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29 VISÕES DOUTRINÁRIAS CONTEMPORÂNEAS SOBRE A DESOBEDIÊNCIACIVIL HANNAH ARENDT E A ASSOCIAÇÃO VOLUNTÁRIA Avançando-se ao Século XX, entrando no período histórico das guerras mundiais e da guerra fria, tem-se o pensamento político de Hannah Arendt. A autora tem uma obra política vasta e também teorizou sobre desobediência civil. Hannah Arendt não concorca com Thoreau e seu individualismo, pois este seria permeado por subjetividades e a ação política se preocuparia com interesse público e não somente com o “Eu” individual.107 Na relação que traça entre a lei e a razão de sua obediência, dirá que, diferentemente de autores como Kant e Rosseau, a aceitação da norma advêm de uma associação voluntária e não de uma simples submissão voluntária, a qual denotaria apenas um aspecto passivo com relação as leis. Para Arendt, a população deveria consentir com as normas mas não apenas pelo lado passivo da questão, ou seja, tal consentimento deveria se expressar na aceitação das regras e na participação ativa do cidadão na vida da comunidade. 108 Seria exatamente “com embasamento na extrema necessidade deste tipo de consentimento por parte de cada indivíduo ao ingressar em uma comunidade que Hannah Arendt justifica o direito à desobediência civil”.109 Sobre a associação voluntária ela não seria “um consentimento de aquiescência, mas por meio da participação ativa e contínua dos cidadãos “em todos os assuntos de interesse público”110 Os atos de desobediência às leis seriam “atos de reivindicação legítimos praticados por determinadas minorias injustiçadas por uma lei ou política governamental específica, buscando uma conscientização da maioria para sua causa”.111 Portanto, nesta toada, Hannah Arendt entendia que a desobediência civil surge quando: 107 BONINI, Marcelo Casteli A Desobediência Civil como condição histórica de exercício e produção de sujeitos político-culturais, Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Ciência Jurídica do Centro de Ciências Sociais Aplicadas do Campus de Jacarezinho da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Jacarezinho, 2010, p. 39. 108 Ibdem, p.41. 109 Ibdem, p.42. 110 Ibdem,p.41-42. 111 Ibdem, p.44. 30 “Um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças não funcionam, e as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas.”112 Portanto, depreende-se do dito acima, que a desobediencia civil para a autora seria um ato coletivo, não violento, que vai na contramão da vontade da maioria, sendo um instrumento utilizado pela minoria, munida da opinião comum dos seus integrantes que se convenceram que os canais normais de mudança não surtirão efeitos ou que o governo está empreendendo atos de constitucionalidade duvidosa. Pelo fato de não se utilizar de violência se diferenciaria da ação revolucionária113 e pelo fato de ser uma ação coletiva se diferenciaria da objeção de consciência pelo fato desta ser um ato individual.114 Ela seria um atributo da cidadania115, sendo inerente ao agir do povo no espaço público, dotada de plena publicidade116, que deveria, aos olhos da autora, ter respaldo constitucional117 mesmo sendo uma ação extra legal118. Porém, ela não seria apenas um instrumento para controlar a constitucionalidade das disposições normativas do Estado, “o contestador objetiva ter seus direitos respeitados, para isso desobedece a lei, quando esta desrespeita seus direitos, justifica seu ato por amparar-se na própria constituição ou leis e princípios que permanecem imutáveis através do tempo.”119 112 ARENDT, Hannah. Crises da República. Tradução de José Volkmann. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004,p.68 Apud. SEIXAS, R. L. da R. (2019). Desobediência Civil e Cidadania Participativa em Hannah Arendt. Aufklärung: Revista De Filosofia, 6(1), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, p.65-76. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/42937. Acessado em 02/05/2020. 113SEIXAS, R. L. da R. (2019). Desobediência Civil e Cidadania Participativa em Hannah Arendt. Aufklärung: Revista De Filosofia, 6(1), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, p.69. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/42937. Acessado em 02/05/2020. 114 Ibdem, p.67-68. 115CARDOSO, Silvio Cesar Gomes Hannah Arendt: Desobediência Civil e Liberdade Dissertação (Mestrado) — Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia, Sociologia e Política, Universidade Federal de Pelotas, Rio Grande do Sul, 2017, p. 35-41. 116 SEIXAS, R. L. da R. (2019), Op. Cit., p.68. 117 BONINI, Marcelo Casteli A Desobediência Civil como condição histórica de exercício e produção de sujeitos político-culturais, Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Ciência Jurídica do Centro de Ciências Sociais Aplicadas do Campus de Jacarezinho da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Jacarezinho, 2010, p.41. 118 SEIXAS, R. L. da R., Op. Cit., p.67. 119 Ibdem, p.69. 31 Além disso, somente poderia ser utilizada quando comprovadamente o povo já não poderia utilizar-se dos meios institucionais para a resolução da controvérsia.120 Ela seria voltada “para a mudança do status quo, a fim de resgatar a capacidade de agir conjuntamente, de refundar uma comunidade política e de reafirmar ou revitalizar suas promessas.”.121 Assim, portanto, a desobediência civil seria caracterizada pela autora como “ação política e forma de participação cidadã democratica direta, que não se contrapõe ou exclui a democracia representativa mas ao contrário atua em seu fortalecimento”.122 Ainda nesta toada, Doglas Cesar Lucas dirá que Hannah Arendt reconhece “a desobediência civil como reafirmação da obrigação político-jurídica capaz de regenerar a faculdade de agir, de participar do processo de tomada de decisões políticas e, dessa maneira, impedir a degeneração da lei e a corrosão do poder político.”123 Por derradeiro, quanto as punições aos desobedientes a autora irá além de Habermas e de Rawls. Estes se contentaram em explicitar que os desobedientes deveriam receber atitudes mais tolerantes por parte do poder público, porém a autora vai além. Ao invés de uma mera tolerância deveria-se criar um nicho constitucional para a desobediência civil (como dito acima) e, além disso, aos desobedientes deveria ser dado o direito de auxiliar e influenciar o próprio Congresso nacional do país.124 Portanto, não bastava a “frágil garantia de não serem tratados como criminosos comuns, encontraríamos em Arendt a defesa de que a esses mesmos cidadãos seja dado acesso aos processos políticos institucionalizados.”125 120 ILIVITZKY, M. E. La desobediencia civil: aportes desde Bobbio, Habermas y Arendt CONfines relacion. internaci. ciencia política, Monterrey , v. 7, n. 13, p. 15-47, maio de 2011. P.34. Disponível em: <http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-35692011000100002>. Acessado em 02/05/2020. 121 CARVALHO, J. B. C. L. de. A Desobediência Civil no pensamento político de Hannah Arendt: Um direito fundamental Espaço Jurídico Journal of Law [EJJL],v. 13, n. 1, p. 55-66, jan./jun. 2012, Joaçaba (SC), p.64. Disponível em: <https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/1420>. Acessado em 02/05/2020. 122 SEIXAS, R. L. da R. (2019). Desobediência Civil e Cidadania Participativa em Hannah Arendt. Aufklärung: Revista De Filosofia, 6(1), Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, p.69. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/arf/article/view/42937. Acessado em 02/05/2020. 123 LUCAS, Doglas Cesar; A Desobediência Civilna Teoria Jurídica de Ronald Dworkin, Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, v. 16, n. 16, julho/dezembro de 2014, Curitiba, 2014, p.120. Disponível em: < https://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/591 > Acessado em: 21/11/2020. 124 SILVA, Felipe Gonçalves Desobediência Civil e o aprofundamento da democracia Pensando – Revista de Filosofia Vol. 9, Nº 18, 2018, P.205-206. Universidade Federal do Piauí (UFP) Departamento de Filosofia, Programa de pós graduação em filosofia. Disponível em: <https://revistas.ufpi.br/index.php/pensando/issue/view/Vol.%209%2C%20n.18%2C%202018/showToc> Acessado em 02/05/2020. 125 Ibidem, p.206. http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-35692011000100002 32 NORBERTO BOBBIO E AS TIPOLOGIAS DA RESISTÊNCIA Igualmente no século XX, nascido em 1909 em Turim, na Italia126, Norberto Bobbio escreveu sobre resistência aos governos instituídos e suas leis em várias partes de suas obras (notadamente em “Era dos Direitos”, “Teoria Geral da Política” e “Terceiro Ausente”). Matías Esteban, docente e investigador da faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, dissertando sobre Bobbio, dirá que a desobediência civil para o autor seria uma categoria da resistência (por seu caráter prático), originando-se, de uma falta no processo de constitucionalização de determinados mecanismos de controle ao abuso de poder na sociedade, como por exemplo, a consagração institucional da oposição e do sufrágio universal (voto).127 Nesse contexto, sua utilização é fruto das baixas taxas de participação popular nas democracias contemporâneas, seja porque haja uma baixa motivação dos participantes, seja em decorrência da diminuição da capacidade de realização das políticas públicas exigidas pelo eleitorado por parte dos governantes.128 Dirá Matías Esteban que Bobbio reconhece que a teoria da desobediência civil sofreu variações ao longo da história, sendo em um momento resistência com usa da força, classificada como ativa e sem o uso da força, classificada como passiva. Norberto Bobbio apoia a variação sem violência, uma vez que estabelece que uma sociedade não violenta deve ser alcançada igualmente por práticas pacíficas. Também vai classifica-lá como um ato político distinguindo também a desobediência civil de outros tipos pacíficos de pressão exercidos por indivíduos isolados. Nesse contexto, conclui que as ações de desobediência passiva são tomadas não apenas de maneira coletiva, como também são medidas primordialmente concernentes a grupos oriundos à base da sociedade. 129 Segundo Matías Esteban, para Bobbio, a desobediência civil tem um caráter inovador, pois é a forma que os cidadãos têm de demonstrar o seu descontentamento com as disposições constitucionais, consideradas por eles injustas, ilegítimas ou inválidas. Além disso, a desobediência civil aspira ao máximo de publicidade possível, de maneira a conseguir 126 VANNUCHI, Paulo. Bobbio, a trajetória de um questionador. Lua Nova, São Paulo , n. 53, p. 69-97, 2001, p.70. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452001000200004> Acessado em 22 de Abril de 2020. 127 Ibdem, p.18-19. 128 Ibdem,p. 19. 129 Ibdem,p. 19. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 33 a adesão de outros cidadãos daquela mesma sociedade em que o protesto é realizado.130 Bobbio chegará a afirmar em “O terceiro Ausente” que aqueles que se recusam a seguir esse tipo de norma, dentro deste contexto, creem possuir uma relação especial com os legisladores.131 Segundo Matías Esteban, Bobbio reconhece oito tipos de conduta cidadão frente à lei (em grau decrescente de acatamento): 1) Obediência Conforme; 2) Obséquio Formal; 3) Evasão oculta; 4) Obediência passiva; 5) Objeção de Consciência; 6) Desobediência Civil; 7) Resistência passiva; 8) Resistência ativa.132A desobediência civil se encontra em um ponto intermediário entre as formas de rebeldia frente ao sistema normativo — entre a obediência passiva, em que o indivíduo infringe apenas eventualmente a lei, e a resistência ativa, próxima à ação revolucionária.133 Segundo Matías Esteban, a desobediência civil para Bobbio é uma ação comissiva, uma vez que pressupõe uma conduta que se encontra fora da lei com o fim de protestar contra ela. É, também, coletiva, pacífica, uma vez que se diferencia da ação revolucionária, é parcial, pois aspira modificar uma disposição específica que se considera em contrariedade com o resto do Direito e é passiva, pois se encontra explicitamente em contraposição às normas vigentes devendo ser sancionada. Apesar de questionar as normas, porém, aceita que são as leis que devem reger o comportamento público e privado.134 Segundo Matías Esteban, para Bobbio, a desobediência civil impede a perpetuação de despotismos e ditaduras também servindo de uma forma de manter a qualidade do governo.135 Seria, em última instância, um ato de virtude cívica por parte dos cidadãos daquela sociedade.136 130 VANNUCHI, Paulo. Bobbio, a trajetória de um questionador. Lua Nova, São Paulo , n. 53, p. 69-97, 2001, p.20. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452001000200004> Acessado em 22 de Abril de 2020. 131 ILIVITZKY, Matías Esteban. La desobediencia civil: aportes desde Bobbio, Habermas y Arendt. CONfines relacion. internaci. ciencia política, Monterrey , v. 7, n. 13, p. 15-47, mayo 2011, p.20. Disponível em: <http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-35692011000100002> Acessado em 22 de Abril de 2020. 132 Ibdem,p.20. 133 Ibdem,p.21. 134 Ibdem,p.21. 135 Ibdem,p.22. 136 Ibdem,p.22. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-35692011000100002 34 Por outro lado, consultando os textos de Sílvia Alves, professora da Universidade de Lisboa, a Desobediência Civil para Bobbio seria uma ação omissiva, coletiva, pública e pacífica, às vezes não parcial e às vezes não passiva. Dirá a autora que, para Bobbio “A desobediência civil é omissiva, coletiva, pública, pacífica, não necessariamente parcial (como ocorreu com Gandhi) e não necessa-riamente passiva (as cam-panhas contra a discriminação tendem a não reconhecer ao Estado o direito de punir)”.137 Coloca também a citação de Gandhi que Bobbio faz em “O Terceiro Ausente”, estabelece três aspectos importantes e característicos da desobediência Civil que seriam a aceitação da sanção, o respeito a autoridade e a “ invocação de uma lei superior ou de um padrão maior que permite aferir a validade ou até a existência da lei a que se opõem os desobedientes.”138 Em contato com as fontes primárias, notadamente “o terceiro ausente”, “resistência a opressão hoje” – presente tanto em “A era dos direitos” como em “teoria geral da política” e a parte que é intitulada “Desobediência Civil” presente em seu “dicionário de política” parece que as divergências se justificam, notadamente no ponto da classificação da Desobediência Civil como Comissiva ou Omissiva e estritamente passiva ou apenas às vezes passiva. Sílvia parece fazer jus mais a literalidade do texto quando estabelece que a Desobediência Civil para Bobbio não necessariamente seria sempre passiva. Nesse sentido há trecho específico em “o terceiro ausente”: Chegando à desobediência Civil, tal como é com frequencia concebida na filosofia política contemporrânea, que toma como modelo as grandes campanhas não- violentas de Gandhi ou as campanhas pela abolição das discriminações raciais nos Estados Unidos, ela é omissiva, coletiva, pública, pacífica, não necessariamente parcial ( a ação de Gandhi foi certamente uma ação revolucionária) e não necessariamente passiva ( as grandes campanhas contra a discriminação racial tendem a nãoreconhecer ao Estado o direito de punir os pretensos criminosos de lesa discriminação).139 Essa interpretação mais literal parece ser acertada também na questão da classificação como não necessariamente parcial, visto que mais a frente, ao distinguir desobediência de constestação, Bobbio estabelece que a desobediencia, “uma vez que exclui a 137 ALVES, Sílvia. Desobediência Civil E Democracia Civil Disobedience And Democracy Revista Duc In Altum Cadernos de Direito, Faculdade Damas,Recife, vol. 7, nº11, jan.-abr. 2015, p.56. Disponível em: < https://faculdadedamas.edu.br/revistafd/index.php/cihjur/index > Acessado em 16/11/2020. 138 Ibdem, p.57. 139 BOBBIO, Norberto, O Terceiro Ausente: Ensaios e discursos sobre a paz e a guerra, organização: Pietro Polito, Préfácio a edição brasileira: Celso Lafer, Revisão técnica do texto de Bobbio: Frederico Diehl e Valdemar Bragheto Junqueira, Tradução: Daniela Versiani, editora Manole, Barueri, São Paulo, 2009, p.104. 35 obediência, constitui um ato de ruptura contra o ordenamento ou parte dele”140 (podendo, portanto, ser parcial ou não). Não pareceu acertado, contudo, estabelecer que, pela citação de Gandhi, Bobbio estaria concordando que a desobediência civil teria como três características principais a aceitação da sanção, o respeito a autoridade e a invocação de uma lei superior ou de um padrão maior, visto que a citação é feita no contexto de explicação de uma das formas de justificação da desobediência civil, qual seja, sua justificação de natureza religiosa e, posteriormente, justificação pelo direito natural (lei moral) e Bobbio parece que não estabelece posição nesse trecho, apenas estabelece que uma das principais fontes de justificação foi a religiosa e que Gandhi tomou partido dela.141 Matías classifica a Desobediência Civil para Bobbio como comissiva nos seguintes termos: “es una acción comisiva, ya que busca realizar algo que se encuentra por fuera de la ley con el fin de hacer manifiesta la protesta contra aquella”.142 Entretanto, não é essa a definição de comissivo dada por Bobbio nas tipologias que trabalha em “o terceiro ausente”. Em verdade a busca de realizar algo que se encontra fora da lei poderia ser tanto fazendo o que ela proibe ou não fazendo o que é comandado. Feitas tais considerações, parece mais acertado, estabelecer que, para Bobbio, ela não seria necessariamente passiva (como em certos casos de discriminação racial) e não necessariamente parcial (como no caso de Gandhi) e que ela poderia ser caracterizada como omissiva pela leitura de seu texto intitulado “desobediência civil” em seu livro “o terceiro ausente”.143 Isso é reforçado com sua constantação de que esta seria uma forma de resistência pacífica e por sua observação de que “(note-se que a passagem da ação não violenta para a ação violenta coincide muitas vezes com a passagem da ação omissiva para a ação comissiva)”.144 140 BOBBIO, Norberto, O Terceiro Ausente: Ensaios e discursos sobre a paz e a guerra, organização: Pietro Polito, Préfácio a edição brasileira: Celso Lafer, Revisão técnica do texto de Bobbio: Frederico Diehl e Valdemar Bragheto Junqueira, Tradução: Daniela Versiani, editora Manole, Barueri, São Paulo, 2009, p. 106/107. 141 Ibdem, p.108. 142 ILIVITZKY, Matías Esteban. La desobediencia civil: aportes desde Bobbio, Habermas y Arendt. CONfines relacion. internaci. ciencia política, Monterrey , v. 7, n. 13, p. 15-47, mayo 2011, p.21. Disponível em: <http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-35692011000100002> Acessado em 22 de Abril de 2020. 143 BOBBIO, Norberto, Op. Cit., p.104. 144 Ibdem, 103. http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-35692011000100002 36 O texto intitulado “Desobediência Civil” presente em seu “dicionário de política” é idêntico ao seu texto sobre desobediência civil em “o terceiro ausente”, sendo que seu texto “A resistência a opressão hoje” não apresenta maiores esclarecimentos sobre essas questões, sendo um texto que pretende analisar a resistência num âmbito mais geral e não a desobediência civil em particular (tratando dela muito rapidamente em sua parte final).145 Por derradeiro, têm-se que mencionar as tipologias que Bobbio usa para enquadrar as demais formas de resistência, são elas: a) Omissiva ou comissiva (“não fazer o que é mandado (...) ou em fazer aquilo que é proibido”146); b) individual e coletiva; c) Clandestina ou pública (“seja preparada e realizada em segredo, (...) ou, então, anunciada antes da execução”147); d) pacífica ou violenta (“realizada através de meios não violentos (...) ou com armas próprias ou impróprias”148); e) parcial ou total (“voltada para a mudança de uma norma ou de um grupo de normas ou até do ordenamento inteiro”149); f) Passiva ou ativa (“passiva aquela que se dirige as partes perceptivas da lei e não a parte punitiva(...) ativa, aquela que se dirige simultaneamente à parte perceptiva e à parte punitiva da lei”150). JONH RAWLS E A DESOBEDIÊNCIA EM UMA SOCIEDADE QUASE JUSTA Retomando temas de teoria da justiça na contemporraneidade tem-se Jonh Rawls (1921-2002). O autor escreveu “A Theory of Justice”151. Primeiramente, é importante ter em mente que o autor somente concebe a desobediência em um Estado em que haja um sistema democrático de governo, que seja quase justo e que haja uma constituição a qual os cidadãos a aceitam e consideram legitima.152 145 BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos, Tradução: Carlos Nelson Coutinho, apresentação de Celso Lafer, nova ed., Rio de Janeiro, Editora Elsevier, 7ª reimpressão, 2004, p.66/67. 146 BOBBIO, Norberto, O Terceiro Ausente: Ensaios e discursos sobre a paz e a guerra, organização: Pietro Polito, Préfácio a edição brasileira: Celso Lafer, Revisão técnica do texto de Bobbio: Frederico Diehl e Valdemar Bragheto Junqueira, Tradução: Daniela Versiani, editora Manole, Barueri, São Paulo, 2009, p.102- 104. 147 Ibdem, p.102-104. 148 Ibdem, p.102-104. 149 Ibdem, p.102-104. 150 Ibdem, p.102-104. 151 GARGARELLA, Roberto As Teorias da Justiça depois de Rawls: Um breve manual de filosofia política. Tradução: Alonso Reis Freire,WMF Martins Fontes, São Paulo, 2008, p.1. 152 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.98. 37 Desse modo, "deve-se salientar que o autor trabalhará com a desobediência apenas no âmbito de um Estado democrático, mais ou menos justo, no qual os cidadãos reconhecem e aceitam a legitimidade da Constituição".153 Porém, em tal sociedade haveria sérios ataques aos princípios de justiça.154 Em caráter primário, deve-se apontar alguns conceitos da teoria política do autor que facilitará o entendimento de sua doutrina da desobediência. Em “A Theory of Justice”, menciona-se um contrato hipotético (ou acordo hipotético) que é realizado com os indivíduos em uma condição originária que o autor denomina de "posição original". Rawls refere-se, portanto, a um acordo que seria firmado sobre certas condições ideais e seu objetivo seria definir os princípios básicos de justiça.155 Os procedimentos adotados para escolher os princípios básicos da justiça nessa posição inicial levariam a tese de Rawls de "justiça como equidade".156 Segundo ele, os princípios de justiça imparciais partiriam da escolha de indivíduos "livres, racionais e interessadas em si mesmas (não invejosas), colocadas em uma posição de igualdade"157 que estariam sob o denominado "véu da ignorância".158 O indivíduo não saberia qual sua posição social e todas as suas outras características pessoais e econômicas e de religião, porém teria conhecimentos gerais sobre a sociedade humana para poder fazer suas escolhas.159 Dessa "Posição Inicial", que é puramente hipotética, Rawlstrará dois princípios da justiça em sua obra, o primeiro sendo o princípio da liberdade, que consiste em dizer que todos os indivíduos devem possuir um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas no maior grau possível e que deve ser compatível com o sistema de liberdades básicas de todos.160 Além disso, uma liberdade somente poderá ser restringida se com isso o sistema de liberdades instituído para todos se fortalecer ou a desigualdade de liberdades for aceita por 153 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.98. 154 Ibdem,p.102. 155 GARGARELLA, Roberto As Teorias da Justiça depois de Rawls: Um breve manual de filosofia política. Tradução: Alonso Reis Freire,WMF Martins Fontes, São Paulo, 2008, p.14-15 e 20-21. 156 Ibdem, p.20. 157 Ibdem, p.20. 158 Ibdem, p.21. 159 TOMÉ, Julio. Op. Cit., p.24-25. 160 Ibdem, p.27. 38 quem teria uma liberdade menor. Por derradeiro, esse princípio esta hierarquicamente superior ao segundo, prevalecendo em todos os casos, não importando quais sejam.161 Importante que se diga que Rawls não trata da "liberdade" propriamente dita, mas de "liberdades básicas".162 Em verdade, ele parte diretamente para uma análise de exposição de quais seriam tais liberdades que os indivíduos teriam acesso163. Deixa-se subentendido que, ao dizer que todos os indivíduos devem ter um sistema de liberdades básicas, Rawls busca demonstrar que há certos direitos e liberdades que devem estar hierarquicamente superiores do que outros direitos e liberdades.164 Não entrando no mérito do porque em sua construção lexical o autor estabelece que todos indivíduos teriam direitos iguais a um "sistema de liberdades básicas", embora pode-se dizer que faz isso com intuito de deixar claro que não há hierarquia entre esses princípios básicos, que parte de um posição de relativa neutralidade (a "posição inicial") e para marcar diferenciação entre sua teoria e doutrinas abrangentes como o utilitarismo clássico, para o qual não haveria problemas restrição de liberdades para o bem comum do população (Rawls foge de concepções utilitaristas).165 Mostra-se importante para nós o fato de que o autor corporifica quais seriam as "liberdades básicas" estabelecendo uma lista na qual estão presentes “a liberdade de pensamento, a liberdade de consciência, as liberdades políticas e de associação, as garantias jurídicas necessárias à proteção da integridade da pessoa, além dos direitos e liberdades protegidos pelo Estado de Direito (rule of law)”.166 Por derradeiro, o primeiro princípio trata bastante do indivíduo considerado individualmente e não tanto dele em coletividade (tal como o segundo princípio).167 161 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.27. 162 ARRAES, Roosevelt Rawls e a prioridade das liberdades básicas Controvérsia – v.2, n.1, p. 55-69 (jan-jun 2006), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Rio Grande do Sul, 2006, P.57-58. Disponível em: <http://revistas.unisinos.br/index.php/controversia/search/advancedResults> Acesso em 02/05/2020. 163 Ibdem, p.57-58. 164 Ibdem, p.57-58. 165 Ibdem, p.57-58. 166 Ibdem,p.57. 167 ROSCHILDT, João Leonardo Marques O princípio da igual liberdade em john rawls: desdobramentos formais e materiais INTUITIO, Revista do PPG em filosofia da PUCRS, Porto Alegre, V.2 – Nº ,3 Novembro 2009 ,pp. 164-179, Rio Grande do Sul, 2009, p.9.Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/5996/4553>. Acesso em 02/05/2020. http://revistas.unisinos.br/index.php/controversia/search/advancedResults http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/intuitio/article/view/5996/4553 39 O segundo princípio divide-se em duas partes. A parte que o autor chama de princípio da diferença, que é onde Rawls teoriza sobre a distribuição de renda e riqueza na sociedade e sua grande contribuição para a filosofia política. O princípio da diferença parte da premissa de que a desigualdade poderia ser benéfica a todos, ou seja, a desigualdade na sociedade seria algo justificável apenas na medida em que beneficiasse os membros menos favorecidos da sociedade.168 Porém, não somente isso, não adiantaria a desigualdade apenas beneficiar os menos abastados, deveria trazer o maior benefício possível para eles. Este é o princípio da diferença (equidade distributiva). A outra parte do segundo princípio estabelece que as desigualdades econômicas e sociais são unicamente justificáveis se forem ligadas a cargos ou "posições" nas quais todos tiveram condições de participar, estabelecendo uma igualdade de oportunidades.169 Pois bem, nesta teoria política de Rawls, têm-se três justificativas que o autor fornece para a desobediência civil. A primeira é se estiver havendo ataques graves ao primeiro princípio (princípio da liberdade ou da igual liberdade); A segunda é quando a razão, a justificação e a razoabilidade pública foram deixados de lado e nenhum mecanismo institucional surtirá efeito na luta contra as ordenações injustas do governo; A terceira é quando o Governo viola, por um período muito longo de tempo, os princípios básicos, em especial as liberdades básicas iguais.170 Assim, "Tende-se a restringir a desobediência civil a sérias infrações do primeiro princípio da justiça, da liberdade igual e das gritantes violações da igualdade equitativa de oportunidades".171 Ela seria uma forma de dissensão, específica de regimes democráticos, que se estabeleceria como último recurso para que a estabilidade da constituição fosse assegurada.172 Nesse sentido a desobediência seria "um mecanismo estabilizador da democracia liberal, um mecanismo de luta contra as opressões"173 Pode-se dizer, em síntese, que: 168 SEN, Amartya A ideia de Justiça, Tradução: Denise Bottman, Ricardo Doninelli Mendes, Companhia das Letras, São Paulo, 2011, p. 89-90. 169 Ibdem, p. 89-90. 170 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.98-99. 171 Ibdem,p.99. 172 Ibdem, p.101. 173 Ibdem, p.101. 40 A desobediência civil rawlsiana se apoia em princípios da justiça ditados pelo senso comum, cuja obediência pode ser mutuamente exigida entre os homens e as mulheres. A desobediência, para Rawls, decorre da concepção pública da justiça que caracteriza a sociedade democrática, pois faz parte da teoria do governo livre, e é um mecanismo de dissensão que está diretamente ligado à teoria da soberania popular (...).174 Rawls, portanto, deixa claro que um ato de desobediência civil deve apelar para a ideia de justiça da comunidade política. O "justo" seria mais importante e estaria hierarquicamente acima ao "bem", não podendo a desobediência civil se apoiar em concepções morais pessoais ou religiosas. É um ato que visa botar em evidências injustiças no sistema democrático daquele Estado e resolve-las, não podendo se inspirar em interesses privados de grupos privados.175 Rawls cunha um teoria que atua em três frentes: Primeiramente dá foco na definição desta espécie de dissensão e na diferenciação das outras formas de desobediência; Na segunda parte, apresenta as razões da desobediência; Por derradeiro, explica o papel deste instituto em um Estado Democrático constitucional.176 Rawls define a desobediência civil como: “um ato público, não violento, consciente e não obstante um ato político, contrário à lei, geralmente praticado com o objetivo de provocar uma mudança na lei e nas políticas do governo [...]”177 Assim, dirá Julio Tomé que a DesobediênciaCivil em Rawls seria, como também afirma a autora Hannah Arendt “uma violação aberta da lei, sobre a qual, em prol de um grupo, desafia-se as leis e as autoridades estabelecidas, por meio de minorias organizadas, que de alguma maneira importam quantitativa e qualitativamente, na questão da opinião”.178 Vale fazer algumas considerações finais quanto as definições do autor sobre quais seriam as características da desobediência civil. Importante estabelecer que ela seria um ato 174 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.103. 175 Ibdem, p.100. 176 Ibdem, p.102. 177 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisseta e Linita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, §55, p.404 Apud. TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.103. 178 TOMÉ, Julio, Op. Cit., p.103. 41 político. Seria um ato político por duas razões: i) Porque é um ato direcionado a maioria daquele sistema político; ii) Porque se espelha em princípios políticos que regem a sociedade: Os princípios de justiça “que regulam a constituição e as instituições sociais”.179 Sobre isso, também tem-se a lição de Joana de Menezes Araújo da Cruz, sintetizada: "Segundo Jonh Rawls, a desobediência civil é um ato político. Rawls a conceitua dessa forma por duas razões: Por ser um ato dirigido à maioria política momentaneamente no poder e por ser orientada pelos princípios de justiça eleitos na posição original."180 Têm-se que é um ato público também por dois motivos: i) Porque se dirige a princípios públicos; ii) Porque é feito em âmbito público, aberto, de modo algum em segredo. É “um apelo público, uma expressão de convicção política profunda e consciente, que ocorre no fórum público”.181 Também por esse motivo, ela seria um ato que não se utilizaria de violência para alcançar seus objetivos.182 Por derradeiro, o autor estabelece que o agente da desobediência deveria se sujeitar as sanções impostas pelo sistema, afinal, Rawls não preconizava a mudança radical de sistema de governo com a desobediência civil. As sanções e outras leis vigentes que não estavam sendo questionadas pelo ato de desobediência seriam total e completamente válidas. Rawls escreve que, apesar disso, por todo o caráter do ato as sanções deveriam ser diminuídas ou até mesmo suspensas. 183 179 TOMÉ, Julio Rawls e a Desobediência Civil Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGFIL/UFSC), Florianópolis, 2018, p.103. 180 CRUZ, Joana de Menezes Araújo da. Desobediência Civil nos Interstícios do Estado de Direito, Editora Lumen Juris, 1ª ed., Rio de Janeiro, 2017, p.121. 181 TOMÉ, Julio. Op. Cit., p.104. 182 Ibdem, p.104. 183 Ibdem,p.104. VISÕES DOUTRINÁRIAS CONTEMPORÂNEAS SOBRE A DESOBEDIÊNCIACIVIL NORBERTO BOBBIO E AS TIPOLOGIAS DA RESISTÊNCIA JONH RAWLS E A DESOBEDIÊNCIA EM UMA SOCIEDADE QUASE JUSTA