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1 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Metabolismo da bilirrubina Formação e transporte Quando as hemácias “envelhecem” (em média, após 120 dias em circulação), tornando-se muito frágeis para subsistir no sistema circulatório, elas acabam sendo sequestradas e destruídas na polpa vermelha do baço. A hemoglobina (Hb) liberada é fagocitada pelos macrófagos esplênicos e de outros órgãos (chamados, em conjunto, de sistema reticuloendotelial). A Hb é então dividida em globina e heme. Este último é clivado, fornecendo dois produtos principais: (1) ferro livre, que é transportado no sangue pela transferrina ou incorporado à ferritina dos macrófagos; e (2) protoporfirina, uma cadeia de quatro núcleos pirrólicos que serve de substrato para a formação de bilirrubina. Cerca de 85% da bilirrubina formada é proveniente da Hb, sendo o restante derivado de outras proteínas que contêm heme, como, por exemplo, o citocromo P450 e a mioglobina. A primeira substância formada a partir da protoporfirina é a biliverdina, mas esta é rapidamente reduzida à bilirrubina livre insolúvel, que é liberada dos macrófagos para o plasma. A bilirrubina livre imediatamente se combina com a albumina plasmática, para manter a sua solubilidade, sendo transportada dessa forma na corrente sanguínea. A bilirrubina ligada à albumina é chamada de bilirrubina indireta ou não conjugada. Metabolismo hepático O hepatócito desempenha um papel primordial no metabolismo da bilirrubina, e três fases básicas são reconhecidas: 1 - Captação / 2 - Conjugação / 3 - Excreção. Dessas etapas, a terceira (excreção) parece ser a que limita a velocidade do processo, e é a mais suscetível quando ocorre dano na célula hepática. CAPTAÇÃO A bilirrubina não conjugada ligada à albumina chega ao hepatócito e se dissocia, penetrando a célula e ligando-se a proteínas citoplasmáticas (de forma a impedir seu retorno ao plasma). CONJUGAÇÃO A bilirrubina não conjugada é insolúvel em água e precisa ser convertida num derivado hidrossolúvel, para que possa ser excretada do hepatócito para a bile. Este processo é efetuado no citoplasma do hepatócito, por conjugação da bilirrubina com o carboidrato glucoronídeo realizada pela importante enzima glicuronil-transferase. Uma vez conjugada ao glucoronídeo, a bilirrubina passa a ser chamada de bilirrubina direta ou conjugada. EXCREÇÃO PARA A B ILE A bilirrubina conjugada agora precisa sair do hepatócito e ganhar os canalículos biliares. Este processo é chamado de excreção e depende de ATP. Por isso, como já dito, constitui a etapa limitante do metabolismo da bilirrubina, e é a primeira a ser afetada quando há um distúrbio do hepatócito. Qualquer alteração desta etapa significa acúmulo de bilirrubina direta no hepatócito, que então “regurgita” de volta para o plasma. Fase intestinal A Bilirrubina Direta (BD) excretada pelo hepatócito ganha os canalículos, dúctulos e ductos biliares, juntamente com os outros componentes da bile. A bile é secretada e armazenada na vesícula biliar, e o seu destino é ser eliminada na luz do duodeno, pela papila de Vater... Após o seu aparecimento na luz intestinal, a bilirrubina direta pode seguir dois caminhos: 1. ser excretada nas fezes; 2. ser metabolizada em urobilinogênio (maior parte). Síndrome Ictérica, cirrose e ascite 2 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Uma vez no intestino grosso, cerca de 50% da bilirrubina conjugada é convertida em urobilinogênio (uma substância altamente hidrossolúvel) pelas bactérias intestinais no cólon ascendente. Uma pequena parte do urobilinogênio é reabsorvida pela mucosa intestinal de volta ao fígado e corrente circulatória de onde é excretada pelos rins através da urina em quantidade que não excede 4 mg/dia. Por isso, todo exame de urina (EAS) apresenta positividade para urobilinogênio (mas não para bilirrubina!). Após exposição da urina ao ar, o urobilinogênio se oxida em urobilina, enquanto nas fezes, após oxidação, transforma-se em estercobilina, contribuindo para as colorações características da urina e das fezes. Parte do urobilinogênio que chega ao fígado é excretado novamente na bile. Nas situações em que a excreção hepática está aumentada, como na produção exagerada de bilirrubina (hemólise), os níveis de urobilinogênio urinários podem subir muito, tornando a urina um pouco mais escura (não tanto como na bilirrubinúria!). Nas situações em que a secreção hepatobiliar estiver reduzida (hepatite, colestase), ou quando a flora bacteriana estiver suprimida (uso de antibióticos), os níveis de urobilinogênio fecais tendem a estar baixos, e as fezes tendem a ficar claras (hipocolia ou acolia fecal). Excreção renal Em condições normais, a bilirrubina não é detectável na urina por métodos convencionais. A BI, em virtude de estar fortemente ligada à albumina (e também por ser insolúvel em água), não é filtrada pelo glomérulo normal. Já a BD, nas condições em que circula no sangue, é filtrada no glomérulo e acaba aparecendo na urina. Portanto, a hiperbilirrubinemia direta acarreta bilirrubinúria... É interessante a capacidade dos sais biliares aumentarem a filtração renal de BD. Na síndrome colestática (incapacidade de drenar a bile recém- produzida), o elevado nível plasmático de ácidos biliares facilita a excreção de BD pelos rins, provocando intensa bilirrubinúria, quando a urina adquire “cor de Coca-Cola” (colúria). Icterícia Icterícia é a pigmentação amarelada da pele, da esclerótica e do frênulo da língua pela bilirrubina, resultante de níveis elevados desta na circulação sistêmica. As concentrações séricas normais de bilirrubina são: A esclerótica é o local onde mais comumente se identifica um quadro de icterícia. A pigmentação desta estrutura é atribuída à sua riqueza em elastina, que possui especial afinidade pela bilirrubina. A icterícia deve ser distinguida de outras causas de pigmentação amarela, como a hipercarotenemia, que se deve à existência de pigmentos carotenoides (cenoura) na corrente sanguínea, estando associada à coloração amarela da pele, mas não das escleróticas! Classificações e conceitos gerais Os distúrbios do metabolismo da bilirrubina podem ocorrer através de cinco mecanismos básicos. 1. Superprodução: a) Hemólise; b) eritropoiese ineficaz 2. Diminuição da captação: a) medicamentos; b) jejum prolongado; c) infecção; *doença hepatocelular. 3. Diminuição da conjugação: a) Síndrome de Gilbert; Crigler-Najjar tipo II; Crigler-Najjar tipo I; d) Deficiência Adquirida de Glucoronil-transferase (Medicamentos, doença hepatocelular*); e) icterícia neonatal fisiológica. 4. Alteração da excreção: a) Síndrome de Dubin- Johson; b) Síndrome de Rotor; c) Colestase Intra- Hepática Recorrente (benigna); d) Icterícia Colestática da gravidez; e) Doença hepatocelular*; f) Colestase Induzida por Medicamentos; Infecção. 5. Obstrução biliar: a) Estenose; b) Tumor; c) Calculose; D) Corpo estranho. *A doença hepatocelular pode causar um distúrbio na captação, conjugação e excreção da bilirrubina. A doença hepatocelular (hepatite, hepatotoxicidade) interfere com as principais fases do metabolismo da bilirrubina: captação, conjugação e excreção. Entretanto, como a excreção é a fase que limita a velocidade do processo, representa em geral o principal distúrbio, fazendo com que a icterícia da hepatite e da 3 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite hepatotoxicidade seja mista, mas predominantemente à custa de BD. Numa classificação mais simplista, porém muito popularizada, existem três grandes grupos de icterícia: Classificação A identificação da causa da icterícia é crítica para a conduta terapêutica (tratamento clínico ou cirúrgico).Não colestática Causadas pela maior oferta de bilirrubina ao fígado, por deficiência de captação pelo hepatócito, ou por defeito no seu transporte extracelular e/ou na conjugação, caracterizando-se por hiperbilirrubinemia indireta. Quando suspeitar? Os pacientes podem ser assintomáticos, apenas apresentando leve icterícia em algum momento da vida, como na maioria dos defeitos hereditários e nas causas metabólicas. No entanto, podem apresentar quadros gravíssimos, com acometimento neurológico (kernicterus), consequente à impregnação dos núcleos de base, e morte neonatal, como na síndrome de Crigler-Najjar tipo I e na beta-talassernia grave, traduzida pela hidropisia fetal, causando elevados índices de mortalidade nos recém-natos. Não cursam com colúria (urina cor de coca-cola), acolia fecal (fezes esbranquiçadas) ou prurido. A hepatomegalia em geral é observada nos quadros hemolíticos (pode coexistir com úlceras maleolares, cálculos biliares, dores articulares, deformidades ósseas e anemia). Colestática Compreende a grande maioria das síndromes ictéricas e é caracterizada pela alteração da formação e excreção da bile, alteração que pode estar localizada desde o hepatócito até a ampola de Vater. Quando suspeitar? Suspeita-se clinicamente de colestase na presença de icterícia, hipocolia/acolia fecal e prurido, associados à elevação dos níveis séricos de fosfatase alcalina, gamaglutarniltransferase e 5- nudeotidase, em desproporção com os níveis séricos das aminotransferases. Paralelamente, elevam-se os valores da fração conjugada da bilirrubina, mais acentuados nas formas crônicas. A colestase pode ser de instalação abrupta ou insidiosa e, quando associada a dor, febre, calafrio, perda ponderal e idade avançada, sugere neoplasia maligna. A grande maioria dos pacientes refere prurido com predomínio nas regiões palmar e plantar, sobretudo no período noturno. Condição piorada nos portadores de colestase crônica (cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, colestase induzida por drogas, hepatite autoimune e doença hepática alcoólica). A dor praticamente inexiste na colestase intra- hepática e, quando presente, é do tipo surda, em peso e constante. É mais comum na colestase extra-hepática, tipo cólica, localizada preferencialmente em hipocôndrio direito, podendo irradiar-se para dorso, ombro direito e epigástrio, como ocorre na colelitíase, coledocolitíase e nas doenças pancreáticas. Quando se associa a febre e calafrio, caracterizando a tríade de Charcot, é sinal patognomônico de colangite. A hepatomegalia é mais frequente na colestase extra-hepática, sendo o fígado de consistência endurecida à palpação e, por vezes, doloroso, sobretudo na coexistência de colangite e abscessos. Os níveis séricos aumentados de FA e gama-GT confirmam a existência de colestase, mas não definem o local da obstrução. 4 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Pode ser dividida em dois grupos: COLESTASE INTRA-HEPÁTICA Em geral, relaciona-se com alteração nos sistemas de transporte e secreção da bile pelos hepatócitos, ou com um processo obstrutivo das vias biliares intra- hepáticas. COLESTASE EXTRA -HEPÁTICA ( CEH) Obstrução mecânica ao fluxo normal da bile, localizada em algum ponto entre a emergência do ducto hepático comum e a ampola de Vater. Pode originar-se na própria árvore biliar ou ser extrínseca a ela, ter caráter benigno ou maligno, instalação aguda ou crônica, como se observa nos casos de tumores ou estenose benigna de colédoco, ou, ainda, ser transitória, a exemplo do que ocorre nos casos de migração de cálculos. Abordagem ao paciente ictérico Avaliação Clínica Uma anamnese e exame físico cuidadosos, além de exames bioquímicos e hematológicos de rotina, são essenciais. Na medida da necessidade, exames de maior complexidade, maior custo e/ou maior inatividade poderão ser empregados. • História clínica e exame físico; • Hematologia: Hemograma; esfregaço de sangue periférico; • EAS/Inspeção fecal; • Hepatograma: Enzimas hepáticas (transaminases – aminotransferases; fosfatase alcalina; gama-GT); Provas de função hepática (bilirrubina, albumina, tempo de protrombina com INR – antes e depois de vitamina K intramuscular, dosagem de amônia). • Sorologias para hepatites virais; • USG de abdome; • TC ou CPRE (indicada em casos especiais). Anamnese ▪ Idade: a prevalência de hepatite A diminui com a idade, ao contrário das doenças neoplásicas. ▪ Profissão: contato com ratos (leptospirose íctero- hemorrágica), proximidade a bebidas alcoólicas. ▪ História familiar: icterícia, hepatite, anemia, esplenectomia, colecistectomia. ▪ Contatos de risco: profissionais de saúde, profissionais de creches ou escolas, usuários de drogas intravenosas, tatuagens, tratamentos odontológicos, uso de medicamentos ou plantas medicinais, ingesta de frutos do mar, ou viagens a áreas endêmicas de hepatite. ▪ Há dispepsia prévia, intolerância a alimentos gordurosos ou cólica biliar? → Coledocolitíase? ▪ Houve cirurgia prévia nas vias biliares? Cálculo residual? Estenose traumática? Hepatite pós- transfusional? ▪ Há queda progressiva do estado geral, emagrecimento e icterícia progressiva, principalmente em pacientes com mais de 50 anos, sem haver história de cólica biliar? Neoplasia periampular? ▪ Sangue oculto fecal →Neoplasia periampular? Metástases hepáticas de um tumor de cólon? ▪ Há febre, calafrios e cólica biliar (Tríade de Charcot) + hipotensão e alteração do nível de consciência (Pêntade de Reynolds) → Colangite por litíase ou estenose biliar? ▪ Ausência de colúria e hipocolia fecal: icterícia hemolítica? ▪ Há prurido? → Pensar em colestase. ▪ Mulher de meia-idade, obesa, com história familiar positiva: coledocolitíase? Exame físico • Tipo de icterícia: ❖ Rubínica (alaranjada) → Leptospirose (disfunção hepatocelular + vasodilatação cutânea). • Exame geral: ❖ Anemia → Hemólise? Câncer? Cirrose? ❖ Há estigmas de insuficiência hepática crônica (ver adiante)? ❖ Há indícios de etiologia alcoólica? (procurar entumescimento de parótidas, contratura palmar de Dupuytren, sinais de pelagra etc). • Exame do estado mental: ❖ Inversão do ciclo sono-vigília (dorme de dia e não dorme de noite)? Desorientação temporoespacial + 5 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite flapping + hálito hepático → Encefalopatia hepática (icterícia hepatocelular). ❖ Questionário CAGE → Alcoolismo? • Alterações cutâneas: ❖ Equimoses → Distúrbio de coagulação por déficit de síntese hepática? ❖ Petéquias → Trombocitopenia (Cirrose hepática? Hipertensão portal?). ❖ Telangiectasias, eritema palmar, linhas brancas transversais nas unhas (sinal de Muercke = hipoalbuminemia), diminuição de pilificação secundária → Cirrose. ❖ Xantomas e xantelasmas → colestases crônicas (ver cirrose biliar primária). • Exame do abdome: ❖ Circulação colateral (“cabeça de medusa”) → Hipertensão portal (cirrose?). ❖ Ascite → Hipertensão portal (cirrose?). Neoplasia intra-abdominal? ❖ Fígado de volume reduzido → Exclui colestase extra-hepática! ❖ Sopro arterial sobre o fígado → Hepatite alcoólica? Carcinoma hepatocelular? ❖ Ponto cístico doloroso + Sinal de Murphy (interrupção da inspiração à palpação) → Colecistite aguda? ❖ Vesícula palpável indolor (ou mesmo visível – Sinal de Courvoisier) + Icterícia → Neoplasia periampular. ❖ Toque retal é essencial (tumor de reto?). Avaliação laboratorial Os exames laboratoriais incluem dosagem sérica de bilirrubinas, hemograma completo e “hepatograma”. Diante de um paciente clinicamente ictérico, devemos em primeiro lugar confirmar o aumento sérico das bilirrubinas, notando o tipo predominante(BD x BI). Se a hiperbilirrubinemia for à custa de BI, devemos de imediato seguir um algoritmo de investigação de hemólise, mantendo como diagnósticos diferenciais as síndromes resultantes da deficiência de conjugação da bilirrubina (Gilbert e Crigler-Najjar). Se a hiperbilirrubinemia for à custa de BD, devemos manter em mente duas possibilidades: • Lesão dos hepatócitos (Síndrome de lesão hepatocelular); • Obstrução das vias biliares (Síndrome de Colestase). O “hepatograma” é dividido entre as enzimas hepáticas e as provas de função hepática. As enzimas são as transaminases (aminotransferases), como a ALT (TGP) e a AST (TGO). ALT (TGP) = alanina aminotransferase ou transaminase glutâmico-pirúvica; AST (TGO) = aspartato aminotransferase ou transaminase glutâmico- oxalacética. Na síndrome de lesão hepatocelular (hepatite aguda), encontramos grande aumento das transaminases (5-20x) e pouco aumento da fosfatase alcalina e da gama-GT. Já na síndrome de colestase (coledocolitíase, por exemplo) encontramos exatamente o inverso: pouco ou nenhum aumento das transaminases (2-3x) e grande aumento da fosfatase alcalina e da gama-GT. Dentre as “provas de função hepática”, destacam-se a albumina e o tempo de protrombina (INR). Estas medem o poder de síntese dos hepatócitos; quando gravemente disfuncionantes, sintetizam menos albumina (hipoalbuminemia) e menos fatores da coagulação (TAP alargado). O TAP é melhor do que o PTTa, por medir a via extrínseca, dependente do fator VII, que é o primeiro fator da coagulação que se torna depletado (dada a sua curta meia-vida plasmática). A amônia sérica (11-32 µmol/L) está elevada na insuficiência hepática; esta última mede a função detoxificadora do fígado. Diagnóstico 75-80% dos casos de icterícia são diagnosticados com base em boa história clínica e exame físico minuncioso. Exames laboratoriais selecionados podem ser utilizados para confirmar o diagnóstico. Apenas 5-10% dos casos, a biópsia hepática ou a cirurgia exploradora são necessárias para estabelecer diagnóstico definitivo. O primeiro passo é observar qual das moléculas de bilirrubina está mais elevada, a indireta (não conjugada) ou direta (conjugada). Elevação de BI: Aumento da produção ou diminuição da entrada ou da conjugação no hepatócito. Aumento da bilirrubina direta: Distúrbio no transporte para fora do hepatócito ou na saída do sistema biliar. Alguns sinais indicam aumento da 6 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite bilirrubina direta, como presença de prurido e presença de bilirrubina na urina (BD é solúvel em água). IMAGEM • Quando a história, o exame físico e os exames laboratoriais iniciais sugerem obstrução da árvore biliar, exames de imagem estão indicados para diferenciar as causas extra-hepáticas das intra-hepáticas de colestase. • Ultrassonografia de abdome: a sensibilidade do US para detectar ductos biliares dilatados e obstrução da árvore biliar varia entre 55-91%. Tem sensibilidade de 95-96% para o diagnóstico de litíase em vesícula biliar. Apresenta a vantagem de ser um método não-invasivo e de baixo custo. Limitação com pacientes obesos e quando há interposição de alças intestinais com gás. • Ultrassom endoscópico: o transdutor fica localizado no duodeno. Possibilita a visualização dos tratos biliares a interposição de gases intestinais (diferente da USG abdominal). Bom exame para o diagnóstico de coledocolitíase, detecção de cálculos pequenos, tumores pancreáticos e tem a vantagem de não ter risco de causar pancreatite. Desvantagens: custo, exame invasivo (quando comparado com US e TC) e não possibilita terapêutica (quando comparado à CPRE). • Tomografia computadorizada (TC) de abdome: TC convencional e US de abdome não diferem quanto à capacidade de reconhecer obstrução da árvore biliar e seu nível. Já a TC helicoidal de abdome possui maior acurácia para avaliar imagens hepatobiliares. A TC não tem sensibilidade suficiente para detectar colelitíase e deve-se ter cautela em administrar contraste a pacientes com alteração da função renal (nefrotoxicidade). • Colangiopancreatograia endoscópica retrógrada (CPRE): permite visualização direta da árvore biliar e dos ductos pancreáticos. É superior ao US e TC para detectar obstrução extra-hepática. Possui sensibilidade de 89-98% e especificidade de 89-100%. É o procedimento de escolha na suspeita de coledocolitíase. Desvantagens: método mais caro que US e TC, invasivo, relacionado à mortalidade de 0,2% e complicações como sangramento, colangite e pancreatite. • Colangioressonância: é uma alternativa à CPRE. Revela o nível de obstrução em 80 a 100% casos. Tem sensibilidade e especificidade de 90 a 100% para detecção de coledocolitíase e estenose ducto biliar. Pode não visualizar doenças que acometem ductos biliares de pequeno calibre. • Colangiografia percutânea: Apresenta sensibilidade e especificidade próximas de 100% para o diagnóstico de obstrução do trato biliar. Seu custo e risco de mortalidade são semelhantes à CPRE, sendo útil quando o nível de obstrução é proximal ao ducto hepático comum ou quando, por razões de anatomia, a CPRE se torna complicada. Síndromes hereditárias específicas Síndrome de Gilbert Devido a sua elevada frequência (7% da população caucasiana), a síndrome de Gilbert é o distúrbio hereditário do metabolismo da bilirrubina mais comumente encontrado pelo médico. Esta condição predomina no sexo masculino (3:1) e resulta de uma leve deficiência da enzima que realiza a conjugação da BI dentro do hepatócito (ou seja, uma deficiência hereditária “leve” de glicuronil-transferase). Comporta-se de forma benigna, sem complicações, embora seja crônica, caracterizando-se por uma hiperbilirrubinemia indireta leve e persistente. Na maioria das vezes a icterícia se inicia em torno dos 20 anos de idade, mas costuma ser tão leve que o paciente geralmente só se dá conta após exames laboratoriais de rotina, ou então após um período de jejum prolongado (em que ela se acentua – ver adiante). Os níveis de bilirrubina total raramente ultrapassam 5 mg/dl. Depois da hemólise, a síndrome de Gilbert é a principal causa de hiperbilirrubinemia não conjugada. Só para relembrar: alguns pacientes podem ser diagnosticados num estado de “hemólise compensada”, quando se apresentam apenas com icterícia, hiperbilirrubinemia indireta e reticulocitose, mas sem anemia... Por isso, para se pensar em Gilbert, primeiro temos que afastar hemólise por meio da contagem reticulocitária!!! Tipicamente a icterícia se agravará após: 1 – Jejum prolongado ou retirada das gorduras da dieta; 2 – 7 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Exercício intenso; 3 – Ingestão de álcool; 4 – Administração de ácido nicotínico. Em geral, o diagnóstico de síndrome de Gilbert deve ser feito por exclusão, ou seja, suspeita-se desta síndrome quando o paciente apresenta hiperbilirrubinemia não conjugada leve e persistente, mas: a) não há outros sinais ou sintomas sistêmicos; b) não há hemólise laboratorialmente reconhecida; c) as provas de função hepática são normais; d) a biópsia (não necessária) é normal – embora em alguns casos possa haver depósitos inespecíficos de lipofuscina na zona centrolobular. “Do ponto de vista prático, o diagnóstico deve ser dado demonstrando-se uma hiperbilirrubinemia não conjugada discreta, nos pacientes sem queixas e com exame físico e provas de função hepática normais”. A principal importância da síndrome de Gilbert é que ela pode ser confundida com outras doenças hereditárias do metabolismo da bilirrubina (Crigler-Najjar tipo II). Em casos selecionados, pode ser utilizado o teste de restrição calórica, no qual há um aumento significativo da BI após a ingestãode apenas 400 kcal em 24 horas. A síndrome de Gilbert não necessita de tratamento. Alguns pacientes, por motivos puramente estéticos (como modelos), podem receber fenobarbital cronicamente em baixas doses para reduzir a intensidade da icterícia. Esta droga aumenta a atividade da glicuronil- -transferase. Saiba mais: A única consequência clínica potencial da Síndrome de Gilbert é o acúmulo de algumas drogas de metabolização hepática. Um exemplo é o quimioterápico irinotecan, que pode causar diarreia e mielotoxidade. Síndrome de Crigler-Najjar tipo 1 As síndromes de Crigler-Najjar tipo I e II são distúrbios hereditários da glicuronil-transferase. O tipo I é grave e resulta de deficiência completa desta enzima. Os recém-nascidos desenvolvem hiperbilirrubinemia indireta que pode atingir 45 mg/dl (a BD está caracteristicamente ausente). Em geral, essas crianças morrem dentro do primeiro ano de vida (decorrente do kernicterus), embora tenha sido relatada sobrevivência até os 30 anos. A BI, ao contrário da BD, passa facilmente a barreira hematoencefálica, provocando efeitos tóxicos no SNC. As provas de função hepática são normais, assim como a histologia hepática. A plasmaférese é considerada o melhor tratamento clínico para esses pacientes. A fototerapia pode reduzir de maneira temporária e transitória o nível de bilirrubina não conjugada, pela formação de um isômero “excretável” na bile ou urina. Da mesma forma, a inibição da síntese de bilirrubina, pela administração de inibidores da heme-oxigenase, como a tin- - protoporfirina ou a tin-mesoporfirina, é útil nas crises. O fenobarbital (indutor da transferase) não é eficaz, já que não há nenhuma enzima para ser induzida. O transplante hepático é a única opção definitiva de cura Síndrome de Crigler-Najjar tipo II O tipo II resulta de uma deficiência parcial (moderada a grave) da glicuronil-transferase, e suas consequências são menos graves que no tipo I. Os níveis séricos de BI são relativamente mais baixos (6 a 20 mg/dl), a icterícia pode não aparecer até a adolescência e as complicações neurológicas são raras. A bile contém quantidades variáveis de BD. O fenobarbital é eficaz na redução dos níveis séricos de BI, na medida em que é um “indutor” da transferase, e pode ser utilizado, inclusive, na diferenciação entre o tipo I e o tipo II da síndrome, já que no primeiro não há resposta a esse medicamento. Síndrome de Dubin-Johson A síndrome de Dubin-Johnson, também conhecida como icterícia crônica idiopática, é um distúrbio hereditário que resulta de um defeito na fase de excreção – os hepatócitos não conseguem mais excretar a bilirrubina já conjugada para a bile. Os níveis de bilirrubina estão entre 2-5 mg/dl na maioria dos casos (mas podem chegar a 25 mg/dl). Predomina a fração direta, embora os níveis de BI também estejam aumentados. Os anticoncepcionais orais podem acentuar a icterícia, ou mesmo produzir o primeiro episódio desta. Os pacientes com esta síndrome ou são assintomáticos, ou apresentam sintomas gastrointestinais vagos, como hepatomegalia discreta e hipersensível. Os estigmas de colestase, como prurido e esteatorreia, em geral estão ausentes. Os níveis séricos de fosfatase alcalina (bem como qualquer outra enzima hepática) estão caracteristicamente normais. Neste contexto, a 8 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite dosagem da coproporfirina urinária confirma o diagnóstico: nestes pacientes, apesar de os níveis serem normais, a fração predominante é a coproporfirina I, em vez da coproporfirina III (que predomina em pessoas normais). O acúmulo de um pigmento escuro na região centrolobular dos lóbulos hepáticos é característico (embora a biópsia hepática seja desnecessária para o diagnóstico). O prognóstico da síndrome de Dubin-Johnson é excelente e não há necessidade de tratamento. Síndrome de Rotor É um distúrbio do armazenamento da bilirrubina conjugada, que acaba retornando ao sangue antes de ser excretada na bile – em muitos aspectos é semelhante à síndrome de Dubin-Johnson. Diferencia-se desta por haver aumento de 3-5 vezes nos níveis urinários de coproporfirina e pelo fato de não haver pigmentação característica nos hepatócitos – aqui a biópsia também é desnecessária. 9 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Introdução A cirrose representa um estágio tardio de fibrose hepática progressiva e difusa, caracterizada pela substituição da arquitetura normal do parênquima hepático por nódulos regenerativos (perdem a organização normal e são circundados por tecido fibroso). Geralmente, é considerada irreversível em seus estágios avançados, quando a única opção de tratamento pode ser o transplante de fígado. No entanto, a reversão da cirrose (em seus estágios iniciais) foi documentada em várias formas de doença hepática após o tratamento da causa subjacente. Pacientes com cirrose são suscetíveis a uma variedade de complicações e sua expectativa de vida é significativamente reduzida. A cirrose pode ser o estágio final de qualquer doença hepática crônica. Epidemiologia Acredita-se que a cirrose esteja entre as dez principais causas de morte no mundo. No Brasil, a taxa de mortalidade específica por cirrose hepática é de 4,6 por 100.000 habitantes. Estima-se que cerca de 40% dos pacientes com cirrose são assintomáticos. Porém quando os sintomas aparecem ocorre piora significativa do prognóstico da doença. Como a doença hepática crônica afeta as pessoas nos anos mais produtivos de sua vida, ela tem um impacto significativo sobre a economia como um resultado da morte prematura, doença e invalidez. Quando todas as causas de cirrose forem investigadas e descartadas, a cirrose é considerada como “criptogênica”. Etiologias e classificação Existem inúmeras causas de doença hepática que podem resultar em cirrose, tanto por causar inflamação hepática crônica quanto colestase. As causas mais comuns de cirrose nos Estados Unidos são hepatite C, doença hepática alcoólica e doença hepática não alcoólica, que juntas representam aproximadamente 80% dos pacientes na lista de espera para transplante de fígado entre 2004 e 2013. Em países desenvolvidos, as causas comuns de cirrose incluem: Hepatite viral crônica (B e C); doença hepática alcoólica; hemocromatose; doença hepática gordurosa não alcoólica. As causas menos comuns incluem: Hepatite autoimune; cirrose biliar primária e secundária; colangite esclerosante primária; medicamentos (ex. metotrexato, isoniazida); doença de Wilson; deficiência de alfa-1 antitripsina; doença celíaca; dutopenia idiopática na idade adulta; doença hepática granulomatosa; fibrose portal idiopática; doença hepática policística; infecção (ex. brucelose, sífilis, equinococose); insuficiência cardíaca direita; telangiectasia hemorrágica hereditária; doença veno-oclusiva. • Independente da causa, todas as etiologias culminam com a mesma via final de lesão hepática e estímulo a deposição de colágeno. A cirrose foi classificada morfologicamente como: • Micronodular: caracterizada por nódulos com menos de 3 mm de diâmetro. Era considerada causada por álcool, hemocromatose, causas colestáticas de cirrose e obstrução do fluxo venoso hepático. • Macronodular: Caracterizada por nódulos de vários tamanhos maiores que 3 mm. Considerada secundária à hepatite viral crônica. • Mista: Embora importante, o sistema de classificação morfológica tem uma série de limitações e, portanto, foi amplamente abandonado. • 1º - É relativamente inespecífico no que diz respeito à etiologia. • 2º - a aparência morfológica do fígado pode mudarà medida que a doença progride (cirrose micronodular → macronodular). • 3º - Os marcadores sorológicos disponíveis hoje são mais específicos para determinação da etiologia (ex. anticorpos antimitocondriais – colagite biliar primária). 4º - Na prática clínica atual existem meios menos invasivos para o diagnóstico etiológico. Cirrose Hepática 10 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Fisiopatologia A característica patogênica-chave subjacente à fibrose hepática e à cirrose é a ativação das células estreladas hepáticas, conhecidas como células de Ito ou células perissinusoidais, as quais estão localizadas no espaço de Disse, entre os hepatócitos e as células endoteliais sinusoidais. Normalmente, essas células são quiescentes e servem como principal local de armazenamento de retinoides (vitamina A). Na presença de fatores inflamatórios, como espécies reativas de oxigênio, fatores de crescimento e citocinas, as células estreladas podem ser ativadas (pelas céls. de Kupffer ou autoestimulação) e transformadas em miofibroblastos que produzem MEC, sobretudo com colágenos tipos I e III. Além disso, elas se tornam miofibroblastos hepáticos contráteis. A deposição de colágeno no espaço de Disse, como ocorre na cirrose, leva à perda da fenestração das células endoteliais sinusoidais, levando ao espessamento da membrana basal, diminuição do diâmetro do sinusoide e ao surgimento de alta pressão sinudoidal, além de reduzir a troca natural de solutos por esses espaços, o que é ainda mais exacerbado pela contração das células estreladas. Com o aumento da pressão intra-sinusoidal, ocorre o desenvolvimento de shunts vasculares entre veia porta-veia hepática e artéria hepática-veia porta. Isso gera uma pressão anormal dentro do fígado e contribui para a disfunção hepática e a hipertensão portal. No decorrer da lesão hepática, ocorre síntese, deposição e reabsorção de componentes da matriz extracelular (MEC) e com isso, é possível até a restauração da função hepática. No entanto, a remodelação progressiva pode tornar esse processo irreversível. Com isso, os hepatócitos normais, são substituídos por nódulos parenquimatosos derivados de hepatócitos sobreviventes e de novos hepatócitos gerados, além de septos fibrosos ao redor dos nódulos. Todas essas alterações não permitem que o sangue dos sinusoides tenha contato com os hepatócitos. Fatores de risco ▪ História familiar (hemocromatose; Doença de Wilson; Fibrose Cística); ▪ Etilismo (hepatite alcoólica); ▪ Hiperlipidemia, diabetes e obesidade (esteatose hepática); ▪ Transfusão sanguínea (Hepatite B e C); ▪ Doenças autoimunes (Hepatite autoimune, cirrose biliar primária); ▪ Medicações e toxinas (Hepatite Induzida por Drogas). Manifestações clínicas As manifestações clínicas da cirrose podem incluir sintomas inespecíficos (ex. anorexia, perda de peso, fraqueza, fadiga) ou sinais e sintomas de descompensação hepática (icterícia, prurido, sinais de sangramento gastrointestinal superior, distensão abdominal por ascite, confusão devido a encefalopatia hepática). A ausência de qualquer achado físico não exclui a cirrose. • Os achados do exame físico podem incluir: ❖ Icterícia: Coloração amarela da pele e das membranas mucosas que resulta do aumento da bilirrubina sérica (>2- 3mg/dl). A hiperbilirrubinemia também pode fazer com que a urina pareça escura ou com uma cor de coca- cola (colúria). ❖ Aranha vascular (angiomas em aranha – telangiectasias): Lesões vasculares que consistem em uma arteríola central cercada por muitos vasos menores. Encontrados habitualmente no tronco, face e membros superiores. O corpo da lesão (a arteríola central) pode ser visto pulsando quando comprimido com uma lâmina de vidro. O sangue preenche a arteríola central primeiro, antes de viajar para as pontas periféricas de cada ¨perna¨ após o branqueamento. Geralmente existem várias pernas radiantes e eritema circundante que pode abranger toda a lesão ou apenas sua porção central. A patogênese não é completamente compreendida, mas acredita-se que eles resultem de alterações no metabolismo dos hormônios sexuais (aumento da proporção de estradiol para testosterona livre – H). Os 11 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite angiomas aranhas adquiridos não são específicos para cirrose, uma vez que também podem ser vistos durante a gravidez e em paciente com desnutrição grave. Podem ser vistos também em pessoas saudáveis, que geralmente têm menos de 3 pequenas lesões. Como regra geral, o número e o tamanho dos angiomas aranha se correlacionam com a gravidade da doença hepática. ❖ Fetor hepaticus: Cheiro doce e pungente no hálito. É causada por concentrações aumentadas de sulfeto de dimetila, cuja presença sugere desvio portal-sistêmico grave. ❖ Ginecomastia: É possivelmente causada pelo aumento da produção de androstenediona das suprarrenais, aumento da aromatização em estrona e aumento da conversão de estrona em estradiol. Os homens podem desenvolver outras características que refletem a feminização. Pode ser observada em uma variedade de condições. ❖ Hepatomegalia, esplenomegalia (indicativa de hipertensão portal), ascite, caput medusa e sopro de Cruveilhier-Baumgarten. Ascite: acúmulo de líquido na cavidade peritoneal. Distensão abdominal, onda de fluído e embotamento do flanco à percussão. A precisão dos achados físicos depende, em parte, da quantidade de fluido presente, da técnica usada para examinar o paciente e do ambiente clínico (ex. mais difícil em obesos). Hepatomegalia: o fígado cirrótico pode estar aumentado, de tamanho normal ou pequeno. A presença de um fígado palpável pode indicar doença hepática, mas um fígado não palpável não a exclui. O tamanho do fígado normal varia dependendo do sexo, altura e habitus corporal. Avaliar forma, consistência, se há sensibilidade na borda. Em pessoas saudáveis, o fígado geralmente não é palpável, pois está localizado posteriormente à caixa torácica. Esplenomegalia: É comum, especialmente em pacientes com cirrose de etiologia não alcoólica. Acredita-se que seja causada principalmente pela congestão da polpa vermelha resultante da hipertensão portal. O tamanho esplênico não se correlaciona bem com as pressões portal, sugerindo que outros fatores podem estar contribuindo. O diagnóstico diferencial inclui vários outros distúrbios. Caput medusa: As veias da parede abdominal inferior normalmente drenam inferiormente para o sistema iliofemoral, enquanto as veias da parede abdominal superior drenam superiormente para as veias da parede torácica e axila. Quando a hipertensão portal ocorre como resultado da cirrose, a veia umbilical, normalmente obliterada no início da vida, pode abrir. O sangue do sistema venoso portal pode ser desviado através das veias periumbilicais para a veia umbilical e, finalmente, para as veias da parede abdominal, fazendo com que se tornem proeminentes. Sopro de Cruveilhier-Baumgarten: É um zumbido venoso que pode ser auscultado em pacientes com hipertensão portal. Resulta de conexões colaterais entre o sistema porta e o remanescente da veia umbilical. É melhor apreciado quando o estetoscópio é colocado sobre o epigástrio. O sopro é aumentado por manobras que aumentam a pressão intra-abdominal (ex. Valsalva) e diminuído pela aplicação de pressão na pele acima do umbigo. ❖ Eritema palmar: É um exagero das manchas salpicadas normais da palma da mão e acredita-se que seja causado por alterações no metabolismo do hormônio sexual. Envolve as eminências tenar, hipotenar e as pontas dos dedos poupando as porções centrais da palma. ❖ Mudanças nas unhas: Unhas Muehrcke – faixas brancas horizontais emparelhadas, separadas pela cor normal. Acredita-seque seja causada por hipoalbuminemia. Unhas de Terry – dois terços proximais da lâmina ungueal aparecem em branco, enquanto o terço distal é vermelho. Acredita-se que seja secundário a uma albumina sérica baixa. ❖ Baqueteamento digital e osteoartropatia hipertrófica. ❖ Asterixis: movimentos agitados das mãos bilateralmente. Observado em pacientes com encefalopatia hepática. ❖ Atrofia muscular envolvendo principalmente as regiões musculares bitemporais e as eminências tenar e hipotenar (marca da insuficiência hepática). 12 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite ❖ Petéquias e equimoses (podem estar presentes como resultado da trombocitopenia ou tempo de protrombina prolongado). ❖ Os homens podem ter perda de cabelo no peito e abdome, ginecomastia e atrofia testicular. ❖ Contratura de Dupuytren: mais comumente na cirrose alcoólica. É decorrente do espessamento e encurtamento da fáscia palmar, o que causa deformidades em flexão dos dedos. É caracterizada por proliferação fibroblástica e deposição desordenada de colágeno com espessamento fascial. ❖ Característica patognomônica: achado no exame físico de um lobo hepático direito menor, com extensão de menos de 7 cm na percussão, e o lobo esquerdo palpável, nodular, com consistência mais densa. ❖ Circulação colateral na parede abdominal (cabeça de medusa) pode desenvolver-se como consequência da hipertensão portal. ❖ Diminuição da pressão arterial: acontece à medida que a cirrose progride. Tal fato contribui para o desenvolvimento da síndrome hepatorrenal e é um importante preditor de sobrevida. • Os sintomas incluem: ❖ Os pacientes com cirrose compensada podem ser assintomáticos ou podem relatar sintomas inespecíficos (anorexia, perda de peso, fraqueza, fadiga). ❖ Pacientes com cirrose descompensada podem apresentar icterícia, prurido, sinais de sangramento gastrointestinal superior (hematêmese, melena, hematoquezia), distensão abdominal por ascite ou confusão devido à encefalopatia hepática. ❖ Pacientes com cirrose podem apresentar cãibras musculares, que podem ser graves. ❖ A causa não é completamente compreendida, embora possa estar relacionada a uma redução no volume plasmática circulante efetivo. Os pacientes devem ser questionados sobre fadiga, facilidade para hematomas, edema de membros inferiores, febre, perda de peso, diarreia, prurido, aumento da circunferência abdominal, confusão ou distúrbios do sono (possivelmente indicando encefalopatia). A causa da diarreia em pacientes com cirrose pode ser multifatorial (ex. alterações na motilidade do intestino delgado, supercrescimento bacteriano no I.D, alterações na permeabilidade intestinal e deficiência de ácido biliar). ❖ Em mulheres, a anovulação crônica é comum, que pode se manifestar com amenorreia ou sangramento menstrual irregular. Algumas das anormalidades podem ser devidas a variações nos níveis de testosterona, estradiol, prolactina e hormônio luteinizante em pacientes com cirrose em comparação com controles normais. ❖ Em homens, pode haver o desenvolvimento do hipogonadismo. É manifestado por impotência, infertilidade, perda do impulso sexual e atrofia testicular. É observado predominantemente em pacientes com cirrose alcoólica e hemocromatose. Mais de um mecanismo parece estar envolvido. Em alguns casos, a lesão gonadal primária parece ser mais proeminente, conforme sugerido pelo aumento das concentrações séricas do hormônio folículo estimulante (FSH) e do hormônio luteinizante (LH), enquanto em outros, a supressão da função hipotalâmica ou hipofisária parece ter um papel principal, como sugerido por concentrações séricas de LH que não estão elevadas. Os efeitos tóxicos do álcool ou do ferro também podem contribuir para o seu desenvolvimento. ❖ Pacientes com cirrose também podem apresentar diversos sinais e sintomas que refletem o papel central que o fígado desempenha na homeostase de muitas funções corporais diferentes. Além disso, eles podem ter características relacionadas à causa subjacente da cirrose (ex. crioglobulinemia da hepatite C, DM e Artropatia em pacientes com hemocromatose ou doenças autoimunes extra- hepáticas (ex. anemia hemolítica ou tireoidite) em pacientes com hepatite autoimune. Classificação Compensada • Nesse estádio, a cirrose é geralmente assintomática e é diagnosticada durante a avaliação da doença hepática crônica ou 13 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite fortuitamente durante exame físico de rotina, testes bioquímicos, imageamento por outras razões, endoscopia mostrando varizes gastroesofágicas, ou cirurgia abdominal na qual o fígado nodular é detectado. • Fadiga inespecífica, libido diminuído ou distúrbios do sono podem ser as únicas queixas. • Cerca de 40% dos pacientes com cirrose compensada possuem varizes esofágicas. Sua presença (sem sangramento) não denota descompensação. • A média de tempo para a descompensação, o tempo no qual metade dos pacientes com cirrose compensada torna-se descompensada, é de cerca de seis anos. Não compensada • Definida pela presença de ascite (sinal mais frequente de descompensação, estando presente em 80% dos cirróticos descompensados), sangramento/hemorragia varicosa, encefalopatia hepática ou icterícia, que são complicações resultantes das principais consequências da cirrose: ➢ Hipertensão portal: Acompanhado de um estado circulatório hiperdinâmico. Leva ao desenvolvimento de varizes e ascite. ➢ Insuficiência hepática: Resulta em incapacidade do fígado de excretar bilirrubina. Percebe-se também pelo tempo de protombina. * A encefalopatia resulta tanto da hipertensão portal quanto da insuficiência hepática. • À medida que a doença progride, a pressão portal aumenta e a função hepática diminui, o que resulta, consequentemente, no desenvolvimento da ascite, sangramento gastrointestinal, encefalopatia e icterícia. Diagnóstico • O diagnóstico da cirrose deve ser considerado em qualquer paciente com doença hepática crônica. • Em pacientes assintomáticos com cirrose compensada, os sinais típicos da cirrose podem não estar presentes e, para realização do diagnóstico, geralmente pode ser necessária uma confirmação histopatológica por meio da biópsia hepática, que é o “padrão-ouro” para o diagnóstico de certeza. • Já em pacientes com sintomas e sinais de doença hepática crônica, a presença da cirrose pode, muitas vezes, ser confirmada com exames por imagem não invasivos, sem a necessidade da biópsia hepática. • A suspeita de cirrose surge da combinação da anamnese, exame físico, exames laboratoriais e de imagem. No caso da anamnese, alguns fatores de risco para doenças que levam à cirrose hepática podem ser questionados. Exames laboratoriais As anormalidades laboratoriais podem incluir: • Bilirrubina séria elevada: podem ser normais na cirrose bem compensada., aumentando à medida que a cirrose progride. • Aminotransferases anormais: moderadamente elevadas (AST > ALT). Quando normais, não impedem o diagnóstico. • Fosfatase alcalina/gama-GT elevada: Relação com obstrução biliar. • Albumina diminuída: é sintetizada exclusivamente no fígado. Os níveis de albumina podem ser usados para ajudar a classificar a gravidade da cirrose. • Tempo de protrombina prolongado/razão normalizada internacional elevada (INR): a maioria das proteínas envolvidas no processo de coagulação é produzida no fígado. Assim, o tempo de protrombina reflete o grau de disfunção sintética hepática. • Hiponatremia, hipoalbuminemia e trombocitopenia. ▪ Hemograma: Pode apresentar anemia, leucopenia, trombocitopenia ou pancitopenia. Achado laboratorial mais sensível e específico sugestivo de cirrose no conjunto das doenças hepáticascrônicas é a contagem baixa de plaquetas (<150.000/mm3), que ocorre como resultado da hipertensão portal e hiperesplenismo. Exames de imagem • Nos exames de imagem são métodos não invasivos que podemos encontrar alterações morfológicas compatíveis com cirrose, como: • Contorno hepáticos nodular; • Heterogeneidade do parênquima hepático; • Redução do fígado, com ou sem hipertrofia do lobo caudado ou esquerdo; 14 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite • Esplenomegalia; • Identificar hipertensão portal e Carcinoma hepatocelular (CHC); • A cirrose em estágios iniciais pode ter exames de imagem normais. Por isso, os exames só nos ajudam em estágios mais avançados e/ou diante da suspeita clínica; • Os exames mais utilizados são a Ultrassonografia de abdome (USG), USG com Doppler, tomografia computadorizada ou ressonância magnética. • Outro exame muito utilizado é a elastografia hepática transitória, também, conhecido como Fibroscan. A partir da emissão de ondas sonoras ela é capaz de estimar o grau de rigidez hepática (relação com a quantidade de fibrose ou cicatrização) • EDA: Principal método para o diagnóstico de varizes e hemorragia varicosa. Todos os doentes com cirrose hepática devem efetuar endoscopia digestiva alta (EDA) a cada 2 anos se tiver cirrose compensada e sem varizes e anualmente na cirrose compensada, mas com varizes pequenas. • USG de Abdome: para confirmar a presença de ascite. A paracentese diagnóstica é um procedimento seguro que pode ser realizado em todos os pacientes com ascite inicial, mesmo naqueles com coagulopatias. A orientação por ultrassom deve ser utilizada nos pacientes em que a percussão não consegue localizar a ascite ou naqueles em que uma primeira tentativa de paracentese não retira o líquido. • As três causas principais de ascite — cirrose, tumores malignos ou tuberculose peritoneal e insuficiência cardíaca — podem, facilmente, ser diferenciadas pela combinação dos resultados do gradiente soro-ascite de albumina e do conteúdo de proteína total no líquido ascítico. A ascite cirrótica normalmente apresenta gradiente soro- ascite de albumina alto e alto conteúdo de proteínas; • PARACENTESE diagnóstica: deve ser realizada em qualquer paciente com sintomas ou sinais de peritonite bacteriana espontânea, incluindo encefalopatia sem causa explicada e disfunção renal. O diagnóstico da peritonite bacteriana espontânea é estabelecido pela contagem de PMNs no líquido ascítico maior do que 250/mm3. Biópsia • Apesar de ser o padrão ouro, não deve ser realizada de rotina. Não é necessária, a menos que o grau de inflamação ou outras características requeiram investigação. • Esse procedimento, acarreta alguns riscos de morbimortalidade ao paciente, inclusive de sangramento. Por isso, só deve ser realizada quando o diagnóstico não for estabelecido após avaliação clínica, laboratorial e imagiológica e quando há discordância entre a clínica e resultados de métodos não invasivos. Medição da pressão portal • As medições diretas da pressão portal implicam a cateterização da veia porta, são incômodas e podem estar associadas a complicações. • A cateterização da veia hepática com a medição da pressão encunhada e livre é um método mais simples, mais seguro, reprodutível e mais amplamente utilizado para medir indiretamente a pressão portal. • Em um paciente com evidência clínica de hipertensão portal, o gradiente da pressão venosa hepática é útil para o diagnóstico diferencial da causa da hipertensão portal: • Estará normal (3 a 5 mm Hg) nas causas pré- hepáticas de hipertensão portal, como trombose venosa portal e nas intra-hepáticas, com exceção das causas pré-sinusoidais, como a esquistossomose, • Anormal (≥6 mm Hg) nas causas sinusoidais da hipertensão portal, como a cirrose e em causas pós- sinusoidais, como a doença veno-oclusiva. • Um gradiente de pressão venosa hepática igual ou maior que 10 mmHg (hipertensão portal “clinicamente significativa”) prediz o desenvolvimento de complicações da hipertensão portal e sua redução com terapia farmacológica prediz um resultado favorável em pacientes com cirrose. 15 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Complicações Hipertensão portal e estado circulatório hiperdinâmico A cirrose faz uma hipertensão portal do tipo intra- hepática sinusal, no qual há perda das fenestras e da função. Resulta tanto do aumento da resistência do fluxo portal quanto da elevação do influxo venoso portal. O bloqueio do fluxo venoso hepático, anatomicamente pela fibrose e pelos nódulos regenerativos e funcionalmente pelo tônus vascular pós-sinusoidal aumentado. Inicialmente, no processo hipertensivo portal, o baço cresce e sequestra plaquetas e outras células sanguíneas, o que leva ao desenvolvimento de hiperesplenismo. Além disso, os vasos que normalmente drenam para o sistema portal, como a veia gástrica esquerda, revertem seu fluxo e, assim, ocorre um desvio do sangue do sistema portal para a circulação sistêmica. Essas vias colaterais portos-sistêmicas são insuficientes para descomprimir o sistema venoso portal e oferecem resistência adicional ao fluxo portal. À medida que os colaterais se desenvolvem, um aumento no fluxo sanguíneo portal mantém o estado hipertensivo, como resultado da vasodilatação esplâncnica, que, por sua vez, é secundária ao aumento na produção de ON. Assim, o paradoxo na hipertensão portal é que a deficiência de ON na vasculatura intra-hepática desencadeia vasoconstrição e resistência aumentada, enquanto a superprodução de ON na circulação extra- hepática leva à vasodilatação e fluxo aumentado. Além da vasodilatação esplâncnica, existe a vasodilatação sistêmica, que, por causar decréscimo no volume arterial efetivo, desencadeia a ativação do sistema neuro-humoral (SRAA), retenção de sódio, expansão do volume de plasma e o desenvolvimento de um estado circulatório hiperdinâmico, o qual mantém a hipertensão portal, levando à formação e crescimento de varizes e desempenha um papel importante no desenvolvimento de todas as complicações da cirrose. Circulação Hiperdinâmica: Aumento do volume plasmático, fluxo sanguíneo esplâncnico e débito cardíaco; Diminuição da RVP e da pressão arterial média. Insuficiência hepática Com o evoluir da cirrose e da perda de hepatócitos funcionantes, algumas funções do fígado podem ficar comprometidas, gerando redução na formação de algumas proteínas, neutralização de toxinas e a destruição de bactérias e produtos bacterianos provenientes dos intestinos. Com isso, pode surgir eritema palmar, telangiectasias, ginecomastia, atrofia testicular, desnutrição com perda de massa muscular, coagulopatia e maior predisposição a infecções decorrentes da redução dos hepatócitos funcionantes, com consequente redução na síntese de proteínas plasmáticas; distúrbio no metabolismo de carboidratos e lipídios; alterações no catabolismo e biotransformação de aminoácidos, hormônios, drogas e xenobióticos e redução na neutralização e destruição de micro-organismos. Varizes e hemorragia varicosa A complicação da cirrose que resulta mais diretamente da hipertensão portal é o desenvolvimento dos colaterais portossistêmicos, dos quais os mais relevantes são aqueles que se formam a partir da dilatação das veias coronárias e gástricas e constituem varizes gastroesofágicas, que se desenvolvem quando há uma pressão venosa hepática de 10 - 12mmHg. Eventualmente, a sua ruptura e hemorragia varicosa, uma das complicações mais temidas da hipertensão portal. As varizes gastroesofágicas estão presentes em aproximadamente 50% dos pacientes com cirrose diagnosticada recentemente. A prevalência das varizes correlaciona-se à gravidadeda doença hepática e varia de 40% em pacientes cirróticos Child A a 85% em pacientes Child C. O sangramento das varizes gastroesofágicas pode manifestar-se como uma hematêmese evidente ou melena, ou ambos. Principais locais de colaterais porto-sistêmicas: Submucosa do esôfago (varizes de esôfago); Submucosa do estômago (varizes gástricas); Parede abdominal (circulação colateral periférica); Submucosa do reto 16 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite (varizes retais); Veia renal (Shunt esplenorrenal e outros). Ascite, varizes e síndrome hepatorrenal A causa mais comum de ascite é a cirrose, sendo secundária à hipertensão sinusoidal e à retenção de sódio. É a causa mais comum de descompensação na cirrose. Com a progressão da cirrose e a hipertensão portal, a vasodilatação torna-se mais pronunciada e, assim, há a ativação adicional do sistema nervoso simpático e do sistema renina-angiotensina-aldosterona, resultando em uma maior retenção de sódio (ascite refratária), retenção de água (hiponatremia) e vasoconstrição renal (síndrome hepatorrenal). A síndrome hepatorrenal representa o extremo dentro da variação das anormalidades que desencadeiam a ascite cirrótica e é caracterizada por vasodilatação periférica máxima, bem como ativação máxima de hormônios que causam retenção de sódio e água e vasoconstrição intensa das artérias renais. O diagnóstico da síndrome hepatorrenal, que é de exclusão, deve ser realizado somente após a interrupção do uso de diuréticos. Encefalopatia A encefalopatia hepática associada à cirrose é de início gradual e raramente fatal. A amônia, uma toxina normalmente removida pelo fígado, desempenha um papel essencial na patogênese da encefalopatia hepática. Na cirrose, a amônia acumula-se na circulação sistêmica por causa do desvio de sangue realizado pelos colaterais portossistêmicos e do metabolismo hepático diminuído (p. ex., insuficiência hepática). A presença de grandes quantidades de amônia no cérebro danifica as células cerebrais de suporte ou astrócitos e desencadeia alterações estruturais características da encefalopatia hepática (astrocitose tipo II de Alzheimer). Clinicamente, ela é caracterizada por alterações na consciência com variação comportamental de inversão do padrão de sono-vigília e transtornos de memória (estádio 1); confusão, comportamento bizarro e desorientação (estádio 2); letargia e desorientação profunda (estádio 3); coma (estádio 4). No exame físico, os estágios iniciais podem demonstrar somente um tremor distal, mas a marca registrada da encefalopatia hepática é a presença de asterixe (flexão e extensão alternadas de baixa amplitude das mãos). Além disso, os pacientes com encefalopatia hepática podem apresentar hálito com odor adocicado, uma característica denominada fetor hepaticus. Tratamento: • Restrição proteica: em casos crônicos • Corrigir a constipação: lactulose oral → eficácia entre 70-80%; • Antibióticos: neomicina, metronidazol, rifaximina. • Outros: probióticos, suplementação de zinco, LOLA (L-ornitina-L-aspartato) Icterícia Na cirrose é reflexo da incapacidade do fígado de excretar a bilirrubina e é, portanto, o resultado da insuficiência hepática. No entanto, nas doenças colestáticas que levam à cirrose (p. ex., cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, síndrome do desaparecimento do ducto biliar), a icterícia deve-se mais provavelmente à lesão biliar do que à insuficiência hepática. Complicações cardiopulmonares O estado circulatório hiperdinâmico eventualmente resulta na insuficiência cardíaca de alto débito com utilização periférica de oxigênio diminuída, uma complicação que tem sido descrita como cardiomiopatia cirrótica. A vasodilatação no nível da circulação pulmonar desencadeia hipoxemia arterial, a marca registrada da síndrome hepatopulmonar. A síndrome hepatopulmonar está associada à dispneia de esforço, que pode levar à debilitação extrema. Pode- se observar no exame físico baqueteamento digital, cianose e aranhas vasculares. Hipertensão portopulmonar manifesta-se com dispneia por esforço, síncope e dor torácica. 17 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite Hemorragia digestiva alta A HDA é um sangramento que se origina de um ponto localizado entre a boca e o ângulo de Treitz, podendo se manifestar como hematêmese, vômitos, melena e enterorragia. A HDA por hipertensão portal pode ser decorrente de sangramento por varizes esofágicas, gástricas e ectópicas e gastropatia da HP. Peritonite bacteriana espontânea É, muitas vezes, assintomática e geralmente adquirida da comunidade. É espontânea é, na maior parte das vezes, é uma infecção monobacteriana, geralmente por organismos entéricos Gram-negativos. A PBE é uma infecção frequente em pacientes com cirrose hepática. Acredita-se que um paciente imunodebilitado, com alterações da motilidade gástrica, associado ao supercrescimento bacteriano intestinal, tem maior risco de translocação bacteriana, que levam ao desenvolvimento da infecção peritoneal. Síndrome hepatorrenal Surgimento de insuficiência renal em pacientes com doença hepática, sem que haja evidências clínicas, laboratoriais ou anatômicas de causa conhecida que justifique o seu desenvolvimento. Essa síndrome ocorre devido a uma constrição intensa da vasculatura cortical renal devido à alterações hemodinâmicas em pacientes com hipertensão portal, resultando em oligúria e retenção de sódio. Tratamento • O tratamento da cirrose hepática visa tratar ou suspender a causa base que originou a doença, realizar o manejo adequado das complicações, impedir a descompensação da doença e melhorar a qualidade de vida do paciente. • Algumas drogas têm sido estudadas no sentido de parar e reduzir o surgimento da fibrose hepática, dentre elas a colchicina (em uso, melhora a bioquímica hepática), propiltiouracil e interferon. • Em relação às varizes, faz-se uso de Betabloqueadores que atuam reduzindo a pressão portal. A profilaxia primária com betabloqueadores não seletivos deve ser oferecida a pacientes com varizes de fino calibre, mas que apresentam elevado risco de sangramento e para varizes de médio e grosso calibres, enquanto a ligadura elástica fica reservada àqueles que apresentam intolerância ou contraindicação aos betabloqueadores. • O betabloqueador mais utilizado é o propanolol 20mg, via oral, 2x/dia ou nadolol 20mg, via oral, 1x/dia. A dose do propranolol deve ser ajustada a cada três dias até que se obtenha redução de 25% da frequência cardíaca basal (até 55 bpm). • Para prevenir a PBE, pode-se lançar mão do uso de antibioticoterapia empírica com cefotaxima 2g, de 12/12 horas, via intravenosa ou ceftriaxona 1 a 2g, de 24/24 horas, via intravenosa ou ácido amoxicilina-clavulanato 1g, de 8/8 horas, via intravenosa. • Nos casos de ascite, além da paracentese de alívio quando há grande acúmulo de líquido, podemos usar os diuréticos como furosemida 40 a 160mg/dia e/ou espironolactona 100mg/dia nos casos em que a perda de peso for inadequada ou se houver desenvolvimento de hipercalemia. • Para evitar a encefalopatia hepática, podemos utilizar a lactulose 15 a 30mL, via oral, 2x/dia, ajustada para obter duas evacuações/dia. • Atentar-se a necessidade de uma abordagem nutricional eficaz, com a correção de deficiência de vitaminas. • O transplante hepático é o único tratamento definitivo para isso é necessário que o paciente preencha os critérios para transplante. • Em alguns pacientes com hipertensão portal e candidatos ao transplante hepático, pode-se realizar provisoriamente a anastomose portocava intra-hepática por via radiológica (TIPS) para a diminuição do risco de complicações. ASCITE Três teorias foramelaboradas ao longo do tempo para explicar o surgimento da ascite no cirrótico: o “underfill” (baixo enchimento), o “overflow” (super- fluxo) e a vasodilatação. Nenhuma teoria é absoluta, mas sim complementares. ▪ Underfilling: hipertensão-portal → concentração do sangue no sistema porta e órgãos esplâncnicos → hipovolemia → estimulação de receptores de volume → ativação do SRAA, estimulação do SNS, 18 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite aumento de HAD → retenção renal de Na e H2O → ascite. ▪ Overflow (transbordamento): hipertensão-portal → refluxo hepatorrenal? insuf hepática (redução do fator natriurético)? → retenção renal de sódio e água -> expansão do volume plasmático → aumento da hipertensão portal → ascite ▪ Vasodilatação: vasodilatação arterial → ↓ resist. vascular esplâncnica e sistêmica → acúmulo de sangue no território esplâncnico → ↓ vol. circulante efetivo → ativação dos sistemas vasopressores neuro-hormonais (retenção hidrossalina) → ascite História de ascite de recente começo (até 1 a 2 meses): provavelmente a vasodilatação estará presente e o “overflow” predominará. História de ascite de longa duração (4 a 6 meses): terá grau mais acentuado de vasodilatação periférica com predomínio do “underfill”. Cirrose: Vasodilatação periférica e retenção renal de água e sódio (fases iniciais) → “ overflow ” e escape de fluido para a cavidade peritoneal (vindo principalmente da superfície hepática) → ascite começa a se formar + piora da vasodilatação periférica → início de “underfill” (↓ volume efetivo circulante e estimulação permanente dos sistemas vasopressores) → retenção contínua de água e sódio pelos rins → saturação da capacidade de drenagem linfática abdominal + limitação da drenagem linfática hepática → acúmulo final de líquido na cavidade peritoneal. Principais doenças causadoras de ascite • Doenças com hipertensão portal: Cirrose; Insuficiência hepática fulminante; Retardo/Obstrução ao fluxo de saída do sangue hepático (Insuficiência cardíaca congestiva, Pericardite constritiva, Miocardipatia restritiva, Síndrome de Budd – Chiari, Doença veno-oclusiva) • Neoplasias; • Infecções: Tuberculose peritoneal; Síndrome de Fitz-Hugh-Curtis; AIDS; esquistossomose; fúngica; bacteriana; • Renal: Síndrome nefrótica; Nefrogênica em pacientes sob hemodiálise • Endócrina: Hipotireoidismo (mixedema); Struma Ovarii; Síndrome da hiperestimulação ovariana • Pancreática: pancreatite, pseudocisto • Biliar; • Urinária; • Outras: Lúpus eritematoso sistêmico; Miscelânea; angioedema hereditário; artrite reumatóide; Doença de Whipple; mixedema; gastroenterite eosinofílica; febre familiar do mediterrâneo; hipoalbuminemia. Exame do líquido ascítico • Macroscopia: ➢ Amarelo citrino (claro): Cirrose hepática sem complicações; ➢ Turvo Infecções: (peritonite bacteriana espontânea ou secundária) ➢ Leitoso (quilosa): Neoplasia ou trauma do ducto pancreático ➢ Sanguinolento: Punção traumática, Neoplasia maligna, Ascite cirrótica sanguinolenta, Tuberculose (Raro), Punção inadvertida do baço (Esplenomegalia volumosa); ➢ Amarronzado: Síndrome ictérica, Perfuração de vesícula biliar, Úlcera duodenal. • Bioquímica: dosagem de albumina (no líquido ascítico e no plasma), proteína total, glicose, LDH (diferenciar peritonite bacteriana espontânea de peritonite secundária), TGL (aumentados nas ascites quilosas), bilirrubinas, (ascites biliares), ureia (ascite urinária) e amilase (ascite pancreática). • Citometria: hemácias no líquido (neoplasias, TB e trombose mesentérica), leucócitos (PMN → inflamação do peritônio. Mononucleares → TB peritoneal, colagenoses e neoplasias). • Bacteriologia: bacterioscopia e cultura Exames de imagem • Rx: pouco valor diagnóstico para ascite. • USG: método de escolha para detectar pequenas coleções líquidas. Além disso, faz diagnóstico etiológico e terapêutico (punção de coleções); • TC: permite o diagnóstico de ascite com segurança e também diferencia as coleções líquidas livres das massas sólidas ou císticas, uma vez que o líquido 19 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite ascítico apresenta menor densidade radiológica que as estruturas sólidas adjacentes. • Paracentese abdominal: finalidade de obtenção do material para análise (diagnóstico etiológico → obrigatório no paciente com ascite → melhor maneira de começar a investigação etiológica) e aliviar o doente de sintomas compressivos. Procedimento feito com o paciente em decúbito dorsal, após anestesia local e assepsia da área puncionada. Para determinar o ponto de punção devemos traçar uma linha imaginária do umbigo à espinha ilíaca ântero-superior esquerda e dividi-la em três partes. Na junção entre o terço médio e o terço inferior, procede-se à inserção da agulha para realização da paracentese. • Biópsia peritoneal: via laparoscópica. Casos específicos. Gradiente albumina sérica e albumina do líquido ascítico (GASA): a dosagem do GASA é crucial no diagnóstico da etiologia da ascite, principalmente relacionada à hipertensão portal. O GASA é a diferença entre a albumina do soro e a albumina da ascite, por isso, deve ser colhido simultaneamente. • Gradiente < 1,1 g/dl = exsudato = doença peritoneal • Gradiente > 1,1 g/d l = transudato = hipertensão portal A ascite pode ser graduada em três estágios: 1. Só detectada pelo US; 2. Ascite moderada, detectada pelo exame físico; 3. Grande ascite com importante distensão abdominal. Manejo da ascite: • Tratamento da doença hepática de base • Repouso, restrição de sal e água • Diuréticos: capazes de reduzir ascite sem provocar hipovolemia acentuada (espironolactona - antagonista de aldosterona; furosemida ➢ ○ Pacientes com ascite sem edema de membros inferiores: não se deve ultrapassar o limite de 0,5 kg/dia de perda; ➢ Pacientes com ascite + edema de membros inferiores: pode-se fazer o paciente perder 1 kg/dia, sem problemas. • Trasplante hepático: terapia definitiva (reserva hepática mais comprometida). Semiologia Questionar: tempo de aparecimento, fatores de risco para doenças hepáticas, dor abdominal (complicações), perda de peso. • Inspeção: abdome globoso/batráquio, estrias, circulação colateral, hérnias, edema escrotal, edema periférico, sinais de hepatopatia grave (aranhas vasculares, eritema palmar, feminilização), derrame pleural. • Palpação/percussão: ➢ Macicez móvel: presente quando ao percutir uma parte soa maciça e após a mudança de posição do paciente essa parte se torna timpânica. Para ascite > 1500 ml. ➢ Sinal de piparote: um impulso percebido através da transmissão pelo líquido acumulado, pela percussão em um dos flancos. Pede-se que o paciente (ou auxiliar) coloque uma mão na linha mediana do abdome para que o piparote não seja através de transmissão cutânea. Sinal menos sensível, mas muito específico. Para ascites de médio a grande volume. ➢ Círculo de Skoda: há a busca de distinção entre a parte maciça e timpânica no abdome, sendo que a macicez indica a presença de fluído e o timpanismo a ausência deste. Grandes volumes. ➢ Derrame pleural: crepitações em bases pulmonares. Edema cirrótico O processo cirrótico - resposta hepática a vários tipos de agressões que leva à fibrose e regeneração nodular do fígado - afeta a função hepática em consequência de: • Alterações do funcionamento dos hepatócitos: lesões celulares (necrose, proliferação) → comprometimento da síntese de albumina. 20 Beatriz Machado de Almeida Síndrome Ictérica, Cirrose e Ascite • Destruição da arquitetura lobular, canalicular e vascular: gera distorções estruturais → dificultam o livre fluxo de sangue e linfa nos sinusóides hepáticos → ↑ pressão no território venoso (portal)e linfático (intra-hepático), que se conhece por hipertensão portal → sangue busca alternativas de tráfego → circulação colateral venosa → ↑ capacitância (venosa) esplâncnica → “aprisionamento” de sangue no território mesentérico → prejudica o enchimento vascular arterial underfilling → ↓ volume efetivo de sangue. Há também uma HIPOALBUMINEMIA por deficiência de síntese de albumina → ↓ pressão oncótica do plasma → edema. • Formação de shunts arteriovenosos : insuf. hepática + ↓ resistência vascular periférica (por redução do metabolismo de várias substâncias vasodilatadoras e ↑ NO) → ↓ VAES → ativa mecanismos de controle de volume extracelular (hiperatividade simpática + ativação do SRAA + hiperaldosteronismo secundário) → retenção renal de água e sódio. Hipertensão portal + hipoalbuminemia → transudação líquida para a cavidade peritoneal → ascite. ➢ Transudato: extravasamento de líquido (↑ pressão hidrostática ↓ pressão osmótica coloidal) ➢ Exsudato: extravasamento de líquido e proteína (inflamação → vasodilatação e estase + espaço interendotelial aumentado).
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