Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Consciência corporal Terezinha Petrucia da Nóbrega Educação Física Consciência corporal Natal – RN, 2015 Educação Física Terezinha Petrucia da Nóbrega Consciência corporal Catalogação da Publicação na Fonte. Bibliotecária Verônica Pinheiro da Silva CRB-15/692. Todas as imagens utilizadas nesta publicação tiveram suas informações cromáticas originais alteradas a fim de adaptarem-se aos parâmetros do projeto gráfico. © Copyright 2005. Todos os direitos reservados a Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – EDUFRN. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização expressa do Ministério da Educação – MEC COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO DE MATERIAIS DIDÁTICOS Marcos Aurélio Felipe COORDENAÇÃO DE REVISÃO Maria da Penha Casado Alves COORDENAÇÃO DE DESIGN GRÁFICO Ivana Lima GESTÃO DO PROCESSO DE REVISÃO Rosilene Alves de Paiva GESTÃO DO PROCESSO DE DESIGN GRÁFICO Dickson de Oliveira Tavares PROJETO GRÁFICO Ivana Lima REVISÃO DE MATERIAIS Ailson Alexandre Câmara de Medeiros Andreia Maria Braz da Silva Camila Maria Gomes Cristiane Severo da Silva Cristinara Ferreira dos Santos Edneide da Silva Marques Emanuelle Pereira de Lima Diniz Eugenio Tavares Borges Fabiola Barreto Gonçalves Julianny de Lima Dantas Simião Margareth Pereira Dias Orlando Brandão Meza Ucella Priscilla Xavier de Macedo Verônica Pinheiro da Silva FICHA TÉCNICA Revisão de estrutura e linguagem Camila Maria Gomes Revisão de língua portuguesa Bruna Rafaelle de Jesus Lopes Orlando Brandão Meza Ucella Emanuelle Pereira de Lima Diniz Fabiola Barreto Gonçalves Lisane Mariádne Melo de Paiva Priscilla Xavier de Macedo Revisão de normas da ABNT Cristiane Severo da Silva Edneide da Silva Marques Verônica Pinheiro da Silva Diagramação José Agripino de Oliveira Neto Criação e edição de imagens Amanda Duarte Revisão tipográfica Leticia Torres Pré-impressão José Agripino de Oliveira Neto IMAGENS UTILIZADAS Acervo da UFRN www.depositphotos.com www.morguefile.com www.sxc.hu Encyclopædia Britannica, Inc. Governo Federal Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Vice-Presidente da República Michel Miguel Elias Temer Lulia Ministro da Educação Renato Janine Ribeiro Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Reitora Ângela Maria Paiva Cruz Vice-Reitora Maria de Fátima Freire Melo Ximenes Secretaria de Educação a Distância (SEDIS) Secretária de Educação a Distância Maria Carmem Freire Diógenes Rêgo Secretária Adjunta de Educação a Distância Ione Rodrigues Diniz Morais EDITORAÇÃO DE MATERIAIS Alessandro de Oliveira Paula Amanda de Lima Cabral Amanda Duarte Anderson Gomes do Nascimento Carolina Aires Mayer Carolina Costa de Oliveira Heloisa Fernandes Ferreira Nunes José Agripino de Oliveira Neto Leticia Torres Luciana Melo de Lacerda Mauricio da Silva Oliveira Junior Sumário Apresentação institucional 5 Apresentação da disciplina 7 Aula 1 Consciência corporal e atitude fenomenológica 9 Aula 2 A percepção do corpo na antiginástica 29 Aula 3 A percepção do corpo na Eutonia 47 Aula 4 A percepção do movimento nos exercícios de Feldenkrais 63 Aula 5 O toque e o contato humano 81 Aula 6 A percepção do corpo na bioenergética e na biodança 97 Aula 7 Práticas corporais orientais e a consciência corporal 115 Aula 8 O Método Dança-Educação Física (MDEF) 133 Aula 9 Corpo, sexualidade e afetividade na formação do ser humano 149 Aula 10 O conhecimento do corpo nas aulas de Educação Física 167 Perfil da autora 183 Apresentação institucional A Secretaria de Educação a Distância – SEDIS da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, desde 2005, vem atuando como fomentadora, no âmbito local, das Políticas Nacionais de Educação a Distância em parceira com a Secretaria de Educação a Distância – SEED, o Ministério da Educação – MEC e a Universidade Aberta do Brasil – UAB/CAPES. Duas linhas de atuação têm caracterizado o esforço em EaD desta instituição: a primeira está voltada para a Formação Continuada de Professores do Ensino Básico, sendo imple- mentados cursos de licenciatura e pós-graduação lato e stricto sensu; a segunda volta-se para a Formação de Gestores Públicos, através da oferta de bacharelados e especializações em Administração Pública e Administração Pública Municipal. Para dar suporte à oferta dos cursos de EaD, a SEDIS tem disponibilizado um conjunto de meios didáticos e pedagógicos, dentre os quais se destacam os materiais impressos que são elaborados por disciplinas, utilizando linguagem e projeto gráfico para atender às necessidades de um aluno que aprende a distân- cia. O conteúdo é elaborado por profissionais qualificados e que têm experiên- cia relevante na área, com o apoio de uma equipe multidisciplinar. O material impresso é a referência primária para o aluno, sendo indicadas outras mídias, como videoaulas, livros, textos, filmes, videoconferências, materiais digitais e interativos e webconferências, que possibilitam ampliar os conteúdos e a inte- ração entre os sujeitos do processo de aprendizagem. Assim, a UFRN através da SEDIS se integra ao grupo de instituições que assumiram o desafio de contribuir com a formação desse “capital” humano e incorporou a EaD como modalidade capaz de superar as barreiras espaciais e políticas que tornaram cada vez mais seleto o acesso à graduação e à pós- graduação no Brasil. No Rio Grande do Norte, a UFRN está presente em polos presenciais de apoio localizados nas mais diferentes regiões, ofertando cursos de graduação, aperfeiçoamento, especialização e mestrado, interiorizando e tornando o Ensino Superior uma realidade que contribui para diminuir as diferenças regionais e transformar o conhecimento em uma possibilidade concreta para o desenvolvimento local. Nesse sentido, este material que você recebe é resultado de um investimento intelectual e econômico assumido por diversas instituições que se comprometeram com a Educação e com a reversão da seletividade do espaço quanto ao acesso e ao consumo do saber E REFLETE O COMPROMISSO DA SEDIS/UFRN COM A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA como modalidade estratégica para a melhoria dos indicadores educacionais no RN e no Brasil. Secretaria de Educação a Distância SEDIS/UFRN 5 Apresentação da disciplina 7 Caro(a) aluno(a), na Aula 1 desta disciplina, estudaremos a abordagem feno- menológica da corporeidade que dá sustentação teórica às aulas práticas da disciplina e ao conteúdo apresentado. Na Aula 2, você terá acesso ao conhecimento da antiginástica e aos princípios teóricos e metodológicos dessa técnica corporal de sensibilização. Na Aula 3, você poderá compreender a eutonia e a busca do equilíbrio do tônus muscular em atividades de ritmo e expressão corporal. Na Aula 4, abordaremos a técnica de Feldenkarias em toda sua riqueza de experiências da motricidade humana. Na Aula 5, discutiremos as noções de tato e contato, como também a massa- gem tal como uma técnica de relaxamento e, sobretudo, de interação e afetividade na relação com o outro. Na Aula 6, aprofundaremos essa perspectiva do contato humano por meio das experiências da bioenergética e da biodança. Na Aula 7, faremos uma viagem ao oriente e à experiência filosófica e cor- pórea do tai chi chuan, você irá descobrir uma nova maneira de perceber seu corpo na relação com a natureza e com o mundo. Na Aula 8, você entrará em contato com o Método Dança-Educação Física (MDEF), precursor da consciência corporal na educação física. Nas Aulas 9 e 10, você poderá compreender aspectos do corpo relacionados ao corpo, à sexualidade e ao conhecimento da educação física em vários níveis da educação básica. Nesse percurso, espera-se que você possa descobrir e encon- trar horizontes para acessar o conhecimento sobre o corpo nas aulas da nossa disciplina. Isto é, descobrir seu corpo, sua motricidade e sensibilidade como formas de se expressar, de ser e de estar no mundo de forma criativa, em toda sua plenitude. Espera-se, ainda, que você possa ser sensívelaos conhecimentos dessa disciplina que articulam princípios teóricos e metodológicos, teoria e prática, mas, sobretudo, objetivamos despertar cada um de vocês para a responsabilidade, a consciência corporal e profissional de ser professor(a) de educação física na arte de cuidar do corpo e da vida. Consciência corporal e atitude fenomenológica 1 Aula 11 2 1 11 Apresentação O que significa estar consciente? Somos conscientes de tudo o que se passa ao nosso redor? Somos conscientes de nossa realidade corpórea? Nesta aula, vamos introduzir o tema da consciência corporal. O significado do termo consciência ultrapassa o uso comum de estarmos cientes dos próprios estados, percepções, ideias, sentimentos e vontades. O sig- nificado também ultrapassa o sentido usual quando se diz que alguém está consciente se não está dormindo, desmaiado ou afastado de suas ações, como ocorre em estado de coma ou transe, por exemplo. Nesta aula, vamos apresentar o sentido filosófico do termo consciência que remete a uma noção em que o aspecto ético-moral (a possibilidade de autojulgar-se) tem conexão com o aspecto teórico (possibilidade de conhecer-se). Desse modo, sentir, pensar e agir são dimensões de um mesmo fenômeno. Por essa razão, não é incomum observarmos as atitudes do cotidiano e nos questionarmos: agimos com conhecimento? Somos capazes de conhecer tudo? Quais os fenômenos que abrangem a nossa vida psíquica? Essas são algumas das questões a serem abordadas nesta aula. Vamos relacionar a noção de consciência com o conhecimento do corpo. Para tanto, iremos considerar a atitude fenomenológica, as noções de corporeidade e motricidade como base para as dimensões metodológicas das práticas corporais que iremos abordar nas demais aulas da disciplina Consciência Corporal. Objetivos Analisar as concepções de consciência ao longo da história do conhecimento. Relacionar a consciência corporal com a atitude fenomenológica. Aula 1 Consciência corporal 13 Breve história da noção de consciência Do ponto de vista científico e filosófico, podemos dizer que a consciência remete ao sujeito, tendo como centro a atividade reflexiva. Porém, o reco-nhecimento de uma realidade interior privilegiada só existe nas filosofias que assumem como tema a oposição entre interioridade e exterioridade, ou seja, nas filosofias dualistas que distinguem corpo e alma, sujeito e objeto. A elaboração decisiva da noção de consciência é dada pelo filósofo da antiguidade grega Plotino, como sendo um retorno para a interioridade ou uma reflexão sobre si mesmo. Mas, só com Descartes, filósofo francês do século XVII, a noção é esclarecida e quase que universalmente aceita na filosofia ocidental, com sua famosa frase: cogito ergo sum, que é compreendida como sendo a autoevidência existencial do pensamento (ABBAGNANO, 1998). Observe que a construção do conceito de consciência percorre um longo ca- minho da antiguidade época moderna. E, hoje, o que podemos dizer da noção de consciência? Entre os séculos XIX e XX também ocorreram mudanças na perspectiva da compreensão da consciência e nas relações entre corpo e alma, sujeito cognoscente, alienação e inconsciente, fenômenos relacionados diretamente com a compreensão contemporânea da consciência. Nesta aula, vamos percorrer esse caminho de forma panorâmica para perceber essa construção conceitual e seus desdobramentos teóricos e práticos. Como ponto de partida, vamos voltar à antiguidade grega e começar nossa caminhada na busca por compreender e ampliar nossa compreensão de consciência e sua história no pensamento ocidental. Vamos começar com Platão, filósofo grego, que viveu entre os séculos 427-348 a.C. em Atenas, e que viajou também pelo Oriente. Sua filosofia é marcada, portanto, por reminiscências da cultura oriental. Platão escrevia sob a forma de diálogos. Em um de seus diálogos, o “Fédon”, ele reflete sobre as relações corpo e alma. Desde já, esclarecemos que o sentido de alma na antiguidade não tinha uma conotação cristã, como percebemos hoje. A alma relacionava-se com o intelecto. Para Platão, só ao intelecto é dado conhecer essas ideias, por ser ele também incorpóreo. Por sua vez, o corpo seria um obstáculo à realização do ideal de bem e de verdade a que a alma aspira. Vejamos o que nos diz o próprio filósofo: Durante todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos! Ora, este objeto é, como dizíamos, a verdade. Não somente mil e uma confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as necessidades da vida mas ainda somos acometidos pelas doenças, e eis-nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real. O corpo de tal modo nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda a sorte, enfim, uma infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer! (PLATÃO, 2011, p. 55). Aula 1 Consciência corporal14 Nesse sentido, a alma humana, antes de prender-se ao cárcere corpóreo, teria contemplado as ideias eternas. Encarnada, perde a possibilidade de contato direto com os arquétipos incorpóreos. No entanto, por ser imortal, a alma conserva o conhecimento adquirido no mundo das ideias. Com o passar das gerações, há um esquecimento das ideias; nesse caso, como se daria o processo de conhecimento no mundo sensível? Para Platão, aprender é recordar, ou seja, diante das cópias presentes no mundo material, a alma recupera gradativamente o conhecimento. Em “A República”, diálogo em que discute o projeto de uma cidade ideal, Platão (1990) admite a contribuição do corpo, com base na ginástica, na educação dos cidadãos, visando proporcionar o equilíbrio entre as duas faces da alma: a corajosa e a filosófica, como se pode notar na citação a seguir. Para estas duas faces da alma, a corajosa e a filosófica, ao que parece, eu diria, que a divindade concedeu aos homens duas artes, a música e a ginástica, não para a alma e o corpo, a não ser marginalmente, mas para aquelas faces, a fim de que se harmonizem uma com a outra, retesando-se ou afrouxando-se até onde lhes convier (PLATÃO, 1990, p. 151). Apesar dessa referência ao corpo no projeto educativo de “A República”, cons- tatamos que o corpo é um mero instrumento para o aperfeiçoamento da alma. Seguindo na filosofia antiga, podemos perceber que em Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de Platão, o dualismo corpo e alma será amenizado, visto que no seu pensamento não ocorre a cisão entre o mundo da matéria e o mundo das ideias. Embora, de acordo com Aristóteles, a matéria permaneça inferior. Para ele, o mundo, apesar de único, apresenta-se como uma hierarquia cujos membros mais elevados são substâncias imateriais. Nesse caso, no homem, o mais bem organizado de todos os seres, existe uma forma que não se serve de nenhum órgão corporal e que pode sobreviver ao corpo, a saber, o intelecto. É interessante ressaltar que, em sua teoria do conhecimento, Aristóteles não admitiu as ideias inatas de Platão. Para ele, elas são adquiridas a partir da percepção dos objetos do mundo externo. Sendo assim, tudo o que o espírito conhece passa pelos sentidos do corpo. Apesar de reconhecer que o homem é um composto substancial unificado (matéria-forma) e de reconhecer o papel dos sentidos no conhecimento, o homem aristotélico é, em essência, um ser contemplativo, pois o intelecto humano sobrevive após a morte para reintegrar o intelecto universal, ordenador do mundo. Segundo Aristóteles, as essências estão nas próprias coisas, na realidade em que vivemos e nos homens que as buscam e que as conhecem a partir das sensações. Entretanto, é o intelecto que organiza o conhecimento, caracterizando o homem como um ser que se diferencia dos outros seres pela intelecção e não pela sua corporeidade. Nessa perspectiva, convémregistrar que há, na cultura grega da antiguidade, outras formas de compreensão do corpo, além da que está presente na metafísica de Platão e Aristóteles. Na mitologia, nas artes, nos encontros esportivos, o Ágora Significa o espaço público no qual os gregos discutiam os assuntos da Pólis, a cidade grega. Aula 1 Consciência corporal 15 povo grego cultua o corpo, não havendo, no seu viver cotidiano, a separação entre sensibilidade e racionalidade. Para Jaeger (1989), a força física distinguia o homem, fazendo-o ser o melhor dos homens, o herói grego. Nesse sentido, os gregos consideram o corpo como a síntese de sua humanidade, devendo, pois, ser cultivado para que o homem possa se realizar plenamente. O ateniense daqueles tempos sentia-se mais no seu meio no ginásio do que entre as quatro paredes de sua casa, onde dormia e comia. Era ali, sob a transparência do céu da Grécia, que diariamente se reuniam novos e velhos para se dedicarem ao cultivo do corpo (JAEGER, 1989, p. 362). No ginásio, e não apenas na Ágora, discutiam-se questões políticas e morais, denotando a integração da prática do exercício físico, da ginástica – palavra de origem grega que se refere à arte de exercitar o corpo nu – ao modo de vida da Pólis grega. O homem grego vê no culto ao corpo um sentido de totalidade e de elevação de sua humanidade. No entanto, o que passou para a tradição filosófica foi o dualismo platônico-aristotélico. Por sua vez, as ideias de Platão e de Aristóteles serão incorporadas pelo pen- samento, respectivamente, de Santo Agostinho e de São Tomás de Aquino, dentro da perspectiva cristã. Na Idade Média, o corpo vai ser visto pelos filósofos-teólogos como símbolo do pecado. Para esses pensadores cristãos, o homem deveria desligar-se de tudo que o prendesse à sua existência terrena, pois só assim poderia realizar a sua verdadeira essência, espiritual e ultraterrena. Além disso, com a transição da sociedade feudal para a sociedade capita- lista mercantil ocorreram grandes transformações também no plano filosófico, destacando-se a supremacia da razão no conhecimento da natureza, das leis que a regem. A Filosofia Moderna muda então o seu centro de investigação, não se preocupando mais com a busca das essências, no sentido que se tinha considerado na antiguidade e no período medieval, mas sim com a busca pelo conhecimento certo, evidente e seguro. De acordo com Nóbrega (2009), duas orientações filosóficas expressam essa tendência do pensamento moderno: o Racionalismo Empirista ou Empirismo, centrado no objeto de conhecimento e o Racionalismo Idealista ou Racionalismo, centrado no sujeito do conhecimento. Gostaríamos de chamar a atenção para a maneira como se processa o conhecimento nessas orientações, destacando o conceito de impressão sensível no Racionalismo, no Empirismo e no Criticismo Kantiano, o último como sendo uma tentativa de síntese entre os dois primeiros. Para o Racionalismo, que terá em Descartes o seu maior representante, a impressão sensível era uma ilusão dos sentidos e não poderia conduzir ao conhecimento verdadeiro. A verdade só poderia ser conhecida, a priori, indepen- dentemente de qualquer dado da experiência sensorial, a partir de uma intuição puramente intelectual. No Empirismo, assumido por Bacon, Locke, Berkeley e Hume, a impressão sensível refere-se às qualidades apresentadas pelos objetos exteriores, fora do sujeito. Nesse sentido, todo conhecimento seria, a posteriori, vinculado à experiência e organizado pelo hábito (NÓBREGA, 2009). Aula 1 Consciência corporal16 No século XVIII, o Criticismo Kantiano representou a tentativa de sintetizar as orientações do Racionalismo e do Empirismo, unindo os dados da razão à experiência sensível. De acordo com Kant, as impressões sensoriais são pontos caóticos que devem ser ordenadas por categorias lógicas, a priori, espaço e tempo. A partir dessa organização teríamos a intuição, a imagem sensível que, enviada ao entendimento, possibilitaria o conhecimento do fenômeno (NÓBREGA, 2009). Desse modo, percebemos que o sensível está posto na filosofia moderna, mas assume, em relação ao conhecimento, um papel inferior ou acessório. O processo de racionalização chega ao corpo através do desenvolvimento da ciência médica. Conforme citado por Nóbrega (2005, p. 602), o filósofo Rosseau, em sua obra "O Emílio", um tratado sobre a educação publicado em 1762, trata da educação a partir do conhecimento do corpo. Não se baseia na distinção clássica das faculdades: “sensibilidade, moral, inteligência, mas na necessidade de uma educação diferen- ciada de acordo com as idades (da natureza, da força, da sabedoria)”. O filósofo: [...] faz uma crítica à medicina curativa e enaltece a higiene, considerando-a como a parte útil da medicina. Nessa perspectiva, a educação do corpo visa civilizar as paixões, os desejos e necessidade do corpo através dos exercícios físicos. O corpo e o movimento, apesar de valorizados nos processos edu- cativos, ainda são considerados como elementos acessórios na formação do ser humano (NÓBREGA, 2005, p. 602). Para Nóbrega (2009), no século XIX, o idealismo alemão exaltará a subjetivi- dade. Em Hegel, o corpo e o espírito cooperam para a humanização do homem por meio do trabalho, mas o princípio da natureza humana é o espírito. Hegel afastou seu pensamento do homem em sua concretude, ou melhor, reduziu esta a apenas um momento da história do espírito. Nessa perspectiva, o elemento da concretude passa a ser marcante no pensamento de Marx: o homem como uma categoria histórica. Segundo esse autor, o corpo do homem, do trabalhador, não é apenas um corpo alienado mas é um corpo deformado pela mecanização e condição precária à realização dos movimentos do trabalho. Nesse espírito do racionalismo moderno serão cons- truídos os métodos ginásticos, visando, de um modo geral, adaptar o corpo às necessidades da emergente sociedade industrial, promover hábitos saudáveis e controlar as energias corporais para o aprendizado intelectual. De acordo com Nóbrega (2009), ao refletirmos sobre o olhar dos filósofos sobre o corpo e destacar o caráter predominantemente dualista do pensamento filosófico ocidental, é preciso deixar claro que a filosofia desses grandes pensadores não se reduz a esse aspecto e precisa ser contextualizada no espaço-tempo apropriado. Nesse caso, o termo grego Sophia, que significa sabedoria, apresenta uma dimensão que é, ao mesmo tempo, teórica, prática e intuitiva. Ademais, as ideias filosóficas contribuíram significativamente com as mudanças ocorridas em toda a humanidade, na ciência, na técnica, na concepção de natureza, na teoria política, na teologia, na educação e na estética. Como conhecimento que interroga a si mesmo, a racionalidade filosófica, ou seja, o poder da razão também foi questionado. Aula 1 Consciência corporal 17 Ainda no século XIX, vamos encontrar no pensamento de Nietzsche uma crítica à tradição dualista e uma revalorização do corpo na compreensão do homem. No seu pensamento, a existência do homem só tem sentido naquilo que lhe seria mais humano, seu próprio corpo. A partir do corpo, o homem pode agir e agindo pode conseguir sua realização como homem. A tarefa mais importante a ser rea- lizada pelo homem, a transmutação dos valores decadentes (relacionados com a fraqueza), só poderá ser empreendida pelo corpo e compreendida pelos sentidos. De acordo com Nietzsche (1994), enquanto a alma for compreendida pela metafísica ocidental como meio para chegar ao mundo suprassensível, o corpo está vinculado a terra, sendo por isso mesmo desprezado. Porém, essa tentativa de escapar ao corpo é um grande erro, uma vez que ele se faz presente em todos os atos humanos, é a vida em sua plenitude, em toda a sua força. Desprezar o corpo é, portanto, negar a vida e o próprio ser. Ao valorizar o corpo, Nietzsche não despreza a consciência, visto que esta pertence integralmente ao corpo, porém o devir dos processos corporaisnão pode ser traduzido em palavras, conceitos, processos racionais simplificadores. Ao corpo atribui-se uma inteligibilidade pautada no domínio sensível. O pensamento teórico da humanidade (filosofia e ciência) vai pautar-se pela racionalidade, ne- gando o corpo. Para Nietzsche (1994), esse pensamento é expressão da fraqueza, negação da parte instintiva do homem, negação da vida, gerando um conheci- mento afastado da realidade existencial, sem sentido para o homem. Desse modo, Nietzsche parece reencontrar o sentido para a vida na arte. Nesta, razão e instintos, ou seja, os deuses gregos Apolo e Dioniso, estão em tensão, havendo um predomínio do saber dionisíaco, na medida em que afirma um sentimento de unidade. Essa unidade tem sua expressão no corpo humano. Um corpo cuja ação é significativa, portadora de simbolismo, afirmação da força, da humanidade do homem. No século XX, vamos encontrar no pensamento de Merleau-Ponty uma pers- pectiva ontológica e epistemológica do corpo, sendo a partir do corpo que o sujeito humano situa-se no mundo que conhece. A contribuição de Merleau-Ponty coloca-se no sentido do reconhecimento da complexidade do corpo e do movimento como elementos existenciais. Ao interpretar a obra de Merleau-Ponty (1994), temos que o corpo não é objeto, nem ideia, é expressão singular da existência do ser humano que se move. O corpo é sexualidade, é linguagem, é movimento, é obra de arte. Devido a sua contribuição para o conhecimento do corpo na educação física, mais adiante dar-se-á destaque a essa abordagem (NÓBREGA, 2009). Quanto à consciência, de certo modo, essa temática esteve fora dos círculos filosóficos ou foi apenas relacionada com a linguagem. No entanto, os estudos do aparelho cerebral e das ciências cognitivas trazem-na de volta à cena, em pesquisas, congressos, publicações etc. A redescoberta da consciência como tema de investigação da filosofia, psicologia, ciências cognitivas e neurociência apresenta questões amplas e sem respostas conclusivas. De acordo com Nóbrega (2010), no campo da biologia e das ciências cognitivas, a consciência é um fenômeno biológico natural que não se enquadra apropriadamente em nenhuma das categorias tradicionais do mental e do físico. A relação linear Aula 1 Consciência corporal18 de causalidade não é suficiente para explicar a interioridade da consciência, tampouco pode ser plenamente desconsiderada. Nesse sentido, em termos de filosofia da mente, encontram-se as seguintes possibilidades de abordagem: o modelo funcionalista e o modelo conexionista. Para o funcionalismo, a consciência é um tipo de "software", uma máquina virtual em nosso cérebro, este, por sua vez, seria o "hardware". Essa concepção encontra expressão já bastante divulgada na metáfora do cérebro computador, proposta inicialmente por Von Neumann. Além das limitações formalistas do processamento simbólico, outra limitação importante da abordagem funcionalista refere-se à questão da localização das funções cerebrais em um mapa cortical mais ou menos rígido. O conexionismo, por sua vez, aborda a mente com base nas redes neurais, em uma tentativa de romper a barreira das regras lógicas. Em vez de estruturas básicas localizáveis, o que há são padrões aprendidos e regularidades. Nesse caso, a rede neural é um conjunto de neurônios artificiais que parte da conexão sináptica, disparando potenciais de ação (VARELA et al., 1996). No campo das ciências cognitivas, o biólogo Francisco Varela apresenta a abordagem da auto-organização, na qual propriedades emergentes são geradas no processo recursivo organismo-entorno. Nessa perspectiva, a enação, ou seja, a capacidade de aprendizagem por meio da interpretação, compreendida como percepção dos acontecimentos, é responsável pela cognição. Essa abordagem aproxima-se dos estudos fenomenológicos da percepção, especialmente das reflexões de Merleau-Ponty (VARELA et al., 1996). Essas breves considerações sobre a abordagem da consciência na história do conhecimento apresentam uma visão panorâmica, uma contextualização do campo dos estudos sobre a temática. Elas são modos de compreender, isto é, modelos teóricos que buscam respostas para a complexa relação mente-cérebro- -consciência e podem contribuir para situar o leitor no tema da consciência. Há ainda outros aspectos fundamentais para os estudos da consciência, a saber: o inconsciente e a ideologia. Esses aspectos mostram-nos limites para a consciência e ampliam as questões relativas à vida psíquica e à vida social. Quanto à consciência, o criador da psicanálise Sigmund Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e que essas feridas atingiram nosso narcisismo, ou seja, a imagem que tínhamos de nós mesmos como seres conscientes e racionais. Que feridas foram essas? Chauí (2009) nos responde: A primeira foi a que nos infringiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais criados por Deus para dominar a natureza. A terceira foi causada pelo próprio Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica (CHAUÍ, 2009, p. 168). Aula 1 Consciência corporal 19 Que interessante é essa visão, você concorda? Ela nos desloca do centro do conhecimento e da atividade racional para abrir o EU a outros universos. Isso se deu a partir de Freud, que era psiquiatra, e usava, de início, a hipnose nos tratamentos com doenças mentais. Depois, começou a usar um novo procedimento – a técnica de livre associação – que permite falar tudo o que nos vem à cabeça. Com esse proce- dimento ele descobriu, por meio das reações, dos sonhos narrados, das lembranças da infância que a vida consciente é determinada por uma vida inconsciente. Para Freud (2011), a vida psíquica é constituída por três instâncias: o ego, o superego e o id. Este último refere-se ao inconsciente, que está ligado aos desejos, instintos, pulsões e prazer. Trata-se de uma energia que vem dos instintos e relaciona-se com a natureza sexual. Nesse caso, a nossa consciência tem uma dupla tarefa: recalcar e satisfazer o id (inconsciente) e o que vemos. Não se trata de uma tarefa simples e, por isso, muitas vezes causa angústia. Lidamos com esse fenômeno de várias maneiras, por vezes, desenvolvendo neuroses e psicoses que são sintomas. Fazemos uso também da sublimação, ou seja, buscamos satisfazer nossos desejos indiretamente, como uma espécie de compensação. Desse modo, as obras de arte, o conhecimento, o trabalho, por exemplo, podem ser formas de sublimação, que nos aliviam da angústia de existir entre desejos, necessidades e vontades que nem sempre podem ser completamente satisfeitas (FREUD, 2011). A esse respeito, concordamos com Chauí (2009) quando afirma que nossa consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e dos possíveis sintomas que essa fragilidade pode desencadear ou decifrar o inconsciente buscando a elaboração de nossos desejos e formas de sublimação. Ainda de acordo com Chauí (2009), além das feridas narcísicas apontadas por Freud, temos de acrescentar mais uma, a saber: a que nos foi apresentada por Marx com a noção de ideologia e que se aplica mais prioritariamente à vida social. Com o estudo da ideologia, Marx abrange o modo como se formam as religiões e a forma como os seres humanos têm a necessidade de explicar a origem e a finalidade do mundo. Ao buscar essa explicação, o homem projeta para fora de si um ser superior e dotado de qualidades que julgam serem as melhores, como a inteligência, a liberdade, a justiça, a beleza. Pouco a pouco, os homens esquecem que foram eles mesmos que inventaram essas qualidades e passam a acreditar em um ser superior. Desse modo, “quando os homens não sereconhecem num outro que eles mesmos criaram, eles se alienam” (CHAUÍ, 2009, p. 171). Marx não se interessou apenas pela alienação religiosa, mas também pela alienação social. Interessou-se ainda em compreender as causas pelas quais os homens ignoram quem são os criadores da sociedade, da politica, da cultura e os agentes da história. De acordo com Chauí (2009), há três formas de alienação, quais sejam: alienação social, econômica e intelectual. A primeira relaciona-se mais diretamente com a vida política; a segunda diz respeito às relações de produção que se dão no trabalho; e a terceira refere-se à divisão entre trabalho intelectual (ideias) e trabalho material (mercadorias). Essa alienação opera uma inversão na realidade Leituras complementares Aula 1 Consciência corporal20 e nos faz ver as coisas de modo distorcido. Assim como ocorre com o inconscien- te, é preciso compreender os aspectos históricos que levam à alienação social, econômica e intelectual para depois buscar superá-las, erguendo o véu e tirando a máscara, tentando a emancipação dos explorados, a superação de preconceitos e das injustiças sociais. Percebemos, assim, que a noção de consciência é complementada pelas noções de inconsciente e de ideologia nas quais o pensamento, o conhecimento e a existên- cia se realizam. A seguir vamos abordar essa temática, relacionando-a diretamente com o campo da educação física, particularmente com a abordagem fenomenológica da consciência corporal. Antes disso, caro(a) aluno(a), propomos algumas leituras complementares e atividades para ampliar e consolidar a sua aprendizagem. MOREIRA, A. R. de L. Algumas considerações sobre a consciência na perspec- tiva fenomenológica de Merleau-Ponty. Estudos de Psicologia, Natal, v. 2, n. 2, p. 399-405, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/epsic/v2n2/ a12v02n2.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2014. O artigo apresenta um panorama da visão de consciência na filosofia ocidental. FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. O livro apresenta a noção de inconsciente formulada por Freud e suas relações com a cultura e a vida social. Reflete sobre a infelicidade e a angústia como fenômenos psíquicos e sociais. Trata-se de um clássico sobre o tema, que permite ampliar nossa compreensão de consciência. 1Atividade 1 2 Aula 1 Consciência corporal 21 JORNADA da Alma. Direção de Roberto Faenza. França, Reino Unido, Itália, 2002. 1 DVD (1h 30min.). Sua apreciação permite compreender as relações entre a noção de consciência e inconsciente, bem como as relações com o corpo e com a psique humana. Sinopse: Em 1905, Sabina (Emilia Fox), uma jovem russa de 19 anos que sofre de histeria, recebe tratamento em um hospital psiquiátrico de Zurique, na Suíça. Seu médico, o jovem Carl Gustav Jung (Ian Glen), aproveita o caso para aplicar pela primeira vez as teorias do mestre Sigmund Freud. A cura de Sabina vem acompanhada de um relacionamento amoroso com Jung. Após alguns anos, ela volta à Rússia, tornando-se também psicanalista e montando a primeira creche que usa noções de psicanálise para crianças. Décadas após sua morte, ela tem sua trajetória resgatada por dois pesquisadores. Disponível em: http://www.baixarfilmesdublados.net/baixar-filme-jornada-da- -alma-legendado/>. Acesso em: 2 maio 2014 ou em <https://www.youtube.com/ watch?v=_1XJIFKxGJ4&list=PLA723A287AB473620>. Acesso em: 2 maio 2014. A partir da leitura da aula, responda às seguintes questões: Caracterize a compreensão de consciência nas filosofias an- tiga e medieval, no pensamento moderno e contemporâneo. Somos conscientes de tudo o que se passa ao nosso redor? Qual o papel do inconsciente e da ideologia nas nossas vidas? Aula 1 Consciência corporal22 A percepção do corpo próprio e do corpo do outro Neste momento da aula, iremos relacionar a consciência corporal com a atitude fenomenológica apresentada a fim de demonstrar a importância dessa abordagem para a compreensão do conhecimento do corpo em vários domínios, em particular na educação física. Vamos começar mencionando o criador da feno- menologia, o alemão Edmundo Husserl. No início do século XX, Husserl apre- senta uma rigorosa crítica ao Positivismo e à distinção extrema entre objetividade e subjetividade, ciência e filosofia. Para Husserl, a tarefa da fenomenologia não consiste em explicar o mundo, enquanto relação de causalidade do tipo estímulo- -resposta, mas compreender seu sentido, ou seja, o que as coisas significam para o ser humano nas relações que estabelece com o seu mundo-vida, com a cultura, com os outros homens (NÓBREGA, 2009). Diferentemente da perspectiva cartesiana em que a experiência do ser no mundo é substituída pela significação do mundo – pois as essências estão no cogito (pensamento) –, para a perspectiva fenomenológica, as essências encon- tram-se na existência. Desse modo, o ser humano é compreendido a partir das experiências vividas. Trata-se de uma posição inovadora frente ao conhecimento, cujo alcance irá colocar o corpo humano e sua subjetividade em evidência. Para a fenomenologia, a consciência não constitui o mundo, este já está aí, mas ela se dirige ao mundo para apreendê-lo. O pensamento de Husserl será retomado por Merleau-Ponty, outro filósofo contemporâneo que irá dar ao corpo um lugar de destaque. De acordo com Merleau-Ponty (1994), faz-se necessário reconhecer a própria consciência como projeto do mundo, destinada a um mundo que ela não alcança nem possui; mas em direção ao qual ela não cessa de se dirigir. Nesse contexto, a tarefa da filosofia seria reaprender a ver o mundo, tarefa sempre inacabada (NÓBREGA, 2010). Para a fenomenologia, a consciência inscreve-se no corpo e na motricidade. De acordo com Nóbrega (2010), o corpo do qual falamos na fenomenologia não se resume ao universo mecânico da extensão, pois se trata do corpo vivo, sexuado, que deseja, que sofre, que sorri e que fala. Não se trata do corpo-físico, massa imaterial ou inerte, mas o corpo vivo dotado de uma intencionalidade original (que se dirige para o mundo), isto é, de motricidade (movimento intencional do ser no mundo), a qual me permite lançar no mundo e apreender seu sentido. O corpo, por sua vez, é a nossa síntese com o mundo. Um exemplo significativo para compreender a síntese do corpo está na relação do corpo com o mundo dos objetos. O uso da bengala, por exemplo, faz com que o mundo dos objetos táteis não comece na epiderme da mão, mas na extremidade da bengala. Sobre essa relação do corpo com a bengala, Merleau-Ponty afirma que as pressões da mão não são dados à maneira empirista, haja vista que a bengala é uma extensão da síntese corporal. Numa visão clássica, essa relação corpo-bengala é explicada pelo esquema estímulo-resposta. Aula 1 Consciência corporal 23 Na análise intelectualista, separa-se o signo (objeto bengala) da significação (função de apoiar). Na perspectiva fenomenológica, a bengala foi incluída no esquema corporal, faz parte da estrutura perceptiva. Desse modo, o conteúdo sensível, ou seja, a forma da bengala já é dotada de sentido. Portanto, a bengala está incluída na estrutura perceptiva, na relação de comunicação entre o sujeito e o mundo. Assim, mover-me apoiado na bengala, altera, corrige, molda e ultrapassa a minha relação com o mundo, o modo como me relaciono com os outros e com o espaço arquitetônico. Nesse sentido, a gestualidade prolonga-se em hábito perceptivo, provocando mudança no modo de andar, um uso diferente do corpo, escrevendo outro modo de ser e de existir. De acordo com Merleau-Ponty (1994), na base de toda a compreensão da realidade está o sentir, essa realidade pré-objetiva que temos de descobrir em nós mesmos, a partir do nosso mundo-vida, da nossa corporeidade. A concepção fenomenológica de corpo supera a tradição cartesiana do corpo-máquina e do conhecimento da realidade pautado na lógica racionalista que opõe corpo e mente, sujeito e objeto do conhecimento,entrelaçando ambos. O corpo realiza a existência, põe o sujeito em situação, diferenciando-se dos objetos exteriores, inclusive pela sua espacialidade diferenciada: “O contorno de meu corpo é uma fronteira que as relações de espaço ordinárias não transpõem” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 143). Isso ocorre porque as partes do corpo rela- cionam-se de um modo original, envolvem-se umas nas outras, constituindo-se uma unidade indivisível. O corpo não está no espaço como um objeto; ele desenha o espaço, garantindo uma conformação original de acordo com a situação. Nesse ponto, o conceito de esquema corporal é esclarecedor: “O esquema corporal não é nem o simples decalque nem mesmo a consciência global das partes existentes do corpo, e porque ele as integra ativamente em razão de seu valor para os projetos do organismo” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 145). Segundo Nóbrega (2009), Merleau-Ponty faz uma nova leitura do conceito de esquema corporal advindo da neurologia clássica para além do reconhecimento das partes do corpo, definindo-o como uma propriedade do organismo que garante a sua integração ativa enquanto unidade que põe o sujeito em situação, ou seja, em relação com o mundo. Essa nova leitura permite contextualizar o conceito de esquema corporal também no âmbito filosófico. Nesse sentido, o esquema corporal é a maneira de exprimir que o corpo está no mundo, não como coisa, objeto ou ideia, mas como presença viva e em constante movimento. Essa presença corporal no espaço e no tempo marca a singularidade da existência do sujeito e o horizonte de seus projetos. Ademais, o uso que o ser humano faz de seu corpo ultrapassa o nível biológico, o nível dos instintos, ele cria um mundo simbólico, de significações. O ser humano não está aprisionado, como os animais, nos limites de suas condições naturais, ele as amplia, variando os pontos de vista, reconhecendo numa mesmo fenômeno diferentes perspectivas. Dessa forma, realizar um movimento não seria simples- mente utilizar o equipamento anatômico mas aprender as coisas do mundo de forma original, fornecendo uma resposta adequada à nova situação. Aula 1 Consciência corporal24 Nessa perspectiva, se o movimento não possui essa significação, ou mesmo se isso não é despertado, o movimento deixa de expressar a originalidade do sujeito e o corpo passa à condição de objeto, de coisa. Ademais, realizar um movimento é realizar projetos de nossa existência. Quando jogo, canto ou danço, não estou apenas colocando em funcionamento o meu equipamento anatômico e fisiológico, estou vivendo, simultaneamente, o mundo cultural que conformou esse jogo, esse canto, essa dança e todos os meus projetos existenciais neles representados (SEBASTIÃO; NÓBREGA, 2009). Quanto à consciência corporal, tem sido tematizada na educação física brasi- leira a partir dos estudos da psicomotricidade e das chamadas “técnicas alterna- tiva” (CLARO, 1995). Nesse contexto, busca-se contrapor-se ao aspecto dualista presente na educação física tradicional. Para tanto, várias técnicas fundamentam essa proposta de resgate da sensibilidade, entre elas: a antiginástica; a eutonia; o método Feldenkrais; a bioenergética; o Método Dança-Educação Física e outras, inclusive as técnicas orientais (Yoga, Do-In, Tai Chi Chuan). Essas técnicas surgem a partir do trabalho com terapia, com exceção do Método Dança-Educação Física, que as utiliza adaptando-as ao processo educacional, e das técnicas orientais que compõem o referencial filosófico-religioso daquela cultura. Na perspectiva fenomenológica, a corporeidade é compreendida como a condição essencial do ser humano, sua presença corporal no mundo, um corpo vivo que cria linguagem e se expressa pelo movimento, com diferentes sentidos e significados. Nesse sentido, a consciência corporal é a percepção que o ser humano possui de sua realidade existencial como corpo em movimento, como corporeidade. A corporeidade é a matriz a partir da qual as expressões corporais estruturadas pelo homem ao longo da história estariam fundamentadas, como exemplo, temos: os jogos, as danças, os esportes, as lutas. Essas expressões são temporais, históricas, vivas e significantes, portanto, mutáveis, o que pode oferecer possibilidades de reagir aos condicionantes da ideologia do mercado e ao viés mecanicista de corpo banalizado pela sociedade de consumo. Nesse cenário, essa leitura do corpo nada mais é do que um processo de cons- cientização, da leitura das vozes do corpo. Lucidamente, Santin (1987) alerta-nos sobre a delicada tarefa educativa da educação física, que é interpretar a linguagem da corporeidade, as necessidades, os desejos, as emoções que compõem o seu quadro linguístico e que se expressa nos movimentos. Além disso, o resgate da sensibilidade faz-se urgente dentro de uma sociedade racionalizadora como forma de ampliar a percepção do sujeito frente às investidas do poder dominante. Para Foucault (1992), o poder institucional investe no corpo como forma de controle-estimulação. Assim, a ginástica, os exercícios físicos, o desenvolvimento muscular, a nudez, o belo corpo são exaltados para atender às necessidades da sociedade capitalista. Leitura complementar Aula 1 Consciência corporal 25 Essa emergência do corpo revela muito mais uma sutil repressão, uma forma refinada de controle, que a sua libertação e afirmação como síntese humana. O discurso que se elabora do corpo é um discurso de corpo liberado, solto, antidis- ciplinar. Porém, a sociedade é disciplinar em relação ao corpo. Desse modo, ora o nosso corpo é aprisionado, ora é liberado. Convivemos com ele todos os momentos de nossas vidas e ainda não compreendemos sua linguagem. Ele nos fala, mas não ouvimos, não compreendemos. Aprisionados à tradição dualista, não nos perce- bemos como seres corporais. A esse respeito, Assmann complementa: Não é verdade que, num sentido muito real, temos imensa dificuldade em ser nosso corpo, porque já nos inculcaram, de mil maneiras, que temos tal ou qual corpo? Ou seja, mais do que da sua verdade e real substância, nossos corpos são corpos que nos disseram que temos, corpos inculcados e ensinados, feitos de linguagens, símbolos e imagens. As culturas, as ideologias, as organizações sempre inventam um corpo humano adequado e conforme (ASSMANN, 1994, p. 72). Esse processo de conscientização apresenta-se como um desafio para os profissionais da educação física, refletindo acerca dos valores que permeiam a concepção de corpo, que deixa de ser objeto e passa a ser sujeito do movimento. Quanto aos profissionais dessa área, têm muito a contribuir com a educação, socializando novos conceitos de corpo, tomando como ponto de partida suas dife- rentes expressões em movimento que, historicamente, já fazem parte do seu acervo e outras que possam vir a incorporar-se. Para isso, esses profissionais precisam considerar também que o movimento deve despertar no sujeito a percepção de si mesmo como ser corporal em relação aos outros e ao mundo, além de considerar também a sensibilidade como atribuidora de significado às ações humanas. São justamente esses os aspectos que devem ser pensados nas práticas peda- gógicas da educação física, em outras palavras, esses profissionais devem atentar para fazer uma releitura do seu acervo de movimentos, de forma que o jogo, a dança, a ginástica, o esporte possam expressar e comunicar a complexidade do ser humano que se movimenta. BOLSANELLO, D. Educação somática: o corpo enquanto experiência. Motriz, Rio Claro, v. 11, n. 2, p. 99-106, maio/ago. 2005. Disponível em: <http://www. rc.unesp.br/ib/efisica/motriz/11n2/11n2_08DBB.pdf>. Acesso em: 2 maio 2014. O artigo aborda a compreensão de corpo como experiência baseando-se na fenomenologia de Merleau-Ponty e em práticas corporais que contribuem para a educação somática e a consciência corporal. 2Atividade Resumo Aula 1 Consciência corporal26 Temos ou somos um corpo? Caracterize a abordagem fenomeno- lógica da consciênciacorporal descrevendo as noções principais, tais como: a corporeidade e o esquema corporal. Apresente as possíveis relações entre a abordagem fenomenológica do corpo e da consci- ência corporal na educação física. Participe de um fórum virtual discutindo essa questão. Nesta aula, apresentamos um panorama da noção de consciência no pensamento ocidental e suas relações com o corpo. Tratamos também da abordagem fenomenológica da consciência e da corporeidade como fundamentação teórica para as aulas teórico-práticas da disciplina de consciência corporal na educação física. de uma introdução Autoavaliação Como você percebe seu corpo? Em uma folha de papel ofício, tamanho A4, faça o desenho de uma figura humana. Pode usar lápis grafite colorir seu desenho se preferir. Na aula seguinte, vamos fazer a leitura desse desenho e estabelecer relações com a percepção de si, o esquema corporal e a relação com o mundo e com o outro. Entregue seu desenho ao tutor de seu polo. Aula 1 Consciência corporal 27 Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 2. ed. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. ASSMANN, H. Paradigmas educacionais e corporeidade. 2. ed. Piracicaba, SP: Unimep, 1994. CLARO, E. Método dança-educação física: uma reflexão sobre consciência corporal e profissional. São Paulo: Robe, 1995. CHAUI, M. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2009. FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. FREUD, S. O mal estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra: um livro para todos e para ninguém. 7. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1994. NÓBREGA, T. P da. Qual o lugar do corpo na educação? Notas sobre conhecimento, processos cognitivos e currículo. Revista educação e sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 599-615, maio/ago. 2005. ______. Corporeidade e educação física: do corpo objeto ao corpo sujeito. 3. ed. Natal: Editora da UFRN, 2009. ______. Uma fenomenologia do corpo. São Paulo: Livraria da Física, 2010. NÓBREGA, T. P. da; SEBASTIÃO, M. L. Corpo e movimento: reflexões sobre a gestualidade em Tempos Modernos. 2009. Disponível em: <http://www. efdeportes.com/efd165/corpo-e-movimento-a-gestualidade-em-tempos- modernos.htm>. Acesso em: 24 jul. 2014. PLATÃO. Fédon. Belém: EDUFPA, 2011. ______. A república. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1990. Aula 1 Consciência corporal28 ROSSEAU, J-J. O Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995. SANTIN, S. Educação física: uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí: Unijuí, 1987. VARELA, F. et al. Embodied mind: cognitive science and human experience. London: The MIT Press, 1996. Anotações A percepção do corpo na antiginástica 2 Aula 31 2 1 Apresentação Caro(a) aluno(a), onde você estiver há uma casa com seu nome. Você é o único proprietário nessa casa que abriga suas mais recônditas memórias. Você sabe do que estou falando? Você sabe que casa é essa? Esta, caro(a) aluno(a), é o seu corpo. Você a conhece bem? Você habita verdadeiramente essa casa ou faz tempo que perdeu as chaves? Nesta aula, através da técnica da antiginástica, você vai percorrer esse ambiente, tocar suas paredes, sentir sua estrutura, habitá-lo inteiramente. Você vai conhecer a trajetória histórica e os princípios teóricos e metodológicos da antiginástica, bem como realizar alguns exercícios práticos. Nunca é tarde demais para você liberar-se de dores, rigidez muscular, ten- sões e descobrir possibilidades inéditas do seu corpo. Preparado(a)? Vamos começar nosso caminho de autoconhecimento e de consciência corporal. Bem- -vindo(a) a sua casa, bem-vindo(a) a seu corpo! Objetivos Identificar os princípios teóricos e metodológicos da antiginástica. Reconhecer os exercícios da técnica de antiginástica. 31 Aula 2 Consciência corporal 33 “Seu corpo, essa casa onde você não mora” É com essa frase arrebatadora que a criadora da antiginástica abre seu livro. Essa é uma técnica corporal criada pela fisioterapeuta francesa Thèrése Betherat, nos anos de 1970. No livro “O corpo tem suas razões”, Bertherat e Bernstein (1987) afirma que “nosso corpo somos nós. Somos o que parecemos ser. Nosso modo de parecer é nosso modo de ser” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 13). Essa afirmação coaduna com a perspectiva fenomenológica da corporeidade estudada na aula anterior de nossa disciplina (Aula 1), concorda? No entanto, muitas vezes, confundimos o visível com o superficial com a apa- rência do corpo e seus padrões de beleza, por exemplo. Nesse contexto, temos um corpo, como podemos possuir uma coisa, uma casa, mas sem habitá-la. A proposta dessa técnica é habitar o corpo que somos. Mas, como faremos isso? Por meio de nossas sensações, das percepções sutis do nosso corpo, buscando as razões do nosso próprio corpo, conhecendo sua linguagem sensível. O principal objetivo do trabalho é a consciência do próprio corpo, é buscar ter acesso ao ser inteiro, superando os dualismos corpo e alma, psíquico e físico. Nessa perspectiva, a compreensão de corpo afina-se profundamente com a noção de corporeidade propostas por Merleau-Ponty (1994), em que se busca a escuta do corpo e de sua sensibilidade. Nesse sentindo, compreende-se que os movimentos nascem dentro do corpo e estão relacionados às experiências vividas pelos sujeitos. Bertherat e Bernstein (1987) chamam esses movimentos de preliminares, ou seja, exercícios que preparam o corpo e todo o ser para viver plenamente. Na segunda parte de nossa aula, vamos abordar esses exercícios de percepção do corpo. Por enquanto, atemos aos aspectos teóricos dessa técnica. A construção teórica e metodológica da antiginástica baseou-se fortemente na experiência vivida de sua criadora, em seu próprio corpo e no corpo das pessoas com as quais ela trabalhou. Thèrése sentia-se entediada e buscava uma atividade que lhe propiciasse prazer. Em sua busca, encontrou a senhora Suze L e sua aula de “ginástica”. A princípio resistiu, pois não gostava de ginástica. Mas, ao descobrir os movimentos sutis propostos pela senhora Suze, usando simples bolinhas de tênis, algo lhe chamou a atenção: “Que espécie de ginástica é essa que se preocupa com meu conforto?” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 24). A tranquilidade dos exercícios provocava a tranquilidade dos alunos, o relaxamento, o bem-estar e a descoberta de novas sensações corporais. “Na sala sem espelhos, era ela quem nos mostrava a imagem do que poderíamos ser” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 31). Não se compreendia o corpo como uma máquina defeituosa, mas como sujeito de suas ações. Com a morte de seu marido, a fisioterapeuta sentiu-se bastante oprimida e queria dar um novo rumo a sua vida. Foi então que teve acesso ao trabalho de Ehrenfried. Nele, o corpo era considerado como matéria flexível, perfectível. Essa foi a primeira referência teórica para a construção da antiginástica. Aula 2 Consciência corporal34 Outra referência é a teoria proposta por William Reich e a noção de couraça muscular. “Toda rigidez muscular contém a história e a significação de sua origem. Quando ela é dissolvida, não só a energia é liberada, mas também traz à memória a própria situação infantil em que o recalque se deu” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 67). William Reich desenvolveu a ideia de couraça muscular para expressar esse recalque, anteriormente estudado por Freud. Segundo Reich (apud BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987), entravamos a livre circulação da energia que passa no nosso corpo ao criamos as couraças musculares, zonas rígidas que nos encerram em anéis ou em cintas, como vemos na Figura 1, em diferentes níveis do corpo, em especial na região dos olhos, da boca, da nuca, dos ombros, do diafragma e do ventre, do quadril e do sexo. Esses bloqueiospodem provocar doenças, mal-estar e toda uma série de distúrbios psíquicos e emocionais. Recalque Ao analisar a teoria freudiana da sexualidade, Merleau-Ponty (1994) afirma que o recalque refere-se a uma barreira em nossa vida profissional, amorosa e, como tal, exige um emprego de energia para removê-lo. O recalque pode causar angústia e sofrimento. Figura 1 – As cintas do controle da pulsão. Fonte: Keleman (1992, p. 69). De acordo com Keleman (1992), o corpo é a sede da experiência e esta o trans- forma em uma estratégia da pulsão vital, a qual serve de resposta ao estresse, à dor e às tensões. Em geral, aprendemos que o corpo é composto de cabeça, tronco e membros. Mas, o fato é que o corpo é bem mais completo que essa simples divisão anatômica. Ele contém nossa história pessoal e coletiva, abriga nossas emoções, nossos desejos e nossas dores. Entrar em contato com esse universo é um caminho de autoconhecimento que exige coragem e disponibilidade. Segundo Bertherat e Bernstein (1987), no Ocidente, consideramos a cabeça como lugar soberano do corpo. No entanto, não prestamos atenção às nossas costas ou aos nossos pés, por exemplo. Sempre nos referimos à parte superior do corpo como sendo a mais elevada, relacionada à nossa inteligência ou à emoções socialmente valorizadas, como o amor. A parte inferior do corpo, em geral, está associada às nossas “sensações baixas”, aos nossos instintos, à nossa animalidade. “Lembro-me dos conselhos de um professor de etiqueta que dizia que se durante um jantar sen- tíssemos cólicas ou dores de barriga, levantássemos da mesa segurando a cabeça, como se estivéssemos com enxaqueca” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 72). Aula 2 Consciência corporal 35 Na antiginástica, os pés são valorizados por meio de uma técnica chamada de reflexologia. De acordo com Bertherat e Bernstein (1987), na reflexologia compreende-se que os órgãos do corpo projetam-se na planta dos pés. Na Figura 2, você pode perceber o mapa com as representações dos órgãos projetados. Figura 2 – Mapa da reflexologia. Fonte: Bertherat e Bernstein (1987, p. 156-157). Um dos exercícios consiste em massagear a planta dos pés com as mãos ou utilizando bolinhas de tênis. Essas micromassagens podem aliviar dores, tensões por meio do relaxamento. De acordo com a medicina chinesa, esses pontos corres- pondem aos meridianos por meio dos quais a energia vital circula. Ao massagear os pés, produzimos uma circulação da energia vital, como ocorre com a acupuntura, por exemplo. A parte interna do pé corresponde à coluna vertebral. Seguindo o sentido céfalo-caudal (da cabeça aos pés), passamos pela região cervical, torácica, lombar e cóccix, produzindo alívio de tensões advindas de nossa postura bípede. Outra referência fundamental da antiginástica é o método Mézières, o qual se contrapõe aos métodos tradicionais da fisioterapia, em especial, ao uso de panó- plias corretoras como coletes, goteiras de gesso, sobretudo, por considerar o corpo em sua totalidade. A questão central está em alongar a musculatura posterior do corpo. “Encolhidos os músculos posteriores repuxam os ossos sobre os quais estão inseridos e, com o tempo, fazem com que as superfícies articulares não reajam mais com a exata precisão necessária” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 123). Esse método busca o respeito pelo corpo humano, a vontade de fazer com que o outro descubra suas possibilidades corporais e de movimento. Nessa direção a antiginástica contribui para a percepção e a consciência do corpo. Desse modo, “é o estado do corpo que, a priori, determina a riqueza das experiências vividas” (BERTHERAT; BERNSTEIN, 1987, p. 107). Leituras complementares 1Atividade Aula 2 Consciência corporal36 Essas são as principais referências conceituais dessa técnica corporal. Propo- nho agora uma leitura complementar e uma atividade para que você amplie e consolide sua aprendizagem. Na segunda parte da aula, abordaremos aspectos metodológicos da antiginástica e a percepção do corpo. BERTHERAT, T.; BERNSTEIN, C. O corpo tem suas razões: antiginástica e cons- ciência de si. 21. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. O livro apresenta os aspectos teóricos e metodológicos da antiginástica, com a descrição de exercícios preliminares. A leitura permite ampliar a fundamentação teórica dessa área. EHRENFRIED, L. Da educação do corpo ao equilíbrio do espírito. São Paulo: Summus, 1991. O livro apresenta o corpo para além do dualismo corpo e alma. Apresenta também um método que influenciou outros relacionados à consciência corporal, entre eles a antiginástica. Com base na leitura do texto, responda às questões: Qual a compreensão do corpo na técnica da antiginástica? Quais os principais aspectos da fundamentação teórica da antiginástica? Compartilhe suas respostas na plataforma virtual do curso. 1 2 Aula 2 Consciência corporal 37 Aspectos metodológicos da antiginástica Agora que você já conhece os aspectos conceituais da antiginástica, vamos apresentar o método, com destaque para os exercícios preliminares. Bertherat e Bernstein (1987) descreve os preliminares como sendo um caminho para a con- quista da consciência do corpo. A primeira e principal orientação é a de não se preocupar em “acertar” os movimentos. O mais importante é perceber o corpo, o ritmo interno e tentar dissolver as tensões. O primeiro exercício é a percepção do corpo em contato com o chão. Deitado em decúbito dorsal, deixar o silêncio instalar-se e percorrer o seu corpo, percebendo as partes que tocam o chão: cabeça, costas, quadril, pernas, pés. O segundo exercício proposto por Bertherat e Bernstein (1987) é o trabalho sobre o pé. Apoiar o pé sobre uma bola de tênis e pressionar a parte anterior, o meio do pé e a parte posterior. Massagear um lado e antes de trabalhar o outro pé, perceber a diferença entre o lado trabalhado e o que ainda não foi massa- geado. Normalmente, o lado massageado está mais vibrante, mais alongado. Esse exercício produz um relaxamento e um alongamento sutil da cadeia muscular posterior, harmonizando a coluna vertebral. Outro preliminar bastante eficaz consiste em massagear a região lombar. Para isso, deita-se em decúbito dorsal com joelhos flexionados, pés abertos na largura do ombro. Em seguida, coloca-se a bolinha de tênis na região lombar e eleva-se o quadril, retorna pressionando a bolinha. Repete-se algumas vezes até sentir o alongamento, a soltura dessa região. Delicadamente, retira-se a bola, estendem-se ambas as pernas, percebendo a diferença entre o lado massageado e o outro. Repete-se o exercício para o outro lado. Esses são alguns dos preliminares propostos por Bertherat e Bernstein (1987) e que caracterizam a antiginástica como uma técnica voltada para a consciência corporal. De acordo com Bertherat (2014), com a antiginástica: A musculatura se libera, se flexibiliza, se fortalece. As dores nas costas, na nuca, nos ombros desaparecem. A energia sexual se libera; a respiração; a digestão, a circulação melhora. O corpo reencontra harmonia, equilíbrio e autonomia, e os benefícios nele se inscrevem de forma duradoura. Respeitando totalmente o corpo, os movimentos propostos pela antiginástica® são realmente poderosos. Eficazes. Desde os primeiros dias, obtêm-se resultados. Porém, é preciso várias semanas, muitas vezes vários meses, para que a mudança se instale (BERTHERAT, 2014, p. 1). O ponto central dessa técnica é o equilíbrio entre as cadeias musculares posteriores e anteriores do corpo. Sentir-se achatado, esmagado pela musculatura, em particular na região lombar, não corresponde ao equilíbrio funcional do nosso corpo. Liberar essa musculatura amplia a um só tempo nossa elasticidade, a sensação de bem-estar e a percepção geral do nosso corpo e de nós mesmos. Aula 2 Consciência corporal38 Bertherat (2014, p. 6) descreve os benefícios da antiginástica, a saber: � Bem-estar físico e psíquico. � Vitalidade, mobilidade, resgate deflexibilidade, maior amplitude articular para as pessoas que sofrem de reumatismo. � Sensação de unidade, de solidez, confiança em si mesmo resgatada. � Reequilíbrio entre a frente e trás, lado direito e lado esquerdo. � Efeito de relaxamento, de um corpo solto que respira. � Método rejuvenescedor. � Alternativa a certas intervenções cirúrgicas (alux valgum, operação para síndrome do túnel do carpo). � Desaparecimento de dores dorsais e cervicais. � Diminuição do estresse, das tensões ligadas ao trabalho, aos esportes, às atividades cotidianas. � Desenvolvimento da motricidade, da coordenação da orientação, per- cepções sensoriais mais apuradas. � Excelente acompanhamento para a gravidez. Os profissionais organizam sessões específicas para mulheres grávidas. Como todo trabalho de consciência corporal, a antiginástica é um processo em que se faz necessária a dedicação, a vontade e a disponibilidade para aprender algo novo, para se abrir ao campo das sensações, da percepção dos movimentos, ampliando nossa capacidade de concentração e nosso equilíbrio. Embora seja um método criado por uma fisioterapeuta, os exercícios preliminares podem ser feitos em aulas de educação física, com o objetivo de consciência corporal (CLARO, 1995). Em nossa experiência profissional, temos utilizado a antiginástica em aulas de educação física escolar, na formação de professores e na preparação corporal de bailarinos e de atores, sem restrições quanto à idade ou à experiência corporal atlética. Como em todo trabalho corporal, indica-se, por vezes, a complementação entre as atividades e, caso necessário, acompanhamento médico, fisioterapêutico ou psicológico. Cabe ao profissional conhecer o grupo e os objetivos do trabalho, adaptando o método às necessidades de seus alunos. A seguir, descrevemos uma sessão de antiginástica que foi realizada com os alunos da disciplina de Consciência Corporal, no Departamento de educação física da UFRN. Desse modo, você poderá perceber os aspectos práticos da Antiginástica. Essa aula pode ser feita com pessoas de qualquer idade e mesmo gestantes. Para pessoas idosas, alguns exercícios podem ser feitos sentadas em uma cadeira, como, por exemplo, a massagem na planta dos pés. 1) Nível de alongamento da cadeia muscular posterior: de pé, pés paralelos e separados na largura do ombro. Pernas estendidas, flexionar o tronco. Perceber a tensão na musculatura posterior, a posição das mãos e a distância em relação aos pés. Massagear as partes do corpo em que sente mais tensão (lombar, pes- coço, pernas). Respirem profundamente e tentem aliviar essa tensão. Flexionar a perna direita, depois a esquerda. Há diferença de tensão entre as pernas? Aula 2 Consciência corporal 39 2) Deitados em decúbito dorsal, vamos fazer a leitura corporal (Figura 3). Quais as partes do corpo que estão em contato com o chão? Vamos perceber esse contato. Começamos com os pés, calcanhares. Como é esse apoio dos calca- nhares? Percebam se há diferença entre o lado direito e o esquerdo do corpo. E as pernas, parte posterior das pernas, sintam esse contato com o chão. E os joelhos? Como estão posicionados? Apontam para cima, para o lado? E as coxas, parte posterior da coxa? E o quadril, ponto de ligação entre a metade inferior e superior do corpo, como você sente o quadril, glúteos? Passamos para as costas, começando com a lombar, a lombar toca o chão? Respirem e tentem aproximar a região lombar do chão. Muito bem! Dobrem os joelhos, pés no chão, percebam o contato das costas. Elevação do quadril (ponte), retificar a curvatura da coluna vertebral. Voltem a estender as pernas e sintam os ombros, braços, mãos. Agora é a cabeça, sintam o peso da cabeça. E os maxilares, estão cerrados? Tentem soltá-los, colocando a ponta da língua no céu da boca. Relaxem. Virem o pescoço delicadamente para um lado e para o outro. Procurem perceber a imagem do seu corpo no chão dos pés à cabeça e da cabeça aos pés. Figura 3 – Leitura corporal. Fonte: Autoria Própria (2014). 3) Deitados, pernas dobradas. Nessa posição, colocar a bolinha na região lombar e no trapézio. Fazer a ponte e, depois, rolar os braços para frente e para trás. 4) Vamos ficar de pé e massagear os pés com a bolinha de tênis. Um lado de cada vez. Antes de passar para o outro pé, perceber a musculatura do lado massageado (Figura 4). Aula 2 Consciência corporal40 Figura 4 – Massagem na planta dos pés. Fonte: Autoria Própria (2014). 5) Massagem dois a dois com a bolinha de tênis (Figura 5). Figura 5 – Massagear as costas do colega. Fonte: Autoria Própria (2014). 6) Para finalizar, repetir a leitura corporal. Indagar como se sentem. Escutar as im- pressões dos alunos sobre suas sensações, seu estado geral, entre outros aspectos. 7) Desenho da figura humana (Figura 6): pedir para desenhar a figura humana em uma folha de papel ofício (tamanho A4), usando lápis grafite ou caneta. Pode-se fazer isso na primeira aula e repetir no final de algumas aulas. Assim, é possível comparar o desenho feito antes e depois, comparando se houve uma ampliação da percepção do corpo expressa pelos desenhos e pela fala dos alunos. Aula 2 Consciência corporal 41 Figura 6 – Desenho da figura humana feito por uma aluna da disciplina Consciência Corporal do curso de Educação Física da UFRN, no início e no final do semestre letivo de 2013.2. Fonte: Autoria Própria (2014). No desenho da figura humana (Figura 6), você pode observar aspectos relacio- nados ao esquema corporal, tais como a espacialidade. Dobre a folha de papel em quatro partes e perceba em que parte do papel a figura está situada. O desenho está bem distribuído no espaço ou figura em apenas um quadrante da folha? As partes e proporções do corpo são adequadas ou são apenas garatujas infantis (rabiscos)? O corpo está nu ou vestido? Podemos fazer a leitura do desenho com os alunos, percebendo esses e outros aspectos relacionados à percepção do corpo. No desenho seguinte (Figura 7), nota-se que a primeira imagem retrata um corpo masculino. O mesmo,que se modifica na segunda imagem. A referida aluna tornou- -se mais expressiva ao longo da disciplina. Outros aspectos do desenho não foram analisados por nós, mas isso poderia ser feito por outros profissionais e em outros con- textos que não o da formação profissional, em sessões de psicoterapia, por exemplo. Figura 7 – Desenho da figura humana feita por uma aluna no início e no final da disciplina Consciência Corporal. Fonte: Autoria Própria (2014). Leituras complementares Aula 2 Consciência corporal42 Nas Figuras 6 e 7, podemos perceber desenhos produzidos por alunos da disciplina Consciência Corporal do curso de Educação Física da UFRN, ao iniciarmos a disciplina no primeiro semestre de 2013 e quatro meses depois. É visível a elaboração do esquema corporal e os aspectos expressivos, o que indica a ampliação da percepção do corpo para esses alunos por meio da antiginástica e de outras técnicas que iremos abordar ao longo de nossa disciplina. Merleau-Ponty (2006) apresenta várias interpretações do desenho da figura humana, em particular aquele realizado por crianças. Trata-se de uma boa referência para aprofundar esse índice do conhecimento do corpo. O autor destaca os aspectos relacionados ao esquema corporal, ao desenvolvimento emocional e psicanalítico. Nesse último caso, pode-se fazer uma leitura dos aspectos ligados aos desejos, aos bloqueios emocionais ou recalques e ainda as couraças musculares, entre outros aspectos. Voltaremos a essa questão da representação do desenho, os modelos e as imagens corporais em nossa próxima aula sobre a percepção do corpo na eutonia. BERTHERAT, M. A Antiginástica. 2014. Disponível em: <http://www. antigymnastique.com/media/ui/img/presse/pdf/Em-pleno-corpo.pdf>. Acesso em: 5 maio 2014. Apresenta os objetivos e benefícios da antiginástica, bem como descreve uma sessão com essa técnica. Relata ainda experiências com gestante e combebês. Vídeo sobre Antiginástica. Disponível em: <http://tnh1.ne10.uol.com.br/video/ feito-pra-voce/2014/02/18/108195/antiginastica-exercicios-sem-suor>. Acesso em: 5 maio 2014. O vídeo mostra os princípios teóricos e metodológicos da antiginástica. GAIARSA, J. A. Couraça muscular do caráter: William reich. São Paulo: Ágora, 1984. O livro apresenta os fundamentos da teoria de William Reich sobre o corpo e as couraças musculares. Pode contribuir na relação entre o corpo e os aspectos psicológicos do comportamento humano. 2Atividade Resumo Aula 2 Consciência corporal 43 Em grupo, faça uma pesquisa em sua cidade ou região, ou na internet a respeito da antiginástica. Procure locais e profissionais (psicólogos, fisioterapeutas, professores de educação física, bai- larinos, atletas) que conheçam essa técnica e faça uma entrevista. Indague sobre os aspectos teóricos, a percepção do corpo, os aspectos metodológicos da técnica e os benefícios da prática. Em seguida, prepare (em grupo) um relatório contendo o estudo da realidade e apresente seu trabalho ao tutor. Pode incluir fotos e vídeos. Nesta aula, abordamos aspectos teóricos e metodológicos da antiginástica criada pela francesa Thérèse Bertherat e vimos que os exercícios preliminares visam produzir a liberação das cadeias musculares, melhorar o alongamento, ampliar a percepção de si mesmo e produzir relaxamento e bem-estar. Anotações Aula 2 Consciência corporal44 Autoavaliação Como você percebe seu corpo? Experimente um ou mais dos exercícios preliminares da antiginástica descritos na aula e relate como foi a percepção do seu corpo ao realizá-los. Poste sua autoavaliação na plataforma Moodle. Referências BERTHERAT, T.; BERNSTEIN, C. O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si. São Paulo: Martins Fontes, 1987. BERTHERAT, M. A Antiginástica. 2014. Disponível em: <http://www. antigymnastique.com/media/ui/img/presse/pdf/Em-pleno-corpo.pdf>. Acesso em: 5 maio 2014. CLARO, E. Método dança-educação física: uma reflexão sobre consciência corporal e profissional. São Paulo: Robe, 1995. KELEMAN, S. Anatomia emocional. São Paulo: Summus, 1992. MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ______. Psicologia e pedagogia da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Anotações Aula 2 Consciência corporal 45 Anotações Aula 2 Consciência corporal46 A percepção do corpo na Eutonia 3 Aula 2 1 49 Apresentação Caro(a) aluno(a), nesta aula, vamos conhecer a eutonia. A palavra eutonia expressa a ideia de uma tonicidade equilibrada e harmoniosa. A etimologia da palavra vem do grego Eu = bom, justo, harmonioso enquanto tonos = tônus, tensão. Essa técnica foi criada pela alemã Gerda Alexander com objetivo de melhorar a consciência corporal, ou seja, aprimorando a percepção do espaço corporal, da respiração, de posições de controle, do tato e do contato. A técnica é utilizada em processos pedagógicos e também em processos tera- pêuticos. No caso da Educação Física a eutonia é usada em aulas de consciência corporal, ampliando-se o conhecimento do corpo, dos espaços corporais, a motricidade, o ritmo e a expressão. No primeiro momento da aula, vamos apresentar a trajetória histórica e os princípios teóricos da eutonia e, na segunda parte da aula, vamos conhecer aspectos metodológicos e práticos dessa técnica que tem sido aplicada em contextos educativos e clínicos diversos, seja com crianças, jovens, adultos ou idosos. Com os exercícios de eutonia, podemos perceber o nosso corpo de forma ampla, criativa, expressiva, trabalhando-se as sensações do movimento, a respiração, o tônus muscular e sua flexibilidade, a expressão corporal e rítmica. Preparados(as)? Vamos começar! Objetivos Identificar os princípios teóricos e metodológicos da eutonia. Reconhecer os exercícios da técnica da eutonia. Aula 3 Consciência Corporal 51 Conhecendo a eutonia A criadora da eutonia foi a alemã Gerda Alexander (1908-2008). Ela cresceu no período entre as duas Grandes Guerras e viu nascerem inúmeras práticas corporais como a ginástica rítmica, a dança moderna e a eurritmia de Dalcroze que a influenciaram significativamente. De acordo com Huberty (2013), do ponto de vista teórico, a eutonia tem como base a psicologia de Jung e o conceito de individuação; Wallon e o desenvolvimento psicomotor da criança e a fenomenologia de Merleau-Ponty com sua noção de corpo e de movimento. Essas são as principais referências fundamentais a compreensão de corpo, de ser humano e de educação aplicada em clínicas e em espaços pedagógicos. A eutonia apresenta uma compreensão de corpo fundada na fenomenologia de Merleau-Ponty na qual o corpo e seu movimento ocupa um lugar de destaque. De acordo com Alexander (1983), o corpo não é a máquina que funciona bem ou mal, também não é o lado perecível do ser humano que contrasta com sua alma imortal. Corpo e alma vivificam-se mutuamente, formando uma unidade. Ao atuar sobre o tônus muscular os exercícios de eutonia mobilizam também nossa psique, o interior e o exterior de nosso corpo se comunicam. Na fenomenologia e na eutonia o corpo é fonte de saber. De acordo com Dascal (2008), muitas de nossas percepções são ainda influenciadas pela separação entre corpo e alma, corpo e mente, razão e emoção. Mas na linha filosófica iniciada por Merleau- -Ponty e sua filosofia do corpo, a eutonia procura propiciar o encontro com nossa realidade corporal, ampliando a percepção do esquema corporal, da consciência dos espaços corporais e das possibilidades de nossa motricidade na prática. A eutonia aprofunda nosso estado de presença corporal por meio da ênfase nas sensações e na sensibilidade. O trabalho de contato com objetos como bolas de tênis, bambus, balões de encher e o trabalho de contato corporal com os colegas estimula a cooperação e a afetividade. Pensando nisso, Dascal (2008) apresenta a influência do tônus muscular sobre as emoções. A tonicidade repercute no ser humano como um todo. A vida afetiva, os estados emocionais alteram o tônus e a maneira como é distribuído no corpo. Por exemplo, a tristeza está associada à sensação de garganta comprimida e um esterno sensível. O medo está relacionado à sensação de frio no estômago e músculos abdominais contraídos (DASCAL, 2008, p. 68). Diversos estudos apontam para esse fato de que as sensações e as emoções se fixam em algum músculo, como, por exemplo, os de Lowen (1982) e de Keleman (1992). Logo, na eutonia essa relação entre emoções e tonicidade apresenta-se como um princípio a ser trabalhado nas práticas corporais do método. De acordo com Dascal (2008), a eutonia busca a observação do corpo por meio da experiência corporal de cada sujeito que vivencia o movimento. “Essa experimentação constante e rigorosa do próprio corpo aguça a sensibilidade Merleau-Ponty Caro aluno(a), a respeito da compreensão fenomenológica do corpo sugere-se que releia a primeira aula da disciplina de consciência corporal. Você pode também voltar ao livro didático da disciplina Aspectos Sociofi- losóficos da Educação Física e reler a Aula 3 (corporeidades). Aula 3 Consciência Corporal52 proprioceptiva, desenvolve um estado de presença autêntica de si e em relação às pessoas, às coisas e ao mundo” (DASCAL, 2008, p. 51). O bom tônus significa, portanto, a tensão adequada à ação que se está realizando, seja quando jogamos, dançamos, atravessamos a rua ou dirigimos nosso carro. Assim, nas práticas de eutonia busca-se regularizar esse tônus de acordo com as necessidades de cada um, ajudando também no relaxamento, por exemplo. Sendo assim, o relaxamento é fundamental para o equilíbrio e a saúde do ser humano. O repouso, a passividade, o relaxamento são regeneradores dos tecidos cansados e gastos pela ação do tempo, pelo cansaço e pelo estresse muitas vezes causado pela jornada cotidiana. Por isso, os exercícios em dupla, os jogos, o con- tato com o colega, os exercícios
Compartilhar