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Capítulo 23 - O cristianismo e a filosofia grega ( Santo Agostinho )

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CAPÍTULO 23: O cristianismo e a filosofia grega na Idade Média.
RENAN MENEGHELLI·QUINTA-FEIRA, 26 DE JULHO DE 2018·6 MINUTOS
Os filósofos medievais aceitaram como um dado adquirido que o cristianismo era a verdade. As questões principais eram outras: temos simplesmente que acreditar na revelação cristã ou podemos também chegar às verdades cristãs com o auxílio da razão? Como era a relação entre os filósofos gregos e as doutrinas da Bíblia? Existia uma contradição entre a Bíblia e a razão, ou a fé e o saber estavam de acordo? Quase toda a filosofia medieval girava em torno desta questão. 
Vamos ver como esta problemática se situa nos filósofos mais importantes da Idade Média e podemos começar com SANTO AGOSTINHO, que viveu entre 354 e 430. Na vida deste homem podemos estudar a passagem da Antiguidade tardia ao início da Idade Média. Santo Agostinho nasceu na vila de Tagaste, no norte de África, mas com dezesseis anos foi estudar para Cartago. Mais tarde, visitou Roma e Milão e passou os últimos anos da sua vida como bispo de Hipona, a trinta ou quarenta quilômetros a oeste de Cartago. Mas ele não foi sempre cristão. Santo Agostinho conheceu muitas correntes filosóficas e religiosas antes de se converter ao cristianismo. 
Durante algum tempo, foi “maniqueu”. Os maniqueus pertenciam a uma seita típica da Antiguidade tardia. Proclamavam uma teoria da salvação em parte religiosa e em parte filosófica. Dividiam o mundo em bem e mal, luz e trevas, espírito e matéria. Através do seu espírito, os homens podiam elevar-se acima do mundo material e deste modo criar a base para a salvação da sua alma. Mas a rigorosa separação entre o bem e o mal não dava descanso a Santo Agostinho. O jovem Agostinho ocupava-se principalmente com aquilo a que costumamos chamar "o problema do mal". Por este problema, devemos entender a questão da origem do mal. 
Durante algum tempo, ele foi influenciado pela filosofia estóica, e os estóicos negavam uma separação clara entre o bem e o mal. Mas acima de tudo, Santo Agostinho foi influenciado por uma outra corrente filosófica importante da Antiguidade tardia - o neoplatonismo, que defendia que tudo o que existia era de natureza divina. 
E por isso, não há uma ruptura dramática com a filosofia grega quando entramos na Idade Média cristã. Boa parte da filosofia grega foi levada para a nova época por padres da Igreja como Santo Agostinho.
Ele achava-se obviamente cem por cento cristão. Mas não via nenhuma contradição profunda entre o cristianismo e a filosofia platônica. Os paralelismos entre a filosofia de Platão e a doutrina cristã pareciam-lhe tão evidentes que se questionava se Platão não poderia ter conhecido pelo menos partes do Antigo Testamento, o que é naturalmente muito duvidoso. Podemos, pelo contrário, afirmar que Santo Agostinho "cristianizou" Platão.
Mostrou que há limites para o alcance da razão em questões religiosas. O cristianismo é também um mistério divino ao qual só podemos chegar através da fé. Mas quando acreditarmos no cristianismo, Deus "iluminará" a nossa alma, e então obteremos uma espécie de saber sobrenatural acerca de Deus. O próprio Santo Agostinho sentira que a filosofia não podia ser ilimitada. A sua alma só encontrou descanso quando ele se tornou cristão. "Agitado está o nosso coração, enquanto não repousa em Ti" escreveu.
Santo Agostinho explica que Deus criou o mundo do nada, e isso é uma idéia bíblica. Os gregos inclinavam-se mais para a idéia de que o mundo existira sempre. Mas, segundo S. Agostinho, antes de Deus ter criado o mundo as "idéias" existiam no pensamento de Deus. Ele atribuiu as idéias eternas a Deus e salvou deste modo a concepção platônica da idéia eterna.
Mas isso também mostra como Santo Agostinho e muitos outros padres da Igreja se esforçaram por conciliar o pensamento grego e o hebraico. De certo modo, eram cidadãos de duas culturas. Na sua concepção do mal, também recorre ao neoplatonismo. Achava, como Plotino, que o mal consistia na "ausência" de Deus. O mal não tem uma existência própria, é algo que não é, porque a Criação de Deus é apenas boa. O mal surge através da desobediência dos homens, segundo Santo Agostinho. Ou, usando as suas próprias palavras: a "boa vontade" é "obra de Deus", a "má vontade" é a "negação da obra de Deus".
Santo Agostinho nega que o homem tenha direito a criticar Deus. Sustenta o que Paulo escreveu na sua "Epístola aos Romanos": "Ó homem, quem és tu para disputares com Deus? Acaso uma obra também diz a quem a fez: porque é que me fizeste assim? Porventura um oleiro não tem poder para fazer da mesma massa um vaso para bom uso e outro para uso vil?".
Para Santo Agostinho, nenhum homem é digno da salvação de Deus. No entanto, Deus escolheu alguns que devem ser salvos da condenação. Para ele, não é pois um segredo quem é que deve ser salvo e quem é que deve ser condenado. Isso está determinado previamente. Logo, nós somos barro nas mãos de Deus. Estamos completamente dependentes da Sua graça.
Santo Agostinho, porém, não retira ao homem a responsabilidade pela sua própria vida. Segundo o seu ponto de vista, nós devemos viver de modo a podermos saber que pertencemos ao número dos eleitos. Não nega que tenhamos livre arbítrio. Só que Deus já "previu" como é que vamos viver. Sócrates acreditava que todos os homens tinham as mesmas possibilidades por partilharem a mesma razão. Mas Santo Agostinho separava os homens em dois grupos. Um dos grupos é salvo, o outro é condenado e com a teologia de Santo Agostinho afastamo-nos do humanismo de Atenas.
A expressão "cidade de Deus" ou "reino de Deus" vem da Bíblia e da mensagem de Jesus. Santo Agostinho acreditava que a história trata do modo como o combate entre a "cidade de Deus" e a "cidade terrena" é conduzido. Estas duas cidades não são Estados políticos distintos um do outro. Lutam pelo poder em cada homem. A cidade de Deus está presente na Igreja e a cidade terrena nos Estados políticos - por exemplo, no Império Romano, que começou a desagregar-se precisamente na época de Santo Agostinho. Esta concepção tornou-se cada vez mais evidente à medida que a Igreja e o Estado lutavam pelo poder durante toda a Idade Média. "Não há salvação fora da Igreja", dizia-se. A cidade de Deus de Santo Agostinho era inclusivamente comparada à Igreja como instituição. Só durante a Reforma, no século XVI, se levantou um protesto contra a idéia de que o homem tinha que percorrer o caminho da Igreja para obter a graça divina.
Também podemos notar que Santo Agostinho foi o primeiro dos nossos filósofos a incluir a história na sua filosofia. A aceitação de um combate entre o bem e o mal não era nada de novo. A novidade em Santo Agostinho é que este combate é disputado na história. Deste ponto de vista, não encontramos nele muito platonismo. Em vez disso, apoia-se firmemente na concepção linear da história que encontramos no Antigo Testamento. É que para Santo Agostinho Deus precisa de toda a história para erigir a sua "cidade de Deus". A história é necessária para instruir os homens e destruir o mal. Em certo passo, Santo Agostinho afirma que a providência divina dirige a história da humanidade desde Adão até ao fim da história, tal como a história de um único homem que se vai desenrolando progressivamente desde a infância até à velhice.

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