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Autoras: Profa. Camila Cristina Ribeiro Luis Profa. Letícia Cunha de Andrade Oliveira Colaboradores: Prof. Enzo Fiorelli Vasques Profa. Tânia Sandroni História das Relações Internacionais Professoras conteudistas: Camila Cristina Ribeiro Luis / Letícia Cunha de Andrade Oliveira © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L953h Luis, Camila Cristina Ribeiro. História das Relações Internacionais / Camila Cristina Ribeiro Luis, Letícia Cunha de Andrade Oliveira. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 172 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Relações internacionais. 2. Sociedade. 3. Guerras. I. Luis, Camila Cristina Ribeiro. II. Oliveira, Letícia Cunha de Andrade. III. Título. CDU 341.12 U508.96 – 20 Camila Cristina Ribeiro Luis Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), em 2007, na cidade de Franca, interior de São Paulo. Também pela Unesp, na capital paulista, por meio do programa interinstitucional San Tiago Dantas, é mestre e doutora (2018). Desde a iniciação científica, suas pesquisas enquadram-se na área de paz, defesa e segurança internacional, interesse que surgiu ainda na graduação, quando queria entender as circunstâncias da formulação do projeto Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, proposto pelo Brasil à Organização das Nações Unidas (ONU) em 1986. No mestrado, continuou com os olhos fixos no mar e analisou a participação da Marinha do Brasil na política externa brasileira formulada para a fronteira atlântica. E, por fim, no doutorado, estudou a política de defesa do Brasil no Atlântico Sul. Iniciou a carreira na docência em 2014 na Universidade Paulista (UNIP). Leciona no curso de Relações Internacionais e Ciências Econômicas desde 2017. Letícia Cunha de Andrade Oliveira Possui toda a formação em Relações Internacionais. Concluiu o bacharelado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) em 2011, o mestrado pela Universidade de Brasília (UnB), em 2013, e o doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) em 2019. Na graduação, analisou as propostas de reforma do Conselho de Segurança ONU. No mestrado, analisou o desempenho do Brasil no cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs). E, no doutorado, analisou a implementação do Programa Mais Alimentos na África, mais especificamente em Moçambique. Em 2017, começou a coordenar o curso de Relações Internacionais do campus de São José dos Campos da UNIP e continuou em sala de aula. Atualmente, contribui com a equipe de professores do curso de Relações Internacionais da UNIP na produção de material didático. Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Deise Alcantara Carreiro – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Aline Ricciardi Bruna Baldez Sumário História das Relações Internacionais APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ................................................................................... 11 1.1 Estudos europeus ................................................................................................................................. 13 1.2 Estudos americanos ............................................................................................................................. 16 2 A CONSTRUÇÃO DA “SOCIEDADE INTERNACIONAL EUROPEIA”: DE VESTFÁLIA A VIENA ...................................................................................................................................... 20 2.1 A Guerra dos Trinta Anos e a Paz de Vestfália .......................................................................... 21 2.2 O Congresso de Viena e a sociedade internacional europeia............................................. 28 2.3 Expansão da sociedade internacional europeia ....................................................................... 34 3 O APOGEU DO SISTEMA INTERNACIONAL EUROPEU (1871-1914) ............................................. 38 3.1 Tendências na geopolítica europeia após 1871 ....................................................................... 39 3.2 Economia e relações internacionais ............................................................................................. 41 3.3 A diplomacia de Bismarck ................................................................................................................. 44 3.4 O despertar da bipolaridade na Europa ...................................................................................... 46 4 A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL ............................................................................................................... 49 4.1 O estopim da Primeira Guerra Mundial ...................................................................................... 50 4.2 O desenrolar do conflito .................................................................................................................... 53 4.3 A Paz de Versalhes ................................................................................................................................ 56 4.4 Discutindo as forças profundas que levaram à Primeira Guerra Mundial .................... 59 Unidade II 5 O PERÍODO ENTREGUERRAS (1919-1939) ............................................................................................ 70 5.1 A Liga das Nações ................................................................................................................................ 71 5.2 A Europa ................................................................................................................................................... 76 5.3 União Soviética, Japão e Estados Unidos ................................................................................... 78 5.4 América Latina, África e Ásia ........................................................................................................... 84 5.5 A retomada das hostilidades ........................................................................................................... 87 6 A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL (1939-1945) .................................................................................... 93 6.1 A guerra civil europeia ....................................................................................................................... 95 6.2 Mundialização da Segunda Guerra Mundial ..........................................................................100 6.3 Surgimento de uma nova ordem internacional ....................................................................105 Unidade III 7 A GUERRA FRIA (1946-1989) ...................................................................................................................1197.1 Período “quente” da Guerra Fria ..................................................................................................119 7.2 Coexistência pacífica ........................................................................................................................124 7.3 Distensão ...............................................................................................................................................130 7.4 Nova Guerra Fria .................................................................................................................................134 8 O MUNDO GLOBALIZADO (1990-) .........................................................................................................138 8.1 Nova balança de poder ....................................................................................................................139 8.2 Novos problemas globais ................................................................................................................141 8.3 Novas formas de inserção internacional ..................................................................................146 8.4 Fenômenos recentes .........................................................................................................................151 7 APRESENTAÇÃO O livro-texto que aqui se apresenta tem como objetivo auxiliar o estudante de Relações Internacionais em sua jornada de estudos sobre a história das relações internacionais, um assunto denso e rico que muito contribuirá não apenas para sua formação acadêmica, mas também para ampliar seus horizontes sobre o entendimento do mundo. A história das relações internacionais tem como objeto de estudo a formação do sistema internacional contemporâneo, bem como sua evolução ao longo dos últimos séculos. Assim, discutiremos o contexto que resultou na formação do sistema de Estados europeu e da sociedade internacional europeia; sua expansão mundial no século XIX; as rupturas do século XX e a formação de uma sociedade mundial; e a transição da Guerra Fria para o sistema internacional contemporâneo, tudo isso a partir de uma perspectiva histórica, fundamentada em conceitos e elementos históricos. No entanto, pode ocorrer a indagação: por que estudar história se estou cursando Relações Internacionais? Qual a importância do conhecimento histórico na formação do internacionalista, se geralmente lidamos com os fatos do mundo contemporâneo? De fato, tais perguntas perpassam nosso pensamento toda vez que nos deparamos com o estudo da história e são importantes guias para o desenvolvimento deste livro-texto. Como nos explica o professor José Flávio Sombra Saraiva, o mundo atual é moldado pela evolução dos processos internacionais do passado, e, portanto, é importante o domínio do conteúdo histórico para uma análise mais acurada e crítica dos fenômenos do presente. Sobre esse assunto, Gonçalves (2007, p. 13) argumenta: Devido à sua complexidade, o conhecimento dos problemas internacionais contemporâneos requer a análise histórica. Não basta compreender o funcionamento das instituições e a capacidade de codificação conceitual de certos aspectos da realidade. Para a produção do conhecimento, é indispensável acrescentar a esse trabalho intelectual de interpretação da realidade a articulação dos elementos ao longo do tempo. É importante destacar que a história das relações internacionais não se resume ao simples estudo do material produzido pelas chancelarias ou da observação das ações da diplomacia e dos poderes políticos instituídos. Para além dessa abordagem, a disciplina procura esclarecer as configurações do atual cenário das relações internacionais por meio dos processos sociais que se iniciaram e evoluíram em passado recente, moldando o mundo que hoje observamos. A esses processos históricos, Pierre Renouvin, considerado o fundador da história das relações internacionais, chamou de “forças profundas”, isto é, explicações e interpretações da evolução da vida internacional que não eram contempladas nos documentos disponíveis, necessitando, portanto, de um olhar desde uma perspectiva histórica. 8 Dessa forma, podemos afirmar que a história tem algo a nos dizer sobre a globalização e a integração econômica; as crises nacionalistas e a ascensão de governos conservadores em todo o mundo; o protecionismo econômico; os desafios ambientais; o peso da cultura nas relações internacionais, entre outros desafios com os quais se deparam nós, internacionalistas. É a partir da perspectiva histórica que nos debruçaremos neste livro-texto para a análise da evolução do sistema internacional contemporâneo, com o propósito de conhecer as forças profundas que o tornaram tão complexo e desafiador na atualidade. Bons estudos! Observação Fazemos referência aos renomados autores Pierre Renouvin e José Flávio Sombra Saraiva. É importante saber que Pierre Renouvin é um historiador francês que organizou e fundamentou essa área de estudo quando lançou, em 1953, sua obra História das relações internacionais, tornando-se referência mundial. José Flávio Sombra Saraiva é um especialista brasileiro em história das relações internacionais, sendo, portanto, uma referência nessa área de estudo no país. Por isso, ao longo do livro-texto, muito nos reportaremos a esses autores, entre outros. INTRODUÇÃO A configuração do sistema internacional contemporâneo teve início nos tratados firmados ao término da chamada Guerra dos Trintas Anos, um conflito que ocorreu no continente europeu na primeira metade do século XVII. O conjunto desses tratados ficou conhecido como Paz de Vestfália, como referência a uma região alemã onde se localizavam as cidades Osnabrück e Münster, em que foram negociados e assinados os acordos. E foi nos tratados que instituíram a Paz de Vestfália e que foram estabelecidos os pilares do moderno sistema de Estados que depois se tornaria mundial: soberania, territorialidade e não intervenção. Desde a Paz de Vestfália, datada de 1648, até os dias atuais, muitas mudanças ocorreram no contexto internacional. O sistema de Estados, apesar de manter os princípios vestfalianos, vem alterando sua interpretação sobre eles conforme a evolução histórica da sociedade mundial. Abordaremos neste livro-texto o processo de formação e evolução do sistema internacional, de forma concisa, para a apoiar os estudos de história das relações internacionais. Para tanto, apoiamo-nos na revisão da bibliografia já produzida por autores renomados indicada para o estudo desta disciplina, a qual será apresentada ao final do livro-texto. Não pretendemos esgotar completamente a produção bibliográfica, tampouco abordar todos os fatos históricos dos últimos quatro 9 séculos; primeiro, por conta do limitado tempo e espaço que uma disciplina de 60 horas de carga horária impõe ao professor, e segundo porque, aqui, empregou-se a metodologia da relevância histórica. Nesse sentido, analisaremos o contexto e os tratados que resultaram na Paz de Vestfália; a sociedade internacional europeia e o sistema de Estados; o Tratado de Viena e o Concerto Europeu; a expansão da sociedade europeia no século XIX; a ascensão alemã e o fim do equilíbrio europeu; a Primeira e a Segunda Guerra Mundial; a Guerra Fria em suas múltiplas fases; a globalização e a nova ordem mundial. Vale destacar que sistema internacional e sociedade internacional, ambos objetos de estudo nesta disciplina, são conceitos diferentes. Conforme explica Hedley Bull (2002), um sistema internacional de Estados consiste em um contexto em que dois ou mais Estados mantêm contato suficiente entre si a ponto de considerar os impactos recíprocos em suas decisões. Porém, para que exista uma sociedade internacional, é necessário que os atores compartilhem regras e valores comuns. No decorrer deste livro-texto e nos estudos de história das relações internacionais, não nos limitaremos ao sistema internacional, mas também analisaremos a evoluçãodos valores, as regras e os interesses que os Estados e demais atores internacionais estabeleceram para a existência de uma sociedade internacional. Não podemos nos esquecer ainda de abordar a própria formação da disciplina História das Relações Internacionais a partir das diferentes interpretações propostas por abordagens oriundas especialmente da Europa e da América, muito embora existam outras perspectivas de diferentes regiões do globo. Alguns recursos utilizados ao longo do texto, como “Observação”, “Lembrete” e “Saiba mais”, vão conferir um tom mais didático a sua leitura e ajudá-lo a fixar o conteúdo de forma mais efetiva. Além disso, ao final de cada unidade, o “Resumo” e os “Exemplos de Aplicação”, resolvidos e comentados, vão ajudá-lo a retomar o conteúdo estudado antes de partir para a próxima parte ou na hora da revisão, tanto para a resolução dos questionários do ambiente virtual quanto para a avaliação presencial no seu polo de apoio presencial. Observação Vestfália não é uma cidade específica, mas sim uma região da Alemanha entre os rios Reno e Weser, onde se encontram as cidades Dortmund, Münster, Bielefeld e Osnabrück. Atualmente, essa região está incluída no estado federal alemão de Renânia do Norte – Vestfália – e parte no estado da Baixa Saxônia. Vale destacar que os limites políticos e geográficos da Europa na época da Paz de Vestfália não eram os mesmos de hoje; portanto, não há correspondência integral da região de Vestfália do século XVII com o presente. 11 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Unidade I 1 A HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Abordaremos a trajetória da história das relações internacionais enquanto uma subárea de estudos das relações internacionais, bem como sua contribuição por meio de diversos ângulos para a análise dos fenômenos contemporâneos, com foco, especialmente, nas contribuições europeias e americanas. A história das relações internacionais cresceu em importância quando ocorreram as transformações observadas no cenário mundial entre as décadas de 1980 e 1990. O desmoronamento da União Soviética, o término da Guerra Fria e a emergência da globalização do capitalismo liberal foram fatos que levantaram questionamentos e crises sobre interpretações científicas na área das relações internacionais capazes de explicar o mundo recente (SARAIVA, 2007b). Foi nesse contexto que os historiadores apontaram a necessidade de resgatar os estudos de história nas relações internacionais, despertando a atenção para a história das relações internacionais, que, durante as décadas anteriores, havia ficado em segundo plano. Os debates levantados nesse momento apontavam que, sem as contribuições da história, os fenômenos do presente eram incompreensíveis (GONÇALVES, 2007). Também foi de grande contribuição para a mudança de perspectiva sobre a história a obra de Jean-Baptiste Duroselle, Todo Império perecerá: uma visão teórica das relações internacionais, no início da década de 1980, que se diferenciou da visão dos teóricos tradicionais das relações internacionais à época ao propor uma análise fundamentada na história da crise no Império Soviético num momento que ninguém falava ou sequer imaginava os fatos que estavam por vir (SARAIVA, 2007b). No entanto, quando abordamos a história das relações internacionais, é importante lembrar que sua origem remete à história diplomática, área de estudos que se desenvolveu ao longo do século XIX. Conforme explica Gonçalves (2007), a história diplomática é a história das relações do Estado com outros povos, contada com base nos documentos oficiais do Estado, isto é, notas diplomáticas, memorandos, correspondências, tratados, convenções etc. Nessa perspectiva, a contribuição da história nas relações internacionais se resumia na descrição das ações conduzidas pelos agentes oficias do Estado; em sua maioria, os diplomatas. Não havia nesse ramo de estudos a preocupação em problematizar o tema em análise, mas única e exclusivamente descrever os fatos relativos observados nos materiais das chancelarias. 12 Unidade I Observação Empregamos a palavra “Estado” para nos referir a uma comunidade organizada politicamente em uma estrutura governamental autônoma e espacialmente determinada em um território. No senso comum, utiliza-se a palavra “país” como sinônimo de Estado, muito embora “país” se refira somente aos aspectos geográficos do Estado. Foi após a Revolução Francesa, em 1789, que a história diplomática ganhou força e se tornou uma modalidade de estudos de história. O grande volume de material diplomático produzido a partir do Congresso de Viena em 1815 e a expansão do imperialismo europeu no mundo todo muito contribuíram para esse quadro. Os eventos da Primeira Guerra Mundial e a crise que a ela se seguiu até desembocar na Segunda Guerra Mundial aumentaram ainda mais o interesse nos estudos de história diplomática, que, nesse momento, chegou a seu apogeu. Porém, o desmoronamento da hegemonia europeia sobre o mundo nas décadas da Guerra Fria apontou a insuficiência dessa modalidade de história para explicar as grandes mudanças pelas quais o mundo passava. Observação O termo “diplomacia” deriva do verbo grego diploun, cujo significado é dobrar. Daí o significado de “diploma”: documento oficial gravado em uma placa dupla de bronze. Diploma, portanto, na Roma Antiga, referia-se aos documentos oficiais produzidos pelo governo. Mais tarde, com o emprego de pessoas para arquivar e organizar tais documentos, o termo passou a designar os funcionários do Estado habilitados a informar às autoridades tudo aquilo considerado necessário a respeito dos outros povos. A partir da mesma origem, consolidou-se o significado de “diplomacia” como o modo de conduzir os assuntos do Estado com outros povos essencialmente por meios pacíficos (GONÇALVES, 2007). Nesse contexto, coube a Pierre Renouvin o mérito de proceder à crítica da história diplomática, de forma a superar as produções historiográficas nos marcos das chancelarias e propor uma interpretação com base em outras perspectivas, as chamadas forças profundas, que impulsionavam as ações daqueles que conduziam as relações entre os Estados. A esse respeito, esclarece Gonçalves (2007, p. 22): [...] Embora a História das Relações Internacionais não negligencie a importância da iniciativa dos Estados, requer a interpretação das influências geográficas, econômicas, culturais e ideológicas que condicionam a ação dos Estados em suas relações externas. Na expressão consagrada por Pierre Renouvin e Jean-Baptiste Duroselle (1967), estas são as “forças profundas” que formam o quadro no interior do qual agem os “homens de Estado”. Isto 13 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS é, são essas forças profundas que dão sentido às decisões tomadas pelos representantes oficiais do Estado nas relações que mantêm com as demais nações e organizações internacionais. É, portanto, ao estudo das mais diversas influências do momento histórico sobre as decisões e ações das pessoas que estão à frente da política dos Estados que se dedica a história das relações internacionais. Essas influências podem ser de natureza diversificada, tais como ideológicas, econômicas, geográficas, sociais, culturais etc., e não podem ser analisadas somente a partir dos documentos produzidos nas chancelarias. Por isso, a história das relações internacionais recorre às mais diversificadas fontes de pesquisa, tanto escritas, como jornais, cartas, panfletos, cartazes, livros, biografias; quanto orais, a fim de realizar a interpretação dos fatos em análise. Assim, é possível ter um panorama mais amplo para compreender os acontecimentos do presente nas relações internacionais. É importante destacar que essa nova abordagem histórica que levou à superação da história diplomática não se restringiu aos estudiosos franceses já citados. Foi considerável a contribuição de outros autores europeus, como os ingleses, além de autores dos países americanos,sobretudo norte-americanos. São a essas produções que nos dedicamos, considerando que é sempre positivo diversificar nossas fontes de leitura e conhecer o máximo da bibliografia produzida pelo estudo em foco. 1.1 Estudos europeus Nos estudos europeus de história das relações internacionais, destacam-se várias correntes, com proeminência das francesas, uma vez que, com o lançamento da obra de Pierre Renouvin, inaugurou-se toda uma tradição francesa na subárea. Aos oito volumes produzidos por Renouvin no início da década de 1950, seguiram-se obras de outros autores, como François Ganshof, Gaston Zeller, André Fugier e René Girault, que definitivamente firmaram a produção da escola francesa sobre a história das relações internacionais. Pierre Renouvin, nascido em Paris em 1983, foi professor na Sorbonne entre 1933 e 1964. Tinha vivenciado e lutado na Primeira Guerra Mundial, em que perdeu o braço esquerdo e o uso da mão direita. Sobrevivente do conflito, Renouvin pertencia a uma geração de europeus que havia não apenas visto os horrores de duas guerras, mas também vivenciado a perda da importância relativa da Europa nas relações internacionais (SARAIVA, 2007b). Como professor universitário, Renouvin estava insatisfeito com as interpretações propostas à época pela história diplomática para as causas das guerras, da paz e de todos os fatos que tumultuaram a sociedade europeia na primeira metade do século XX. A proposta da obra de Renouvin e de seus colegas franceses seria a construção de uma explicação que considerasse os variados aspectos da vida internacional, como as forças materiais e morais que influenciavam o mundo do seu tempo com os movimentos nacionais e a crise econômica. 14 Unidade I É nesse sentido que Renouvin propõe o conceito de “forças profundas”, que se refere ao conjunto de causalidades sobre as quais atuavam as pessoas responsáveis pela política externa dos Estados. Tais causalidades se relacionam aos processos econômicos e materiais, às ideologias correntes, aos elementos culturais, enfim, aos diversos fatores presentes na vida social das comunidades humanas. Conforme explica Canesin (2008, p. 131): Estas “forças profundas” são de diversos tipos e Renouvin as enumera na primeira parte da obra “Introdução à História das Relações Internacionais” (1967) como: geográficas; demográficas; econômicas; da mentalidade coletiva; e correntes sentimentais. Sendo a primeira composta por atributos de posição e espaço que orientam a alocação dos agregados humanos. No segundo caso, discorre-se sobre o papel dos surtos demográficos e movimentos migratórios como constrangimentos do ambiente internacional. Quanto às forças econômicas, estas são divididas entre materiais e financeiras e entre conflitivas e cooperativas. No tocante à mentalidade coletiva, destaca-se o papel constitutivo de sentimento nacional. E, finalmente, dentre as correntes sentimentais, Renouvin dá ênfase aos movimentos nacionalistas e aos pacifistas. Por trás de uma decisão de ministros ou chefes de Estado registrada em documentos oficiais, existe todo um processo de decisão em que tais fatores, de forma consciente ou não, são considerados. Daí a importância da história nas relações internacionais e da superação dos limites impostos pela história diplomática (SARAIVA, 2007b). Jean-Baptiste Duroselle foi um dos mais importantes discípulos de Renouvin, deu continuidade ao esforço da disciplina, com novas publicações conjuntas, e ainda foi responsável pela difusão da escola francesa para outras partes do continente europeu e para o mundo. Sua maior contribuição veio com a obra, já mencionada, Todo Império perecerá, em que Duroselle enxergou a derrocada da União Soviética ainda no início dos anos de 1980. Dessa forma, Duroselle consolidou a escola francesa como a tradição mais longa da história das relações internacionais. René Girault foi o terceiro expoente da escola francesa, que, junto com seus colegas Jacques Thobie e Robert Frank, produziu três volumes abordando a história das relações internacionais europeias entre o século XIX e XX. No presente, a escola francesa continua produzindo obras que analisam a evolução das relações internacionais de 1945 aos nossos dias (SARAIVA, 2007b). Outra tradição relevante quando analisamos as produções europeias em história das relações internacionais é a contribuição dada pela escola britânica; porém, no Reino Unido, ficou mais conhecida como história internacional e teve como ponto de partida a chegada de Donald Watt na Escola de Londres de Economia e Política em 1954, responsável pela formação de talentos dedicados ao estudo. A Watt reuniram-se, entre 1959 e 1984, os historiadores e teóricos Herbert Butterfield, Martin Wigth, Hedley Bull, Adam Watson, entre outros (SARAIVA, 2007b). Entre os temas abordados pela tradição britânica, destacam-se o estudo do Estado nas relações internacionais, a questão da ordem internacional, as biografias de personalidades consagradas na 15 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS condução da política exterior europeia, as causas das guerras mundiais e seus impactos na sociedade e, ainda, as relações entre Reino Unido e Estados Unidos ao longo do século XX. Mais recentemente, na década de 1980, foi também tema de análise da corrente britânica o processo de integração europeia, com uma perspectiva mais crítica, apontando as fragilidades e os desafios da atual União Europeia. No conjunto da produção acadêmica vinculada à escola britânica, é importante dar atenção especial à obra do diplomata e professor Adam Watson, que publicou, em 1981, Diplomacy: the dialogue between States (Diplomacia: o diálogo entre os Estados) e, em 1984, The expansion of international society (A expansão da sociedade internacional), em coautoria com Hedley Bull. Nessas obras, Watson e Bull desenvolvem uma análise de base histórica para a evolução do sistema internacional e da sociedade internacional, observando sistema e sociedade como conceitos diferenciados. Conforme esclarece Saraiva (2007b, p. 20): [...] Watson discute a distinção entre um “sistema de Estados” e uma “sociedade internacional”. O primeiro, anteriormente discutido por Hedley Bull no seu The anarchycal society (A sociedade anárquica), foca a rede de pressões que levam Estados a considerarem outros Estados em seus cálculos e desígnios. A sociedade internacional vincula o sistema ao conjunto de regras comuns, instituições, padrões de conduta e valores que são compartilhados e acordados por Estados. A tradição britânica, portanto, teve o mérito de aprofundar os estudos de história das relações internacionais a partir de um sistema de conceitos que possibilitam compreender as dinâmicas das relações internacionais para além de um mero sistema de ordenamento entre Estados. A percepção da existência de valores e padrões de conduta relativos à existência de uma sociedade internacional, inicialmente europeia e depois mundial, seria o grande diferencial proposto e abordado historicamente pela escola britânica. Demais estudos de história das relações internacionais produzidos em âmbito europeu, menos volumosos, mas não menos importantes, foram desenvolvidos na Itália e na Suíça a partir da difusão da produção da escola francesa e britânica. Na Itália, o nome mais proeminente na disciplina foi Mario Toscano, com estudos sobre a política exterior italiana ainda nos anos de 1950 e 1960. Atualmente, destacam-se os estudos de Ennio di Nolfo, da Universidade de Florença, Brunello Vigezzi, em Milão, e Fulvio D’Amoja. Na Suíça, destacam-se os estudos elaborados por Antoine Fleury, Daniel Bourgeois, Yves Collart, Marco Durrer, Verdina Grossi, entre outros, que abordam com consistência histórica os temas mais contemporâneos das relações internacionais (SARAIVA, 2007b). Os estudos produzidos na Itália e Suíça apontam a consolidação de uma tradição histórica das relações internacionais nesses países. Entretanto, são ainda consideráveis outrasproduções conduzidas em âmbito europeu, ainda que em menor escala. A Bélgica, por exemplo, por meio de análises produzidas por Michel Dumoulin, J. Willequet e J. Stengers, entre outros, enfatizou a importância dos estudos históricos no contexto das relações internacionais belgas sobre a história diplomática. 16 Unidade I Já na Alemanha, apesar da existência de trabalhos pontuais como o de Leopold von Ranke, não houve o desenvolvimento de uma escola de história das relações internacionais, como observado nos demais países europeus analisados. Observa-se, contudo, uma potencial expectativa de desenvolvimento de estudos alemães na disciplina a partir do esforço de algumas universidades do país, como a Universidade de Saarbrücken, realizados nas últimas décadas. Por fim, cabe mencionar que existem outros estudos pontuais em história das relações internacionais na Espanha, em Portugal, na Suécia e na Rússia, com enfoques próprios. Contudo, a produção e os estudos nesses países ainda são considerados periféricos e insuficientes para conduzir a uma tradição como aquelas observadas na França, no Reino Unido, na Itália e na Suíça (SARAIVA, 2007b). Saiba mais Neste tópico, mencionamos constantemente o autor referência na disciplina José Flávio Sombra Saraiva. Sugerimos, para maior aprofundamento em seus estudos, que leia o capítulo 1 da obra a seguir: SARAIVA, J. F. S. História das relações internacionais: o objeto de estudo e a evolução do conhecimento. In: SARAIVA, J. F. S. (Org.). História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade internacional do século XIX à era da globalização. São Paulo: Saraiva, 2007b. 1.2 Estudos americanos Os estudos de história das relações internacionais na América concentram-se nos Estados Unidos e América do Norte e também no cone sul do continente, abarcando principalmente Argentina e Brasil. Em nosso país, Gonçalves (2007) destaca a contribuição de José Honório Rodrigues, historiador brasileiro que viveu entre 1913 e 1987, como decisiva para a formação de uma corrente de estudo específica no assunto. Nos Estados Unidos, a predominância do desenvolvimento de uma teoria de relações internacionais a partir da área da ciência política dificultou a formação de uma escola de história das relações internacionais norte-americana. A esse respeito, Saraiva (2007b, p. 30) afirma: Não há, assim, uma escola norte-americana de história das relações internacionais no sentido da francesa ou da britânica. O que existe é uma abordagem histórica das relações internacionais vinculada aos problemas postulados pelos cientistas políticos. Ao mesmo tempo, registra-se uma série de teorias e abordagens norte-americanas que seguem os grandes paradigmas de interpretação histórica dominantes em determinados momentos da vida internacional daquele país. 17 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Dizer que não há uma escola norte-americana de história das relações internacionais, mas apenas uma abordagem histórica em determinadas questões vivenciadas pelos Estados Unidos, significa que não houve entre os intelectuais norte-americanos preocupação em trabalhar especificamente a consolidação desse estudo naquele país. No âmbito da história diplomática, é importante mencionar a obra de Samuel Bemis A diplomatic history of Unites States (Uma história diplomática dos Estados Unidos, em tradução livre), publicada em 1936. Em seu livro, Bemis analisou a história diplomática dos Estados Unidos por meio do material produzido por instituições norte-americanas e discorreu sobre o nacionalismo e conservadorismo dos estudos sociais desenvolvidos nos Estados Unidos daquele período (SARAIVA, 2007b). Posteriormente, Thomas Baily e Charles Beard foram os responsáveis por renovarem os estudos em torno da história diplomática dos Estados Unidos. O primeiro discutiu a formulação da política exterior norte-americana por meio da opinião pública e de outros fatores internos, de forma a revisar a obra de Bemis. Por outro lado, Beard analisou concepções divergentes da política exterior dos Estados Unidos, fundamentando-as na industrialização versus a agricultura, ou seja, por meio de elementos econômicos. Entretanto, nos anos que se seguiram à Guerra Fria, o enfoque dos estudos norte-americanos em relações internacionais não foi aprofundado. A preferência dos intelectuais norte-americanos recaiu sobre a preocupação com o expansionismo da União Soviética e a difusão do comunismo pelo mundo. Dessa forma, os Estados Unidos foram o berço de nascimento da teoria realista das relações internacionais, uma das mais aclamadas nos estudos da área. Observação A teoria realista das relações internacionais, de maneira simplificada, é um instrumento de análise da realidade internacional em que predominam a centralidade e autonomia dos Estados, a escolha racional do chefe de Estado, o interesse nacional e a busca pelo poder, de forma a enfrentar os desafios de um sistema internacional em que prevalecem a desconfiança e a ausência de um governo central acima dos Estados. Tendo como foco a participação decisiva dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, seguida por sua posição privilegiada nos anos da Guerra Fria, autores como Walter Lippmann, Hans Morgenthau e George Kennan publicaram trabalhos que consagraram o realismo como teoria predominante na análise das relações internacionais. Entre esses trabalhos, destaca-se a obra de Morgenthau, A política entre as nações, publicada em 1948, no início, portanto, da Guerra Fria. A obra tornou-se um clássico da área, sendo considerada o fundamento da teoria realista. Mais recentemente houve algumas tentativas de retomar os estudos de história das relações internacionais nos Estados Unidos, porém essas produções seguem sendo irregulares. Assim, não podemos afirmar a existência de uma escola norte-americana na disciplina e nos limitamos apenas a 18 Unidade I dizer que existe somente uma aproximação entre historiadores e cientistas políticos em torno do tema recorrente da inserção internacional dos Estados Unidos (SARAIVA, 2007b). Os estudos realizados a partir dos Estados Unidos disseminaram-se na América do Norte, influenciando as produções acadêmicas do México e Canadá. Por outro lado, as produções elaboradas a partir do cone sul americano, apesar da influência norte-americana, adotam uma perspectiva mais independente e, no caso do Brasil, aproximam-se mais da tradição francesa. Ademais, o tema do desenvolvimento é algo que perpassa os trabalhos de acadêmicos de ambos os países. Na opinião de Saraiva (2007b, p. 35), são os países da América do Sul que possuem abordagens sistemáticas e consideráveis da história das relações internacionais: O reconhecimento de ambos os países como protagonistas da moderna análise histórica culminou, na reunião plenária da Comissão de História das Relações Internacionais, em Montreal, em setembro de 1995, na aprovação da inclusão de um segundo nome latino-americano no seu Bureau. Ladeando Amado Luiz Cervo, o historiador argentino Mario Rapoport foi conduzido à condição de 12º membro do órgão. Na Argentina, os estudos realizados em torno da disciplina têm como tema a inserção internacional argentina frente aos desafios contemporâneos. Também se destacam os estudos sobre a história da política exterior da Argentina, entre os quais cabe mencionar as obras de Guillermo Figari, Passado, presente e futuro da política exterior argentina; e José Paradiso, Debates e trajetórias da política exterior argentina, ambas publicadas em 1993. Além disso, na Argentina, foi criada, no início da década de 1990, a Associação Argentina de História das Relações Internacionais, inicialmente presidida por Marco Rapoport (SARAIVA, 2007b). No Brasil, o esforço no sentido de uma produção consistente nos marcos da história das relações internacionais coube a José Honório Rodrigues (1913-1987). Com o lançamento do livro Brasil e África: outro horizonte, em 1961, Rodrigues inauguroua disciplina História das Relações Internacionais no Brasil; até o momento, só havia História Diplomática. A importância dessa obra é assim resumida por Gonçalves (2007, p. 37): A ruptura que a obra de Rodrigues promoveu, superando a História Diplomática pela inauguração da moderna História das Relações Internacionais, deveu-se a essa transparência política e, sobretudo, à maneira como tratou o passado das relações do Brasil com a África. O autor não visita esse passado para descobrir “tudo” o que compunha as relações entre as partes. Nem tampouco sua pesquisa ficou restrita aos documentos oficiais produzidos pela chancelaria. Sua atitude metodológica é outra: interpela o passado. Isto é, procura demonstrar aquilo que de alguma forma já se sabia, mas era negado pelo conhecimento histórico estabelecido. 19 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Em torno da nova perspectiva promovida por Rodrigues e aprofundada pelo contato com a produção francesa e britânica, delineou-se uma tradição brasileira de estudos históricos das relações internacionais a partir da Universidade de Brasília, que inaugurou o primeiro programa de pós-graduação da América do Sul na disciplina, em 1976, dentro do curso de História. Com base no programa, formou-se um grupo de estudiosos de história das relações internacionais, que reúne Amado Luiz Cervo, Sérgio Bath, Paulo Roberto de Almeida, Moniz Bandeira, Corcino Medeiro dos Santos, Clodoaldo Bueno, José Flávio Sombra Saraiva, entre outros (SARAIVA, 2007b). Entre os estudos produzidos pelo chamado grupo de Brasília, destaca-se a preocupação com a inserção internacional do Brasil desde sua independência. A obra de Amado Cervo e Clodoaldo Bueno, História da política exterior do Brasil, lançada em 1992, analisa, com riqueza de detalhes e fontes, o percurso do Brasil nos desafios de inserção internacional desde o Império até os anos mais recentes da República. Também é importante mencionar a obra coletiva O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 aos nossos dias, publicada em 1994 (SARAIVA, 2007b). Há ainda os estudos conduzidos para o entendimento de parcerias essenciais na compreensão das relações internacionais do Brasil. Ainda conforme Saraiva (2007b), merecem destaque os estudos de Moniz Bandeira sobre as relações do Brasil com os Estados Unidos, a Alemanha, a Argentina e a América Latina; de Amado Luiz Cervo, com a Itália; de José Flávio Sombra Saraiva, com a África; e de Francisco M. Doratioto, com o Paraguai. Saiba mais Conheça a obra de Amado Luiz Cervo e Clodoaldo Bueno. É de suma importância para o estudante ler esse clássico para maior aprofundamento nos estudos da história das relações internacionais do Brasil. CERVO, A. L.; BUENO, C. História da política exterior do Brasil. 4. ed. Brasília: UnB, 1992. Ainda é cedo para afirmarmos a existência de uma escola de história das relações internacionais brasileira tal como aquelas existentes na França e no Reino Unido, mas podemos dizer, sem dúvida, que há uma sólida tradição no Brasil a partir do grupo que se formou em Brasília. Entretanto, os esforços conduzidos pelo grupo de Brasília, ainda que consistentes e de longa data, seguem praticamente isolados no país, visto que existem poucos centros de pesquisa fora do círculo brasiliense. Outros estudos vêm sendo desenvolvidos fora do eixo europeu e americano, muito embora ainda sejam rarefeitos. Na Finlândia e na Rússia, há grupos de estudos começando a desenvolver pesquisa em história das relações internacionais. Na Ásia e Oceania, Israel, a Universidade de Tel Aviv reúne alguns estudiosos. Japão e Austrália estão desenvolvendo perspectivas próprias por meio da Universidade de Sophia, da Organização das Nações Unidas (ONU), em Tóquio, e da Universidade de Sidney. Já na Índia, há um grupo de estudiosos na Universidade de Nova Déli inspirados na tradição britânica (SARAIVA, 2007b). 20 Unidade I Por fim, na África, há estudos isolados produzidos nas cidades de Dakar, Pretória, Lagos e Cairo, cujo cerne das análises são a questão da dependência e a inserção internacional dos países do continente africano. Contudo, todos esses locais, com exceção da América e da Europa, ainda não se afirmaram como tradição nos estudos de história das relações internacionais, mas estão igualmente contribuindo para sua ampliação e difusão em todo o mundo. 2 A CONSTRUÇÃO DA “SOCIEDADE INTERNACIONAL EUROPEIA”: DE VESTFÁLIA A VIENA A Europa, no início do século XVII (1601-1700), passava por um processo conflituoso entre o esforço para superação de costumes e instituições medievais e a ascensão de novos valores que posteriormente dariam lugar à sociedade internacional europeia consolidada no Congresso de Viena (1815), já no século XIX. Esse processo, contudo, seria lento e marcado por guerras de escala continental, conflitos religiosos, ascensão e quedas de potências e dinastias, consolidação do Estado-nacional, revolução cultural iniciada no Renascimento, Contrarreforma e tantos outros vaivéns observados durante dois séculos. O século XVII, conforme aponta a historiografia europeia, teve início com a execução na Fogueira, em Roma, de Giordano Bruno, filósofo que anunciou a existência de universo infinito, e a expulsão do astrônomo Kepler pela Universidade de Graz. Em meio ao clima de intolerância, perseguição a cientistas, apreensão de livros, pestes, crise econômica e monetária, ocorreu a Guerra dos Trintas Anos (1618-1648), que intensificou o clima de catástrofe e desespero, além de destruição e mortandade generalizada. A guerra não foi apenas um conflito bélico, mas uma crise geral que marcou o início do período conhecido como uma época de estagnação e decadência (CARNEIRO, 2011). A Guerra dos Trinta Anos teve início por questões religiosas, com a intensificação da rivalidade entre o imperador católico do Sacro Império Romano-Germânico e as cidades-Estados que haviam aderido ao protestantismo no norte do território da atual Alemanha, que se opunham ao seu controle (JESUS, 2010). Porém, a justificativa religiosa do conflito, que opunha rebeldes protestantes e defensores católicos da autoridade religiosa e política do imperador, tornou-se mais difusa durante a guerra, com a entrada da França, país católico, mas que apoiava os protestantes, uma vez que temia a expansão do domínio da família imperial Habsburgo na Europa. Saiba mais Para conhecer com profundidade a política exterior francesa nesse período, leia o livro Testamento político escrito pelo primeiro-ministro francês à época da Guerra dos Trinta Anos, o Cardeal de Richelieu, considerado um dos maiores estadistas da França: CARDEAL DUQUE DE RICHELIEU. Testamento político. Abel, [s.d.]. Disponível em: https://www.portalabel.org.br/images/pdfs/o-testamento- politico.pdf. Acesso em: 30 jul. 2020. 21 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Ao fim da guerra, surgiu não apenas um novo equilíbrio de poder, mas também uma nova regra do jogo das relações internacionais fundamentada na Paz de Vestfália, que encerra a Guerra dos Trinta Anos. Ao estabelecer o Estado como entidade política legítima, o conceito principal de soberania consolidou-se nas liberdades dadas às cidades-Estados alemãs em relação à interferência imperial. Por isso, a Guerra dos Trinta Anos e a assinatura dos Tratados de Vestfália são consideradas o marco da construção da sociedade internacional europeia, uma vez que os interesses dos Estados se sobrepõem aos princípios religiosos medievais da soberania universal do papa, chefe da Igreja católica (CARNEIRO, 2011). Além do princípio da soberania, foi instituído também o princípio da não intervenção. Embora o Sacro Império Romano-Germânico tenha continuado a existir até 1806 e os príncipes das cidades-Estados e principados alemães pudessem fazer alianças fora do Império, de forma a exercerem poder independente, nem os príncipes nem o imperador intervieram para resolver problemas no território de outro príncipe.Ademais, foram oferecidas garantias a novas unidades quanto à adesão ao sistema, desde que tivessem atributos como um governo viável, o controle do próprio território e a habilidade para fazer e honrar tratados. Com a expansão colonial no século XIX e a descolonização afro-asiática do século XX, o sistema de Vestfália adquiriu uma abrangência maior, chegando também a todas as regiões do planeta (JESUS, 2010). 2.1 A Guerra dos Trinta Anos e a Paz de Vestfália O cenário que desencadeou a Guerra dos Trinta Anos circunscreve os conflitos religiosos entre católicos e protestantes nos territórios da Europa central, hoje território da atual Alemanha, Áustria, República Tcheca e Hungria, mas à época integravam o Sacro Império Romano-Germânico, uma estrutura feudal com fronteiras pouco definidas, na qual se sobrepunham suseranias e soberanias em múltiplas entidades políticas. O Sacro Império Romano-Germânico foi formado em 962, com a coroação do imperador Otto pelo papa João XII, e durou até 1806, quando foi dissolvido pela invasão de Napoleão. Sua criação pretendia reivindicar a sucessão de Carlos Magno e do antigo Império Romano do Ocidente, herança direta da civilização romana e cristã, fundamentada na Igreja Católica Romana. O Sacro Império, portanto, representava a unidade temporal dos católicos, enquanto o papado representava sua unidade espiritual (CARNEIRO, 2011). Na estrutura política do Império, a sucessão do imperador não era hereditária, e sim eletiva. Abrangendo mais de mil unidades políticas divididas em cidades-Estados, principados, ducados, bispados e territórios eclesiásticos, o Sacro Império Romano-Germânico abrangia uma vasta região da Europa central, porém apenas sete príncipes eram eleitores do imperador: três desses príncipes eram eclesiásticos, os arcebispos de Colônia, Trèves e Mogúncia, e quatro eram eleitores leigos, o Rei da Boêmia, o duque da Saxônia, o margrave (equivalente ao título de marquês, na Europa ocidental) de Brandemburgo e o conde do Palatinado. 22 Unidade I Figura 1 – Mapa do Sacro Império Romano-Germânico em 962 Esse frágil equilíbrio político do Império começou a se deteriorar após a Reforma promovida por Martinho Lutero em 1519. Lutero rebelou-se contra o imperador e o papa e conseguiu o apoio do poderoso duque da Saxônia, onde a Reforma teve profundo apelo. Seguiu-se uma série de conflitos entre católicos e os seguidores da religião reformada de Lutero, os quais passaram a ser chamados de “protestantes”, que só teve uma trégua com a assinatura de um tratado entre o imperador do Sacro Império, Carlos V, e os protestantes reunidos na Liga de Esmalcalda em 25 de setembro de 1555, na cidade de Augsburgo. 23 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Saiba mais Assista ao filme: LUTERO. Direção: Eric Till. Alemanha: Eikon Film, 2003. 121 min. Com a Paz de Augsburgo, seguiu-se um período de tolerância religiosa. Pelo tratado, ficou estabelecido que cada príncipe ou governante teria liberdade de escolher sua religião, que, por consequência, estenderia-se aos seus súditos, porém permitindo a emigração dos descontentes. Entretanto, com a chegada do imperador Rodolfo II ao trono do Império em 1575, com sólida formação católica, acirraram-se novamente as rivalidades religiosas, que se agravaram com impasse de sucessão no Reino da Boêmia. Os protestantes, reunidos na União Evangélica, defendiam que a coroa da Boêmia deveria ser entregue a Frederico V, eleitor do Palatinado e defensor da religião protestante, enquanto os católicos apoiaram a reivindicação de Fernando II, da casa dos Habsburgos, futuro imperador e católico fervoroso. Educado na Igreja católica e herdeiro da aliança entre os Habsburgos e o papado, Fernando II reprimiu violentamente os protestantes, destruiu templos e impôs o catolicismo como única religião a ser praticada do reino. Revoltados com a atitude de Fernando II, os protestantes acusaram-no de romper com a tolerância religiosa estabelecida pela Paz de Augsburgo e reagiram prontamente no episódio que ficou conhecido como Defenestração de Praga: invadiram o palácio real e atiraram pela janela do segundo andar dois ministros e um secretário do rei. O episódio aconteceu em 23 de maio de 1618, data considerada como o início da longa Guerra dos Trintas Anos. Figura 2 – Defenestração de Praga 24 Unidade I A Guerra dos Trinta Anos foi um conflito que opôs não apenas regiões do Sacro Império Romano-Germânico, que queriam autonomia diante do poder imperial, e outras que sustentavam o Império e o papado; também envolveu diretamente os apoiadores católicos do imperador e da dinastia de Habsburgo, Espanha e Polônia contra uma coligação protestante composta pelos príncipes alemães, Países Baixos, Dinamarca, Suécia e a França católica. Dessa forma, conforme explica Carneiro (2011), o confronto tomou proporções internacionais: O que era uma guerra civil do Império Germânico desdobrou-se no mais agudo conflito da Europa moderna devido à conjunção de diversas disputas: rivalidade franco-espanhola, luta holandesa contra a Espanha pela independência nacional, Reforma e Contrarreforma, que de forma paralela e depois conjugada se somaram para uma deflagração generalizada. Para fins didáticos, esse longo conflito pode ser dividido em cinco fases: a primeira é a fase da Boêmia, de 1618 a 1621; a segunda é a fase do Palatinado; de 1621 a 1624; a terceira é a fase dinamarquesa, de 1625 a 1630; a quarta é a fase sueca, de 1630 a 1634; e a quinta e última fase é a fase francesa, de 1634 a 1648. Em cada uma dessas fases, cada país enfrentou a coalização do Império com a Espanha e os Estados germânicos católicos (CARNEIRO, 2011). Na fase boêmia, o imperador Fernando II, com apoio dos espanhóis, derrotou os protestantes na Batalha da Montanha Branca, e Frederico V, eleitor do Palatinado, foge para Haia, onde se refugia com sua corte. Na fase do Palatinado, ocorreu a ocupação dessa região pelas forças imperiais, e Fernando II acabou com todos os direitos antes gozados pelos protestantes. O Império saiu de tal modo fortalecido que amedrontou outros países protestantes europeus. Assim, na terceira fase, a Dinamarca do rei Christian IV envolveu-se diretamente no conflito em apoio à Boêmia e ao Palatinado, marcando o início da dimensão internacional da guerra. O rei dinamarquês, no entanto, também é derrotado pela coligação do Império com a Espanha, o que fortaleceu ainda mais Fernando II e resultou na promulgação do Edito da Restituição, documento que anulava todos os títulos protestantes sobre as propriedades católicas expropriadas desde a Paz de Augsburgo. A quarta fase da guerra é marcada pela entrada da Suécia, sob o reinado de Gustavo Adolfo, que temia o crescimento do poderio do Império. Apesar de algumas vitórias iniciais e de conquistas territoriais que se estenderam até a Baviera, o rei Gustavo Adolfo foi morto na Batalha de Lützen em 1632, e os suecos foram finalmente derrotados em 1634, na Batalha de Nördlingen. Em 1635, a ocupação sueca da Baviera havia acabado e, no mesmo ano, foi assinada a Paz de Praga, que efetivamente encerrou a participação dos príncipes protestantes na Guerra dos Trinta Anos, deixando a Suécia sozinha em território inimigo. 25 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 3 – A morte do Rei Gustavo Adolfo da Suécia em 1632 Na quinta e última fase, a França declarou guerra aos Habsburgos em 1935. A Paz de Praga alarmou sobremaneira os franceses, que viam o poderio imperial crescendo enquanto estavam cercados por duas monarquias dos Habsburgos, no Sacro Império Romano-Germânico e na Espanha. Portanto, a entrada da França na Guerra dos Trinta Anos, país católico em apoio aos protestantes, nada tinha a ver com questões religiosas, mas sim com o equilíbrio de poder europeu. Conforme esclarece Carneiro (2011, p. 180): A intervenção de uma nação católica no lado protestante da guerra foi uma hábil decisão geopolítica da diplomacia francesa de Luís XIII,por meio de seu chanceler, Richelieu, e após 1643, Luís XIV e Mazarino. A França busca, por meio de negociações separadas com a Suécia, a Bavária e os Países Baixos, obter seus territórios ambicionados, especialmente a Alsácia, e conseguir a derrota da Espanha. O cardeal de Richelieu orientava a política externa francesa de modo a torná-la uma grande potência na Europa em oposição aos domínios da casa dos Habsburgos, e, por isso, a França já estava apoiando indiretamente os esforços de suecos e dinamarqueses na guerra. A intervenção francesa foi decisiva para determinar a vitória dos protestantes e encerrar o conflito que se estendeu até 1648, quando os suecos conseguem tomar o Castelo de Praga na última batalha da Guerra dos Trinta Anos. Nesse mesmo ano, a Espanha, esgotada e passando por rebeliões internas, aceitou a derrota. Os acordos que possibilitaram o término da guerra foram sendo negociados ao longo dos últimos três anos de conflito. As cidades Münster, de precedência católica, e Osnabrück, de precedência protestante, são declaradas zonas neutras para sediar as conferências de paz. As negociações demonstram-se um grande desafio para as potências europeias, visto que era necessária toda uma logística para abrigar, alimentar e manter o correio para todos os negociadores nas duas cidades das mais de cem unidades políticas envolvidas na Guerra dos Trinta Anos (ROMANO, 2012). 26 Unidade I O resultado dessas conferências ficou conhecido como a Paz de Vestfália e reúne um conjunto de 11 tratados. Por meio desses acordos, foi proclamada uma anistia geral, e os vencedores receberam concessões territoriais. A França ganhou a Alsácia, Verdun, Toul e Metz e estabeleceu suas fronteiras na margem oeste do Reno. A Suécia ganhou o controle do mar Báltico e dos estuários dos rios Elba, Oder e Weser, além dos territórios da Pomerânia ocidental. Reconheceu-se ainda a independência da Suíça e das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos (CARNEIRO, 2011). Figura 4 – Mapa da Europa em 1648 No que concerne ao Sacro Império Romano-Germânico, também houve importantes mudanças com a Paz de Vestfália. A Paz de Augsburgo, que institui a liberdade religiosa, é reafirmada não apenas na Boêmia, mas em todo o Império. A Bavária ganhou territórios do Alto Palatinado e o direito de voto no Conselho Imperial dos Eleitores, que escolhia o imperador. Brandemburgo ganhou a Pomerânia oriental e outros territórios, que fundamentam o surgimento da Prússia. E, por fim, os diversos Estados alemães independentes alcançaram o direito de conduzir sua própria política externa, fortalecendo o princípio da soberania. Nesse sentido, o Tratado de Vestfália é considerado o primeiro acordo internacional, uma vez que consagrou o exercício da soberania estatal por meio de garantias de não intervenção entre eles e separação entre as esferas da religião e da política. Vestfália, portanto, representa um esforço para a superação da ordem e do direito medievais, pelos quais cabia ao papa o papel de árbitro dos reis, sendo as funções do Estado secular subordinadas à Igreja (ROMANO, 2012). Nessa visão de mundo, há uma clara hierarquia de comando: o papa concede o poder aos reis para governarem, e estes devem usá-lo conforme as regras ditadas pela Igreja. No Sacro Império 27 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Romano-Germânico, a hierarquia descrita incluía ainda o imperador. Vestfália, contudo, estabeleceu a abolição da hierarquia eclesiástica e imperial, na medida em que impôs a igualdade jurídica entre os Estados e a rejeição da autoridade universal do papa. Isso significa que os Estados soberanos não mais reconhecem qualquer autoridade acima de si mesmos. Em Vestfália, a hierarquia medieval é substituída pela anarquia do equilíbrio de poder e a razão de Estado. Ou seja, antes, as ações e decisões dos príncipes eram subordinadas ao imperador e, por conseguinte, eram regulamentadas pelo papado. Após os acordos de Vestfália, os Estados deixam de se sujeitar a normas morais externas a eles próprios e adotam um sistema de reciprocidade fundamentado no reconhecimento mútuo das múltiplas soberanias e no direito internacional moderno dos pactos e tratados internacionais (CARNEIRO, 2011). Reinos Império Papa Principados França Espanha Suíça Holanda Pactos de Lealdade Hierarquizados Múltiplas Independências Figura 5 – Sistema medieval x sistema moderno de Estados Na ausência de um organismo internacional religioso ou jurídico superior aos Estados e entidades políticas para garantir o pacto e servir de árbitro entre os soberanos, como era o caso anterior da Igreja, a Paz de Vestfália é desenhada a partir de um equilíbrio fundamentado na amizade e vizinhança comum de cada parte. Trata-se, portanto, de uma obrigação social entre as entidades soberanas que se definem, ao mesmo tempo, como juízes e partes, com direitos e obrigações mútuas (ROMANO, 2012). Além disso, podemos observar que os tratados de Vestfália estabeleceram a existência de um sistema fundado em preceitos racionais e seculares. A religião, seja católica ou protestante, continuaria tendo um peso considerável na vida social e política das sociedades da época; no entanto, não seria a fé religiosa que guiaria as escolhas e ações dos Estados no sistema internacional. Estes priorizariam seus próprios interesses baseados essencialmente na geopolítica e no equilíbrio de poder (CARVALHO, 2018). Nesse sentido, Carneiro (2011, p. 185) resume a importância dos 11 tratados firmados em 1648 afirmando que: Toda a política moderna e contemporânea, baseada no reconhecimento da legitimidade dos Estados e na constituição de um conjunto político de nações que se reconhecem como parte de um sistema em que rege um direito internacional, deriva do modelo criado e formalizado a partir da Paz de Vestfália. 28 Unidade I A Paz de Vestfália, portanto, pode ser considerada a formalização do nascimento do sistema europeu de Estados, que posteriormente definiu o modelo das comunidades nacionais no Ocidente. Porém, pesquisas como a de Diego Santos Vieira de Jesus (2010) questionam a profundidade das inovações creditadas aos acordos de Vestfália, além de argumentar no sentido de haver “brechas” nos princípios de autonomia e territorialidade que dificultam a manutenção da estabilidade do sistema. Nas palavras dele: O que Vestfália fez, em certa medida, foi consagrar uma ordem cooperativa legal de entidades autônomas não soberanas, o que indica que a soberania não é o único conceito ou forma possível de interpretar a interação entre atores autônomos. Para Jesus, portanto, a ordem de Vestfália não foi em si uma inovação nas relações entre as comunidades políticas nos termos de soberania, mas apenas formalizou um padrão de relações entre os povos europeus já existentes à época da Guerra dos Trinta Anos. De qualquer forma, importa lembrar que Vestfália tornou-se um marco nos estudos de relações internacionais, uma vez que fundamentou uma cultura política compartilhada própria que determina a atual sociedade internacional. 2.2 O Congresso de Viena e a sociedade internacional europeia A estrutura política arquitetada pela ordem Vestfália, isto é, das “múltiplas independências”, perdurou por um longo tempo, o que possibilitou tanto a realização das estratégias das grandes potências europeias quanto a sobrevivência dos Estados menores. Apesar da persistência de conflitos bélicos, a guerra foi um mecanismo eficiente para manutenção do equilíbrio de poder e, até a ascensão de Napoleão Bonaparte na França, não representou ameaça ao sistema de Estados europeu. Lembrete Equilíbrio de poder é um conceito muito empregado no estudo das relações internacionais, sendo definido por Raymond Aron (2002) da seguinte forma: “a política de equilíbrio se reduz à manobra destinada a impedir que um Estado acumule forças superiores às de seus rivais coligados. Todo Estado, se quiser salvaguardar o equilíbrio, tomará posição contra o Estadoou a coalizão que pareça capaz de manter tal superioridade. Essa é uma regra geral válida para todos os sistemas internacionais”. No período de 1648 a 1789, é possível observar mudanças significativas na geopolítica europeia. A França, sob a monarquia dos Bourbons, tornou-se a principal potência na Europa continental, enquanto o advento do poder hegemônico da Grã-Bretanha nos mares e no comércio internacional superou o poder marítimo holandês. Na Península Ibérica, a Espanha enfrenta um processo de longo declínio que culminou com a guerra de sucessão ao trono espanhol iniciada em 1701 e encerrada em 1714 (MAGNOLI, 2012). 29 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Nesse conflito, a França de Luís XIV, por seu lado, apoiava a pretensão de Felipe d’Anjou, neto de Luís XIV; já a Grande Aliança, formada por Grã-Bretanha, Portugal, Prússia e Holanda, defendia que o trono espanhol fosse assumido por Carlos, do Sacro Império Romano-Germânico. Com a eleição de Carlos como imperador do Sacro Império, a Aliança perdeu força, uma vez que não interessava às potências europeias que Carlos acumulasse as duas coroas. Assim, as negociações de paz tiveram início em 1713 na cidade holandesa de Utrecht e encerraram-se em 1715. Na Paz de Utrecht, a questão de sucessão ao trono espanhol foi solucionada em favor de Felipe d’Anjou, rei Felipe V da Espanha, e, além disso, foram confirmados os princípios de soberania, não intervenção, equilíbrio de poder, a prevalência do direito internacional e a retomada à guerra como último recurso. Como observa Amado Luiz Cervo (2007a, p. 43), entre os séculos XVII e XIX, foram consolidados os valores de uma sociedade internacional europeia conforme estabelecido na Paz de Vestfália: A filosofia política de Vestfália fez avançar a sociedade internacional europeia em termos conceituais: a nova ordem era fruto na negociação, legitimava uma sociedade de Estados soberanos, enaltecia a associação e a aliança, mas não era ingênua a ponto de ignorar a hierarquia e hegemonia entre Estados e a mobilidade da balança de poder. O direito internacional modernizou-se. O jurista holandês Grotius deu aos europeus a convicção de que as relações internacionais haviam migrado para fora da anarquia maquiavélica quando os convenceu de que obedeciam a um conjunto de princípios, valores e regras aceitos e praticados pelos novos Estados-nação. A estrutura pluripolar da ordem de Vestfália deu origem a uma nova configuração geopolítica na Europa que posteriormente abriria caminhos para as guerras napoleônicas. A Grã-Bretanha era a maior potência emergente no período e fundamentou sua ascensão em um poderoso poder naval para garantia de sua segurança no equilíbrio de poder com potências continentais. Na parte oriental, a Rússia também vinha praticando uma política de afirmação como potência emergente, enquanto no Ocidente a Espanha, enfraquecida pelos conflitos em que se envolvera desde o século XVII, declinava definitivamente. Na parte mais central do continente, França e Áustria mantinham seus status enquanto a Prússia almejava converter-se em polo de influência no espaço alemão (MAGNOLI, 2012). No entanto, no final do século XVIII, a eclosão da Revolução Industrial e da Revolução Francesa levaria ao desabamento de toda a estrutura construída na Paz de Vestfália. Com a Revolução Industrial, ocorrida na Inglaterra entre as décadas de 1770 e 1780, o mundo material mudou substancialmente, abrindo espaço para o capitalismo industrial e uma nova classe dirigente, dinâmica, cujos ideais e valores moldariam não apenas a Europa, mas também o mundo a partir da expansão da sociedade europeia na segunda metade do século XIX. Por sua vez, a Revolução Francesa derrubou violentamente todos os resquícios da estrutura política medieval, substituindo a soberania real absolutista pela soberania popular (MONDAINI, 2011). Entre 1792 e 1815, houve guerra ininterrupta em toda a Europa e em alguns locais do mundo, desencadeada pela força do ideário revolucionário francês. A França revolucionária adotou valores 30 Unidade I universais que não eram compatíveis com as monarquias absolutistas na Europa, desencadeando uma rápida reação dos Estados que defendiam os valores tradicionais. A contrarrevolução, no entanto, alimentou o imaginário de Napoleão Bonaparte em torno de um Império Francês e empregou o grande exército revolucionário como instrumento pelo qual a revolução projetou-se no cenário internacional, ameaçando não apenas um Estado ou uma coalizão, mas todo o sistema de Estados europeu (MAGNOLI, 2012). Para melhor compreensão desse contexto, faz-se necessário entender os três momentos ou “eras” em que didaticamente se divide o curso da Revolução Francesa: a era das constituições (1789-1792); a era das antecipações (1792-1794); e a era das consolidações (1794-1815). Na primeira era, observa-se a tentativa de estabelecimento de uma monarquia constitucional, que resultará na elaboração da Constituição de 1791. O objetivo das principais lideranças era reformar o regime absolutista e instituir os direitos civis (MONDAINI, 2011). Na segunda era, ocorreu a radicalização do processo, em que os jacobinos, grupo mais revolucionário, assumiram a liderança e lutaram pela eliminação de todos os resquícios de origem nobre ou burguesa. Foi a fase em que a guilhotina espalhou o terror em todo o território francês. Na última era, a fase política da Revolução teve o objetivo de consolidar as instituições burguesas na França, sendo o Exército, sob liderança de Napoleão Bonaparte, o principal instrumento de pacificação e unificação da nação francesa (MONDAINI, 2011). Sob o comando de Napoleão, a França revolucionária anexou a Bélgica à margem esquerda do Reno, modificou os governos da Suíça e da Holanda, estabeleceu posições na Espanha e em regiões da Itália, enfim, tentou formar um Império continental. Em contrapartida, seis coalizações internacionais foram formadas para enfrentar o Exército Francês, lideradas pela Grã-Bretanha e compostas por Rússia, Áustria, Suécia e Prússia. No seu auge, em 1802, o Império de Napoleão estendia-se por parte considerável da Europa (MAGNOLI, 2012). A partir de 1812, após inumeráveis vitórias, Bonaparte amargou uma imensa derrota na campanha da Rússia, seguida de outra derrota na campanha da França com o cerco de Paris pela sexta coalização. Após a capitulação de Paris em março de 1814, Napoleão renunciou e foi exilado pelos aliados na ilha de Elba. Em 1815, ainda tentou retornar ao trono francês, então ocupado por Luís XVIII, porém foi definitivamente derrotado na Batalha de Waterloo, na Bélgica, pelo general Wellington. Napoleão foi novamente exilado na ilha de Santa Helena, onde terminou seus dias (MONDAINI, 2011). No decorrer desses anos de guerra, o mapa geopolítico da Europa foi redesenhado diversas vezes, e a mudança mais significativa do ponto de vista da geografia política foi a consolidação do Estado-nacional, com fronteiras bem delimitadas e instituições e leis unificadas sob uma só autoridade soberana. Além disso, a comunidade feudal consistia em uma propriedade de algum nobre, herdada pelos seus descendentes, mas agora deixa de ser propriedade da nobreza para ser nacional. O reconhecido historiador inglês Eric Hobsbawm (1974, p. 99) assim descreveu os impactos da Revolução Francesa em termos político-sociais: 31 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS “A Revolução Francesa”, observava De Bonald em 1796, “é um acontecimento único na história”. A frase é enganadora: ela foi um acontecimento universal. Nenhum país estava imune a ela. Os soldados franceses que guerrearam de Andaluzia a Moscou, do Báltico à Síria estenderam a universalidade de sua revolução mais eficazmente do que qualquer outra coisa. E as doutrinas e instituições que levaram consigo, mesmo sob o comando de Napoleão, desde a Espanha até a Ilíria, eram doutrinas universais, como os governos sabiam e como também os próprios povos logo viriama saber. As guerras napoleônicas marcaram o fim das múltiplas independências da Paz de Vestfália, porque não foram apenas guerras interestatais, em que as unidades políticas se reconhecem como legítimas. A França revolucionária de Napoleão Bonaparte tinha pretensões imperiais, ou seja, almejava destruir a ordem internacional vigente para construir uma nova ordem que refletisse seus próprios valores. As guerras travadas por Bonaparte tinham, portanto, características imperiais com o objetivo de eliminação de inimigos e formação de uma unidade superior aos demais. Assim, as negociações de paz deveriam suprimir o agressor que buscava a hegemonia e restaurar a ordem (MAGNOLI, 2012). Nesse sentido, as potências europeias, uma vez derrotado o Império Francês, reuniram-se no Congresso de Viena em 1815 na tentativa de reconstituir a ordem internacional europeia. Porém, decidiram que não mais convinha restabelecer o sistema das múltiplas independências diante da possibilidade de que isso implicasse o perigo de uma nova aventura imperial. Dessa forma, a sociedade internacional europeia evolui para um sistema de colaboração e controle pelas grandes potências (CERVO, 2007a). O Congresso de Viena ocorreu oficialmente entre novembro de 1814 e junho de 1815 com o objetivo de reorganizar a ordem europeia após as guerras napoleônicas. No entanto, havia muitos outros interesses em jogo de cada uma das quatro grandes potências que derrotaram Napoleão Bonaparte: à Grã-Bretanha, interessava a edificação de uma ordem baseada no consenso e estabelecimento de quesitos de segurança que impedissem o surgimento de um Estado hegemônico na Europa; a Prússia almejava manter uma política de influência da região alemã e, para tanto, via a anexação do Reino da Saxônia como condição indispensável; por sua vez, a Rússia exigia a formação de um Estado polonês unificado, porém subordinado às prerrogativas de Moscou, e conflitava com os interesses da Prússia e Áustria; e a Áustria desejava não somente conter a expansão russa em território polonês, mas também tinha pretensões territoriais sobre o leste e sul da Europa. As negociações, como descreve Demétrio Magnoli (2012), desenrolaram-se em diversas fases. A primeira fase, antes da abertura do Congresso, caracteriza-se pela discussão dos procedimentos da negociação, cujo resultado foi a manutenção das discussões territoriais somente entre as quatro grandes potências, excluindo a França restaurada e outros países que participaram das guerras napoleônicas, como Espanha e Suécia. Houve protestos por parte da França, porém, nessa fase, sem resultados. 32 Unidade I Ainda no contexto das preliminares, iniciou-se em outubro de 1814 a segunda fase das negociações, na qual as grandes potências expuseram suas reivindicações territoriais e estudaram os possíveis cenários de compromisso. Nesse momento, ficou clara a dificuldade de estabelecer um equilíbrio geral na Europa sem que fosse resolvida a questão regional entre os Estados alemães. Para a Grã-Bretanha, um eixo de entendimento entre Prússia e Áustria com apoio dos ingleses seria ideal para equilibrar qualquer pretensão hegemônica da Rússia e França. Porém, devido ao fracasso das negociações entre as potências centrais, a França foi convidada a ingressar no núcleo das potências, dando início à terceira fase do Congresso de Viena (MAGNOLI, 2012). Entre dezembro de 1814 e janeiro de 1815, desenrolou-se a terceira fase de negociações e foram os momentos mais tensos do Congresso. A Prússia, recuada pela entrada da França no círculo fechado das potências, impôs suas condições sobre territórios alemães e poloneses sob ameaça do recurso à força caso não fosse atendida. Os ânimos foram contidos após recuo da Rússia em suas pretensões sobre a Polônia, que abriu caminho para um entendimento geral. Na quarta fase, ocorreu o processo de negociação final liderado pela Grã-Bretanha. O texto do tratado possibilitou à Rússia a formação do Estado polonês independente, porém descrito como um patrimônio hereditário da dinastia russa; a Prússia recebeu territórios a leste do Reno e parte do reino da Saxônia, além de outros territórios reivindicados; a Áustria perdeu poder no espaço alemão, mas, em contrapartida, obteve territórios ao sul da Europa; a Grã-Bretanha, em suas pretensões de segurança, conseguiu estabelecer o Reino da Holanda, abrangendo a Bélgica, que funcionaria como barreira às pretensões francesas na região; por fim, a França obteve a formação de uma Confederação dos Estados Alemães, de forma a dificultar a pretensão da Prússia e da Áustria de avançarem sobre a região (MAGNOLI, 2012). O novo desenho do mapa europeu (figura adiante) beneficiou, sobretudo, a Grã-Bretanha, que alcançou todos os objetivos de segurança sem renunciar à prática de não intervir nos assuntos continentais, além de obter o desejado equilíbrio que possibilitou aos ingleses perseguirem sua política de expansão mundial. O isolamento britânico gerou protestos por parte das monarquias centrais, que reuniam Rússia, Áustria e Prússia, quando ocorreram revoltas liberais na Espanha, influenciadas pelos valores da Revolução Francesa. O episódio levou as três monarquias a estabeleceram a Santa Aliança, fundamentada nos valores cristãos e absolutistas, de forma a afastar os ideários franceses. Diversos reis e príncipes aderiram ao documento da Santa Aliança, abalando a opinião liberal europeia. Diante disso, a Grã-Bretanha formulou a Quádrupla Aliança, composta também por França, Espanha e Portugal, com a finalidade de preservar a ordem edificada em Viena. Por esse mecanismo, ocorreriam conferências periódicas para sustentar o Concerto Europeu (MAGNOLI, 2012). 33 HISTÓRIA DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS Figura 6 – A Europa após o Congresso de Viena, 1815 A partir de 1815, as cinco grandes potências europeias (Grã-Bretanha, Áustria, França, Prússia e Rússia) agiam como diretório, realizando intervenções coletivas para manutenção do equilíbrio e da ordem de Viena. O sistema das múltiplas independências e a razão de Estado foram substituídos pela hegemonia coletiva e pelo equilíbrio de poder entre os cinco grandes. Amado Cervo (2007a, p. 47) assim resume o novo contexto das relações internacionais que emergiu do Congresso de Viena: A legitimidade desse sistema internacional, o Concerto Europeu, fundava-se nos benefícios que seus membros supunham derivarem de seu funcionamento: como os extremos – a potência singular independente ou a hegemonia singular absoluta – não podiam impor-se, a prática tornava o sistema legítimo ao erradicar os males dos extremos. O senso realista das concepções e práticas da política internacional do Concerto Europeu do século XIX pretendeu corrigir o sistema de igualdade jurídica dos Estados implementado no século XVII, porque este último revelou-se incapaz de evitar a dominação dos impérios. Foi além, ao indicar que os grandes devem atender a interesses de todos os Estados-membros da sociedade internacional. 34 Unidade I O Concerto Europeu mostrou-se um mecanismo eficiente para manutenção da estabilidade europeia até a ascensão da Alemanha unificada. Por meio desse mecanismo de equilíbrio de poder, foi possível um longo período de paz que durou cerca de cem anos, com apenas conflitos esporádicos que não colocavam em risco o sistema de Estados europeu. Nesse período, a burguesia europeia e a ordem liberal capitalista atingiram seu auge e materializaram a força de expansão da sociedade europeia para todo o globo. 2.3 Expansão da sociedade internacional europeia No decorrer do século XIX, a Europa mergulhou em duas ondas que conformariam o mundo contemporâneo: o nacionalismo e o liberalismo. As reivindicações do liberalismo econômico e democrático e do nacionalismo viriam a ser gradualmente realizadas nas décadas seguintes, resultando em um período no qual consagrou-se a soberania popular, e o mundo tornou-se capitalista (HOBSBAWM, 1974). Na década de 1840, um novo
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