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Psicanalise das redes sociais

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CÍRCULO PSICANALÍTICO DA BAHIA 
 
 
 
ALICE HELENA GIRDWOOD MATTOS 
 
 
 
REDES REVELADAS: OBSERVAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE “O DILEMA DAS REDES”
É inegável a popularidade das redes sociais no mundo, em que a cada dia mais crianças, adolescentes, adultos e idosos utilizam parte (ou grande parte) de seu tempo acompanhando fatos da vida de conhecidos ou celebridades ao mesmo tempo em que compartilham os da própria vida, em geral sob um olhar positivo e de felicidade. As redes sociais atualmente se configuram como uma das principais vias de socialização para grande parte dos indivíduos, ao reduzir distancias e ampliar a comunicação entre pessoas, favorecendo o reencontro de antigos amigos ou parentes, bem como uma forma de se atualizar com os acontecimentos marcantes, ou nem tanto, do mundo. 
No entanto, é crescente o número de estudos que marcam os efeitos negativos de sua utilização intensa, em especial em crianças e adolescentes, bem como seu poder viciante. O filme “O dilema das redes”, de Jeff Orlowski, surge neste contexto para aprofundar os debates, trazendo à tona fatos não tão conhecidos sobre a criação e intenção lucrativa das redes sociais, empresas que mais lucram anualmente no mundo, bem como seu poder de manipulação de percepções e comportamentos dos usuários e forte potencial viciante, marcando seus efeitos para a sociedade como um todo.
O filme gira em torno de alguns fatos fundamentais, a saber: o usuário não é o cliente, mas o produto; o design dos sites é pensado para aumentar o tempo de uso; o efeito viciante que as redes sociais promovem tem origem no circuito cerebral de recompensas; como empresas lucrativas, as redes sociais não se preocupam com os efeitos de sua atuação na vida dos usuários, trazendo graves problemas sociais; a coleta e manipulação de dados dos usuários é realizada por inteligência artificial, em que os algoritmos não conseguem valorar a natureza do conteúdo postado, favorecendo a ocorrência de fake News e outras postagens que podem ser consideradas inadequadas.
Não pretendo aqui detalhar as informações trazidas pelo filme, mas analisar a partir delas como alguns comportamentos característicos dos indivíduos nas redes sociais podem ser explicados pela teoria psicanalítica, sobretudo pelos textos indispensáveis “Psicologia das massas e análise do eu” e “Mal-estar na civilização”, de Sigmund Freud. 
Para que servem as redes sociais? Existem várias respostas a esta pergunta, na verdade podemos até afirmar que cada sujeito responderia a ela de maneira diferente, como encurtar distancias, encontrar pessoas com quem perdemos o contato, buscar modelos de comportamento... as respostas são tão infinitas quanto a subjetividade humana. Mas não podemos perder de vista que para além de qualquer motivação individual, as redes sociais vêm a atender a uma das necessidades mais básicas do ser humano: a de agregação. Para Freud, o instinto social é primário, de tal forma que a evolução da psicologia humana ocorre primeiramente a partir da relação social para a individuação, em que a família se configura no primeiro (e mais fundamental) grupamento do bebê. E é justamente esta fase do desenvolvimento psíquico, a da completude narcísica, que os indivíduos tentam revivenciar quando em busca da felicidade, que foi muito bem traduzida como um sentimento oceânico. A esse ponto, é irresistível fazer a relação com o termo utilizado por nós quando utilizamos a internet: estamos navegando na rede. O que seria, então, a internet senão esse oceano de possibilidades de completude para todos nós? Acontece que nossa genética foi programada para se relacionar com nossa tribo, como bem fala Tristan Harris, principal executivo entrevistado no filme, e não para entrarmos em contato com as opiniões e críticas de uma tribo de mais de 7 bilhões de pessoas. 
A felicidade, desta forma, só pode ocorrer por meio da vivência de fortes prazeres ou evitação do desprazer, em que a satisfação sexual serve de modelo para ela, sendo apenas momentânea portanto. Para Freud, o sofrimento se origina no desamparo infantil, e pode ser evitado de três formas: diversões, gratificações substitutivas e substâncias inebriantes. Consigo até visualizar o anúncio no canto direito da tela: “Leve três formas de aliviar seu sofrimento pelo preço de uma!”, pois é exatamente isso que as redes sociais oferecem: elas divertem com conteúdos engraçados e leves, mesmo quando o assunto é sério (é para isso que servem os memes), criam a ilusão de vida feliz e satisfatória, onde tudo é possível, ao mesmo tempo que encharcam nosso cérebro de dopamina e serotonina, tal como qualquer outra droga, a cada rolagem. Seria a solução ideal se de fato fosse uma solução, mas não passa, na prática, de mais uma fonte de sofrimento ao possibilitar a comparação da vida perfeita do outro (que não passa de uma visão parcial e manipulada) com a nossa imperfeita (que vemos em sua – quase – totalidade). 
Apesar de eminentemente individual, o sofrimento é o preço pago para se viver em comunidade, em decorrência da inibição dos impulsos. Em “Mal-estar na civilização”, Freud aprimora o conceito de impulso de morte, o caracterizando como de natureza diferente dos sexuais, a libido. Assim, nosso inconsciente é marcado pela ambiguidade, em que instinto de amor e de morte caminham juntos e, uma vez inibidos, podem gerar sintomas e sentimento de culpa a serviço do Super-eu. Resistimos a aceitar a ambiguidade em nós mesmos, e as redes sociais acabam também servindo a este propósito: aceito o afeto erótico inibido na meta motivado pela admiração do belo, estímulo visual por excelência, me colocando como objeto de amor nas redes ou sublimando meus instintos de outras formas mais elevadas, ao mesmo tempo em que direciono minha hostilidade àqueles que de alguma forma tocam em conteúdo que não quero entrar em contato, isolando o que é mau no mundo externo e tendo a falsa impressão de que não está em mim. O que seria o cancelamento senão resultado dessa relação ambígua com o politicamente correto, este atendendo a uma necessidade de idealização das nossas condutas, encarnado no ideal de Eu, enquanto aquele servindo como escape de nossos impulsos de morte, massacrando o outro por ter levado a cabo o que reprimi em mim? A agressão direcionada ao outro minimiza a que me flagela, pois reduz minha angústia motivada por uma culpa que mal sei do que é. Mas será? Será que aumentando o sofrimento do outro eu reduzo o meu? Não temos como saber, mas temos certeza de que as redes sociais agravam sentimentos de inferioridade e sofrimento, em especial em crianças e adolescentes. O filme traz que as mortes de meninas entre 15 e 19 anos por suicídio nos EUA atingiram um recorde em 40 anos - e dobraram entre 2007 e 2015, com 5,1 casos para cada 100 mil, enquanto a taxa entre meninos é de 14,2 casos para cada 100 mil. No Brasil, entre os anos de 2003 e 2013, o país registrou aumento de 10% nos casos de suicídio entre crianças e adolescentes dos nove aos 19 anos, segundo dados do Mapa da Violência do Ministério da Saúde de 2014 e 2015. É inegável a influência das redes sociais nessas estatísticas. 
Os likes representam atualmente uma das gratificações substitutivas mais comuns e acessíveis, atendendo à nossa necessidade de amor ao atuar no mecanismo cerebral de recompensa. As curtidas e os comentários positivos nada mais são do que recompensas imediatas às quais nos acostumamos e que estimulam a produção de dopamina e serotonina, fazendo que rolemos as páginas das redes sociais em busca constante da repetição da sensação. Mas existe um custo alto a ser pago, muitas vezes representado por camadas e mais camadas de filtros que modificam tanto nossa imagem que nem nós mesmos nos reconhecemos no espelho, criando uma ilusão tão grande que, no final das contas, só contribui para o incremento de mal-estar advindo do medo cada vez maior de não ser amado. E o consolo dado a esse mal-estar é mais rolagens em busca de mais likes, num processo que se assemelha ao vício do jogo ou da cocaína. Aliás,o filme traz uma frase bastante emblemática: “Só há duas indústrias que chamam seus clientes de usuários: a das drogas ilegais e das redes” e, tal como os traficantes de drogas, os desenvolvedores proíbem seus filhos de utilizarem as redes sociais, pois conhecem bem as suas metas: promover o vício que aumenta o tempo de uso e a coleta de informações e, com isso, o valor cobrado do anunciante. Enquanto isso, outras crianças descobrem novos vídeos nas sugestões do YouTube, podendo ter como consequência inclusive o afinamento do córtex.
O filme mostra como a manipulação de dados pode ser considerado um problema existencial, na medida em que interfere na própria existência do sujeito ao orientar as percepções e escolhas dos usuários. O design propício ao vício leva a um mecanismo semelhante ao da hipnose, em que toda a atenção do indivíduo é direcionada ao hipnotizador, ou melhor, à rede social, de forma que todo o resto passa a lhe parecer desinteressante, pois os sentidos deixam de ser ativados por estímulos da vida real enquanto que são exacerbados no mundo virtual. Tal como a hipnose, as redes sociais exercem grande atração e sugestão ao indivíduo, por meio de um magnetismo irresistível que se intensifica quando a rede parece adivinhar os meus desejos. Como a CVC sabe que quero fazer uma viagem para a Grécia e me oferece uma oferta tentadora? Só pode ser mágica: a mágica dos algoritmos, que monitoram cada busca no Google, cada curtida no Facebook e Instagram, cada vídeo do YouTube e definem um perfil de usuário vendável para anunciantes, cujos anúncios surgem exatamente na hora em que estou mais carente ou eufórica, ou seja, disponível para gastar. E não adianta seu vizinho dizer que Bali é fenomenal, a chance de ir à Grécia é muito maior, de preferência levando na mala aquele maiô da última moda. Na relação com o hipnotizador buscamos reviver as experiências parentais, marcadas pela obediência e pelo afeto, em que ele domina o Eu ao ocupar o lugar de ideal de Eu, numa relação de natureza indiscutivelmente erótica. 
As redes sociais são exaltadas pelo seu poder de agregação, em que indivíduos com interesses comuns podem se unir de uma forma que dificilmente seria possível sem elas. Ao colecionar amigos virtuais, uma nova identidade é forjada: a virtual, uma que visa favorecer a demanda de amor, incluindo o sujeito numa massa virtual ou, melhor dizendo, numa bolha. As redes sociais, por meio da manipulação dos dados dos usuários, cria uma bolha que os faz entrar em contato somente com o que pode coincidir com seus interesses, ligando pessoas com interesses em comum, sugerindo posts e anúncios mais facilmente de serem aceitos, notícias mais fáceis de se acreditar, ainda que não sejam necessariamente verdadeiras. Os algoritmos se combinam de forma a manter o usuário em contato somente com o que demonstra interesse, cada vez mais hipnotizado e, consequentemente, alheio ao mundo ao redor e a outras opiniões e fatos que não sejam de seu interesse, mas que poderiam contribuir sobremaneira para seu desenvolvimento intelectual. Essa bolha é o que Freud chama de massa, em que para ser aceito é necessário reduzir o intelecto e aumentar a afetividade. A identidade virtual é forjada, portanto, a partir dos elementos considerados comuns aos que integram a bolha, sob maior influência da afetividade do que do intelecto e, como tal, derivada de elementos inconscientes profundos, favorecendo a liberação de certos conteúdos inconscientes que no plano individual seriam reprimidos. Na bolha/massa, os indivíduos sentem a responsabilidade pelos seus atos reduzida, se comportando de forma diferente do que seria presencialmente, postando comentários ou opiniões que não teriam coragem de verbalizar entre amigos. Isso ocorre porque a massa é guiada pelo inconsciente e, desta forma, se deixa levar por um tipo de afetividade infantil, em que a dúvida se transmuta em certeza, as inibições são inibidas e a ilusão assume papel preponderante em detrimento da verdade dos fatos, liberando afetos mais primitivos que se alastram pelo poder da sugestão entre os integrantes. Tudo isso é fonte de prazer, inclusive aquele de ser quem se é sem inibições, um prazer que se justifica pela redução do intelecto em prol da permanência na massa, favorecendo o extremismo, a intolerância, o conservadorismo e, podemos acrescentar à lista de Freud, a polarização e as fake News que, segundo o filme, se espalha seis vezes mais rápido que notícias verdadeiras. A vontade coletiva que guia as massas passa a ser exercida pelos algoritmos das redes, que amplifica a influência mútua e o afeto comum, me levando a perguntar: quem é o líder dessa massa?
Freud destaca a importância de um líder na manutenção da massa, com quem os integrantes se identificam parcialmente e esperam dele receber amor, ao passo que se unem libidinalmente aos outros integrantes dela, por meio de instintos sexuais inibidos na meta que limitam o narcisismo. Dada a ambiguidade dos instintos, a hostilidade inerente ao instinto de morte é direcionada a quem não faz parte da massa, sendo tão importante para sua manutenção como o amor entre os integrantes. No entanto, ao verificarmos os mesmos processos de massa ocorrendo nas bolhas formadas pelas redes sociais, o questionamento quanto ao líder dessas bolhas se faz premente. Não sei se podemos dizer que os líderes são ou youtubers, os chefes de estado e outros políticos que motivam discussões calorosas e vazias de argumentos ou as grandes celebridades com a exposição da vida privada maquiada e manipulada. Me arrisco a afirmar que o líder é o próprio algoritmo, que direciona opiniões confluentes e forma massas/bolhas, amplifica opiniões e afetos por meio de conteúdos nem sempre verdadeiros, combina indivíduos tão distantes geograficamente e tão ligados pelo afeto e, sim, acaba por influenciar o “Super-eu da cultura” (p. 117) mencionado por Freud, que pode embasar com suas determinações o que se considera politicamente correto. Isso não impede, no entanto, que personalidades fortes encarnem essa liderança, induzindo a identificação da massa consigo mesmo e tendo a mesma atitude narcísica de esperar que os outros o sirvam. Mas tais líderes submergem da mesma forma que emergem, cedendo lugar a outro que possa encarnar melhor as determinações desse Super-eu coletivo e reforçar o delírio paranoico coletivo. Assim, o sujeito que reconhecemos como líder da massa se refere muito mais a um fantoche a serviço da inteligência artificial.
Pretendi com esse texto fazer algumas considerações acerca da importância das redes sociais na contemporaneidade, e sua influência na busca pela felicidade. Apesar de as redes sociais serem destino dos esforços de grande parte da população pela felicidade, ainda há gente que reconhece o valor da vida real e busca sua felicidade nela, mais conectada com o próprio desejo. O real é o que apreendemos do mundo externo, que pode ser tão duro que a melhor forma de lidar com ele seja pela fuga. O virtual, portanto, seria a opção mais acessível de fuga: quase como num processo paranoico, a fuga da realidade por meio da construção de uma ilusão da nossa vida e de nós mesmos, que longe de nos trazer felicidade, só conduz ao desamparo e ao sofrimento, sentidos no corpo real e nos relacionamentos reais. E o desejo, longe de aparecer num anúncio de canto de página ou numa sugestão de amizade, fica mais escamoteado enquanto nos deixamos hipnotizar pelas telas, sem percebermos que nas redes sociais, parafraseando Gonzaguinha, “não dá pra ser feliz, não dá pra ser feliz”...
Referências:
Freud, S. (2016). O mal-estar na civilização. In _____. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos [1930 – 1936]. 6ª. Reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras.
________. (2010). Psicologia das massas e análise do Eu (1921). In: _____. Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. [1920 – 1923]. 8° reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras.
Lisauskas, R. (2019, Setembro 04). Precisamos falarsobre suicídio de crianças e adolescentes. Estadão. Recuperado em https://emais.estadao.com.br/blogs/ser-mae/precisamos-falar-sobre-o-suicidio-de-criancas-e-adolescentes/. 
Rhodes, L. (Produtora), & Orlowski, J. (Diretor). (2020). O dilema das redes [Streaming]. Estados Unidos: Netflix.
Senra, Ricardo. (2020, October 01). “Dilema das redes”: os 5 segredos de donos de redes sociais para viciar e manipular. BBC News Brasil. Recuperado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-54366416.

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