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0 INSTITUTUM SAPIENTIAE ORDINIS CANONICORUM REGULARIUM SANCTAE CRUCIS CURSUS PHILOSOFIAE GABRIEL HUDSON SOUZA DE OLIVEIRA A LINGUAGEM EM LUDWIGG WITTGENSTEIN SEMINÁRIO DE FILOSOFIA DA LINGUAGEM PROFESSOR ANTONIO DE CARVALHO ANÁPOLIS – GO 2020 1 INSTITUTUM SAPIENTIAE ORDINIS CANONICORUM REGULARIUM SANCTAE CRUCIS CURSUS PHILOSOFIAE GABRIEL HUDSON SOUZA DE OLIVEIRA A LINGUAGEM EM LUDWIGG WITTGENSTEIN ANÁPOLIS – GO 2020 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 4 2 UMA MENTE EM CHAMAS .............................................................................................. 5 3 A “CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”, E AS DIFERENTES CONCEPÇÕES OSTENSIVAS DA LINGUAGEM. ............................................................ 8 4 FAMÍLIA, A SUBSTITUIÇÃO DA GENERALIDADE POR PARENTALIDADE. .. 11 5 A FILOSOFIA COMO TERAPIA LINGUÍSTICA......................................................... 13 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 16 REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 18 3 “[...] ainda que todas as possíveis perguntas da ciência recebessem uma resposta, os problemas de nossa vida não seriam sequer tocados". Ludwig Wittgenstein. 4 1 INTRODUÇÃO Em uma publicação denominada Retratos de Memória, Bertrand Russel, conta que havia por volta do ano de 1913 entre sua turma de alunos na Universidade de Cambridge, um certo sujeito tão esquisito, que após todo o período letivo, não era possível dizer se se tratava de um homem excêntrico ou de um homem de gênio. Eis que num determinado dia, o aluno se aproxima do professor e lhe faz o seguinte questionamento: o senhor poderia fazer a fineza de me dizer se sou ou não um completo idiota? Russel responde não saber, e pergunta o porquê do questionamento, o aluno então responde: Caso seja um completo idiota, me dedicarei à aeronáutica; caso contrário, tornar-me-ei filosofo. Para se desvencilhar da complicada situação, Russel pede então ao aluno que escreva sobre algum assunto filosófico. Passado algum tempo o aluno retorna com o trabalho, o professor ao ler a primeira linha, agora com convicção afirma: Não, você não deve ser um aeronauta. O aluno era Ludwig Josef Johan Wittgenstein. No intento de explicar a natureza das sentenças, em sua primeira grande obra o Tratactus Logico-Philosophicus ele explana sete proposições centrais que caracterizam, e que assim se pode dizer dado o balizamento claro entre suas ideias, o primeiro Wittgenstein. Após um tempo afastado dos centros acadêmicos, alguns dos interpretes do filosofo, vão dizer que o autor jogou fora a escada que ele mesmo utilizara. Trata-se aqui de um abandono da estrutura logicista de sua primeira obra e pensamento filosófico. O grande marco do segundo Wittgenstein é sua obra Investigações Filosóficas, de publicação póstuma. Não se trata aqui de um abandono por parte do filósofo dos primeiros frutos do seu pensamento, mas há um limite que quando encontrado, é transposto com sinceridade pelo autor. Não se quer mais aqui encontrar uma essência universal à linguagem, mas elucida-la a partir da análise do seu funcionamento. Esta resenha aprofunda-se no pensamento do segundo Wittgenstein, sobretudo em seu livro Investigações Filosóficas, e tem como objetivo elucidar, sem é claro esgotar o tema, alguns pontos centrais do pensamento deste filosofo ao qual é atribuído o movimento causador do giro linguístico. 5 2 UMA MENTE EM CHAMAS Um homem que abriga em si uma mente em chamas, assim o jornalista Luís Antônio Giron descreve Ludwig Wittgenstein em um artigo publicado em 2002, para a Revista Cult. Talvez essa expressão se explique porque, segundo o jornalista “No cérebro de Wittgenstein encontraram-se os dois hemisférios da filosofia no século 19 – positivismo e idealismo” 1. Ludwig Josef Johann Wittgenstein, nasceu em 1889, em Neuwaldegg, situada em uma região de bosques em Viena. Ludwig era o mais novo dos oito filhos do industrial metalúrgico Karl Wittgenstein e de Leopoldine Kamus. Na juventude foi encaminhado pelo pai para estudar engenharia, inscreveu-se na Technische Hochschule de Berlim-Charlottenburg onde estudou durante os anos de 1906 e 1907. Posteriormente entre 1908 e 1911, transferiu-se para a Faculdade de Engenharia de Manchester, de onde, em 1911, a conselho de G. Frege, foi para Cambridge (Trinity College) para estudar os fundamentos da matemática, sob a guia de Betrand Russell2. Em 1914, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, foi voluntário alistado no exército austríaco. Wittgenstein foi preso pelos italianos em 1918 e passou quase um ano no campo de prisioneiros em Cassino. Ganhou a liberdade em agosto de 1919, logo depois se encontrou com Russell na Holanda para discutir o manuscrito do trabalho que seria publicado em 1921 com o título, proposto por G. E. Moore, de Tractatus logico-philosophicus. De 1920 a 1926, ensinou como professor primário em três pequenas localidades da Áustria, característica que Reale e Antiseri ressaltam ao apresentar sua biografia “Professor de escola elementar e grande filosofo” 3. Retornou a Cambridge em 1929, onde lhe foi conferida a láurea em junho. Em 1930 tornou-se professor no Trinity College, iniciando sua atividade de ensino superior, lecionando filosofia analítica. Em 1939, sucedeu a G. E. Moore na cátedra de filosofia. Durante a Segunda Guerra Mundial, por algum tempo trabalhou como carregador de feridos no Guy's Hospital de Londres. Depois, trabalhou num laboratório médico em Newcastle. Deu suas últimas aulas em 1 GIRON, Luís Antônio. Uma mente em chamas. Revista Cult, agosto/2002. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/home/wittgenstein-uma-mente-em- chamas/?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996 >. Acesso em: 22 maio 2020. 2 REALE, Giovanni; ANTÍSERI, Dário. História da filosofia. v.6: de Nietzsche a Escola de Frankfurt 1: tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2006, p. 308. 3 Ibid. 6 1947. Transcorreu o ano de 1948, em solidão, na Irlanda. Em 1949 foi para os Estados Unidos, em visita a seu ex-aluno e amigo Norman Malcolm. Voltando a Cambridge, descobriu que estava com câncer. Morreu em 29 de abril de 1951 na casa de seu médico, o dr. Bevan, que o hospedara4. Somente dois anos depois de sua morte, 1953, seriam publicadas as Investigações Filosóficas, editadas em inglês e alemão pelos herdeiros do espólio literário do autor, Elisabeth Anscombe e Rush Rhees. Assim, o Tractatus e as Investigações compõem o eixo canônico da obra do filósofo: uma acabada em vida e nem por isso menos enigmática na sua construção da lógica como proposição simples entre as balizas da contradição e da tautologia; outra, póstuma, trata dos jogos de linguagem e “editada” pelos herdeiros. Há os neopositivistas, devotados à reflexão sobre lógica, que seguem o velho testamento (Tractatus), o chamado “primeiro Wittgenstein”. Há os que, afeitos à digressão, prefiram o novo (Investigações), mesmo que este tenha sido maquiado pela posteridade imediata; o “segundo Wittgenstein”.5 De fato, a filosofia de Ludwig Wittgenstein é bem balizada quanto seu posicionamento, enquanto o primeiro Wittgenstein, no Tractatus, esforçava-se por desvendar o essencial da linguagem, nas Investigações Filosóficas, o segundo Wittgensteinafirma que essa tentativa está fadada ao fracasso e só geraria dor de cabeça, simplesmente porque não há qualquer forma geral a ser descoberta, mas defende que a linguagem não seria um todo homogêneo, mas, sim, um aglomerado de “linguagens”6. Russell fui duro em suas críticas ao “segundo Wittgenstein”, para Reale e Antiseri: As acusações de Russell caem substancialmente fora do alvo, já que a filosofia analítica preocupa-se com as palavras, precisamente porque a filosofia analítica está atenta para urna relação não enevoada ou ilusória entre as palavras e as coisas, ou melhor, entre as palavras e a vida.7 Sobre esse movimento analítico em que se encontra a filosofia presente nas Investigações Filosóficas, Russell apresente um entendimento de que sua doutrina consiste na sustentação da linguagem da vida cotidiana, com as palavras em seu significado comum, como bastante para a filosofia, que não teria necessidade de termos técnicos ou de mudanças de significado em termos comuns. Já que para Wittgenstein “ a filosofia não deve, de modo algum, 4 Cf. Ibid., p. 309. 5 GIRON, n.p. 6 Cf. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 3ed. Os Pensadores: tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 38. 7 REALE; ANTISERI, p. 299. 7 tocar no uso efetivo da linguagem; em último caso, pode apenas descrevê-lo pois também não pode fundamentá-lo. A filosofia deixa tudo como está.” 8 posição absolutamente inaceitável para Russell. Para ele, a falta de um termo final na linguagem com maior conotação lógica, resultam em uma disciplina desprovida de relevância e de interesse, fadada à discutir ad aeternum tolices discutidas por tolos, divertido, mas nada importante9. O jovem que um dia em casa, engenhosamente criara uma máquina de costura, o que levou seus pais a pensarem que ele seguiria promissora carreira na engenharia, enveredou, graças à opinião de seu professor, pelos estudos filosóficos. Certamente como engenheiro, Wittgenstein não teria ainda hoje, tamanha notoriedade como se vê atualmente graças ao seu grande contributo para a humanidade com seus escritos filosóficos. 8 WITTGENSTEIN, p. 56. 9 Cf. REALE; ANTISERI, p. 299. 8 3 A “CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”, E AS DIFERENTES CONCEPÇÕES OSTENSIVAS DA LINGUAGEM. A linguagem sempre foi um modo de transmitir, se conhecia a essência, a linguagem era a transmissão dessa essência, se se conhecia a ideia pura, a linguagem era a expressão dessas ideias puras. Na historiologia do conhecimento, a linguagem sempre foi o que descreve uma terceira coisa, como algo que se interpunha entre o objeto conhecido e o conhecedor. Nessa tríade a linguagem sempre foi um intermediário que ficava em segundo plano. O que se vê no início das Investigações Filosóficas, é um convite do autor a abandonar o modelo limitador da linguagem, a chamada “concepção agostiniana da linguagem”, que segundo ele não é incorreto, mas não é também universal. Se os adultos nomeassem algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem para ele, eu percebia isso e compreendia que o objeto fora designado pelos sons que eles pronunciavam, pois eles queriam indica-lo. Mas deduzi isso dos seus gestos, a linguagem natural de todos os povos, e da linguagem que, por meio da mimica e dos jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos membros e do som da voz, indica as sensações da alma, quando esta deseja algo, ou se deem, ou recusa ou foge. Assim aprendia pouco a pouco a compreender quais coisas eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente nos seus lugares determinados em frases diferentes. E quando habituara minha boca a esses signos, dava expressão aos meus desejos.10 Assim Wittgenstein inicia sua obra, citando as Confissões de Agostinho (I, 8), seu objeto aqui é partir de um referencial de comparação, uma linguagem até então pautada na referencialidade, que envolveria o uso da linguagem com uma bruma que tornasse impossível ter uma visão clara11. No paradigma anterior, a linguagem comunicava o conhecimento, porém no século XX, em um movimento que tem Wittgenstein como principal expoente, a linguagem torna-se o conhecimento, ela não mais intermedeia algo, mas é constitutiva do conhecimento e, portanto, não limitada. Seu argumento parte da exposição de um diálogo entre dois operários em uma obra, A e B que estão construindo um edifício, eles têm à mão cubos, colunas, lajota e vigas. B as oferece na medida em que A as solicita, para tanto, usam-se de palavras como “cubos”, “colunas”, “lajotas” e “vigas”, quando o operário A grita uma dessas palavras, B traz as pedras 10 WITTGENSTEIN, p. 9; 11 Cf. Ibid., p.11. 9 correspondentes conforme aprendeu12. Segundo o autor, esta interação é correlata ao exemplo oferecido por Santo Agostinho, mas trata-se de uma linguagem totalmente primitiva. Para ele, a linguagem primitiva está limitada a uma associação sistemática em que, ao ensinar a palavra “lajota” exibe-se esta forma ao educando de modo que este aprende a associar a forma ao som, quando este é dito, vem à mente a representação, a isso ele denomina ensino ostensivo. Entretanto, se trataria ainda de uma forma base ao aprendizado, uma preparação ao uso da palavra: Mas se isso efetiva o ensino ostensivo, – devo dizer que efetiva a compreensão da palavra? Não compreende a ordem “lajota! ” aquele que age de acordo com ela? Isto ajudou certamente a produzir o ensino ostensivo; mas na verdade apenas junto com uma lição determinada. Com uma outra lição, o mesmo ensino ostensivo dessas palavras teria efetivado uma compreensão completamente diferente.13 Porém, no contexto da obra, em que estão os operários, não é o objetivo de A quando pronuncia “lajota” fazer com que B traga a mente a imagem de uma lajota, o que aprenderia no ensino ostensivo, mas expressa uma ordem que assim se poderia traduzir: “traga- me uma lajota! ”. O que ele quer aqui demonstrar é que o emprego das palavras não tem sentido estrito em diferentes contextos, isto é, é possível conferir diversos significados a uma palavra na medida em que fazemos diferentes usos linguísticos dela. A essa variação dos processos de linguagem, Wittgenstein nomeia como “jogos de linguagem” – Giovanni Reale afirma já na apresentação de seu livro “História da Filosofia” que coerentemente se diz que “um grande filosofo é pai de uma grande ideia” Platão e o mundo das ideias, Aristóteles e o ser, Kant e o transcendental e Wittgenstein e os “Jogos de linguagem”14 – e dentro deste “sistema” a linguagem primitiva, antes absolutizada por Santo Agostinho, refere-se só a mais um entre muitos outros jogos15. Para Wittgenstein, linguagem não se trata de algo concluído e inalterável, ela está em constante mudança, como uma cidade com ruas novas e velhas e o subúrbio a sua volta 12 Cf. WITTGENSTEIN, p. 10. 13 Ibid., p. 12. 14 Cf. REALE; ANTISERI, p. VI. 15 WITTGENSTEIN, p. 12. 10 crescendo continuamente; para ele, representar uma linguagem significa representar uma forma de vida16 e é muito mais do que se diz: E agora: o grito “lajota! ” no exemplo é uma frase ou uma palavra? [...] – Porque aquele que diz “lajota! ” quer dizer realmente: “traga-me uma lajota! ” – Mas como você faz este querer dizer isso, enquanto diz “lajota! ”? Você pronuncia interiormente a frase inteira? [...] quando grito “lajota! ”, o que quero realmente é que ele deve me trazer uma lajota! – Certamente, mas ‘querer isto’ consiste no fato de que você pensa de alguma forma numa outra frase que não aquela que você pronuncia? –.17 Tais questionamentos levam o filosofo a uma seriede oposições à limitação da linguagem, por exemplo a diferença que há entre a afirmação “cinco lajotas” e o comando “cinco lajotas! ”, e responde, o papel que cada expressão desempenha no jogo de linguagem. Para explicar o processo de denominação, Wittgenstein aponta a crença de que ensinar linguagem consista no fato de nomear as coisas “Como foi dito, – o denominar é algo análogo a pregar uma etiqueta numa coisa. Pode-se chamar isso de preparação para o uso de uma palavra.”18, para ele, concomitantemente a esse processo de aprender a denominar há um aprender a “falar das coisas”, o que enriquece os múltiplos usos que fazemos com nossas frases. No diálogo entre os operários A e B que estão trabalhando na construção, não uma busca por alguma determinação, mas a compreensão de B que, quando A diz “lajota! ”, entende que não se trata de trazer a mente o conceito, buscar uma denominação, mas trazer ao outro operário uma peça de lajota, uma elucidação ostensiva, que configura para o filosofo um jogo de linguagem peculiar. A elucidação, só se dá quando empregamos outras palavras à compreensão. Se se pensa na palavra “dois” ele “só pode ser definido ostensivamente assim: “Este número chama- se ‘dois’. Pois a palavra “número” indica aqui em qual lugar da linguagem, da gramatica, colocamos a palavra.”19. A cadeia de elucidações é infinita, para Wittgenstein é errado afirmar que haja uma elucidação última, seria como dizer que “não há nenhuma última casa nesta rua; pode-se sempre construir mais uma.”20 16 WITTGENSTEIN, p. 15. 17 Ibid., p. 15. 18 Ibid., p. 20. 19 Ibid., p. 21. 20 Ibid. 11 4 FAMÍLIA, A SUBSTITUIÇÃO DA GENERALIDADE POR PARENTALIDADE. Wittgenstein rompe com o pensamento que o precede e ao qual subordinara a sua primeira obra Tractatus logico-philosophicus, logo após expor a ideia dos jogos de linguagem, levanta ele mesmo a seguinte indagação: “Você simplifica tudo! Você fala de todas as espécies de jogos de linguagem possíveis, mas em nenhum momento disso o que é o essencial do jogo de linguagem, e portanto da própria linguagem”21, sua ruptura é justamente com essa busca por uma essência que se possa aplicar de modo universal à linguagem, uma busca pela forma geral da proposição e da linguagem, que ele de modo jocoso afirma ter lhe rendido dores de cabeça conquanto de sua primeira obra22. Para ele, a investigação compreendia a busca pela essência de algo oculto e comum a toda a linguagem, que perpassasse tudo o que recebe um nome, encontrar essa essência seria então a solução de todos os problemas filosóficos, porque colocaria em univocidade todos os diálogos opostos em vista de uma completa filosofia. A responde advém da observação “como disse: não pense, mas veja! ”, tal imperativo chega à conclusão de que não há algo universal comum aos fenômenos da linguagem, mas que eles estão aparentados. Considere, por exemplo, os processos que chamamos de “jogos”. Refiro-me a jogos de tabuleiro, de cartas, de bola, torneios esportivos, etc. O que é comum a todos eles? Não diga: “Algo deve ser comum a eles, senão não se chamariam ‘jogos’”, – mas veja se algo é comum a eles todos. – Pois, se você comtempla, não verá na verdade algo que fosse comum a todos, mas verá semelhanças, parentescos, e até toda uma série deles. Como disse: não pense, mas veja! ”.23 O olhar se deve voltar para as características típicas compartilhadas. A essência como definição de conceito, dá lugar as características de aproximação familiar. Não há um traço único que perpasse toda a linguagem, mas um entrecruzamento de similaridade, portanto, uma definição única seria ilusória e a linguagem estaria limitada pela simples denominação “o denominar não é ainda nenhum lance no jogo de linguagem, – tão pouco quanto o colocar uma figura de xadrez no lugar é um lance no jogo de xadrez. ”24 Para Wittgenstein a linguagem vai 21 WITTGENSTEIN, p. 38. 22 Cf. Ibid. 23 Ibid. 24 Ibid., p. 31. 12 muito além da simples denominação “pode-se dizer: ao se denominar uma coisa, nada está ainda feito. Ela não tem nome, a não ser no jogo. ”25 Indicando uma série de jogos de cartas, de bolas, xadrez, amarelinha, ele encontra a partir da observação semelhanças maiores e menores entre uns e outros. Wittgenstein nomeia essas semelhanças com a expressão “semelhanças de família”, dados os traços físicos que coligam uma família, para ele os jogos formam uma família26, tem entre si especificidades próprias que tornam possível o entendimento entre os “jogadores”. Aluno de Russell, Wittgenstein defendeu de modo não implícito em sua primeira obra o Tratactus a “teoria da abreviação”, que agora, nas Investigações Filosóficas critica. Para ele “o significado de um nome próprio não é uma descrição única que o portador do nome, se ele existe, deve satisfazer de forma exclusiva.”27. Se diferentes pessoas, falasse a seu modo de um mesmo nome, cada uma associaria a ele diferentes descrições, isso geraria um impasse sobre uma descrição final. Essa crítica foi denominada por alguns como uma “teoria dos grupamentos”, pela qual se entende o significado de um nome dentro de um grupamento de descrições que o identificam de modo unívoco e que satisfaçam uma maioria considerável delas. Para o segundo Wittgenstein, a “teoria da abreviação” é substituída pela ideia de “semelhança de família”, os traços que definem um termo constituem uma família de caraterísticas semelhantes28. Glock afirma ainda que Wittgenstein parte da teoria de que o significado de um nome próprio se encontra com a explicitação do seu portador, e alguns nomes possuem significados não etimológicos. Nesses casos, o significado não determina de quem ou de que o nome sucede e dá um exemplo: “Bombeiros a Jato” pode ser o nome da firma mais lenta da cidade29. Tais proposições indicam quão falho pode ser um conceito com pretensão universal. A aplicação dos jogos de linguagem para a análise da linguagem mesma, demonstra que a compreensão dos termos se dá no seu uso. Esse olhar funcional acentua a familiaridade que une conceitos por laços de semelhanças de família. 25 WITTGENSTEIN, p. 31. 26 Cf. Ibid., p. 39. 27 GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 261. 28 Cf. Ibid. 29 Cf. Ibid. 13 5 A FILOSOFIA COMO TERAPIA LINGUÍSTICA Partindo do princípio proposto por Wittgenstein de que a linguagem é um conjunto de jogos de linguagem, o significado de uma palavra se tem a partir do seu uso e tal emprego, para que tenha exatidão, tem imprescindíveis regulamentos públicos, de conhecimento geral. Assim o papel da filosofia é “a análise e clarificação da linguagem e, por consequência, do pensamento (reducionismo filosófico) ”30. A busca pela essência da linguagem oferecia uma compreensão única sobre a mesma e em uma linguagem unificada, os desentendimentos se davam de modo corriqueiro pela ausência de uma visão panorâmica por parte dos litigantes. Para Wittgenstein, isso resulta de uma imagem acerca da linguagem que nos mantinha prisioneiros, povoando a nossa mente de problemas filosóficos. Seguir uma regra é análogo a: seguir uma ordem. Somos treinados para isto e reagimos de um determinado modo. Mas que aconteceria se uma pessoa reagisse de um determinado modo. Mas que aconteceria se uma pessoa reagisse desse modo e uma outra de outro modo a uma ordem e ao treinamento? Quem tem razão?31 Esse questionamento é uma representação dos conflitos que poderiam se dar no encontro entre “linguagens diferentes”, o que nos garante que a ordem que chega a um tenha a mesma significação quando chega a outrem? Wittgenstein aponta o problema “para aquilo que chamamosde ‘linguagem’, falta a regularidade”32, justamente o objetivo dos filósofos que em matéria de estudos de linguagem o precederam, a busca pela essência da mesma. Novamente tratamos aqui do ensino ostensivo que recebem por exemplo, as crianças nos anos primários, que aprendem a associar um termo simples à uma imagem que é mostrada, por exemplo se diz a palavra “cachorro” enquanto se mostra um animal, mas tal conceito aprendido logo se chocará com um mais complexo, como exemplo “aquele cachorro é bravo”, aqui se vê a diferença entre o uso das palavras “cachorro” e “bravo”, pois a limitação do ensino ostensivo é não dizer nada a respeito do objeto quando o apontamos. Tal imagem, fazia prisioneiros os homens. 30 FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Manual Esquemático de história da filosofia. 3ed. São Paulo: 2004, p. 331. 31 WITTGENSTEIN, p. 88. 32 Ibid., p. 89. 14 Para o autor, a solução para esses deslindes se encontra na revisão do que entendemos por linguagem. Desse modo, todo uso dado aos signos pode ser repensado, já que não existe uma forma fixa para eles, como era encontrado na concepção agostiniana, mas uma condição determinada condicional ao uso. Uma fotografia pouco nítida é realmente a imagem de uma pessoa? Sim, pode- se substituir com vantagem uma imagem pouco nítida por uma nítida? Não é a imagem pouco nítida justamente aquele de que, com frequência precisamos?33 O que Wittgenstein quer aqui dizer é que não importa se a imagem é ou não precisa, mas ela pode ser descrita, não de modo definitivo e nem por algum método inequívoco. Essa imagem representa as possibilidades de uso da linguagem, obstante à tentativa de prende-la a definições com melhor nitidez. A busca por uma linguagem mais precisa empobrece-a de suas possibilidades. A terapia por ele proposta consiste em ver mais benefício na pergunta do que propriamente na resposta, pois assim abre-se o campo de visão. Há talvez aqui uma aproximação com a maiêutica socrática, o questionamento sobre o que de fato é sabido. Sua proposta não é uma nova descoberta, mas uma ampla leitura de algo que já se lhe apresentava, no tocante à sua primeira filosofia, mas que só agora afere melhor compreensão: Mas não que devêssemos descobrir com isto novos fatos: é muito mais essencial para nossa investigação não querer aprender com ela nada de novo. Queremos compreender algo que já esteja diante de nossos olhos. Pois parecemos, em algum sentido, não compreender isto.34 Uma busca prospera pelo sentido de algum signo deve considerar seu contexto de emprego. Não havendo, portanto, um uso exclusivo de determinado signo que atribua a um a verdade e a outro o erro. Segundo Wittgenstein, não devemos mais vagar perdidos em meio a linguagem, em busca de uma essência. Quanto mais vago é um conceito, quanto mais panorâmico se abre o seu alcance, maior é seu poder terapêutico quando dos deslindes da linguagem. A operação da linguagem se dá com fulcro nas necessidades humanas, é determinadora no ambiente humano. Assim como o significado de uma palavra, é seu uso na 33 WITTGENSTEIN, p. 40-41. 34 Ibid., p. 49. 15 linguagem, considerando suas circunstâncias, a função da filosofia não é a busca por uma resposta última que contemple a linguagem, mas puramente descritiva. Se em um consultoria de psicanalise, a diagnose é a terapia35 “o filósofo trata uma questão como uma doença”36, a filosofia portanto, deve ajudar-nos a reconhecer o que queríamos dizer, mas não conseguíamos por não encontramos sozinhos o pleno conceito de aplicação, ou o “jogo de linguagem” que com suas regras lhe fosse próprio. Não busqueis o significado, buscai o uso - repetia Wittgenstein em Cambridge. E acrescentava: "0 que vos dou C a morfologia do uso de urna expressão. Demonstro que ela tem usos com os quais jamais havíeis sonhado. Em filosofia, as pessoas sentem-se forçadas a ver um conceito de determinado modo. Pois o que faço é propor ou até inventar outros modos de considera-lo. Sugiro possibilidades nas quais jamais havíeis pensado. Acreditáveis que só existisse urna possibilidade ou, no máximo, duas. Mas eu vos fiz pensar em outras possibilidades. Além disso, mostrei que era absurdo esperar que o conceito se adequasse a possibilidades tão restritas assim. Desse modo, vos libertei de vossa cãibra mental; agora, podeis olhar em volta, no campo do uso da expressão, e descrever seus diversos tipos de uso". Em suma, a filosofia é a terapia das doenças da linguagem. "Qua1 é o teu objetivo em filosofia? Indicar à mosca o caminho de saída de dentro da garrafa" Somente a multiplicidade de possibilidades de uso do conceito, para a qual nos abre a filosofia do segundo Wittgenstein, pode quebrar o encantamento que nos ensinou a obrigatoriedade de associação de signos a imagens, resultando em uma prisão de pensamento limitado. À filosofia não importa resolver os problemas da filosofia, mas dissolve-los, colocando cada qual em seu jogo especifico e suspendendo o juízo unilateral como forma de elucidação e busca pelo entendimento, atingindo assim seu objetivo, conduzindo-nos para fora da garrafa. 35 Cf. Cf. REALE; ANTISERI, p. 314. 36 WITTGENSTEIN, p. 97. 16 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS A influência de Ludwig Wittgenstein na filosofia do século XX é incontestável. Prova disso são suas ideias que serviram de princípio norteador para muitos outros filósofos que o sucederam, como os principais membros do Círculo de Viena, que a partir de uma leitura do Tratactus, que certamente não seria endossada por Wittgenstein, atribuíram a ele a paternidade sobre o “positivismo filosófico”. Embora se diga que a tratativa do autor sobre ética seja breve e obscura, o conjunto de sua obra expressa o lugar singular que isso ocupa em sua vida. Isso porque, Wittgenstein não teve medo de admitir que seu trabalho que antes considerara completo, a partir de novas analises, estava limitado a um pensamento aprisionado. Tal colocação requereria dele uma suspenção de valores pessoais em nome de um mais pleno conhecimento. Suspensão muito bem executada, de modo que hoje se tem com muita clareza a baliza que delimita suas ideias, mais exponencialmente expressa por suas duas grandes obras o Tratactus e as Investigações Filosóficas. Um avanço que não vê como erradas as ideias propostas em sua primeira magnus opus, mas reconhece o pensamento limitado ao qual essas ideias estavam condicionadas. Essa percepção permitiu a Wittgenstein, que certamente, mesmo afastado dos centros acadêmicos onde se reuniam grandes intelectuais da época, continuar se questionando do porquê das coisas, romper com a concepção agostiniana de linguagem que centralizava toda a busca filosófica em uma busca pela essência última da linguagem. Posição antes defendida por ele mesmo, que agora reconhece quão limitadora é esse modo de pensar. A palavra não está limitada a imagem que, quando da pronuncia, nos vem à mente, mas pode evocar diferentes ideias de acordo com o contexto em que está empregada. Não há, portanto, etiquetas para as coisas que as qualifique de modo definitivo. Sua real expressão se dá com o seu uso que considera sua circunstância. Assim os jogos de linguagem satisfazem o questionamento acerca dos diferentes significados de um mesmo termo em grupos diversos. Isso aumenta de modo exponencial as possibilidades da linguagem que pode ser interpretada do ponto de vista de diferentes jogos, submetida a regras especificas. De modo logicísta o primeiro Wittgenstein buscou pela linha que perpassava toda a linguagem de modo unívoco, e com as repostas obtidas, se deu por satisfeito. Tal satisfação não perdurou muito. Porque o segundo Wittgensteinvai revelar quantas dores de cabeça lhe renderam todo o tempo empreendido na busca por uma linha que limitava o seu pensamento. 17 Propõe como solução a teoria da familiaridade, segundo a qual não existe uma relação universal entre todos os termos, mas sim um aparentamento que reúne suas similaridades. A projeção da linguagem que se tem após as ideias do segundo Wittgenstein, vão de encontro a antigos conflitos na discussão filosófica que afirmavam diferentes teorias para semelhantes entes. Como em uma caixa de ferramentas, onde há diferentes instrumentos para diferentes funções, assim são as funções da palavra. O embate é querer usar o martelo para a função da chave de fenda, porque tem-se uma imagem unívoca da ferramenta e não se aceita seu uso para fins diversos. A quem assiste a razão? Se numa determinada cultura o martelo tem o emprego de colocar pregos na parede e em outra, tem a função de remove-los? Romper com a limitação da linguagem, é como leva-la para um consultório terapêutico e permitir que ela se expresse como é e seja ouvida em seu devido contexto. Isto é, não querer aplicar-lhe uma forma fixa, mas reconhecer suas inúmeras variações que se dão nos seus usos. Wittgenstein e sua mente em chamas, continuam ainda hoje a impressionar diversos admiradores, sejam eles admiradores do primeiro ou do segundo. Sua relevância não se limita ao campo da filosofia, porque suas ideias acerca da linguagem condicionaram a humanidade a uma nova liberdade, até então desconhecida. Em fim, ele nos conduziu para fora da garrafa. 18 REFERÊNCIAS FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. Manual Esquemático de história da filosofia. 3ed. São Paulo: LTR Editora, 2004. GIRON, Luís Antônio. Uma mente em chamas. Revista Cult, agosto/2002. Disponível em: < https://revistacult.uol.com.br/home/wittgenstein-uma-mente-em- chamas/?aff_source=56d95533a8284936a374e3a6da3d7996 >. Acesso em: 22 maio 2020. GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 261. REALE, Giovanni; ANTÍSERI, Dário. História da filosofia. v.6: de Nietzsche a Escola de Frankfurt 1: tradução Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2006. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 3ed. Os Pensadores: tradução José Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1984
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