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TEMPORADA 1 LITERATURA

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TEMPORADA 1
APOSTILA 1 – GENEROS LITERÁRIOS
Introdução A divisão literária em distintos gêneros teve origem na Grécia Antiga com os filósofos Platão e Aristóteles, ao que ficou conhecida como divisão clássica, sendo responsável por esquematizar a separação em três gêneros literários: épico, lírico e dramático. Posteriormente, devido às necessidades sociais, surgiram novos e diferentes gêneros da literatura, como o romance, o conto, o poema em prosa e o ensaio. Neste capítulo, discutiremos a noção de gêneros literários e a sua classificação segundo a divisão clássica já mencionada. Além disso, diferenciaremos a literatura expressa em prosa da construída em forma de versos, verificando os cruzamentos do poético e do narrativo no que denominamos poema em prosa e prosa poética. Por fim, analisaremos algumas especificidades dos textos literários contemporâneos, com destaque para a poesia, o romance e o ensaio.
Divisão clássica dos gêneros literários>A divisão literária em distintos gêneros teve origem na Grécia Antiga com os notórios filósofos Platão e Aristóteles. Platão é o primeiro a abordar a questão da mimese, ou seja, da imitação nas obras poéticas, o que é posteriormente aprofundado pelo seu aluno Aristóteles na célebre Poética. Nessa obra, Aristóteles desenvolve um tratado sobre as formas de imitação da natureza e do mundo pelos poetas, demonstrando as características que os diferentes tipos de imitação assumem na poesia épica e na dramática. A lírica, especificamente, não é abordada, de forma que só se consolida como parte dos três gêneros durante o Renascimento, no qual há uma valorização desse tipo de poesia.
Rosenfeld (1985) reconstrói o texto de Aristóteles com vistas a visualizar os indícios da caracterização do que hoje conhecemos como gênero lírico. Ele percebe três maneiras de narrar em Poética:
· a ligada ao épico, que conta com a ajuda de terceiros para narrar; 
· a dramática, na qual as próprias personagens estão em ação, sem a necessidade de narração; 
· uma terceira, na qual “se insinua a própria pessoa [do autor], sem que intervenha outra personagem” (ROSENFELD, 1985, p. 16), relacionada à lírica.
Fique atento>É importante ressaltarmos que a teoria clássica dos gêneros, herdada de Platão e Aristóteles, atualmente é muito utilizada como uma divisão didática, não como uma normatização única à qual a literatura supostamente se filiaria. Assim, os gêneros épico, lírico e dramático são três categorias amplas, nas quais se encaixam inúmeros textos literários que seguem seus “traços estilísticos fundamentais” (ROSENFELD, 1985, p. 21). Portanto, a divisão com base nesses três gêneros apresenta as suas formas puras, contudo, como bem alerta Rosenfeld, esses traços não são iguais a critérios de valor, não possuem a função de julgar se determinada obra é mais ou menos pura de acordo com eles A seguir, especificaremos os traços fundamentais de cada um dos três gêneros literários e as distinções entre eles com base na divisão clássica.
Épico>O gênero épico abarca os poemas narrativos extensos, cuja principal característica é a presença de um herói responsável por feitos extraordinários sobre os quais versará a obra literária. Nesse sentido, a epopeia seria uma das artes da imitação que, juntamente com a tragédia, representa assuntos sérios e imita os homens melhores do que de fato o são. Para diferenciar a epopeia da tragédia, Aristóteles traça algumas diferenças entre essas formas literárias, dentre a quais está a dimensão do poema épico, que não teria a sua duração limitada como a tragédia.
Saiba Mais>Abaurre e Pontara (2005) apresentam um excelente quadro-resumo da estrutura dos poemas épicos: 
· Proposição — o poeta define o tema e o herói do seu poema. 
· Invocação — o poeta pede à musa que lhe inspire para que desenvolva com maestria o tema do seu poema. 
· Narração — o poeta narra as aventuras do seu herói. 
· Conclusão — o poeta encerra a sua narrativa após relatar os feitos gloriosos que marcaram a trajetória do seu herói.
Para Rosenfeld (1985), o poema épico retrata um mundo imaginário de modo objetivo. Ele não se preocupa em expressar as emoções do poeta, mas narra os estados de alma das personagens que compõem os seus poemas. Ao mesmo tempo em que narra o destino das personagens, o narrador está sempre presente por meio da sua narrativa, concedendo a palavra aos personagens por meio da sua própria voz. Assim, há certa distância entre o narrador e o mundo por ele narrado. Outra característica importante do poema épico é o enaltecimento de um herói. O conflito histórico é apenas pano de fundo para o desenvolvimento do herói, que enfrenta perigos e jornadas extraordinárias. No entanto, o foco dos poemas épicos não é o herói enquanto expressão da sua própria personalidade ou individualidade, mas sim da sua identidade pátria. Vejamos um exemplo de poema épico clássico (HOMERO, 1997):
Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou, dês que esfez as muralhas sagradas de Tróia; muitas cidades dos homens viajaram, conheceu seus costumes, como no mar padeceu sofrimentos inúmeros na alma, para que a vida salvasse e a de seus companheiros a volta.
Notemos que, em fins do século XVI, a epopeia como gênero puro declina em detrimento de novas formas de narrativas derivadas dos próprios poemas épicos, todavia que passam a ser escritas em prosa. Surgem, assim, os gêneros narrativos modernos, como o romance, o conto e as novelas, que veremos de forma mais detalhada posteriormente.
Lírico>O surgimento da lírica fundamenta-se na tradição oral dos poemas cantados, geralmente acompanhados por um instrumento denominado lira, que motiva a denominação desse gênero (ABAURRE; PONTARA, 2005). Após a invenção da imprensa, no século XV, é que ocorre a separação entre a música e a escrita da poesia, visto que há uma inversão da prevalência da cultura oral pela cultura escrita. Segundo Abaurre e Pontara (2005), é somente a partir do Renascimento italiano que a poesia de característica subjetiva ganha reconhecimento semelhante aos gêneros épico e dramático.
Saiba Mais>De acordo com Abaurre e Pontara (2005), as estruturas mais conhecidas da lírica são as seguintes: 
· Elegia — poema surgido na Grécia Antiga que trata de acontecimentos tristes, muitas vezes enfocando a morte de um ente querido ou de uma personalidade pública. 
· Écloga — poema pastoril que retrata a vida bucólica dos pastores em um ambiente campestre. 
· Ode — poema que exalta valores nobres, caracterizando-se pelo tom de louvor. 
· Soneto — é a mais conhecida das formas líricas e possui 14 versos, que se organizam em duas estrofes de quatro versos (quartetos) cada e duas estrofes de três versos (tercetos) cada.
O gênero lírico, conforme Rosenfeld (1985), pode ser definido como o mais subjetivo dos três, pois a sua principal característica é justamente a presença de uma voz central que traduz no poema a expressão de um estado da alma, as suas emoções e também as suas reflexões sobre o ser humano e o mundo. Nesse sentido, a poesia lírica tem como ponto de partida a manifestação verbal das emoções e dos sentimentos do eu lírico. A partir desse objetivo, o mundo, a natureza e as outras personagens que porventura apareçam nesse tipo de poema são evocadas apenas para ressaltar os sentimentos do eu lírico. A esse respeito, Rosenfeld (1985, p. 23) afirma que “a bem-amada, recordada pelo eu lírico, não se constituirá em personagem nítida de quem se narrem as ações e enredos; será apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a dor da voz central”. Em relação às características formais da lírica, Rosenfeld aponta a curta extensão como um traço fundamental estilístico. Uma vez que não narra acontecimentos, mas sim emoções, a poesia lírica não é extensa como o poema épico, senão efêmera, como a metamorfose dos sentimentos e das sensações humanas.
Fique Atento>É justamente na diferença de objeto narrado que reside a importância da lírica, pois somente a epopeia não era capaz de expressar as emoções e os sentimentos dos poetas.Assim, a lírica nasce para atender a esse anseio, de modo a fazer com que seja construída, no poema, a voz subjetiva do poeta, isto é, o eu-lírico.
Outros dois traços estilísticos apontados pelo autor são o ritmo e a musicalidade das palavras e consequentemente dos versos. Esses traços se destacam de tal maneira que, por vezes, são priorizados em detrimento do sentido, de modo que o poeta se atém antes à sonoridade do poema que ao seu conteúdo. De acordo com Abaurre e Pontara (2005, p. 42), o ritmo se define como “um movimento regular, repetitivo” que se marca na poesia pela alternância entre pausas e acentos (sílabas tônicas e átonas). Quando o esquema rítmico possui o mesmo número de sílabas, os versos são considerados regulares; quando possui números diferentes, são irregulares. Outro fator importante, embora não seja obrigatório, para a construção da musicalidade é a rima, que pode ser definida como “a coincidência ou a Gêneros literários 5 semelhanças de sons a partir da última vogal tônica dos versos” (ABAURRE; PONTARA, 2005, p. 43). Ademais, na poesia lírica, ao contrário do que ocorre no poema épico, as ações não são situadas nem no tempo, nem no espaço. Prepondera a voz do presente, indicando uma ausência de distância que o passado traria. Assim, há a impressão de que a poesia trata sempre de um momento eterno. Rosenfeld (1985, p. 23-24) apresenta um exemplo importante para a compreensão da temporalidade do gênero lírico:
Apavorado acordo, em treva O tempo verbal, que não remete necessariamente ao passado, pode representar tanto uma situação presente quanto uma recordação que permanece, que não se restringe ao passado. Do contrário, a construção seria acordei. É essa construção que causa a impressão de um momento eterno, que tanto pode falar do hoje quanto de outro momento que ainda se faz presente; portanto, um momento eterno.
Dramático> Ao propor os seus estudos sobre esse gênero, Aristóteles inspirou-se no drama grego da época para estabelecer alguns princípios do que seria o texto dramático por excelência. Nesse sentido, a tragédia estaria mais detalhadamente proposta por Aristóteles que a comédia. Aristóteles propõe a tragédia como sendo a imitação de homens, representando-os melhores do que de fato o são, por meio de personagens em ação. Para ele, a ação deveria se passar de forma concentrada em um espaço-tempo máximo de 24 horas, isto é, deveriam retratar episódios breves. Esses episódios retratariam o desenrolar de uma história já iniciada, enfocando o clímax e o desenlace dos conflitos apresentados. Segundo Aristóteles (2003, p. 8):
A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apresentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções.
Uma das principais diferenças do texto dramático em relação aos gêneros épico e lírico é a forma como é narrado, ou melhor, como não é narrado, já que o narrador é dispensável nesse formato literário. Isso porque os acontecimentos se dão por meio das falas e das ações das personagens (ROSENFELD, 1985). 
Para melhor ilustrarmos a questão, observemos o trecho a seguir, extraído da peça Édipo Rei, do dramaturgo ateniense Sófocles ([406 a.C.], documento on-line):
Sacerdote Realmente, tu falas no momento oportuno, pois acabo de ouvir que Creonte está de volta.
Édipo Ó rei Apolo! Tomara que ele nos traga um oráculo tão propício, quanto alegre se mostra sua fisionomia. 
Entra Creonte Creonte Uma resposta favorável, pois acredito que mesmo as coisas desagradáveis, se delas nos resulta algum bem, tomam-se uma felicidade.
Édipo Mas, afinal, em que consiste essa resposta? O que acabas de dizer não nos causa confiança, nem apreensão.
Creonte (indicando o povo ajoelhado) Se queres ouvir-me na presença destes homens, eu falarei; mas estou pronto a entrar no palácio, se assim preferires.
Édipo Fala perante todos eles; o seu sofrimento me causa maior desgosto do que se fosse meu, somente.
Contemporaneamente, a teoria teatral estabelece alguns pressupostos diferentes para o texto dramático. Segundo Magaldi (1991), até o início do século XX, aproximadamente, o texto teatral era considerado parte essencial do drama, consagrando-se soberano frente à encenação. Não se concebia teatro sem obra dramática. A partir do século XX, há um declínio do chamado textocentrismo, pois o espetáculo teatral passa a ser possível e reconhecido ainda que sem texto. Ganha espaço, então, a arte da encenação, colocando encenador e autor (dramaturgo) lado a lado.
Fique Atento> Apesar de o vocábulo drama remeter à maioria das pessoas atualmente as ideias de sofrimento e dor, trata-se apenas de um dos seus muitos sentidos possíveis. No que concerne ao gênero literário, essa palavra não está ligada necessariamente à tragédia; pelo contrário, ela também engloba a comédia e diz respeito às peças teatrais em geral.
Portanto, reconhecemos que cada dramaturgo da nossa época adota um estilo diferente, assim como cada encenador, diretor ou ator podem adaptar esses estilos ao seu, conferindo um caráter mais amplo e um repertório múltiplo ao teatro. Vejamos o seguinte excerto do texto teatral O Auto da Compadecida, do escritor contemporâneo Ariano Suassuna (2014):
Chicó e João Grilo estão na frente da igreja de padre João, querem convencê-lo a benzer o cachorro de sua patroa, a mulher do padeiro.
Chicó Padre João! João Grilo Padre João! Padre João!
Padre (aparecendo na frente da igreja) Que há? Que gritaria é essa?
Chicó Mandaram avisar para o senhor não sair, porque vem uma pessoa aqui trazer um cachorro para o senhor benzer. 
Padre Para eu benzer?
Chicó Sim Padre (com desprezo) Um cachorro?
Chicó Sim 
Padre Que maluquice! Que besteira! João Grilo Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Padre Não benzo de jeito nenhum. Chicó Mas padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho. João Grilo No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor não benzeu? Padre Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu nunca ouvi falar. João Grilo É, Chicó, o padre tem razão. Uma coisa é benzer o motor do major Antônio Morais e outra benzer o cachorro do major Antônio Morais. Padre Como? João Grilo Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio Morais. Padre E o dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais? João Grilo É. Eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse. Padre (desfazendo-se em sorrisos) Zangar nada, João! Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o cachorro! João Grilo Quer dizer que benze, não é? Padre Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus. João Grilo Então fica tudo na paz do Senhor, com cachorro benzido e todo mundo fica satisfeito Padre Digam ao major que venha. Eu estou esperando (Entra na igreja).
No exemplo, é possível visualizarmos partes do texto destacadas. Essas partes correspondem às indicações cênicas dadas pelo autor da peça para os atores e diretores que porventura a encenarão. Esses trechos são denominados rubricas, que se somam aos diálogos para completar o texto dramático e podem servir como indicação cênica quando as peças são encenadas ou como complemento do texto quando lidas. Para Magaldi (1991), é necessário compreendermos o teatro como uma tríade que não funciona sem os seus três elementos: ator, texto e público. Ao assumir esses elementos como essenciais, podemos pressupor a existência de outros, como o gesto, a interpretação, o cenário, o espaço cênico, o figurino e a iluminação, por exemplo
Cruzamentos do poético e do narrativo>Você sabia que um poema não precisa necessariamente ser escrito em versos? Segundo Souza (2007), desde a Poética fica claro que o texto escrito em verso “não é um indício exterior e óbvio que distingue um texto de poesia em relação a um de medicina ou física”. Com isso, inferimosque a poesia enquanto objeto da poética não é facilmente distinguível das outras formas literárias, de forma que o verso não é um traço que distingue o poético do narrativo. Anteriormente, estudamos que o poema épico narra os feitos de um herói. Na forma clássica, observada por Aristóteles nos poemas de Homero, por exemplo, a epopeia narrava por meio de versos, contudo o próprio Aristóteles alertava que os gêneros poéticos poderiam usar a linguagem em verso ou em prosa, já que outras características eram consideradas como essenciais à poética: a mimeses, a verossimilhança, a catarse, entre outras. Segundo Souza (2007), até o século XVIII, empregava-se o termo poesia para designar as composições em verso e variados termos para as produções em forma de prosa, como epopeia, sermão, novela, etc. A partir do século XIX, o vocábulo literatura passa a ser utilizado com o sentido de “conjunto da produção escrita, objeto dos estudos literários”, abarcando tanto os textos produzidos em verso quantos os escritos em prosa. Dessa época em diante, poesia passa a designar tanto o gênero particular da literatura, que se caracterizava pelo emprego do verso, quanto as composições em prosa, desde que possuíssem certos valores artísticos, como a musicalidade ou “o predomínio dos elementos intuitivo-sentimentais sobre os lógico-discursivos” (SOUZA, 2007, p. 49).
Poema em prosa> Não é possível apontarmos com exatidão um marco que date o surgimento do poema em prosa. No entanto, muitos teóricos afirmam que é no seio do Romantismo que essa forma literária encontra abertura para desenvolver-se, posto que o poema em prosa está ligado à necessidade de libertação das formas impostas pelo movimento literário anterior, o Classicismo. Charles Baudelaire, autor de Flores do Mal, é um dos primeiros — e talvez um dos mais conhecidos — a associar prosa e verso na sua obra Pequenos poemas em prosa, publicada postumamente.
Saiba mais>Em 1861, Charles Baudelaire enviou uma carta ao editor e amigo Arsène Houssaye com a proposta de publicar uma série de escritos cujo título seria La Lueur et la fumée / poème, en prose, já adiantando o seu desejo de escrever “um poema em prosa”. Vejamos um trecho dessa carta, que foi publicada juntamente com algumas edições de Pequenos poemas em prosa (Baudelaire, 1995): Meu caro amigo, estou-lhe enviando um pequeno trabalho que não se poderia dizer, sem injustiça, que não tenha pé nem cabeça, pois, ao contrário, tudo o que ele tem é, ao mesmo tempo, cabeça e pé, alternada e reciprocamente. Considere, eu lhe peço, que admiráveis comodidades essa combinação nos oferece a todos, a você, a mim e ao leitor. Nós podemos interromper onde quisermos, eu os meus devaneios, você o manuscrito e o leitor sua leitura; porque eu não impeço a vontade contestadora de cada um no curso interminável de uma intriga superfina. [...] Qual de nós que, em seus dias de ambição, não sonhou o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rimas, tão macia e maleável para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência. É, sobretudo, da frequentação das enormes cidades e do crescimento de suas inumeráveis relações que nasce esse ideal obsessivo.
O poema em prosa, conforme Bernard (apud ÁLVARES, 1995), apesar da sua denominação, não se constitui como um gênero híbrido ou que esteja a meio caminho da prosa ou do verso. Dessa forma, Álvares aponta que, no momento do seu surgimento, no século XVIII, o poema em prosa não possuía um lugar no cânone, principalmente porque carregava no seu nome a própria contradição de dois termos que aparentemente eram opostos e inconciliáveis. Justamente pelo caráter de contradição presente na sua forma é que o poema em prosa seria a forma ideal para retratar algumas temáticas que precisavam exprimir essa dualidade (TODOROV apud ÁLVARES, 1995). Assim, os poemas em prosa de Baudelaire representaram uma prosa com musicalidade, ainda que sem rima ou ritmo, trazendo a ideia da poeticidade por meio do trabalho simbólico das palavras (ÁLVARES, 1995). Eis um exemplo de poema em prosa, retirado do livro de Charles Baudelaire Pequenos poemas em prosa (BAUDELAIRE, 1995, p. 41):
Multidão, solidão: termos iguais e conversíveis para o poeta ativo e fecundo. Quem não sabe povoar a própria solidão também não sabe estar só entre a gente atarefada. O poeta goza desse incomparável privilégio de poder, quando lhe agrada, ser ele mesmo e um outro. Como essas almas errantes que buscam um corpo, ele entra, se quiser, na personagem de alguém.
Coronel (2007) analisa de forma comparativa a poesia em prosa de Charles Baudelaire com a de Fernando Pessoa, observando que ambos se identificam com um espírito do Modernismo relacionado à desordem da forma e dos conteúdos abordados. A respeito do trecho que selecionamos do poema de Charles Baudelaire, a autora percebe os sinais de uma sensibilidade notadamente moderna em relação às grandes aglomerações humanas da cidade. Além disso, a autora afirma que a poesia de Baudelaire não concentra-se na exploração do eu pessoal do artista, que seria um traço central da lírica moderna, “passando a constituir um jogo polifônico de vozes, como se a subjetividade pura não mais pudesse representar a sensibilidade de uma época marcada pela presença das grandes massas urbanas no cenários das ruas modernas” (CORONEL, 2007, p. 6). No entendimento de Álvares, é isto o que poema em prosa faz ainda hoje: desafiar a normatividade do universo literário. Dessa forma, o poema em prosa não é uma forma que se propõe a adentrar o cânone, pois possui o caráter de desafiar os limites do que já é realizado, sem estabelecer novas regras ou formatos essenciais.
Prosa poética>Alguns autores entendem que há uma diferenciação possível entre o poema em prosa e a prosa poética. Para Paixão (2013), é a primeira palavra de cada um dos termos que os diferencia. A prosa poética, nesse sentido, teria a sua ênfase centrada na prosa, sendo o que a define enquanto forma de escrita, porém, ela apresenta recursos estilísticos advindos da poesia. Dessa maneira, a prosa poética lança um “olhar lírico sobre a realidade”, mas as frases e os parágrafos propõem uma “dinâmica extensiva para o texto e as imagens evocadas” (PAIXÃO, 2013, p. 152). Para o autor, dois exemplos nesse sentido são essenciais: Finnegans wake, de James Joyce, e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa.
Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos, é o razoável sofrer. E a alegria de amor — compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois — e Deus, junto. Vi muitas nuvens (ROSA, 2001, p. 27).
Segundo Paixão (2013), textos como esse, de João Guimarães Rosa, apresentam um “deslocamento inesperado em relação aos modelos habituais”, pois o autor desenvolve na prosa um texto dotado de carga poética. Em outras palavras, o autor alcança certo “estado de poesia” sem abdicar do plano narrativo e da extensão da sua obra. Para o autor, então, a prosa poética se distingue do poema em prosa, pois esse último desentranha-se da ideia de poema, não segue os seus formatos, mas mantém a concisão, ao contrário da prosa poética.
Gêneros literários atuais: poesia, romance e ensaio>Como já aprendemos, a classificação em gêneros literários corresponde aos modelos clássicos da realidade grega antiga. Por esse motivo, no mundo contemporâneo, existem outras divisões possíveis para os textos literários. Martins afirma que um determinado tipo de sociedade (a grega) gerou a poesia épica, enquanto outro tipo de sociedade (o mundo contemporâneo) gerou o romance. Portanto, o autor expõe, com Lukács (2000), que um gênero literário não é “meramente o resultado da inventividade de autores ou de uma evolução isolada da forma, e sim um produto, um resultado de formas sociais de produção e de consumo de em um dadomomento histórico” (MARTINS, 2012, p. 248). No mundo contemporâneo, convivem e imbricam-se as formas narrativas, líricas e dramáticas, dando origem a gêneros como o conto, o romance, o ensaio e diversos outros que deles derivam. Diante desse breve panorama, passaremos à análise de alguns dos principais gêneros que circulam nos nossos dias.
Lírica moderna>Na obra Estrutura da lírica moderna, Friedrich aponta os caminhos que a lírica percorre ao longo dos séculos XIX e XX. Para o autor, a lírica moderna atende a um objetivo comum às artes em geral: a dissonância, que seria a junção entre a incompreensibilidade e o fascínio, gerando uma tensão no leitor. Ele aponta que essa tensão se evidencia na lírica moderna tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, há uma convivência de traços “de origem arcaica, mítica e oculta com uma aguda intelectualidade” (FRIEDRICH, 1978, p. 16), ao passo em que se misturam a simplicidade da forma escrita e a complexidade dos seus conteúdos. Outro ponto importante suscitado por Friedrich é a expressão do eu do poeta, que até meados do século XIX era essencial na poesia e passa a não ser mais um traço fundamental. O poeta participa dos seus poemas enquanto artista, frequentemente refletindo sobre o próprio poema. A língua, na lírica moderna, é tomada como um experimento no qual o vocabulário e a sintaxe assumem novas significações e formas. As figuras de linguagem, como a comparação e a metáfora, “são aplicadas de uma nova maneira, que evita o termo de comparação natural e força uma união irreal daquilo que real e logicamente é inconciliável” (FRIEDRICH, 1978, p. 18). Esteticamente, o conceito de belo é repensado e discutido, o que se reflete no grotesco. Gêneros literários 13 Em resumo, o que se dá na lírica moderna é um conjunto de inovações relativas à poesia clássica que predominava até então. Ela expressa as transformações sociais que provocam conflitos no sujeito moderno, por vezes chocando o leitor, levando-o a refletir e questionar as tradições. Exemplo disso são os poemas em prosa que lemos anteriormente. Além de Baudelaire e Pessoa, no Brasil os poemas de Carlos Drummond de Andrade são bons exemplos das inovações relativas à lírica moderna. Veja, por exemplo, o poema Mãos dadas (ANDRADE, 2000, p. 118):
Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro. Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças. Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. Não serei o cantor de uma mulher, de uma história, não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista pela janela, não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida, não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins. O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes. a vida presente
Pereira (2012) ensina que esse poema é um ótimo exemplo da disputa entre a tradição e a inovação presente na lírica do século XX. O eu lírico se debate na tensão entre o “mundo caduco”, ao qual não quer ser associado, e o mundo futuro, mas explicita a sua filiação ao “tempo presente”. Além disso, o poema questiona os temas sentimentais ao expressar que não dirá “suspiros ao anoitecer”, em uma tensão entre negar a tradição lírica de fundo subjetivo ao mesmo tempo em que alude a ela, como nos trechos finais: “não distribuirei cartas de suicidas”, “nem serei raptado por serafins”.
Romance>O romance surge da necessidade do mundo moderno de traduzir a sociedade por meio de uma forma literária que correspondesse ao momento histórico. 14 Gêneros literários Lukács (2000, p. 59) traça um comparativo entre a epopeia e o romance: “O romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade”. Apesar de ter surgido séculos antes, apenas em meados do século XIX o romance se consolida como um gênero literário, resguardando a epopeia ao passado. Tal fato está diretamente relacionado às Revoluções Francesa e Industrial e ao consequente surgimento de novas classes sociais, como a burguesia. Essa reconfiguração social levou, naturalmente, ao surgimento de novas demandas, sobretudo culturais. Nesse contexto, as longas narrativas, como as epopeias, estavam ligadas ao clássico, que não representava a classe burguesa emergente. Assim, surgem os folhetins, que eram novelas publicadas diariamente nos jornais. Como expressão desse período histórico, o romance apresenta um indivíduo que, segundo Martins (2012), busca a sua essência, porém converge para o encontro das estruturas sociais, pois não há tempo para a subjetividade. Assim, “[...] o romance completa o homem que é alheio a esse mundo alheio à subjetividade. O romance é a forma que representa uma realidade interior não encontrada nas estruturas sociais que nos regem e que nos sufocam” (MARTINS, 2012, p. 252). Nesse sentido, o romance é um gênero de reflexão, que proporciona ao homem desvendar-se. Estruturalmente, o romance também atenderia a esses anseios do mundo contemporâneo. Por esse motivo, o limite do romance deve ser o limite da vida do herói, pois a sua trajetória tem a função de enfocar uma parcela do mundo. Dessa maneira, podemos distinguir duas características essenciais do romance em contraponto à epopeia: o herói, que agora é um homem comum, dividido e que poderia representar qualquer um de nós; e o tempo, que não mais retrata necessariamente o passado, mas se direciona para o futuro, adotando certo caráter de imprevisibilidade que não se configurava na epopeia (MELLO; OLIVEIRA, 2013). Nesse sentido, também o espaço adquire outra importância: conquanto na epopeia a ação se dava em um espaço restrito, no romance o espaço extrapola a questão dimensional. Se essas são características ligadas ao momento fundador do romance ou, ainda, a uma análise relativa ao século XIX e ao início do século XX, o romance contemporâneo transformou-se e desprendeu-se de tais pressupostos. As noções de tempo, espaço e a própria estrutura da narrativa têm sido constantemente reinventadas pelos autores. Virginia Woolf e James Joyce são dois autores bastante apontados como precursores de uma nova forma de Gêneros literários 15 narrativa. Uma dessas inovações é o uso do fluxo de consciência, que, no Brasil, tem em Clarice Lispector uma forte representante.
Fique Atento>Fluxo de consciência é uma técnica narrativa utilizada para expressar por meio do monólogo interior os vários estados de espírito e as emoções da personagem. O narrador apresenta pensamentos sem se preocupar em articular logicamente as ideias, misturando uma série de impressões da personagem para recriar no texto o funcionamento da mente humana (ABAURRE; PONTARA, 2005).
Como vimos, também a prosa poética é uma forma de inovação no romance. João Guimarães Rosa, juntamente com Clarice Lispector e outros escritores, representam a narrativa contemporânea com a desconstrução do convencionalismo até então vigente e um caráter de experimentação que segue até os dias atuais.
Ensaio>Na teoria literária contemporânea, o ensaio adquire um estatuto curioso e não evidente, uma vez que esse gênero já foi demasiadamente debatido entre os teóricos, chegando-se até mesmo ao ponto de considerar que já se havia dito tudo a seu respeito. Posto isso, seria consenso que o ensaio possui lugar entre o literário e o estritamente teórico. Adotaremos essa concepção como ponto de partida para que você entenda o que vem a seguir. Nesse entremeio entre literatura e teoria, poderíamos compreender o ensaio como um “irmão” da literatura, ao mesmo tempo em que se distancia das formas artísticas por abordar conceitos e possuir uma certa “pretensão à verdade desprovida de aparência estética”, conforme afirma Adorno (2003, p. 18). Carvalho (2012), por sua vez, defende que o ensaio é um tipo de texto que parte da experiência pessoal para gerar um pensamentoconceitual. Assim, o autor afirma que no ensaio há um exercício de liberdade e espaço para a criação, convertendo o gênero em algo pouco científico, diferindo, portanto, da monografia ou do artigo científico, por exemplo. Apesar de situar-se próximo ao artístico, parece sempre tangenciá-lo. Ainda segundo o autor, o ensaio é “o texto teórico que pode ser lido como literatura”, ressaltando ainda que neste gênero a forma é tão importante quanto o conteúdo (CARVALHO, 2012, p. 196).
Fique Atento>Em O ensaio como forma, Adorno escreve um ensaio sobre o próprio ensaio. Observemos que no trecho destacado, a seguir, ele cita o autor Max Bense. Vejamos como a linguagem é construída por ambos de forma literária e também argumentativa: O ensaio deve permitir que a totalidade resplandeça, em um traço particular, escolhido ou encontrado, sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada. [...] ‘Escreve ensaisticamente quem compõe experimentando; quem vira e revira o objeto, quem o questiona e o apalpa, quem o prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever (ADORNO, 2003, p. 36).
Assim, o ensaio apresenta um ponto de vista, que corresponde à perspectiva do autor, sobre determinado assunto, procurando debatê-lo com vistas a defender uma hipótese ou uma tese sobre o assunto. No entanto, ao contrário de um artigo científico, nele não se exige a adequação a aspectos formais. Logo, o ensaio é o discorrer livre e fundamentado de um autor sobre algum assunto. Em função dessa liberdade, ele encontra-se entre os gêneros chamados literários e não entre os gêneros científicos.
TEMPORADA 1
APOSTILA 3
A Odisseia de Homero e a tradição da literatura ocidental>Introdução: Imagine que você está indo para a praia de carro e calcula que deve chegar ao seu destino em três horas. No caminho, porém, o pneu do seu carro fura, falta gasolina e você está longe de um posto de combustível, ocorre um acidente e você fica preso em um enorme engarrafamento e o seu companheiro de viagem passa mal e vocês precisam parar para que ele se recupere. Assim, você acaba levando muito mais tempo para chegar do que imaginava. Contando as suas peripécias para os amigos depois, você poderia se referir a essa jornada como uma odisseia. Mas você sabe o que essa palavra realmente significa? Você sabe onde ela surgiu? Neste capítulo, você vai compreender por que as pessoas, quando utilizam o termo odisseia, querem sublinhar a dificuldade enfrentada para terminar algo. A expressão vem de um famoso livro da Grécia Antiga: a Odisseia, de Homero. Você vai descobrir qual é a história contada nesse poema épico, qual é o contexto histórico da sua produção e qual é o motivo da sua enorme importância até hoje.
A Grécia de Homero> Homero é um poeta grego (Figura 1), e essa é uma das poucas informações a respeito desse escritor das quais se tem certeza. Até mesmo o período em que viveu é discutido entre os estudiosos: alguns afi rmam que ele seria do século IX a.C., outros afi rmam que ele teria nascido apenas um século depois. Além disso, cogita-se que a sua cidade de origem tenha sido a Esmira, na atual Turquia. Porém, esse é um dado muito controverso, visto que várias cidades afi rmam ser o berço do poeta, entre elas Atenas. Há dúvidas, inclusive, em relação à autoria de Ilíada e Odisseia: os dois poemas teriam sido escritos pela mesmo pessoa? Eles seriam compilações de uma narrativa oral ou criação de Homero? Apesar de todo esse clima nebuloso que cerca o poeta e as suas obras, podemos contar com uma verdade absoluta: a Ilíada e a Odisseia são os textos mais infl uentes da literatura clássica.
Se não sabemos tanto sobre Homero e a sua biografia, temos muitas informações sobre a época e o lugar nos quais ele viveu: a Grécia da antiguidade clássica. Para entender um pouco melhor essas narrativas, é importante, primeiramente, descobrir como os gregos antigos viviam, quais eram os seus 32 A Odisseia de Homero e a tradição da literatura ocidental Textos fundamentais_U1C2.indd 32 28/08/2017 16:23:10 costumes, no que eles acreditavam, quais eram as suas narrativas favoritas e como eles se organizavam socialmente. Primeiramente, a Grécia Antiga era dividida em cidades-Estado, o que quer dizer que cada uma dessas cidades era independente, com leis e costumes próprios. Em Atenas, uma das cidades que afirmam ser o berço de Homero, por exemplo, foi desenvolvida a democracia, tipo de governo em que o poder está nas mãos do povo, que escolhe os seus representantes. Além disso, é à Grécia Antiga que devemos os nossos Jogos Olímpicos, criados pelos gregos como um festival esportivo, mas também religioso. Também merece destaque a arte desenvolvida por esse povo em diferentes áreas, como a arquitetura, a pintura, a escultura, a literatura, a dramaturgia, etc. Apesar das muitas diferenças entre as cidades-Estado, existiam alguns pontos bastante importantes em comum: um deles era a língua (o grego), e o outro, a religião. A religião tinha grande destaque na vida dos gregos. Ao contrário das religiões monoteístas, como o catolicismo, o judaísmo ou o islamismo, os gregos eram politeístas: isso quer dizer que eles não acreditavam em um deus, mas em vários, cada um sendo responsável por um aspecto da vida do homem, por um elemento da natureza ou do cosmo. A maior parte deles morava no cume do Monte Olimpo, na Tessália, ponto central da terra, que, para os gregos, era plana. Sobre o Olimpo, Homero explica, na Odisseia:
Disse Minerva, a deusa de olhos pulcros. E ao Olimpo subiu, à régia e eterna Sede dos deuses, onde a tempestade Ruge jamais, e a chuva não atinge  E nem a neve. Onde o dia brilha Num céu limpo de nuvens e ameaças. Felicidades sempiternas gozam Ali os seus divinos habitantes! (HOMERO, 2011)
Pela descrição, percebe-se que, no Olimpo, não havia lugar para intempéries: lá, o clima era sempre perfeito e ideal, e os deuses poderiam gozar de alegria e felicidade eternas permanecendo na sua sede. Outros deuses, porém, podiam habitar regiões diferentes: Hades, por exemplo, como deus dos mortos, vivia nessa região, o mundo inferior, para onde as pessoas iam depois de finda a sua vida; já Poseidon vivia no mar, justamente por dominá-lo. Todos, porém, reuniam-se no Olimpo quando Zeus os convocava.
A lista dos deuses gregos é extensa, mas alguns se destacam, e você, com certeza, já viu adaptações deles por aí: em filmes, desenhos, livros, programas infantis. Zeus talvez seja o mais famoso, pois é o líder dos deuses no Olimpo. A sua arma são os relâmpagos e ele é casado com Hera, apesar de ter inúmeras amantes. Outras figuras relevantes do panteão grego são Afrodite, deusa do amor e da beleza, Artemis, deusa da caça, Apolo, deus do sol, e Ares, deus da guerra (Figura 2).
Se você entende um pouco do catolicismo, por exemplo, pode estranhar os deuses da mitologia grega, pois eles não são seres elevados, puros, sem pecados, vivendo em um paraíso imaculado e afastado do mundo dos homens — muito pelo contrário, essas figuras estão sujeitas aos sentimentos mais mesquinhos, como ódio, inveja, vingança, mas também podem sentir 34 A Odisseia de Homero e a tradição da literatura ocidental Textos fundamentais_U1C2.indd 34 28/08/2017 16:23:11 amor, paixão, compaixão, amizade. Eles vivem no Olimpo, mas são capazes de, a qualquer momento, deixar o seu lar e ir para o mundo dos homens, onde convivem com os mortais. Muitos até mesmo tiveram relacionamentos amorosos com mortais, sendo o herói Hércules (ou Héracles) filho de Zeus com Alcmena, que não era uma deusa, mas uma mortal.
Saiba Mais>Há uma obra muito interessante sobre os deuses gregos e sobre a sua relação com os homens, que, considera-se, conferiu uma nova dimensão a esses mitos: Metamorfoses, de Ovídio. Nela, o poeta narra uma cosmologia, ou seja, uma história de criação do mundo. Ele divide, conforme era usual na Grécia Antiga, a trajetória dos homens em quatro períodos: a Idadedo Ouro, a Idade da Prata, a Idade do Bronze e a Idade do Ferro. Pelo que você pode perceber pelos nomes das idades, acreditava-se que o homem, à medida que o tempo ia passando, saía de um estado de perfeição e ia, aos poucos, degradando-se. A leitura de Metamorfoses é muito útil para compreender melhor a mitologia grega, além de conter narrativas muito interessantes, como a do herói Hércules ou a de Narciso.
Além disso, é muito importante atentar para outra característica dos deuses gregos: eles influenciavam os homens, podendo, inclusive, determinar e modificar o destino deles. Dessa forma, era fundamental que as pessoas realizassem ritos para os deuses, procurando aplacar a sua fúria e clamar pela sua benevolência, fazendo pedidos. Um exemplo desses ritos necessários era o realizado quando do falecimento de um indivíduo: o fim adequado compreendia o sepultamento. Além disso, uma moeda era colocada sobre os olhos fechados do cadáver para que, quando a sua alma chegasse às margens do rio Estige, ele tivesse como pagar a travessia para o barqueiro Caronte, uma figura esquálida e terrível, que levava as almas ao Hades (Figura 3). Aqueles que não recebiam os ritos necessário eram obrigados a vagar por cem anos na margem do rio até que pudessem atravessá-lo.
Foi, portanto, esse o contexto no qual Homero viveu e criou as suas duas obras fundamentais: Ilíada e Odisseia. Todas essas informações vão ajudar você a compreender melhor essas narrativas, principalmente a Odisseia, foco da próxima seção.
A obra de Homero: a Odisseia>Antes de começarmos a analisar a Odisseia, é importante trazer algumas informações sobre a Ilíada. A Odisseia é, na verdade, a continuação da história narrada na Ilíada. Apesar disso, os dois livros também funcionam de forma independente: você pode ler a Ilíada sem ler a Odisseia e vice-versa, e essas narrativas farão sentido. Mas é claro que, se você ler as duas em sequência, talvez alguns pontos fi quem muito mais claros. A Ilíada, então, é o primeiro poema épico de Homero. Você conhece a famosa história de Helena de Troia? Ou a do cavalo de Troia, que deu origem a uma curiosa expressão, “presente de grego”? Todos esses são elementos dessa narrativa fundamental da literatura ocidental. Helena era casada com Menelau, o rei de Esparta. Porém, o príncipe troiano Páris se apaixonou pela bela mulher e decidiu raptá-la. Foi por conta desse rapto e da fúria do marido que ocorreu a Guerra de Troia: os gregos fazem um cerco a Troia que durou dez anos e custou a vida de muitos heróis. Parecia que a guerra iria se prolongar eternamente, até que o grego Ulisses (protagonista da Odisseia) inventou um artifício que mudou tudo: os gregos construíram um enorme cavalo de madeira e oferecem-no aos troianos como um símbolo de paz e de rendição. O que os troianos não sabiam é que o cavalo era oco e, dentro dele, esperavam, atentos e em posição de combate, inúmeros soldados gregos. Assim que o cavalo foi levado para dentro das muralhas de Troia, os soldados saíram de dentro do artefato, pegando todos de surpresa e vencendo a guerra. Por isso, diz-se de um presente que traz prejuízos para quem o recebe é um presente de grego.
Fique Atento>Homero e Hesíodo são considerados os pais da épica ocidental, que é um tipo de narrativa épica. O conceito de épica engloba algumas características, como sintetiza o teórico russo Mikhail Bakhtin (1990): 
· a epopeia trata do passado nacional, daquele passado longínquo do qual todos se orgulham e no qual as coisas eram boas e perfeitas; 
· nesse sentido, a epopeia trabalha com lendas nacionais, não somente com o passado real, mas também com aqueles imaginados e criados; 
· esse tempo narrado na épica está completamente afastado do tempo presente; 
· a épica trata principalmente das classes altas, das classes dominantes; 
· a épica trata de heróis solares, corajosos, sempre prontos a executar grandes feitos que ficarão na memória do povo
A Odisseia narra os eventos ocorridos após o final da Guerra de Troia. De forma mais específica, esse poema conta ao leitor como Ulisses, aquele que teve a ideia de construir o cavalo de Troia, volta para casa. Essa jornada poderia ser rápida e tranquila, mas ele acaba levando muito mais tempo do que o esperado: Ulisses, também conhecido como Odisseu (daí o título, Odisseia), enfrenta os mais variados percalços e chega à sua casa apenas 10 anos após ter saído de Troia. Enquanto isso, a sua mulher, Penélope, espera por ele, tendo que lidar com um séquito de pretendentes bastante mal-educados. O seu filho, Telêmaco, também sofre: ele era apenas um bebê quando o seu pai partiu para Troia, e a sua ausência acaba por se prolongar por uma década de batalhas e por mais uma década da viagem de retorno. E você lembra que os gregos acreditavam na capacidade de os deuses influenciarem a vida dos mortais? Pois é, essa é uma informação muito importante para compreendermos a Odisseia. Nessa narrativa, os deuses desempenham papéis primordiais: de um lado, Atena, ou Palas Atena, a deusa da civilização e da sabedoria, defende Ulisses; do outro, Poseidon, deus do mar, é inimigo do herói (Figura 4). No trecho a seguir, você vai perceber como Atena ajuda o protagonista, clamando a Zeus para que lhe ajude quando o herói cai nas mãos de Calipso e fica preso na sua ilha por sete anos:
A Zeus respondeu Atena, a deusa de olhos esverdeados: “Pai de todos nós, mais excelso dos soberanos, [...] arde-me o espírito pelo fogoso Ulisses, esse desgraçado, que longe dos amigos se atormenta numa ilha rodeada de ondas no umbigo do mar. É uma ilha frondosa, onde tem sua morada a deusa filha de Atlas de pernicioso pensamento — esse que do mar conhece todas as profundezas e segura ele mesmo canto as colunas potentes, que céu e terra separados mantêm. Sua filha retém aquele homem desgraçado, e sempre com palavras implorantes e suaves o encanta, para que Ítaca olvide; mas Ulisses desejoso de no horizonte ver subir o fumo da sua terra tem vontade de morrer — e o teu coração não se comove, Olimpo! Não foi Ulisses quem junto às naus dos Argivos na vasta Troia sacrifícios te ofereceu? Contra ele te encolerizas, ó Zeus?” (HOMERO, 2011, p. 120- 121)
Nesse fragmento, fala-se de Calipso e de como ela procurava, incessantemente, conquistar Ulisses e fazer com que ele esquecesse (“olvidar” é o verbo utilizado pela deusa), sem nunca ter sido bem-sucedida. Quem fala é Atena, como o narrador indica, e ela se dirige ao “pai de todos nós”, Zeus. Mas, se Atena inicia o seu discurso dirigindo-se a Zeus, ela acaba fazendo uma exortação a todos os deuses quando declama: “não se comove, Olimpo!” — e o ponto de exclamação no final dá bem o tom de indignação sentida pela deusa no momento. Ela usa uma metonímia, uma figura de linguagem que troca, por exemplo, morador por morada e, no caso, os deuses do Olimpo por Olimpo. Outro elemento que deve ser destacado são os sacrifícios oferecidos por Ulisses a Zeus e utilizados como argumento pela deusa para diminuir a ira do pai. Assim, fica atestada a importância desses rituais: Ulisses ganha a benevolência de Atena justamente por ter realizado sacrifícios.
Depois, ela ainda fala: A Zeus respondeu Atena, a deusa de olhos esverdeados: “Pai de todos nós, mais excelso dos soberanos, se agrada aos corações dos deuses bem-aventurados que o sagaz Ulisses regresse a sua casa, enviemos agora Hermes mensageiro, Matador de Argos, à ilha de Ogígia para que rapidamente anuncie à ninfa de bela cabeleira a nossa vontade: que o paciente Ulisses a sua casa regresse”. (HOMERO, 2011, p. 121-122)
Hermes é outro deus grego e fica encarregado por Atena de libertar Ulisses. Portanto, podemos afirmar, a partir da análise desses dois trechos, que Ulisses é libertado da prisão de Calipso porque os deuses quiseram que assim acontecesse. Outro aspecto importante do poema épico de Homero (e que você deve ter notado nos fragmentos anteriores) são as repetições: em ambas as vezes nas quais Atena toma a palavra, o narrador a descreve como “Atena, a deusa de olhos esverdeados” (HOMERO,2011). Isso ocorre na maioria das vezes nas quais a deusa é citada: o seu nome geralmente vem acompanhado dessa descrição, que é chamada de epíteto. Contudo, não é apenas Atena que recebe um epíteto, sendo esse um elemento extremamente comum de toda a obra. Todas as vezes em que amanhece o dia, por exemplo, o narrador fala da “Aurora de róseos dedos”. Ele igualmente se refere repetidas vezes à “sensata Penélope” ou ao “ajuizado Telêmaco” (HOMERO, 2011). Você pode até pensar que Homero estava sendo muito repetitivo e que poderia ter buscado alguns sinônimos para evitar que isso acontecesse, mas é necessário compreender que esses não são “erros” ou “falhas” do poeta, mas características que o inserem na tradição oral. Até pouco tempo antes de Homero escrever a Ilíada e a Odisseia, não existia a escrita e provavelmente essas duas narrativas já existiam e passavam de boca em boca, mesmo que em fragmentos, antes do poeta grego eternizá- -las ao transformá-las em versos escritos. E as repetições são fundamentais para decorar histórias ou poemas sem o auxílio da escrita. Por isso são tão importantes nas narrativas orais ou nas narrativas que se relacionam com a oralidade, como as de Homero. Outro trecho muito famoso da Odisseia é o que narra quando a embarcação comandada por Ulisses se aproxima da Ilha de Capri, região onde habitavam muitas sereias. As sereias eram seres mitológicos formados por uma metade humana e outra metade peixe, capazes de, com o seu canto, enfeitiçar os homens e arrastá-los para as profundezas do oceano. Ulisses não queria ser enfeitiçado pelas sereias, mas, ao mesmo tempo, desejava descobrir como era esse canto tão famoso, tão falado, mas tão envolto em mistério. Para isso, ele cria um estratagema: pede que os tripulantes do navio o amarrem ao mastro, enquanto eles próprios tapam os ouvidos. Assim, o herói poderia ouvir o canto sem ser capaz de deixar a embarcação por estar muito bem amarrado — e é por essa e por outras ações que Ulisses é caracterizado como um herói engenhoso (Figura 5). A força física não é um de seus atributos, mas Ulisses é considerado um herói por sua inteligência, sagacidade e coragem. Ulisses implora que os seus companheiros o libertem para que ele se junte às sereias, mas eles colocaram cera nos ouvidos para não ouvir nada. Os seus fiéis companheiros apenas o desamarram quando o perigo passa. A narrativa termina com a chegada de Ulisses à casa, graças à sua astúcia e às graças de Atena: lá ele encontra os inúmeros pretendentes de Penélope, dos quais ele se livra, para que possa desfrutar de tempos tranquilos ao lado da esposa e do filho.
Sabemos que uma obra é um clássico quando ela possui longevidade: por mais tempo que se passe da data de escrita do texto, ele continua fazendo sentido para pessoas em tempos e em espaços diferentes. Tudo pode ter mudado da época de Homero para a nossa: hoje temos a internet, temos conhecimento de coisas que acontecem ao redor do mundo em questão de segundos, não acreditamos mais em deuses e deusas que vivem no Olimpo. As suas obras, contudo, continuam a inspirar, a comover e a ensinar os leitores contemporâneos. Por que será que isso acontece? A resposta para essa pergunta pode estar no que Joseph Campbell, um estudioso americano de mitologia, chama de a jornada do herói. Segundo o que esse teórico explica em uma das suas obras mais famosas, O herói de mil faces, a jornada do herói é um tema extremamente recorrente em histórias dos mais variados tipos: desde os mitos antigos, até poemas como o de Homero, contos de fada e narrativas contemporâneas em livros e em filmes — Star Wars é um dos exemplos favoritos de Campbell para esclarecer esse tema. Essa jornada compreende algumas etapas
A continuidade de Homero: a influência de suas obras na posteridade>Sabemos que uma obra é um clássico quando ela possui longevidade: por mais tempo que se passe da data de escrita do texto, ele continua fazendo sentido para pessoas em tempos e em espaços diferentes. Tudo pode ter mudado da época de Homero para a nossa: hoje temos a internet, temos conhecimento de coisas que acontecem ao redor do mundo em questão de segundos, não acreditamos mais em deuses e deusas que vivem no Olimpo. As suas obras, contudo, continuam a inspirar, a comover e a ensinar os leitores contemporâneos. Por que será que isso acontece? A resposta para essa pergunta pode estar no que Joseph Campbell, um estudioso americano de mitologia, chama de a jornada do herói. Segundo o que esse teórico explica em uma das suas obras mais famosas, O herói de mil faces, a jornada do herói é um tema extremamente recorrente em histórias dos mais variados tipos: desde os mitos antigos, até poemas como o de Homero, contos de fada e narrativas contemporâneas em livros e em filmes — Star Wars é um dos exemplos favoritos de Campbell para esclarecer esse tema. Essa jornada compreende algumas etapas:
1. O herói, vivendo no nosso mundo comum, é chamado para a aventura.
2. O herói cruza o limiar entre o mundo comum e o mundo fantástico das aventuras.
3. Ele enfrenta inúmeras provas que testam sua força, seus conhecimentos, seu discernimento e seu bom caráter.
4. Ele recebe a ajuda de seres mágicos.
5. Ele vence o inimigo, que pode ser um monstro terrível. 
6. Ele deve retornar para o mundo comum e passar os aprendizados que obteve para os outros (CAMPBELL, 2007). Como Ulisses: na Ilíada, ele recebe o chamado para a aventura, pois foi convocado para a Guerra de Tróia, e atende a esse chamado. Lá, ele passa por inúmeras provas e vence os seus inimigos, os troianos. Ele ainda obtém ajuda da deusa Atena. Você pode pensar que, depois de tudo isso, o herói já cumpriu a etapa mais difícil, mas isso não é verdade, e a Odisseia, a narrativa que conta o retorno de Ulisses para casa, prova isso, pois ele deve enfrentar novamente os obstáculos da ida. Mas a principal dificuldade é que nem todos estão preparados para voltar ao mundo comum e sem graça e deixar o mundo de aventuras, onde se obtém fama e glória. É isso o que os 10 anos levados para Ulisses chegar em Ítaca mostram ao leitor. A questão é que essa jornada do herói não é uma simples história, mas a representação de um processo pelo qual todos nós passamos, que é qualquer processo de mudança e de transformação. O crescimento (e o consequente amadurecimento) é um estágio bastante importante: a criança precisa deixar o seu mundo infantil, seguro e conhecido para se aventurar no mundo adulto, cheio de perigos e de provas. Porém, ao longo da vida, passamos por inúmeras outras mudanças: a saída do colégio e ingresso na universidade, o casamento, a entrada no mundo profissional, a mudança de emprego, o envelhecimento, etc. Assim, a história de Ulisses, como tantas outras, ajuda-nos a passar por esses momentos: se o herói do livro pode, eu também posso realizar grandes feitos e enfrentar o desconhecido. Portanto, não é à toa que a Odisseia foi retomada tantas e tantas vezes ao longo de todos esses séculos: a sua narrativa fala com o leitor, com os seus medos, as suas angústias, as suas alegrias pelas conquistas. Cada um de nós, enquanto lê o poema épico de Homero, é Ulisses.
Fique Atento>O escritor italiano Alberto Manguel (2007) vai mais longe e sentencia que os poemas de Homero são o início de todas as narrativas do Ocidente: toda a nossa tradição literária começa com Ilíada e Odisseia. Na verdade, a própria existência desses textos até hoje atesta a sua importância: na antiguidade grega, os livros eram copiados à mão em papiros ou pergaminhos. Apenas os documentos mais relevantes mereciam o trabalho de serem copiados e recopiados ao longo de séculos e séculos
Um dos exemplos mais famosos de adaptação do texto de Homero é o romance Ulisses (Figura 6), do escritor irlandês James Joyce. O livro, escrito entre 1914 e 1921, condensa a jornada de Ulisses em 18 horas. O herói dessa narrativa se chama Leopold Bloom e é um agente de publicidade que vive no início do século XX. Só por essas informações, você já percebeu que Joyce não reproduz o enredo deOdisseia, mas usa a sua narrativa como inspiração para criar algo novo. A narrativa é bastante complexa, com uma linguagem densa, cheia de neologismos, referências a outras obras, citações, trocadilhos. Cada A Odisseia de Homero e a tradição da literatura ocidental 43 Textos fundamentais_U1C2.indd 43 28/08/2017 16:23:12 episódio retoma alguns personagens de Odisseia, como Penélope, Telêmaco, as sereias, os ciclopes, Circe, etc.
Depois, Henri Matisse, famoso pintor francês, foi convidado para fazer um desenho para a capa do romance de James Joyce — conta-se, porém, que ele não leu Ulisses, tendo pensado na Odisseia para compor a sua obra. O romance de Joyce também serviu de inspiração para, pelo menos, dois escritores de destaque: os ingleses Virginia Woolf e T. S. Eliot. Além disso, todo dia 16 de junho (dia retratado em Ulisses) é comemorado, em Dublin, o Bloomsday. Em pubs, são lidos trechos do romance, além de ocorrerem inúmeros eventos culturais relacionados a Joyce. Todos esses exemplos foram citados para que você conheça o tamanho do alcance da obra de Homero: ela influenciou Joyce, que influenciou Matisse, Virginia Woolf e Eliot, etc. Podemos dizer que nenhuma dessas obras existiria da forma como elas existem se não fosse pela Odisseia de Homero. Mesmo que não tenhamos lido a Odisseia, se lermos Ulisses, entraremos em contato, indiretamente, com o poema épico da Grécia Antiga. Pensando assim, você consegue imaginar quantas obras devem um pouco da sua inspiração à Odisseia? 44 A Odisseia de Homero e a tradição da literatura ocidental Textos fundamentais_U1C2.indd 44 28/08/2017 16:23:12 Mas essa não é, de longe, a única adaptação. Há inúmeras versões de Odisseia, por exemplo, para o público infantil. Ruth Rocha é uma escritora brasileira que se preocupou em transformar a narrativa de Ulisses em uma história atrativa para as crianças: Ruth Rocha Conta a Odisséia é o nome da sua obra. Margaret Atwood, escritora canadense, por sua vez, escreve uma versão da epopeia a partir do ponto de vista feminino: em A odisseia de Penélope, é a esposa de Ulisses o centro do enredo. Ainda, há inúmeras produções audiovisuais que dão uma versão com imagens e sons à jornada do herói. Duas produções que procuram ser bastante próximas à narrativa são Ulisses, de 1954, filme dirigido por Mario Camerini, e A Odisseia, de 1997, minissérie do diretor Andrei Konchalovsky. E aí, meu irmão, cadê você? é uma produção que pensa no retorno e na aventura de Ulisses, mas situa a história em um tempo e em um espaço completamente diferentes: o filme, de 2000, conta a história de Ulysses, um homem que tenta fugir, com alguns amigos, de um campo de trabalhos forçados no Mississipi. Estrelado por George Clooney, a produção foi indicada a dois Oscar. 2001: uma odisseia no espaço pode ter um enredo bastante diferente do poema de Homero, mas o diretor, Stanley Kubrick, afirma ter pensado no clássico quando escolheu o título: “Nos ocorreu que, para os gregos, as vastas extensões do mar devem ter tido o mesmo tipo de mistério e de afastamento que o espaço tem para a nossa geração” (2001: A SPACE ODYSSEY, 2017). A aventura pode chamar o herói para qualquer tipo de lugar, seja o mar, seja o espaço sideral — o mais importante é que esse lugar proporcione uma aventura, um mistério, um desafio e um obstáculo. Há produções ainda mais recentes: o diretor da série de televisão Prison Break, por exemplo, baseou toda a quinta temporada, de 2017, no retorno para casa de Ulisses, por exemplo. Provavelmente, ainda existirão muitas mais no futuro. Odisseia é quase como um polvo com inúmeros tentáculos que se estendem no tempo, em direção ao futuro, e no espaço, em direção a todos os cantos do mundo.
TEMPORADA 1
APOSTILA 4
Um Épico Português: Lusíadas de Luís de Camões>Desde o período clássico, os gêneros literários ocupam o centro das discussões sobre a produção das obras ficcionais. Em sua Ars poetica, Aristóteles distingue três gêneros: o épico, o dramático e o lírico. Embora o estagirita dê maior ênfase ao drama, e boa parte de seus ensinamentos sobre a lírica tenha sido perdida, suas avaliações sobre a poesia épica são de grande relevância para a compreensão das culturas, uma vez que as epopeias são entendidas como narrativas fundadoras das nações.
Dentre os poemas épicos elevados à categoria de cânone universal, figura Os Lusíadas, escrito por Luís de Camões, publicado pela primeira vez em 1572. Obra colossal do renascimento europeu, a epopeia camoniana desdobra-se sobre a expedição de Vasco da Gama ao Oriente, acontecimento histórico tomado como ancoragem para remontar a história e os grandes feitos dos heróis lusitanos de todas as épocas. Para estudiosos do campo da literatura, como Sena (1980), Tavares (1992) e Cardoso (2005), Os Lusíadas é a pedra angular sobre a qual se erige a cultura lusófona.
Leia o capítulo Um épico português: Os Lusíadas, de Luís de Camões, da obra Introdução aos estudos da literatura, a fim de identificar Os Lusíadas como um épico clássico português. Para tanto, veja com especial atenção a mitologia greco-romana que a obra relê e o contexto histórico em que se insere, e aproveite a oportunidade para interpretar trechos da obra.
Introdução>Introdução Desde Aristóteles, os gêneros literários são classificados em épico, lírico e dramático. Enquanto os últimos se referem, respectivamente, à palavra cantada e à palavra representada, o gênero épico diz respeito à palavra contada, isto é, à palavra que narra um episódio situando-o em uma temporalidade específica. Também chamado de poesia épica, ou ainda epopeia, um épico debruça-se sobre a figura do herói e dos seus feitos majestosos ao largo de extensos períodos de tempo. As epopeias estão intimamente ligadas à narração da identidade nacional de um povo. Homero contou a Ilíada e a Odisseia (séc. VIII a.C.), Dante escreveu A divina comédia (séc. XIV), e Camões escreveu Os Lusíadas (séc. XVI). Este último trata de um elogio aos grandes feitos do povo lusitano, cuja personificação é Vasco da Gama. O épico é escrito em 10 cantos, 1.102 estrofes e 8.816 versos agrupados em oitavas decassílabas (estrofes de oito versos, cada um com 10 sílabas poéticas). O acontecimento principal da obra é a descoberta do caminho marítimo para as Índias por Vasco da Gama, ao redor do qual somam-se outras ações da história portuguesa. Neste capítulo, você vai estudar Os Lusíadas a fim de identificá-lo como um épico clássico português. Para tanto, você vai ver com especial atenção a mitologia greco-romana que a obra relê e o contexto histórico em que está se insere. Por fim, terá a oportunidade de interpretar trechos da obra.
Os Lusíadas: um épico à lusitana Embora existam abordagens modernas sobre a questão dos gêneros literários, como a de Bakhtin (1989, 1997), a perspectiva clássica da Poética de Aristóteles (2004) é fundamental para a compreensão do gênero épico. Conforme o estagirita, cujo raciocínio estava habituado a verifi car os fatos da natureza atrelados ao mundo, a literatura tem relativa autonomia em relação à sociedade, à política e à religião; logo, deve ser estudada em si mesma. Para isso, o fi lósofo dedicou-se ao estudo dos gêneros literários em relação à mimese (àquilo que eles representam, imitam, simulam), à verossimilhança (a coerência interna do texto fi ccional) e à métrica (a forma que assumem). A sua razão aponta para três gêneros: o épico, o lírico e o dramático. Especificamente, o épico narra fatos heroicos, vividos por personagens humanas excepcionais, manipuladas, de certa maneira, pelo poder dos deuses (CARDOSO, 2011). Assumindo a função de preservadora das memórias de um povo, a poesia épica, conforme orienta Aristóteles (2004), deve ser composta em métrica heroica: versos decassílabos cujas sílabas tônicas sejam necessariamente as da sexta e da décima posição, acompanhados ainda de uma ou duas sílabas tônicas complementares. A literatura clássica — especialmente a Ilíada e a Odisseia — e as proposições aristotélicas sobre a arte poética são fundadoras da literaturaocidental, e é nelas que os autores do que hoje consideramos cânone se inspiraram. Exemplo disso é a obra Os Lusíadas, tida como pedra angular da cultura lusófona. Escrito por Luís de Camões e publicado pela primeira vez em 1572, o épico é composto por versos decassílabos em métrica heroica (em sua maioria). O acontecimento que a obra narra é o da descoberta do caminho da Península Ibérica para as Índias Orientais por Vasco da Gama. Nesse contexto, o navegador é a personificação de todo o povo português e de seus grandes feitos, entre eles, a expedição marítima, responsável pela expansão do Império.
Estruturalmente, conforme Sena (1980), Os Lusíadas pode ser compreendido em três dimensões: a da sua estrutura interna, a da sua estrutura externa e a dos seus planos temáticos. Quanto à estrutura externa, (os seus elementos formais), como dito anteriormente, a obra é escrita em 10 partes, chamadas de cantos, e cada canto possui um número variável de estrofes, com oito versos cada. As rimas são cruzadas nos seis primeiros versos e emparelhadas nos dois últimos (AB AB AB CC), e os versos possuem 10 sílabas poéticas, sendo tônicas geralmente a sexta e a décima. Como exemplo, veja a análise formal das rimas e das sílabas poéticas da terceira estrofe do Canto II:
E porque está em extremo desejoso A 
De te ver, como cousa nomeada, B 
Te roga que, de nada receoso, A 
Entres a barra, tu com toda armada; B 
E porque do caminho trabalhoso A 
Trarás a gente débil e cansada, B 
Diz que na terra podes reformá-la, C
 Que a natureza obriga a desejá-la. C E
E – por – que es – tá em – ex – tre – mo – de – se – jo – (so) 
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 
De – te – ver – co – mo – cou – sa – no – me – a – (da) 
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 
Te – ro – ga – que – de – na – da – re – ce – o – (so) 
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
En – tres – a – bar – ra – tu – com – to – da ar – ma – (da)
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
E – por – que – do – ca – mi – nho – tra – ba – lho – (so) 
12 3 4 5 6 7 8 9 10
Tra - rás – a – gen – te – dé – bil – e – can – sa – (da) 
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 
Diz – que - na – ter – ra – po - des – re – for – má – (la)
 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Que a – na – tu – re – za o – bri – ga a – de – se – já – (la)
 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Fique Atento>Em casos como “que es”, “da ar” e “ga a”, ocorre a contração de duas ou mais vogais em contato em uma única sílaba. Esse fenômeno chama-se sinalefa. Assim, o que em prosa corresponderia a duas sílabas, na escansão (silabação poética) corresponde a uma única sílaba. Cabe lembrar que, metricamente, as sílabas são contadas até o último acento tônico, incluindo-o na contagem. Assim, o trecho “Que a natureza obriga a desejá-la”, que em prosa possui 14 sílabas, em verso é um decassílabo
Com relação à estrutura interna, ou seja, ao conteúdo da obra, esta organiza- -se conforme as quatro partes da estrutura clássica do poema épico: 
· A proposição: são apresentados os heróis e a temática do épico (estrofes 1 a 3 do Canto I). 
· A invocação: o poeta invoca as Tágides (ninfas do rio Tejo) e lhes suplica inspiração para escrever (estrofes 4 e 5 do Canto I). 
· A dedicatória: a obra é dedicada a Dom Sebastião, rei de Portugal (entre as estrofes 6 e 18 do Canto I).
· A narração: tem início no meio da ação, com o envio da expedição de Vasco da Gama às Índias, argumento a partir do qual o poeta retoma a história de Portugal até esse momento. Após, ele narra o desfecho da navegação até Calicute (entre as estrofes 18 do Canto I e 144 do Canto X)
Ainda, soma-se às quatro partes principais um epílogo, demarcado entre as estrofes 145 e 156 do Canto X. Por fim, com relação aos planos temáticos da obra, podem ser delineados quatro principais:
· A mitologia: são descortinadas as intervenções e influências dos deuses gregos (pagãos) nas ações dos heróis. Cabe salientar que, em Os Lusíadas, o apelo à mitologia é recurso retórico, uma vez que o poeta confessa a fé cristã e elogia o Deus uno, propagado pela figura de Dom Sebastião. Nesse contexto, os deuses clássicos (gregos) são representações simbólicas de elementos da natureza, como o mar, e de entidades abstratas, como a inspiração. 4 Um épico português: Os Lusíadas, de Luís de Camões 
· A história de Portugal: são cantados os acontecimentos históricos que enlevam a trajetória do povo lusitano. 
· A expedição: é abordada a expedição da esquadra de Vasco da Gama em busca do caminho às Índias 
· As considerações do poeta: o poeta diz-se admirador dos lusíadas e dos heróis de Portugal. No epílogo, lamenta o fato de a sua “voz rouca” não ser ouvida com mais atenção.
Releitura da mitologia greco-romana>Passaremos agora a discutir elementos que, para além da estrutura, traçam relações entre a obra de Camões e a cultura clássica — especifi camente a mitologia greco-romana. Segundo aponta Tavares (1992), nos séculos XV e XVI, Portugal viveu o seu ciclo de ouro, com a força do comércio marítimo capitaneado por Vasco da Gama. A hegemonia política e econômica de Portugal na Península Ibérica foi concomitante ao Renascimento, e ambos são fatos históricos marcados na obra Os Lusíadas. Dando vulto à conquista dos portugueses sobre as forças da natureza e à fé cristã (estandarte de Dom Sebastião), a obra de Camões apresenta sincretismo entre os deuses gregos (antropomorfizados), em paralelo com o Deus pleno e perfeito da Igreja Católica, em uma relação nem sempre harmônica. Por exemplo, antes da partida de Vasco da Gama, na estrofe 20 do Canto I, lê-se:
Quando os deuses do Olimpo luminoso, Onde o governo está da humana gente, Se juntaram em concílio glorioso, Sobre as cousas futuras do Oriente, Pisando o cristalino céu formoso, [...] (CAMÕES, [2018?])
Nesse excerto, temos a apresentação de um sincretismo sútil: os deuses do Olimpo se reúnem para arbitrar sobre o Oriente em “concílio” — menção à reunião de prelados católicos. É justamente a presença do maravilhoso e do mitológico que identifica Os Lusíadas enquanto épico, e a viagem marítima de Vasco da Gama enquanto plano temático é uma marca de intertextualidade entre esta e a Odisseia de Homero (que conta a vigem de volta de Odisseu a Ítaca após a Guerra de Troia). Dada a vastidão das menções à mitologia greco-romana na obra de Camões, exploraremos especificamente a questão dos deuses na construção da épica camoniana. Para isso, daremos ênfase a três figuras principais: Vênus, Baco e Adamastor (Figura 1). Leia os seguintes excertos, presentes nas 33ª e 30ª estrofes do Canto I e 51ª estrofe do Canto V:
Sustentava contra ele Vênus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela 
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Estas palavras Júpiter dizia,
Quando os Deuses, por ordem respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões diversas dando e recebendo.
O padre Baco ali não consentia 
No que Júpiter disse, conhecendo 
Que esquecerão seus feitos no Oriente
Se lá passar a Lusitana gente (COMÕES, [2018?])
Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano; 
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra 
Contra o que vibra os raios de Vulcano; 
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas, conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Netuno, que eu buscava (CAMÕES, [2018?]).
Na obra, Vênus (ou Afrodite), deusa greco-romana do erotismo, da beleza e da fertilidade, é tida como a defensora dos portugueses, ao passo que Baco, deus grego do vinho e da folia, é o principal opositor aos lusitanos, uma vez que eles ameaçariam “seus feitos no Oriente”. Ainda, Adamastor, filho da titânide Gaia, é um dos gigantes que se rebelou contra Zeus e, para Camões, simboliza as forças da natureza. As figuras mitológicas em Os Lusíadas são evocadas a partir da razão renascentista de revalorizar as referências clássicas, a fim de que isso levasse a um contínuo abrandamento do misticismo e dos dogmas religiosos em função da ciência e da racionalidade.Assim, a mitologia é relida por Camões e empregada alegoricamente. Em uma possível leitura, o Vasco da Gama (símbolo do povo português) precisa vencer a natureza (o mar, os ventos, etc.) para alcançar o progresso da sua nação (sob a tutela de Afrodite). Nessa jornada, entretanto, os heróis encontram contratempos postos por Baco (representante da folia e dos pagãos), motivados pelo fato de que a fé cristã levada pelas naus lusitanas levaria os deuses antigos ao esquecimento. Os Lusíadas, nessa perspectiva, para além de cantar as façanhas e as honras do povo português, é um registro de sua cruzada em nome do Cristo, atrelada aos anseios de hegemonia econômica e política.
A narração da cultura nacional em Os Lusíadas: um gesto interpretativo>Segundo pesquisadores do campo dos estudos culturais e da literatura comparada, as epopeias têm papel fundamental na construção da identidade de uma nação. O conceito de nação pensado por Stuart Hall, ainda que diga respeito às epistemes anglo-africanas e hindus, tem muito a contribuir para o entendimento do contexto nacional português. Conforme esse autor (HALL; WOODWARD, 2005), para além de nação se referir a uma entidade política (Estado), o conceito é entendido como um sistema de representação cultural. Nesse sentido, noções como a de identifi cação (pertencimento/não pertencimento) são entendidas como produtos das culturas nacionais; logo, as identidades nacionais são percebidas como narrativas. Segundo Hall (2002, p. 51–56), a narração de uma cultura nacional se faz por cinco momentos fundamentais: a narrativa da nação, a ênfase nas origens, a invenção da tradição, a ideia de um povo original e o mito fundacional. Para ele, a narrativa da nação estaria ligada a seis aspectos: histórias, cenários, paisagens, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais. Eles “[...] representam as experiências, as preocupações compartilhadas, as vitórias e as derrotas, dando sentido à nação, ligando o cotidiano ao destino nacional reproduzido pela mídia [...]” (HALL, 2002, p. 52), pela religião e pela literatura. Já a ênfase nas origens se daria sobre a continuidade, a tradição e a atemporalidade. Por sua vez, “[...] tradição inventada significa um conjunto de práticas [...] que buscam inculcar certos valores e normas de comportamentos através da repetição, a qual, automaticamente, implica continuidade com um passado histórico adequado [...]” (HALL, 2002, p. 54). Ainda, a ideia de um povo original é geralmente ligada à concepção de um povo originário e baixo, e a uma perspectiva romântica e folclorista, segundo Hall (2002). Por outro lado, o mito fundador estaria “[...] num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo ‘real’, mas do tempo ‘mítico’ [...]” (HALL, 2002, p. 54–55). Seguindo a perspectiva de Hall (2002), é possível compreender Os Lusíadas enquanto narração da cultura portuguesa. Veja quais são os elementos que nos permitem afirmar isso.
· Narrativa da nação: conforme Hall (2002), ela se relaciona às histórias, aos eventos históricos e aos rituais nacionais. A obra de Camões, em si, é um resumo da história de Portugal, que toma como ponto de ancoragem a expedição de Vasco da Gama às Índias. Veja a estrofe 94 do Canto V.
Trabalha por mostrar Vasco da Gama
Que essas navegações que o mundo canta
Não merecem tamanha glória e fama
Como a sua, que o Céu e a Terra espanta. Si;
mas aquele Herói que estima e ama
Com deões, mercês, favores e honra tanta
A lira Mantuana, faz que soe Enéias,
e a Romana glória voe (CAMÕES, [2018?])
· Ênfase nas origens: segundo Hall (2002), a ênfase nas origens se dá sobre a continuidade e a tradição. Embora o poeta remonte às origens de Portugal em Luso e, posteriormente, em Viriato, é na figura de Dom Afonso VI de Leão e Castela que é posta a ideia da fundação de Portugal. Essa teria ocorrido durante o “milagre de Ourique” (Figura 2), em que, após as tropas de Dom Afonso — em desvantagem — derrotarem os exércitos mouros no Baixo Alentejo, este autoproclamou-se rei dos portucalenses. Diz-se que Dom Afonso Henriques foi abençoado pelo próprio Cristo durante a batalha. Camões assim escreve sobre esse feito na estrofe 45 do Canto III.
A matutina luz, serena e fria,
As Estrelas do Pólo já apartava,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amostrando-se a Afonso, o animava. 
Ele, adorando Quem lhe aparecia, 
Na Fé todo inflamado assim gritava: —
«Aos Infiéis, Senhor, aos Infiéis, 
E não a mi, que creio o que podeis! (CAMÕES, [208?])
· Invenção da tradição: a invenção da tradição está intimamente relacionada à ênfase nas origens, uma vez que estas dão sustento à própria tradição. Entre as tradições narradas por Camões, podemos destacar a cristã, que assume o cerne da obra. Na segunda estrofe do Canto VII, Camões elogia os feitos lusitanos que se fazem tradição, isto é, conquistarem o “povo imundo” em função de glorificar ao Cristo.
A vós, ó geração de Luso, digo,
Que tão pequena parte sois no mundo,
Não digo inda no mundo, mas no amigo 
Curral de Quem governa o Céu rotundo;
Vós, a quem não somente algum perigo 
Estorva conquistar o povo imundo,
Mas nem cobiça ou pouca obediência
Da Madre que nos Céus está em essência (CAMÕES, [2018?]);
· Ideia de um povo original/mito fundacional: Hall (2002) atenta para o caráter “folclorista e romântico” da ideia de um povo original, arraigada à de um mito fundacional. A ideia de um povo lusitano surge ao mesmo tempo que a figura do seu representante divino, Dom Afonso VI. Assim, o milagre que se deu na batalha de Ourique é cantado por Camões como mito fundador de Portugal e do seu povo, como você pode ver na estrofe 46 do Canto III.
Com tal milagre os ânimos da gente 
Portuguesa inflamados, levantavam 
Por seu Rei natural este excelente
 Príncipe, que do peito tanto amavam; 
E diante do exército potente 
Dos inimigos, gritando, o céu tocavam, 
Dizendo em alta voz: — «Real, real,
Por Afonso, alto Rei de Portugal! (CAMÕES, [2018?])

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