouvido interno, o que s igni f ica cont inuamente imaginar o som da mús ica mesmo ante s de ser tocada . Larson e Van Auken enfa t izam que ‘ tr einar o ouvido interno dos estudantes é tão importante quanto tre inar suas mentes para responder precisamente e le r a notação. Em úl t ima instância’ , e les ins istem, ‘o ouvido interno precisar ia ser o l íder dos músculos’ , não vice- versa, e ‘ estudantes não dever iam apenas prat i car tocando uma peça, e les dever iam pra t icar imaginando uma peça’ .” 34 A imaginação deve servir para converter o abstrato em real, pois a música é viva, ela só acontece se alguém a realizar, e de nada valem símbolos escritos num papel se ninguém der significado a eles; para o espectador, o que importa é aquilo que ele irá ouvir, e não o que está escrito. Através da “performance” as partituras deixam de ser apenas papel e tornam-se aquilo que todos apreciam, que é a música. Como já foi dito, a imaginação ajuda a antecipar os fatos que estão por vir. Seashore faz menção à imagem tonal, já que o ensino da música tonal está muito mais enraizado do que o de outras correntes musicais, como a modal, e a dodecafônica. Para ele: É a fami liar idade com essas imagens que faz da memória cogni t iva uma música real . Assim, a imagem tonal é condição do aprendizado, da assimi lação, da recapitulação, do reconhec imento e da antecipação de fa tos musica is . Re tirar a imagem da mente musica l s igni f ica pr ivá- la de sua própr ia e ssência .35 Para Seashore, o músico vive num mundo tonal, onde a completa e exata imagem mental se torna uma das mais notáveis características da mente musical. Mas, um pianista contemporâneo não toca apenas música tonal, 34 FRIEDBERG, Ruth C. The Complete Pianist: Bod y, Mind, Synthes is . Me tuchen, N.J ., & London: The Scarecrow Press , Inc, 1993 , p.54. Tradução minha . 35 Seashore, 1967, p .6. Tradução minha . 24 existem outras correntes musicais. É necessário, portanto, que o indivíduo tenha contato com um vasto campo de elementos musicais, de modo a desenvolver uma audição interna bem treinada para qualquer t ipo de situação, quer seja tonal ou não. Kochevitsky afirma que “a atividade motora no piano deve ser comandada pela atividade da nossa mente, a qual se dedica exclusivamente a contemplar a progressão musical, quase que simultaneamente, primeiro na imaginação, e, depois, na execução, como sonoridade real que deve ser cuidadosamente controlada.”36 Nota-se que a imaginação não apenas ajuda a conhecer a música antes de tocá-la, mas também a pensar quais movimentos serão utilizados no momento da execução da peça. Através da imaginação analítica pode-se perceber se ocorrerão saltos, arpejos, escalas, se a música é homofônica ou contrapontística. Kaplan concorda que o músico deve ouvir internamente e imaginar como deve soar a passagem ou trecho e, a partir daí, pensar, nos diversos passos da execução instrumental, imaginando, ao mesmo tempo, as sensações sinestésicas que decorrerão da ação. Em suma, quando o músico está imaginando a peça que irá ser tocada, principalmente em se tratando de uma primeira leitura, faz uso da inteligênciaanalítica para perceber o que irá ocorrer durante a execução da peça. Kochevitsky afirma que, “a inteligência, com a ajuda da imaginação abstrata, relata o desdobramento da imagem musical pela percepção, elabora a análise e a síntese da construção formal.”37 A imaginação é responsável por ‘construir’ 36 Kochevi t sky, 1967, p .21 37 Kochevi t sky, 1967, p.23. 25 a música na mente do indivíduo antes mesmo de ser tocada. A melodia deixa de ser apenas uma idéia vaga, ela se torna algo concreto de se ouvir, graças ao trabalho mental de identif icar a estrutura da peça. Se, como disse, o músico vive num mundo auditivo, isso é apenas uma meia verdade, porque este se atém também a atividades motoras, sinestésicas, e visuais. Esse conjunto de atividades torna a música capaz de ser interpretada e ouvida. Quando se trata de música, fala-se de som, e este está ligado à audição, pois, aquilo que o olho vê e os dedos tocam é o que irá produzir o produto final, uma música para se ouvir. 26 2. ASPECTOS TÉCNICOS NA LEITURA MUSICAL À PRIMEIRA VISTA. Nesta seção são discutidos os aspectos técnicos implicados na leitura à primeira vista, pois é importante que o músico leitor domine a notação musical e a topograf ia do teclado, e seja capaz de perceber frases melódicas sem perder a pulsação rítmica. Para entender como o executante articula essas práticas entre si, deve-se levar em conta a experiência prévia de cada um. Segundo Kaplan, a forma como o pianista realiza a leitura depende, basicamente, dos seus conhecimentos e experiências prévias. Podemos reconhecer diferentes tipos de leitores: há aqueles que reconhecem notas isoladas e encontram sua localização no teclado; outros já dominam informações sobre intervalos melódicos e harmônicos e percebem o desenho melódico como, por exemplo, uma sucessão de duas 3ª ascendentes seguidas de cinco sons descendentes por grau conjunto; há ainda aqueles que possuem conhecimentos elementares de harmonia tonal (acordes, cadências, notas ornamentais) e conseguem uma rápida fixação do trecho a partir da análise de sua estrutura harmônica. Kaplan comenta: 27 A técnica de execução de um instrumento mus ical – notadamente a do piano – se const i tu i em um dos a tos mai s complexos , do ponto de vis ta da coordenação psicomotora , real izados pelo ser humano. No seu aspecto mais amplo, pressupõe o conhecimento e a compreensão do valor s imból ico de sina is (notas , va lores, etc .) e sua rea l ização a través de uma séri e de movimentos sucessivos de grande precisão que exigem uma ordem no tempo e uma or ientação e e struturação no espaço.38 A atividade de tocar piano, complexa por si só, coordena habilidades mentais e motoras ao mesmo tempo. A automatização dos movimentos e sua relação com a visão e a audição, pressupõem o uso de todos os elementos técnicos estudados até então: posição da mão, passagem de dedos, inversão de acordes, tríades, etc. A abordagem de uma partitura desconhecida dependerá dos hábitos que o músico criou para si; se ele considera mais importante a melodia de uma peça, muito provavelmente dará ênfase à frase musical; já um outro que tem mais facilidade em construir os acordes, dará mais importância ao aspecto harmônico. Kotchevitsky foi um pioneiro no estudo do condicionamento de hábitos na atividade pianística e suas idéias estão presentes em trabalhos posteriores, de outros autores: Atos habi tua is – são os a tos com os quai s estamos famil iar izados, acostumados , que já automat izamos; exemplo: andar , fa lar, escrever , ler , e tc. A perfe i ta educação, nada mai s é que um processo de formação de hábi tos . O hábito é semelhante à maneira de agi r do ref lexo, porém é aprendido, sendo inic ia lmente consciente e tornando-se ul ter iormente inconsc iente. O hábi to bem real izado é tal qual um ref lexo, tem a mesma pront idão e rapidez. 39 Hábitos e experiências são adquiridos desde o início do aprendizado musical: se o aluno aprende apenas a improvisar, poderá ter problemas de 38 KAPLAN, José Alberto . 1987, p .66. 39 OLIVEIRA, Maria Thereza de Jesus. 1953, p.22. 28 leitura, pois este aspecto não foi explorado ou incentivado. Também pode acontecer do pianista não ter sido estimulado a ler música à primeira vista de forma rápida e eficiente. Tudo depende dos estímulos em sua iniciação musical. Naiberger afirma que, “As atitudes mentais influem, sobretudo na f ixação das experiências individuais, sem as quais, não há aprendizagem, sendo que a primeira experiência servirá de base às que vierem depois.”40 Seashore relaciona o processo de aprendizagem musical a dois aspectos fundamentais: à aquisição e retenção da informação, e ao desenvolvimento de habilidades musicais. Ou seja, enquanto se desenvolve musicalmente, o aluno adquire informações e experiências, e com isso consolida certas habilidades musicais que servirão de base para toda atividade que for realizar, seja performance, improvisação, leitura ou um simples estudo. Na leitura à primeira vista é importante dominar não apenas a leitura das notas isoladas, mas também o contexto musical da peça, a obra como um todo. Para tanto, é necessário buscar um conhecimento histórico e estilístico dos períodos, dos compositores e da própria performance, dos tipos de toque, de pedalização, etc. Dada à especif ic idade da l inguagem musica l – não conce itual – a percepção do ‘ signi fi cado’ de uma obra se dá em níveis di ferentes da compreensão, por exemplo, de um texto l i terár io. Assim, o entendimento de um trecho musical ocorrerá a par t ir de premissas dis t in tas e dependerá especif icamente da exper iência mus ica l prévia e do desenvolvimento das e struturas operac ionais ( sensór io- motoras e mentais) do a luno. 41 Neste sentido, a leitura à primeira vista é uma atividade interdisciplinar: a história da música, a harmonia, a análise, a percepção 40 NAIBERGER, Esther . Da Pesquisa Técnica à Real ização Musical . Tese (Cátedra de P iano) – Escola Naciona l de Música , Universidade do Brasi l , Rio de Janeiro, 1965, p.15. 41 KAPLAN, José Alberto . 1987, p .73 e 74. 29 musical, a prática de conjunto e a técnica do instrumento são indispensáveis ao bom leitor, pois esse conjunto de saberes lhe propiciará um entendimento mais completo e eficaz da obra como um todo. Para Kaplan, “A transferência da aprendizagem é a possibilidade de aplicar, em uma nova situação, conhecimentos, hábitos, métodos, etc. , adquiridos em outras circunstâncias42”. O indivíduo percebe que uma mesma solução, que o permitiu superar as dificuldades de um determinado problema, serve para vencer as que se lhe impõem em uma outra situação. Seashore comenta que ao entrar em contato com uma obra desconhecida, o pianista deve fazer primeiro uma rápida vistoria das características gerais da peça, a fim de reconhecer elementos que lhe são familiares e, a partir daí, perceber quais traços são novos. Ao comparar e associar aquilo que já domina com o que lhe é desconhecido o músico confere significado aos novos sinais, e se torna capaz de realizar a leitura à primeira vista. Quanto maior o domínio da técnica, e mais interiorizada a musicalidade no pianista, mais f iel precisa e exata será sua leitura musical. 2.1. AGRUPANDO AS NOTAS (INTERVALOS E ACORDES). Seashore, Friedberg e Agay, fazem uma comparação entre a leitura de palavras e a leitura de música. Todos eles comentam que, a alfabetização de42 KAPLAN, José Alberto . 1987, p .84. 30 uma criança começa pelo aprendizado das letras do alfabeto; no caso da música, as letras são as notas isoladas. Depois ela aprende a juntar as sílabas - que, em música poderiam ser os intervalos - e a formar palavras inteiras - os acordes. A criança então aprende a formar frases e a compreender um parágrafo inteiro. A execução de uma peça musical inclui, além da visão e da fala, uma intensa atividade motora, cujo objetivo é produzir sons. Apesar disso o princípio de ler palavras e música é o mesmo. A le i tura de mús ica, segundo a exper iênc ia deste autor , é muito parec ida com a lei tura de palavras , com a adição da resposta s inestésica (corpora l) que acompanha a tradução dos s ignos musica is. Le itores rápidos de palavras tendem a ler r apidamente uma música e vice-ve rsa . Es tudos recentes dos padrões de movimento dos olhos , cujo ob jet ivo é me lhorar a ve loc idade da lei tura , propuseram concei tos que podem ser adaptados aos problemas da le i tura à pr ime ira vis ta no piano. 43 A princípio deve-se aprender a ler intervalos simples, como terças, quintas, segundas, cuja distância é pequena e que cabem em posição de mão fechada44. É muito importante para a leitura a habilidade de agrupar as notas em estruturas maiores, pois essa ação tornará a leitura mais rápida e eficaz. “Na leitura musical , é impossível adquirirmos uma boa leitura enquanto procurarmos elementos isolados que impedem a visão do conjunto indispensável à leitura sincrética.”45 Segundo Last, os intervalos deveriam ser reconhecidos pela sua ‘forma’ num primeiro estágio46. Depois de dominar intervalos pequenos, o leitor deve 43 FRIEDBERG, Ruth C. 1993, p .56. 44 Quando cada dedo es tá sobre as teclas , uma ao lado da outra , sem pular nenhuma nota; neste caso, o in tervalo máximo alcançado será o de quinta. 45 NAIBERGER, Es ther . 1965, p .12 46 LAST, Joan. 1972, p.80. 31 acostumar-se a perceber os mais amplos, como sextas, sétimas, oitavas e daí por diante. Para ajudar no reconhecimento de qualquer agregado de notas, deve-se levar em conta que, intervalos ímpares formam pares linha-linha ou espaço- espaço no pentagrama, enquanto que os intervalos pares, quer sejam ascendentes ou descendentes, melódicos ou harmônicos, formam pares linha- espaço e vice-versa. Levando-se isso em consideração, a leitura pode se dar de forma mais rápida. O nome da nota isolada não importa mais, mas é claro que nesse momento a audição será de grande auxílio para informar se o intervalo e as notas estão sendo tocados corretamente. Podemos notar inclusive que o leitor não precisa saber, necessariamente, a nomenclatura daquilo que está tocando, mas é fundamental perceber as distâncias corretas entre uma nota e outra, e ter uma clara visão do desenho melódico e harmônico. Last exemplifica a importância desses conceitos na formação do pianista: Observe a diferença da aparênc ia da te rça e da quinta , e tente induzir o a luno a le r pe los in tervalos tanto quanto poss íve l . Pequenos acordes são fáceis de reconhecer , a segunda tem as duas notas comprimidas uma ao lado da outra, e a terça , onde uma ‘senta em c ima da out ra’ . O acorde 1, 3, 5, pode ser encontrado pelo mesmo caminho. 47 A principal diferença entre a leitura de um texto literário e uma peça musical, é que no primeiro as palavras são formadas linearmente, enquanto que, em música lê-se ao mesmo tempo verticalmente (intervalos e acordes) e horizontalmente ( linha melódica). Friedberg menciona que determinadas 47 LAST, Joan. 1972, p.80. Tradução minha. 32 seções da partitura são graficamente sugestivas em relação à resposta física. Intervalos horizontais e verticais serão mais bem percebidos se o intérprete puder manter total contato com o teclado, deixando o dedilhado preparado para qualquer tipo de acorde, salto, ou desenho melódico que aparecer. Até aqui foi abordado apenas sobre o reconhecimento de intervalos. Estes mesmos princípios podem ser aplicados à leitura de acordes, já que estes são formados por grupos de intervalos. É importante salientar que a f luência da leitura dependerá da capacidade do leitor em reconhecer, antecipadamente, as estruturas musicais. O leitor deve ser capaz de perceber visualmente o próximo grupo, desenho ou frase, e seus olhos devem captar o máximo de informação possível contida na partitura, para além daquilo que executa no momento. Reúna o máximo de informação notac ional quanto poss íve l para cada olhada na par t i tura ; olhe cons tantemente à f rente do próximo compasso ou pentagrama; e mantenha os olhos fixos na par t i tura enquanto vê o tec lado de forma per ifér ica (ou aba ixe de vez em quando os olhos sem mover a cabeça) . 48 O músico deve antever o problema e antecipar a solução. Ele pode, por exemplo, prever o formato dos acordes, já pensando no dedilhado e na fôrma de mão, o que é essencial para uma boa leitura à primeira vista. Como já dizia Busoni em seu dodecálogo; “Tudo é possível no piano, até mesmo o que, à primeira vista, parecia impossível. Basta trabalhar com inteligência.”49 48 FRIEDBERG, Ruth C. 1993, p .57. Tradução minha . 49 Busoni . Apud. NAIBERGER, Esther . 1965, p.9 33 2.2. TOPOGRAFIA DO PIANO É o conhecimento da topografia do teclado que possibilitará ao músico perceber em que lugar no piano se encontra a nota escrita na partitura. Sua familiaridade com o instrumento será determinante para que seus gestos correspondam ao desenho melódico que aparece na peça a ser tocada. Kochevitsky exemplifica: “Enquanto toca, o pianista moverá sua mão de acordo com a direção do desenho melódico: quando a melodia sobe, ele move sua mão para a direita; quando a melodia desce, ele move sua mão para a esquerda.”50 O reconhecimento da localização das notas é uma atividade que envolve os reflexos motores. Quanto maior o senso das distâncias que existem no piano, mais fácil será o trabalho da leitura. Pois, além de reconhecer as notas e intervalos que estão escritos, o leitor deve saber transmitir esse conhecimento visual em resposta motora. O que torna a leitura à primeira vista uma tarefa difícil , é justamente o fato de o músico ter que reconhecer visualmente o que está escrito, transmitir essa informação para o sistema motor, e utilizar a audição para reconhecer se o movimento de braços e dedos corresponde àquilo que foi visualizado. Para Sá Pereira, são três os objetivos para os quais devem convergir todos os esforços do aluno: aprender a ler com rapidez e perfeita compreensão 50 KOCHEVITSKY, George. 1967, p.23. 34 os sinais da notação musical; governar os movimentos executando com facilidade os movimentos requeridos por aqueles sinais; escutar atentamente, controlando com o ouvido se a execução corresponde realmente àquilo que está indicado na pauta51. Esses três objetivos precisam andar juntos, mas podem e devem ser desenvolvidos separadamente, até que a pessoa consiga utilizá-los em conjunto sem muito esforço, ou seja, até que isso se torne algo natural e fácil. Last comenta que isso deve ser estimulado mesmo no aluno pequeno, que não consegue olhar somente para a partitura e ainda precisa visualizar onde estão seus dedos no teclado. No entanto, é nesse momento que deve ser passado à criança o conhecimento das posições relativas das notas no pentagrama, já pensando em não olhar mais para o teclado, sendo guiado pelas notas que estão em linhas eespaços, sem necessariamente saber o nome delas, acionando o ouvido para estar atento em perceber se àquilo que está soando condiz com o que está escrito52. Para Sá Pereira e Last o mais importante da leitura à primeira vista é não olhar para o teclado, mas somente para a partitura. “Isto não significa apenas uma boa percepção do que está impresso na página que está sendo transcorrida, mas uma boa compreensão do teclado53”. Pereira afirma que o leitor deveria habituar-se a, durante a leitura, não olhar para as teclas, para que sinta as vantagens que daí lhe advém: esse hábito pode corrigir a leitura, 51 SÀ PEREIRA, Antonio. 1964, p. 9 52 LAST, Joan. 1972, p.81. 53 LAST, Joan. 1972, p.82. Tradução minha. 35 desenvolver poderosamente a percepção auditiva e educar o senso de localização54. O leitor deveria ter a localização das notas bem fixadas em sua mente e em seu sistema psicomotor e, ao tocar determinadas seqüências completas de notas, deveria sentir em seus dedos cada grupo de teclas. Com o tempo ele tornar-se-ia capaz de encontrar qualquer nota até de olhos fechados. “Um bom pianista deve ser capaz de, com os olhos fechados, atacar qualquer tecla desejada, deslocar as mãos para qualquer distância, de maneira infalível, guiando-se apenas pelo senso de localização.”55 Sá Pereira aponta também que: O tempo que se gasta t ranspor tando o olhar , da página de música para o tec lado, e des te novamente para a peça em estudo, todo o tempo gasto neste duplo percurso é tempo roubado à le i tura, fata lmente mut i lada por inúmeras interrupções, surpresas e hes i tações. ( . . . ) Valendo-se unicamente da vis ta, o aluno não desenvolve o ‘senso da dis tânc ia’ , não adquire um seguro conhecimento do tec lado e , em conseqüência , não aprende a loca lizar- se com segurança. 56 O leitor deveria estar habituado a não utilizar a visão para procurar as notas corretas. Essa ação de olhar para a partitura e em seguida para o teclado com a intenção de acertar a nota, é um ‘vício’ em alguns pianistas, muitas vezes imperceptível para ele próprio. Na leitura à primeira vista, esse hábito acaba se transformando num obstáculo, que impede a f luência musical das frases, ritmos, e de todos os elementos que podem aparecer numa peça. Outra questão que deve ser levada em consideração quando se trata de localização no teclado, é o dedilhado. Ele é muito valorizado quando o 54 SÁ PEREIRA, Antonio. 1964, p.17 55 SÁ PEREIRA, Antonio. 1964, p.17. 56 SÁ PEREIRA, Antonio. 1964, p.16. 36 assunto é a performance de uma obra madura, grande e difícil de ser lida à primeira vista, até porque, quando se está lendo uma nova peça que não precisa ser estudada com muita profundidade, não há tanta necessidade de f ixar o dedilhado. No entanto, nota-se ser importante para o leitor que este tenha desenvolvido, através de sua experiência várias soluções de passagens de dedo para qualquer tipo de situação que aparecer na partitura. Ele deve ser capaz de visualizar determinado trecho e saber resolver rapidamente qual a melhor posição em que sua mão deve estar para conseguir tocar. Last menciona que o le itor deveria estar sempre olhando à frente, tentando perceber cada frase que poderá aparecer transferindo-a para a mente, já pensando como isso poderia ser tocado por seus dedos57. Em suma, o senso de localização no teclado deve ser desenvolvido desde as primeiras aulas, porque é através dessa noção espacial que um pianista pode ser levado a ter uma leitura boa ou ruim. O tempo que ele perde por deixar de ver o que vem a seguir na partitura para procurar determinado salto, intervalo, ou nota, é o que impede a f luência da peça, e, na leitura à primeira vista, um dos pontos essenciais que caracterizam um bom leitor é o fato de este tocar a música f luentemente. 2.3. OUTROS ASPECTOS PARA A LEITURA À PRIMEIRA VISTA. A leitura envolve alguns conhecimentos musicais elementares, como notação, ritmo, armadura de clave, entre outros. Se o leitor não possui 57 LAST, Joan. 1972, p.84. 37 familiaridade com os aspectos musicais em termos gerais, poderá ter dificuldades para aprender uma nova peça. Sá Pereira afirma que o pianista que não sabe ler é aquele que não compreende o sentido íntimo dos sinais que serão traduzidos em sons ritmados. Para ele a deficiência de leitura é uma das mais graves causas de erro, devendo ser remediada por meio do estudo solfejo, da teoria e também da harmonia58. Todas essas matérias andam juntas, elas ajudam o músico a f ixar em sua mente conceitos, sinais e elementos que comumente aparecem nas partituras. Um elemento muito importante que um leitor deve dominar é o ritmo. Este é um dos fatores que dificulta a f luência da peça numa leitura à primeira vista. Através de minha própria experiência musical, percebo que, frequentemente, estudantes de piano se preocupam primeiramente com as notas e a linha melódica, esquecendo-se de manter a pulsação constante e obedecer às figuras rítmicas que aparecem, principalmente na leitura à primeira vista. Seashore afirma que, “Um bom leitor pode disfarçar as notas, mas precisa manter o ritmo constante.”59 Quando se trata de uma leitura à primeira vista em conjunto, mesmo sendo apenas um duo, manter a pulsação constante, sem grandes variações de andamento, é um dos pré-requisitos para que o grupo consiga tocar junto, mesmo que algumas notas não estejam corretas. O importante na leitura à primeira vista em música de câmara, é que os músicos sejam capazes de tocar juntos, com o mínimo de desencontros possíveis. 58 SÁ PEREIRA, Antonio. 1964, p.10. 59 SEASHORE, Car l E. 1967, p . 256. 38 A prát ica de trabalhar o tempo e r i tmo separado da melodia é uma boa coisa num pr imeiro momento. O padrão r í tmico dever ia ser executado batendo palmas ao mesmo tempo em que o aluno conta a pulsação. Quando tempo e melodia forem combinados pela pr imeira vez , as notas deverão ser f áce is, para capacitar o a luno a manter um r i tmo cons tante . 60 O leitor deveria habituar-se a manter a pulsação constante, e também poderia habituar-se a ler à primeira vista padrões rítmicos mais complexos, como aqueles que são comuns nas músicas brasileiras, argentinas, as que possuem influência africana, entre outras. Last afirma, o pianista deveria “ler novas coisas todo dia.”61 Antes de começar a tocar uma peça à primeira vista, o leitor deveria fazer uma rápida análise e observar a tonalidade, as claves, se há mudança de compasso no meio da música, o andamento em que irá tocar a peça, se há acidentes ocorrentes , etc. Todos esses elementos são importantes para a realização de uma leitura, pois são eles que determinam o desenvolvimento de uma peça. Importa lembrar que o ideal é que o pianista seja capaz de tocar o mais perfeitamente possível uma peça, mas se este não é capaz de fazê-lo, deve priorizar a pulsação da música para que esta aconteça de forma fluente sem paradas indevidas. A armadura de c lave é de suma impor tância ( . . . ) Clave , notas , e tempo devem ser observados em pr imeiro lugar , seguido de todos os out ros de ta lhes de acordo com o grau de le i tura . O a luno deve ria sent ir o r i tmo nos dois pr imeiros compassos. 62 De acordo com Last , detalhes como os acidentes que ocorrem mais de uma vez no compasso são frequentemente esquecidos na segunda vez que aparecem, assim como notas que se encontram no meio de um acorde, por60 LAST, Joan. 1972, p.82. Tradução minha. 61 LAST, Joan. 1972, p.79. 62 LAST, Joan. 1972, p.84. Tradução minha. 39 vezes deixam de ser notadas. Os staccatos, acentos, e marcas de expressão, raramente são obedecidos63. Para ela todos esses elementos têm uma grande importância na música e um grande significado, e desde as primeiras aulas deveriam ser enfatizados e não esquecidos, afinal são eles que podem tornar uma peça mais interessante de ser ouvida. Para perceber se esses detalhes estão sendo tocados corretamente, não se pode esquecer do papel fundamental do ouvido na realização de uma leitura. Sá Pereira afirma que, Se, durante o estudo, o aluno se va leu apenas da vis ta em vez de consultar o ouvido, este, por fal ta de função, não se desenvolve . Ora, a grande maior ia dos a lunos não dá ao ouvido nenhuma opor tunidade de func ionar , pois só conf ia na vis ta! E deste modo, em vez de melhorar , va i o ouvido se deseducando cada vez mais! 64 Nota-se que a visão tem sua função, mas se o leitor se uti lizar apenas dela poderá não notar erros que só a audição é capaz de perceber. É ela a responsável por avaliar se detalhes como os que foram mencionados estão sendo tocados corretamente. Ademais, é o ouvido que informa ao indivíduo se aquilo que está soando é bonito ou feio de acordo com seu gosto estético. Leimer afirma que, “o escutar-se a si mesmo é um dos fatores mais importantes em todo o estudo da música.”65 Todos os elementos musicais que estão presentes numa partitura são essenciais, o indivíduo deve utilizar seu sistema mental e psicomotor para apreendê-los e ser capaz de tocá-los com a importância e na função que cada um tem, mesmo numa leitura à primeira vista. 63 LAST, Joan. 1972, p.85 64 SÁ PEREIRA, Antonio. 1964, p.16. 65 LEIMER, Karl . 1987, p .14. Tradução minha . 40 3. ESTUDANTES DE PIANO E A PRÁTICA MUSICAL DA LEITURA À PRIMEIRA VISTA. Este trabalho buscou saber, entre outras coisas, como os estudantes do curso de bacharelado em piano do Ceart/Udesc desenvolvem a leitura à primeira vis ta. Para alcançar tal objetivo, de acordo com a proposta metodológica da pesquisa qualitativa foi necessário ter contato direto com os informantes66. Este contato ocorreu por meio de entrevistas semi-estruturadas, na forma de um questionário aberto, conforme Ludke e André67propõem. Este tipo de entrevista permite mais liberdade de expressão aos informantes, conseqüentemente favorece a possibi lidade de reflexão desta pesquisa. O questionário elaborado foi entregue aos alunos que cursam entre a terceira e a nona fase do curso de bacharelado em piano. Por questões de tempo e disponibilidade por parte dos estudantes, a quantidade de alunos que responderam as questões, totalizou 30%, sendo uma amostra significativa para esta pesquisa. 66 Cf . LÜDKE, Menga & ANDRÉ, Marli . E . D. Pesquisa em Educação: Abordagens qual i ta t ivas. 6ª . Edição. São Paulo: EPU, 2001. GIL, Antônio Car los. Como E laborar Projetos de Pesquisa. 3.ed. SP. : Atlas , 1996. 67 Cf. LÜDKE, Menga & ANDRÉ, Marl i . Loc .c i t . 41 As questões abordadas procuraram revelar o procedimento do executante diante de uma partitura desconhecida, bem como identificar as dificuldades que o músico enfrenta ao realizar tal tarefa, além de outras indagações pertinentes ao tema. (vide apêndice). Todos os entrevistados iniciaram seus estudos de piano em sua infância, em média entre cinco e nove anos de idade. Portanto, muitos hábitos de estudo foram adquiridos quando ainda eram crianças. No entanto, alguns depoentes disseram que os últimos seis anos de estudo foram os mais relevantes, porque direcionados de forma mais adequada em relação aos primeiros anos. Sobre o procedimento utilizado diante de uma partitura desconhecida, noventa por cento dos entrevistados mencionaram a importância de observar a peça antes de tocá-la. Isto porque eles perceberam que sua execução é melhor quando eles já verificaram o período, o compositor, a tonalidade, a estrutura, as figuras rítmicas, o andamento, a dinâmica, a fórmula de compasso, os padrões harmônicos, entre outras coisas. Pode-se notar que a vivência destes estudantes encontra fundamento nas idéias de Pereira (1964), Seashore (1967), Last (1972). Estes autores, conforme comentado no segundo capítulo, enfatizam a importância de se fazer uma breve análise daquilo que se irá tocar, para que o executante não seja pego de surpresa na hora em que está tocando, o que poderia vir a comprometer a fluência da peça. Foi mencionada por um dos informantes a importância de se manter a pulsação constante, tornando a peça o mais fluente possível. Seashore (1967), 42 Last (1972), e Thompson & Lehmann (2004)68, chamam a atenção para este aspecto. Eles deixam claro que a habilidade de ler à primeira vista consiste na capacidade de tocar uma peça fluentemente, sem que ocorram pausas ou paradas inexistentes no decorrer da mesma. A partitura deve ser tocada num andamento aceitável e com expressão musical, tornando-se agradável para ouvir e apreciar. Mesmo que esta não esteja sendo tocada em público, é necessário que o próprio intérprete sinta-se bem ao tocar determinada música, pois, afinal, ele também é ouvinte. Um dos entrevistados diz que tenta discriminar aquilo que é mais importante para se ouvir numa leitura à primeira vista, excluindo num primeiro momento alguns detalhes que podem comprometer a f luência da peça. Vemos este comentário em Thompson & Lehmann69, que afirmam que na leitura à primeira vista, o leitor não deve se ater às notas isoladas e ao compasso que está sendo tocado naquele momento. O pianista deve ser capaz de manter a visão à frente de seus dedos, a fim de reconhecer as informações relevantes que deverão ser tocadas. Num primeiro momento, por vezes não é possível tocar tudo o que está escrito, pois certas passagens difíceis de realizar exigem um estudo mais profundo. Como na leitura à primeira vista manter a pulsação fixa é um dos fatores mais importantes, torna-se necessário selecionar aquilo que é mais importante, sem perder a essência e a fluência da peça. 68 LEHMANN, Andréas C.; THOMPSON, Sam. Strategies for Sight-Reading and Improvising Music. In: WILLIAMON, AaronMusica l (org.) . Musical Excel lence . New York: Oxford Unive rsi ty Press , 2004, p .145. 69 LEHMANN, Andréas C. & THOMPSON, 2004, p .146. 43 Dez por cento dos entrevistados disseram que sentam ao piano e começam a tocar a peça sem fazer uma análise prévia. Conforme se constatou neste estudo, esta atitude pode comprometer a leitura, porque alguns elementos, se não observados antes, podem surpreender o leitor e prejudicar a continuidade da linha musical. Para fazer uma boa leitura é necessário que os olhos visualizem o grupo de notas e não cada uma delas isoladamente, isso é possível através do reconhecimento intervalar, pois é através dele que se pode fazer o cálculo da distância entre duas ou mais notas no pentagrama. Agay70 faz uma comparação interessante entre as técnicas de leitura textual desenvolvidas pela pedagogia moderna nas escolas e a didática aplicada ao aprendizado da notação musical. Para ele, o princípio utilizado pelo cérebro para realizar essas atividades deveria ser o mesmo, pois quando o aluno aprende a ler palavras, aprende a olhar o grupo de letras que estão escritas juntas e que dão significado ao texto, e não a olhar os caracteres isoladamente. Na escrita para piano o princípio é o mesmo, mas um pouco mais complexo, já que os olhosterão que se movimentar em não apenas um, mas em dois sentidos, vertical e horizontal, a f im de captar todas as informações contidas nos dois pentagramas – notas, ritmo, dinâmica, acordes - e, a partir daí, organizar as frases musicais, tornando a música agradável e clara para quem está ouvindo. 70 AGAY, 1981. 44 Finalmente, “o pianista não deve apenas ler, ver e perceber a figura notacional, mas também deve produzir uma resposta f ísica instantânea gerando o som prescrito, através dos dez dedos no teclado.”71 Para Gillman, Underwood e Morehen a diferença entre os bons e os maus leitores à primeira vista, foi identif icada em uma pesquisa experimental72. Neste estudo foi observado que os primeiros conseguiam olhar para a partitura e não se deter apenas nas notas musicais, ao contrário do que fazia o segundo grupo, que demonstrou que a preocupação individual com cada nota era mais importante do que com seu conjunto. O bom leitor é, portanto, aquele que consegue fazer uma leitura relativa da notação musical, onde a relação espacial que existe entre uma nota e outra e, o número de linhas e espaços que há entre elas é o que importa, e não tanto o nome específico de cada nota. Gillman; Underwood; Morehen comentam que: É provável que bons le i tores à pr imeira vis ta ut i l izem uma forma não visual de decodif icar intervalos. Já os lei tore s que têm certa di f iculdade em ler à pr imeira vis ta , apoiam-se em traços viso- espacia is, donde se conclui que existe uma cor respondência entre habil idade , semelhança real e semelhança visual . Em outras pa lavras, os que apresentam dif iculdade em ler à pr imeira vis ta deve riam exibir uma interação entre semelhança rea l e vi sual , enquanto os bons não ser iam afetados pe la semelhança visual . 73 Vinte por cento dos entrevistados disseram que jamais foram instruídos sobre como ler à primeira vista, enquanto os outros responderam afirmativamente, mas cada um de uma maneira diferente. Há aqueles que 71 AGAY, 1981, p.198 . 72 GILLMAN, El izabeth; UNDERWOOD, Geoff rey; MOREHEN, John. Recogni t ion of Visually Presented Musica l Intervals . In: Psychology of Music , Nott ingham, U.K., v. 30, p . 48-57, 2002. 73 GILLMAN; UNDERWOOD; MOREHEN, 2002, p.49. 45 tiveram uma instrução mais superficial, ao passo que outros já tiveram uma instrução mais aprofundada, e procuraram literatura específica. Um dos entrevistados mencionou que teve aulas específicas sobre o assunto, nas quais a professora abordava questões cognitivas, relacionando a leitura com a memória. Segundo ela, seria possível construir uma imagem da partitura na mente através da memória lógica e da memória visual, antes de realizar a leitura; este procedimento encontra respaldo em Pereira (1964), Leimer (1984) e Kaplan (1987), conforme mencionado no primeiro capítulo deste trabalho Estes autores mencionam ser possível utilizar a análise lógica antes de tocar qualquer peça, a f im de reter a imagem da partitura na memória. O objetivo, neste caso, não é tocar a música decor, mas imaginar tudo àquilo que será realizado nos momentos seguintes, a tonalidade, as expressões de dinâmica, as mudanças harmônicas, a pulsação e o tempo, as f iguras rítmicas, preparando-se para possíveis saltos, que utilizarão determinados movimentos de braço e pulso. Ao entrar em contato com o instrumento, a peça já terá sido processada na memória do executante, e a música será tocada com maior fluência do que se ele não t ivesse tido esse trabalho de analisar e reter as informações pertinentes em seu cérebro. Nota-se que, salvo exceções, os estudantes de música adquirem a técnica da leitura à primeira vista sem uma metodologia específica. De um modo geral, são estimulados por seus professores a desenvolver essa prática e a consideram importante, mas há também aqueles que o fazem por necessidade. Em ambos os casos, utilizam sua experiência prévia, considerada de suma importância por Kaplan (1987); no entanto o presente estudo 46 demonstra que esses alunos seriam beneficiados por um estudo específico visando o desenvolvimento da leitura à primeira vista. Outra questão colocada para os entrevistados, foi sobre a maior ou menor dificuldade que cada um tinha quanto à leitura. Houve quem afirmasse não ter nenhuma dificuldade, talvez por ter t reinado ou por ter certa facilidade, mas não houve nenhum comentário sobre isso por parte do aluno. Houve aqueles que disseram ser difícil de manter a f luência rítmica e melódica, pois o tempo que tinham para processar toda a informação contida na partitura era muito curto. Outro entrevistado respondeu que sua dificuldade é maior quando há muita polirritmia na peça, e muitos arpejos, talvez pela mesma razão dos outros acima citados. Uma das entrevistadas respondeu: “minha maior dif iculdade é a visualização harmônica (que na verdade é uma questão de treino), pois sabendo (conhecendo) a harmonia das tonalidades mais util izadas, a leitura à primeira vista dá um salto, porque vários elementos são automatizados”. Esta musicista vê a importância de automatizar o conhecimento musical, interiorizá-lo para que se torne um ato voluntário, embora na execução ocorra o ato consciente e inconsciente simultaneamente. Kotchevitsky, afirma que, “ainda que seja impossível determinar precisamente os limites da consciência e da inconsciência, pode-se dizer que tocar piano é o resultado da soma de atos conscientes (propositais, voluntários) e de automatismos.”74 Ou seja, os movimentos e dados contidos na partitura são automatizados consciente ou inconscientemente. 74 KOCHEVITSKY, George, 1967, p.22. 47 Indagou-se ainda sobre quais critérios (elementos) os entrevistados consideravam importante levar em conta no primeiro contato com a peça. Todos concordaram que é muito importante conhecer o esti lo e compositor da música a ser tocada. Percebe-se, portanto, que o conhecimento de história da música é fundamental para o bom desenvolvimento da performance. Outros elementos mencionados por eles foram: a tonalidade, o andamento, a harmonia. Através disso pôde-se notar que a interdisciplinaridade, apontada no segundo capítulo deste trabalho, faz parte do cotidiano de cada estudante da UDESC, e que cada disciplina, t rabalhada de forma isolada no curso de graduação, é utilizada em conjunto no momento do estudo do instrumento. Como mencionado no capítulo anterior por Seashore (1967) e Kaplan (1987), a integração dos conhecimentos tende a tornar mais simples a realização da leitura75, pois toda atividade musical será realizada de acordo com as informações retidas pelo pianista até então. Outra questão colocada para os estudantes e que reforça o ponto de vista anteriormente aludido foi sobre a importância do conhecimento teórico- analítico para a leitura à 1ª vista. Todos afirmaram que os conhecimentos teóricos e a análise podem auxiliar na leitura à primeira vista. Eis alguns depoimentos: “É possível ler naturalmente uma coisa, se, se conhece o procedimento segundo o qual ela é 75 O conhecimento bás ico de harmonia é mencionado por AGAY (1981) , como sendo um importante subsídio para a le i tura no piano, já que es te é um inst rumento harmônico e não apenas melódico. Esse saber fac i l i ta a visual ização de grupos de notas , sem que se ja necessár io identif icar cada uma de las individualmente. O cérebro deve pensar mui to rápido e efe tuar muitas at ividades s imul taneamente , e com i sso não consegue absorver
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