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EPILEPSIA: Introdução: A epilepsia é uma das doenças neurológicas crônicas mais comuns, atualmente com cerca de 50 a 60 milhões de pessoas afetadas no mundo, sendo 80% vivendo em países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos. A alta prevalência e o impacto das manifestações clínicas contribuem para que a epilepsia seja uma condição frequente nos atendimentos ambulatoriais e nos serviços de urgência. Epidemiologia: - A prevalência de epilepsia ativa é de 0,5 a 0,8% nos países desenvolvidos e 1% nos países em desenvolvimento, onde as desigualdades sociais ficam mais evidentes nas diferenças entre as taxas de prevalência nas regiões urbanas (0,6%) e rurais (1,3%). - Uma meta-análise publicada em 2011 mostrou incidência de 45 casos para cada 100.000 habitantes nos países desenvolvidos e 82 casos para cada 100.000 habitantes nos países em desenvolvimento. - Essas diferenças provavelmente resultam de variações em fatores de risco para epilepsia como infecções, traumas e cuidados inadequados à saúde materno-infantil. Definição: doença caracterizada pela predisposição persistente do cérebro a gerar crises epilépticas, com consequências neurobiológicas, cognitivas, psicológicas e sociais. A definição requer pelo menos 1 crise epiléptica. • Crise epiléptica: ocorrência transitória de sinais e/ou sintomas devido a uma atividade neuronal excessiva ou síncrona no cérebro. Esses sinais ou sintomas acontecem de forma súbita, breve e estereotipada e podem incluir fenômenos como alterações da consciência, eventos motores, autonômicos, sensitivo/sensoriais, cognitivos ou emocionais. • Predisposição persistente: na epilepsia, o cérebro está configurado de forma a gerar crises epilépticas espontâneas ou “não-provocadas” (ocorrem fora do contexto da vigência de um insulto agudo). As crises epilépticas “provocadas”, ou crises sintomáticas agudas, são causadas por condições agudas que reduzem temporariamente o limiar neuronal para crises, como: alterações sistêmicas (hipoglicemia), ou neurológicas (TCE, AVC, meningoencefalite). Dessa forma, conclui-se que as crises que acontecem apenas em insulto agudo não configuram critério para predisposição persistente, e as crises sintomáticas agudas não podem ser definidas como epilepsia. É importante considerar o intervalo de tempo entre a ocorrência do insulto agudo (TCE, AVC) e as crises. A forma mais comum de determinar que há predisposição persistente do cérebro a gerar crises epilépticas, ou seja, que há epilepsia é ocorrência de pelo menos duas crises não-provocadas ocorrendo em um intervalo superior a 24 horas. Obs: crises epilépticas que ocorrem num intervalo de tempo menor que 24h são consideradas crise única. Definição proposta pela ILAE, em 2014: Para ter epilepsia é necessário uma das condições: ➢ Pelo menos duas crises não-provocadas (ou duas crises reflexas) ocorrendo em um intervalo superior a 24 horas; ➢ Uma crise não provocada (ou uma crise reflexa) e probabilidade de recorrência estimada em pelo menos 60% (mesmo risco de recorrência após duas crises); ➢ Diagnóstico de uma síndrome epiléptica. Classificação: 1. Crise de início focal; 2. Crise de início generalizado; 3. Crise de origem desconhecida. Crises focais: São aquelas que se originam em redes neuronais limitadas a um hemisfério cerebral e devem ser consideradas quando há sinais ou sintomas focais mesmo se a pessoa apresentar manifestações motoras bilaterais. As crises focais podem ser descritas de acordo com uma ou mais das seguintes manifestações: - Comprometimento da consciência presente ou ausente chamadas de, respectivamente, crises disperceptivas ou crises perceptivas; - Motoras (tônicas, atônicas, mioclônicas, clônicas, espasmos epilépticos e hipermotoras), - Não-motoras (sensoriais, cognitivas, emocionais e autonômicas); - Evolução para crise tônico-clônica bilateral. Crises generalizadas: São aquelas que se originam em redes neuronais distribuídas bilateralmente que são rapidamente engajadas, sem focalidade específica, e podem envolver estruturas corticais e subcorticais, mas não necessariamente o córtex inteiro. As crises generalizadas podem ser do tipo: - Motoras (tônico-clônica, clônicas, tônicas, atônicas, mioclônicas, mioclônico-atônicas, clônico-tônico- clônicas, espasmos epilépticos); - Não-motoras - Ausência (típicas, atípicas, mioclônicas e mioclonias palpebrais). Crises de origem desconhecida: Não chega a refletir verdadeiramente um tipo específico de crise mas engloba situações em que a identificação do início ainda não foi possível. Isso pode ocorrer em situações como crises durante o sono ou sem testemunhas. Podem ser descritas como motoras ou não-motoras. Etiologia: • Genética: A epilepsia é resultado direto de um defeito genético conhecido ou presumido, no qual as crises são o principal sintoma, podendo haver modificação da expressão da doença por fatores ambientais. Os genes de causa ou suscetibilidade são herdados (padrão de herança mendeliano, mitocondrial ou complexo) ou resultam de mutações de novo que podem ser ou não geneticamente transmissíveis. • Estrutural/metabólica: Lesão estrutural visível na neuroimagem e concordante com os dados eletroclínicos, sugerindo uma relação direta entre a epilepsia e a lesão. Podem ser adquiridas (isquemias, traumas, infecções e outros) ou de causas genéticas em que um fator se interpõe entre a causa genética e a epilepsia (lesões da esclerose tuberosa e de muitas malformações do desenvolvimento cortical). Na causa metabólica há um defeito metabólico com sintomas sistêmicos que levam também ao desenvolvimento de epilepsia. Geralmente há uma causa genética de base, podendo-se aplicar o nome metabólico-genético (por exemplo, aminoacidopatias). • Desconhecida. Na revisão de 2013, foram separadas as causas metabólicas das estruturais e adicionadas: • Imunológica: Há evidência de um processo autoimune ocasionando inflamação do sistema nervoso central (por exemplo, encefalite anti-receptor NMDA). • Infecciosa: Desencadeada por um processo infeccioso como neurocisticercose, toxoplasmose e HIV. Não seriam consideradas as crises na vigência de infecção aguda como meningite ou encefalite. Fisiopatologia: Uma crise epiléptica resulta de uma sincronização anormal transitória de neurônios cerebrais que perturba os padrões normais de comunicação neuronal e resulta em descargas elétricas no eletrencefalograma (crises eletrográficas). Essa perturbação pode provocar vários sintomas e sinais que dependem no local de origem da crise (zona epileptogênica) e suas conexões. Dentro da zona epileptogênica, as crises são geralmente decorrentes do aumento da excitação ou redução da inibição elétrica celular e é cada vez mais reconhecida a importância das suas conexões. Redes neuronais diferentes podem estar envolvidas no início, propagação e término das crises e deve ser considerado que essas redes sofrem alterações plásticas durante o desenvolvimento de formas região- especificas, gênero-especificas e idade-especificas. Fatores epigenéticos (como o estresse, as próprias crises, inflamação e drogas) podem alterar ainda mais a dinâmica das redes interferindo tanto nas vias de sinalização como no desenvolvimento cerebral. Diagnóstico: - Entrevista clínica detalhada (e pelo menos uma testemunha dos episódios): dados fornecidos tanto pelo paciente, que auxiliam a identificar manifestações clínicas que ocorrem sob a forma de sintomas (sensoriais e sensitivas) e pelo acompanhante, que relatam fenômenos ocorridos quando o paciente apresenta comprometimento da consciência. - Exames complementares: destaca-se o papel do EEG (serve para suporte diagnóstico e classificação dos tipos de crises e epilepsia). O EEG possibilitao registro da atividade elétrica cerebral mapeada de acordo com a posição dos eletrodos de superfície. Na maioria dos casos essa monitorização eletrográfica ocorre em situação ambulatorial com registro de duração de cerca de 30 minutos e, portanto, raramente consegue flagrar a ocorrência de crise epiléptica. Nessa situação de registro interictal, a presença e o padrão de paroxismos epileptiformes (PE) são os achados de maior utilidade clínica. De uma forma geral, a especificidade dos PE interictais para o diagnóstico de epilepsia é alta em adultos, podendo chegar a mais de 90%, mas é influenciada pela experiência do médico que analisa o exame, pelo padrão dos PE e pelas características do paciente como idade, história familiar e condições comórbidas. Um EEG de rotina isolado apresenta baixa sensibilidade para detecção de PE interictais (20 a 50%) em pacientes com epilepsia. A sensibilidade pode ser aumentada por realização de estudos repetidos e de estudos realizados nas primeiras 24 horas após uma crise epiléptica, pelo uso de eletrodos especiais, registro em sono e com outros métodos de ativação e por registro prolongados. Ainda assim, um EEG persistentemente normal não exclui a possibilidade de epilepsia. Em situações específicas, como epilepsia refratária com indicação cirúrgica, há indicação de monitorização por vídeo-EEG para adequada caracterização do tipo de crise e identificação da zona epileptogênica. Nesses casos, o paciente é submetido a monitorização contínua por vídeo e EEG objetivando o registro das crises epilépticas. Exames de imagem (TC ou preferencialmente RM) geralmente são necessários para o diagnóstico etiológico, principalmente em adultos e idosos, podendo ser dispensáveis apenas em síndromes epilépticas genéticas muito bem caracterizadas (ausência infantil, epilepsia mioclônica juvenil ou epilepsia da infância com pontas centrotemporais). Exames laboratoriais, exame de líquor e outros testes são indicados apenas em situações especiais. Como é feita a abordagem diagnóstica: A fase preliminar é identificar o(s) eventos(s) paroxístico(s) como crise(s) epiléptica(s) e a condição do paciente como epilepsia, pois há diagnósticos diferenciais importantes como síncope convulsiva, eventos psicogênicos, migrânea com aura, ataque isquêmico transitório, transtornos do movimento, entre outros. A partir daí, segue-se a evolução do diagnóstico até o nível máximo possível: • Nível 1 - Tipo de crise epiléptica; • Nível 2 – Tipo de epilepsia: de acordo com os tipos de crises, a epilepsia pode ser classificada como focal, generalizada, generalizada e focal e desconhecida. • Nível 3 – Síndrome epiléptica: se padrão clínico- eletrográfico claro conforme descrito na proposta de classificação • O diagnóstico da etiologia da epilepsia perpassa todos os níveis. O clínico deve buscar atingir o máximo de níveis possíveis, para maior precisão diagnóstica. Entretanto, a condição mais elementar para esse processo é o conhecimento sobre diagnóstico diferencial das crises epilépticas, características dos tipos de crises e das síndromes epilépticas e de outras formas de epilepsia. Comorbidades: Há associação comum com transtornos psiquiátricos, o que prediz pior resposta ao tratamento inicial com drogas antiepilépticas (DAE) e associa-se a um maior risco de morte. Em estudo populacional, quase 1/3 das pessoas com epilepsia apresentaram diagnóstico de transtorno depressivo ou ansioso, o dobro da prevalência da população geral. Também há frequentes comorbidades somáticas que podem ser a causa da epilepsia (exemplo: doença cerebrovascular), resultantes da epilepsia ou do tratamento om drogas antiepilépticas (exemplo: depressão ou obesidade) ou podem dividir a mesma causa (exemplo: erros inatos do metabolismo). Tratamento: Tratamento agudo: Durante uma crise tônico-clônica, as principais recomendações são: manter a calma, proteger o paciente de ameaças ambientais e, após a redução dos movimentos mais vigorosos, colocar o paciente em decúbito lateral para reduzir a chance de aspiração, e aguardar a fase de recuperação pós-ictal. Se o indivíduo estiver sozinho, poderá ser útil procurar alguma forma de identificação com número de contato de emergência. Lembrar que a duração total da fase ictal tem cerca de 1 minuto e, em caso de crise prolongada ou crises reentrantes, o paciente deve ser encaminhado imediatamente a serviço de emergência pela possibilidade de estado de mal epiléptico. Tratamento crônico: Profilaxia de crises: Estudos recentes têm demonstrado que cerca de 70% dos adultos e crianças com epilepsia podem ter as crises completamente controladas com DAE (drogas antiepilépticas) e, após 2 a 5 anos de tratamento bem- sucedido com o paciente livre de crises, as medicações podem ser retiradas de forma gradual em cerca de 70% das crianças e em 60% dos adultos sem recorrência subsequente. As taxas de resposta variam de acordo com a síndrome epiléptica, a causa subjacente e outros fatores mas, independente de fatores prognósticos, a maioria dos pacientes que fica livre de crises responde à primeira medicação prescrita. Apesar da maioria dos casos de epilepsia poder ser adequadamente diagnosticados e tratados em nível de atenção primário, nos países menos desenvolvidos cerca de 3⁄4 dos pacientes não recebem o tratamento adequado devido a uma combinação de fatores como a falta de acesso a profissionais médicos adequadamente treinados e às DAE. A decisão sobre iniciar o tratamento farmacológico deve ser baseada em avaliação cuidadosa de acordo com o risco-benefício e as preferências do paciente ou da família. Na maioria dos casos, a ocorrência de pelo menos duas crises em intervalo superior a 24 horas justifica o início do tratamento, mas também pode ser indicado após crise única em pacientes com alto risco de recorrência. A escolha da DAE deve levar em consideração vários fatores como: - Eficácia para o tipo de crise e tipo de síndrome epiléptica; - Idade; - Sexo; - Perfil de efeitos colaterais; - Potencial de interação medicamentosa; - Contraindicações; - Comorbidades; - Posologia; - Custo; - Atitudes do paciente. Historicamente, as DAE podem ser classificadas em três gerações. A primeira geração (início da comercialização entre 1857 e 1958) inclui fármacos como o fenobarbital, a fenitoína, a primidona e a etossuximida. Integram a segunda geração (início entre 1960 e 1975) fármacos como a carbamazepina, o valproato e os benzodiazepínicos. A terceira geração (após 1980) compreende fármacos como a gabapentina, oxcarbazepina, vigabatrina, lamotrigina e topiramato. Fármacos já estabelecidos como a carbamazepina e o ácido valpróico continuam como opções de primeira linha e algumas novas DAE são crescentemente utilizadas como tratamento inicial pelo bom perfil de tolerabilidade e baixo potencial de interações medicamentosas. Espectro de eficácia das principais DAE disponíveis no Brasil de acordo com os tipos de crises: 1. Efetivas contra crises focais e a maioria das crises generalizadas: ácido valpróico, benzodiazepínicos (ocasionalmente exacerbam crises tônicas, principalmente se uso endovendoso em pacientes com síndrome de Lennox-Gastaut), fenobarbital e primidona (exceto crises de ausência), lamotrigina (pode agravar crises mioclônicas), levetiracetam (sem eficácia comprovada para tônicas e atônicas, melhor para crises focais, tcg primárias ou secundárias e mioclônicas), topiramato (melhor para focal e TCG primaria e secundaria e drop attacks; sem eficácia documentada contra ausência). 2. Efetivos contra crises focais com ou sem generalização secundária: carbamazepina, fenitoína, oxcarbazepina, lacosamida, gabapentina e pregabalina (essas últimas podem precipitarou agravar crises mioclônicas), vigabatrina (espasmos epilépticos). Além da escolha adequada da DAE, são princípios relevantes do tratamento medicamentoso: identificar e corrigir fatores precipitantes (como privação de sono); investir na monoterapia; usar a menor dose necessária para controlar as crises com reavaliações regulares e ajustes de acordo com a ocorrência de crises ou efeitos adversos; informar o paciente e/ou cuidador sobre a importância da adesão ao tratamento e fazer todo o esforço para usar regime posológico conveniente. Quando não há controle das crises epilépticas deve-se avaliar cuidadosamente a possibilidade de não adesão, reavaliar o diagnóstico (se é epilepsia e quais os tipos de crises e o tipo de síndrome) e considerar mudança gradual para outra monoterapia. Pacientes com crises de difícil controle podem precisar de politerapia precoce e, nesses casos, devem ser considerados os tratamentos alternativos como cirurgia. Em pacientes controlados de crises pode-se considerar a descontinuação da DAE após pelo menos dois anos de controle, mas essa decisão precisa ser individualizada levando em consideração a visão do paciente ou familiares, efeitos colaterais da DAE em uso, fatores prognósticos de recorrência de crises, aspectos relacionadas à direção de veículos e a outras atividades da vida diária que podem sofrer interferência. Critérios de resolução: Alguém que teve diagnóstico de epilepsia sempre terá mais chances de ter crises epilépticas do que as pessoas da população geral. Assim, seria inadequado definir “epilepsia curada” e a nova definição da ILAE propõe o termo “epilepsia resolvida”. A epilepsia é considerada resolvida naqueles indivíduos que tiveram uma síndrome epiléptica idade relacionada e que já ultrapassaram a faixa etária de risco ou naqueles livres de crises há mais de 10 anos e sem uso medicações antiepilépticas há pelo menos 5 anos.
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