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Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2015 Profa. Dra. Daniela Ripoll ISBN: 978-85-5639-064-6 Dados técnicos do livro Diagramação: Jonatan Souza Revisão: Paula Fernanda Malaszkiewicz Conselho Editorial EAD Andréa de Azevedo Eick Ângela da Rocha Rolla Astomiro Romais Claudiane Ramos Furtado Dóris Gedrat Honor de Almeida Neto Maria Cleidia Klein Oliveira Maria Lizete Schneider Luiz Carlos Specht Filho Vinicius Martins Flores Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero – ULBRA/Canoas R592m Ripoll, Daniela Metodologia de ensino de ciências e biologia / Daniela Ripoll ; organizado por Universidade Luterana do Brasil. – Canoas: Ed. ULBRA, 2015. 223 p. : il. 1. Educação – metodologia de ensino. 2. Ciências - ensino. 3. Biologia – ensino. I. Universidade Luterana do Brasil. II. Título. CDU 372.857 A disciplina “Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia” tem o objetivo de apresentar as principais tendências teórico-metodológicas no ensino de Ciências e Biologia, partindo de uma perspectiva histórica, de modo a instrumentalizar o futuro professor no que diz respeito às abor- dagens dos conteúdos na Escola Básica. Além disso, também objetiva a análise crítica das tendências mais frequentemente utilizadas no Ensino de Ciências e Biologia, enfatizando sobremaneira as abordagens transdiscipli- nares de ensino. Você terá acesso, neste livro, a uma revisão histórica e curricular sobre o ensino de Ciências e Biologia no Brasil (Capítulo 1) e a uma revisão acerca das duas principais vertentes teóricas relacionadas à aprendizagem de Ciências (Capítulo 2). O Capítulo 3 aborda o livro didático de Ciências e Biologia – como é feita a avaliação dos livros hoje, quais os principais problemas ainda verificados e quais os critérios a serem adotados na se- leção do livro na escola. Os Capítulos 4, 5 e 6 mostram a importância da observação, das atividades práticas e da experimentação no ensino de Ciências e Biologia; dos jogos, dos modelos e das modelagens no Ensino de Ciências e Biologia; e, finalmente, as saídas de campo, a realização de projetos (interdisciplinares e de protagonismo) e a utilização de artefatos midiáticos nas salas de aula de Ciências e Biologia como uma forma de alfabetismo crítico. O Capítulo 7 se dedica à abordagem dos Museus e Centros de Ciência e Tecnologia como espaços importantes de pesquisa e aprendizagem. Já os Capítulos 8, 9 e 10 constituem-se em exercícios analíticos sobre o modo como são ensinadas, usualmente, três temáticas caras à Biologia: o corpo, a natureza e a genética articulada à tecnologia. São propostas abordagens transversais de tais temáticas, que levam em consideração as- Apresentação Apresentação v pectos culturais, sociais, históricos, éticos, de gênero, sexualidade, raça etc. Também são mostrados estudos acadêmicos que mostram múltiplos significados – acerca dos corpos de homens e de mulheres, da natureza e do mundo natural, bem como da genética e das biotecnologias –, sendo produzidos no cinema e na mídia de uma maneira mais ampla. Boa leitura! 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma Abordagem Curricular e Histórica ............................................................1 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem e o Ensino de Ciências e Biologia ..............................................25 3 O livro didático de Ciências no Brasil ..................................45 4 Investigações Práticas e Experimentações no Ensino de Ciências e Biologia .............................................................68 5 O Uso de Jogos, Modelos e Modelagens no Ensino de Ciências e Biologia .............................................................90 6 A Utilização dos Saberes Cotidianos no Ensino de Ciências e Biologia ...........................................................112 7 Museus de Ciências e Outros Espaços Pedagógicos ...........132 8 Transversalidades 1: Corpo ...............................................153 9 Transversalidades 2: Natureza e Ambiente ........................173 10 Transversalidades 3: Genéticas, Biotecnologias .................196 Sumário Ensino de Ciências e Biologia: Uma Abordagem Curricular e Histórica1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 1 Daniela Ripoll é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com Doutorado Sanduíche pela University of Plymouth (2004). Atualmente, em nível de Graduação, é professora dos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas (presencial e EAD) e Licenciatura em Pedagogia (EAD) da Uni- versidade Luterana do Brasil. Em nível de Pós-Graduação, é professora permanente e membro da Comissão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Edu- cação da Universidade Luterana do Brasil. É líder do GP Cultura e Educação do CNPq. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Estudos Culturais e Educação em Ciências e Biologia. E-mail: daniela_ripoll@terra.com.br Profa. Dra. Daniela Ripoll1 Capítulo 1 mailto:daniela_ripoll@terra.com.br 2 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Introdução Este livro explora um campo múltiplo e vasto: o das metodolo- gias de ensino de Ciências e Biologia. Mas é impossível come- çar a discorrer sobre tais metodologias sem, antes, considerar como se organizou o campo do Ensino de Ciências no Brasil em termos históricos. No Capítulo 2, Teorias da aprendiza- gem e ensino de Ciências e Biologia, você verá como o Ensino de Ciências se organizou, também, em termos de tendências teórico-epistemológicas – assim, todo esse panorama inicial é importante para que o licenciando tenha em mente que cada método utilizado em sala de aula apresenta uma certa “heran- ça” teórica e histórica, adequando-se (mais ou menos, depen- dendo de cada caso) a determinados objetivos pedagógicos. Do século XIX ao século XXI! Um interessante estudo que serve como ponto de partida é o de Wortmann (1992) sobre o modo como o ensino de Ciên- cias estava organizado no Brasil no final do século XIX. Na- quele período2, é importante considerarmos que o país era 2 Principais revoltas internas do período: Sabinada (Bahia, 1837-1838), Balaiada (Maranhão, 1838-1841), Revolução Farroupilha (Rio Grande do Sul, 1835-1845). Outros eventos históricos importantes: Guerras do Prata (1851-1852), do Uruguai (1864-1865) e do Paraguai (1864-1870). Já no início do século XX, tem-se a 1ª Guerra Mundial (1914-1918) e a Revolução Russa (1917). Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 3 monárquico3 e tinha uma economia escravocrata (até 1888) e baseada na agricultura e na pecuária. Em 1889, há a transi- ção do Império para a República, seguida da modernização e da urbanização das principais cidades, do surgimento de uma “classe média” (homens livres com certo poder econômico), da intensificação da imigração4, da emergência do setor cafeeiro etc. Em um país agrário-exportador, praticava-se na escola o chamado “Ensino pelo aspecto” (WORTMANN, 1992), que buscava ensinar aos alunos “Lições de coisas e noções concre- tas de ciência física e natural5” – isto é, lições diversas sobre os animais, a caça, a pesca, as estações do ano; como deveriam ser tratadosos animais; os usos da água e das rochas; os ali- mentos; as “boas maneiras” à mesa, além de temas relativos à economia de cada região, questões relativas às atividades dominantes de cada Estado, bem como relativamente ao uso do carvão e seus derivados. O excerto a seguir, retirado do Programa de Ensino Público Primário do Rio Grande do Sul 3 Brasil Império: De uma colônia de Portugal, o Brasil se tornou a sede do Império Colonial Português em 1808, quando o então príncipe regente de Portugal (rei D. João VI) fugiu da invasão do território português pelas tropas de Napoleão Bona- parte e estabeleceu como sede de governo a cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde, D. João VI retornou a Portugal, deixando seu filho mais velho, D. Pedro, para gover- nar o Brasil. Em 7 de setembro de 1822, o príncipe regente D. Pedro declarou a in- dependência do Brasil e tornou-se D. Pedro I, o primeiro imperador do Brasil. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_do_Brasil, acesso em março de 2015. 4 Início da imigração alemã no Brasil: 1818; início da imigração italiana: 1875; início da imigração polonesa: 1869. A imigração japonesa teve início em 1908. De início, os imigrantes serviram como mão de obra nas lavouras do Sul e Sudeste do Brasil; mais tarde, concentraram-se na agricultura de pequena propriedade e na formação de laços comerciais e industriais com seus países de origem. 5 Para maiores detalhes, consultar Corsetti (2000), disponível em: www.seer.ufrgs. br/asphe/article/download/30145/pdf - acesso em março de 2015. http://pt.wikipedia.org/wiki/Imp%C3%A9rio_do_Brasil http://www.seer.ufrgs.br/asphe/article/download/30145/pdf http://www.seer.ufrgs.br/asphe/article/download/30145/pdf 4 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia (1883), é um dos exemplos de como era o ensino de Ciências naquele período: ...A casa da escola – Qual a casa em que, ordinariamen- te, funciona a escola? Que nome tem esta casa? Quais as pessoas que nela se reúnem? ...Animais domésticos – Para que serve o cão, o gato, o cavalo, o jumento, o boi, a vaca, etc.? Por que se lhes dá o nome de animais domésticos? Quais as diferenças entre eles e os que vivem nos matos? Quais os que vivem nos matos (os principais)? ...Pássaros – Qual a diferença entre pássaros, cães e gatos, cavalos, etc.? Quais as espécies de pássaros co- nhecidas das crianças? Onde vivem os pássaros? Como fazem seus ninhos? ...A caça e a pesca – O que é um caçador? O que é uma criança? O que é uma linha de pescar, um anzol, etc.? Por que não se deve caçar nem pescar, indiferentemente, em qualquer estação do ano? Como devem ser tratados os animais? Por que se deve ser bons para eles? ...A carne – Quais são os animais cuja carne se come? ...Bebidas – Diferentes tipos de bebidas. Quais os usos da água? Que se deve fazer para que a água seja boa para beber? Como se fabrica o vinho, a cerveja, etc.? ...Alimentos – O que é que se chama alimento? De que matéria se fabrica o pão? Que nome se dá ao móvel em que se guarda a farinha, o pão? O lugar onde se guar- Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 5 da o vinho, aquele em que se preparam os alimentos? Quais são os objetos necessários para a mesa do jantar? De que são feitos os copos, as garrafas, as facas, as co- lheres, etc.? Para que serve cada um destes objetos? Por que se deve tomar alimento? O que se chama gulodice, intemperança? (...) . (WORTMANN, 1992) Pode-se afirmar, assim, que a finalidade principal do ensino no século XIX e início do século XX era a “transmissão cultural” – isto é, transmitir ao aluno (em geral, vindo de classes abas- tadas) o grande patrimônio de conhecimentos construídos pela civilização ocidental. Além disso, outra finalidade do ensino de Ciências era “levar ao aluno, pura e simplesmente, o produto final da atividade científica – o conhecimento pronto e organi- zado, com aura de verdade acabada” (FRACALANZA, 1986). Os conteúdos eram, na verdade, coleções de conceitos e de definições baseados na ciência “clássica” (e estática) do século XIX, organizados segundo a lógica do professor. As metodolo- gias de ensino utilizadas em sala de aula eram eminentemente diretivas, centradas no professor, com base em livros didáti- cos europeus e em relatos de experiências neles contidas. Os professores faziam, em geral, exposições (orais ou visuais) e demonstrações, visando assegurar, fundamentalmente, a me- morização da informação por parte do aluno6. Delizoicov e Angotti (2000) afirmam que o ensino de Ciên- cias só se estabeleceria efetivamente no Brasil, enquanto área do conhecimento, a partir do século XX – mas, para Krasilchik 6 Segundo Wortmann (1992), a aprendizagem de Ciências era “memorística”, en- ciclopédica, privilegiando o cotidiano. 6 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia (1987), pouca coisa muda no ensino de Ciências na escola até o início da década de 1950, sendo predominantemente “teórico, livresco, memorístico, vinculado a questões religiosas e estimulador da passividade – apesar dos ‘ventos de mudan- ça’ advindos da Escola Nova (1932)7”. A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) foi um conflito armado que marcou sobremaneira o século XX, com grandes repercussões (econômicas, industriais, sociais, científicas, éti- cas, etc.) em escala mundial. Envolveu várias nações do mun- do organizadas em duas alianças militares opostas – os Alia- dos (Estados Unidos, União Soviética, Reino Unido e muitos outros países, incluindo o Brasil) e os países do Eixo (basica- mente, Alemanha, Itália, Japão) – e é considerado, ainda hoje, o evento bélico mais letal da História, com mais de 70 milhões de mortos (destes, estima-se o genocídio de 6 milhões de ju- deus e de cerca de 5 milhões de ciganos, eslavos, poloneses, homossexuais e outras minorias étnicas, como resultado das políticas eugênicas nazistas8). A Segunda Grande Guerra dei- xou as principais cidades europeias destruídas (sem contar as cidades asiáticas devastadas) – mas, perversamente, propiciou um intenso desenvolvimento científico, tecnológico, industrial e militar. Estima-se que tenha havido a fabricação de quase 300 7 No cenário educacional, as propostas de “transformação” provinham do Ma- nifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), que propunha o ensino laico, público, gratuito e obrigatório, bem como a adoção de metodologias de ensi- no ativas, que proporcionassem maior liberdade e autonomia ao aluno. Para saber mais, consulte http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_dos_Pioneiros_da_ Educa%C3%A7%C3%A3o_Nova, acesso em março de 2015. 8 Para saber mais sobre a Segunda Guerra Mundial, consulte http://pt.wikipedia. org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial, acesso em março de 2015. http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_dos_Pioneiros_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_Nova http://pt.wikipedia.org/wiki/Manifesto_dos_Pioneiros_da_Educa%C3%A7%C3%A3o_Nova http://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial http://pt.wikipedia.org/wiki/Segunda_Guerra_Mundial Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 7 mil aviões (caças e bombardeiros) e mais de 50 milhões de toneladas de equipamentos navais (submarinos, porta-aviões, sonares, etc.). Houve, ainda, em um curto espaço de tempo, a ampliação da indústria de metais pesados em todo o mundo – só os Estados Unidos, neste período, dobrou o seu parque industrial. Além disso, foi a primeira vez na história a se utilizar a energia nuclear como arma de guerra: os Estados Unidos, em 1945, bombardearam as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, matando instantaneamente cerca de 100 mil pes- soas e causando impactos humanos e ambientais sentidos até os dias de hoje. Figura 1 Foto aérea da explosão da bomba atômica na cidade japonesa de Nagasaki (agosto de 1945) Fonte: http://www.archives.gov/research/military/ww2/photos/images/ww2-163.jpg National Archives image (208-N-43888). Licenciado sob Domínio público, via Wi- kimedia Commons http://www.archives.gov/research/military/ww2/photos/images/ww2-163.jpg8 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, e a der- rota dos países do Eixo, Estados Unidos (EUA) e União Soviética (URSS) ficaram muito fortalecidos e, contraditoriamente, muito rivais. O mundo ocidental experimentou, então, um período de intensa expansão econômica, industrialização e desenvolvimen- to tecnológico e científico (com vários cientistas ocupando po- sições de prestígio na sociedade), mas teve início a chamada “Guerra Fria” entre EUA e URSS – um conflito indireto, de ordem política, militar, tecnológica, econômica, social e ideológica en- tre as duas nações e suas zonas de influência9 –, a “corrida ar- mamentista” (voltada à proteção daqueles países e à construção de armas nucleares) e, também, a “corrida espacial10”. A situação brasileira na década de 1950 é representativa do que ocorreu em outros países ocidentais também profun- damente atingidos pela Guerra: vivia-se, internamente, uma fase de industrialização e de movimentação política resultante da luta contra governos ditatoriais, além de um período de efetiva intervenção do Estado na educação fundamental, pa- ralelamente a uma expansão da rede pública de ensino (KRA- SILCHIK, 1987; DELIZOICOV e ANGOTTI, 2000). Existia, na época, o entendimento de que a inclusão no currículo do que havia de mais moderno na Ciência poderia possibilitar a for- mação de profissionais capazes de contribuir para o desen- 9 Para saber mais: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Fria, acesso em março de 2015. 10 Com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos e URSS capturaram vários engenheiros alemães envolvidos na fabricação de arma- mento pesado. Um desses engenheiros, Wernher von Braun, foi capturado e levado aos Estados Unidos para, anos mais tarde, iniciar o programa espacial estaduni- dense (que culminou na chegada da Apollo 11 na Lua, em 1969). http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_Fria Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 9 volvimento industrial científico e tecnológico11 (KRASILCHIK, 1987). Assim, a finalidade básica do ensino na década de 1950 era formar uma elite que deveria ser mais bem instruída a partir dos primeiros passos de sua escolarização – e o ensi- no de Ciências, no mesmo período, visava à preparação do “futuro cientista”. O grande objetivo dos programas oficiais e dos textos básicos era transmitir informações, apresentando conceitos, fenômenos, descrevendo espécimes e objetos – os chamados “produtos da Ciência”. Não se discutia, nas escolas brasileiras, a relação da Ciência com os contextos econômico, social e político, tampouco os aspectos tecnológicos e as apli- cações práticas: destacava-se, sobretudo, o valor da Ciência como “força propulsora das civilizações” e como possibilita- dora do alcance do bem-estar coletivo (WORTMANN, 1992). No que diz respeito às metodologias de ensino, propunha- -se a substituição do método tradicional expositivo (verbalista, centrado no uso de livros-texto e na palavra do professor, cuja principal função era a transmissão de informações que deve- riam ser memorizadas e repetidas) pelos chamados métodos ativos, dentre os quais tinha preponderância: o método científi- co (o “aprender fazendo”) e o uso do laboratório (no intuito de formatar os estudantes dentro de uma racionalidade derivada da atividade científica); as aulas práticas (que deveriam pro- piciar atividades que motivassem e auxiliassem os alunos na compreensão dos conceitos); e os “projetos de ensino” (com forte influência dos EUA e que se caracterizavam, segundo os autores Delizoicov e Angotti, pela produção de textos, material 11 Krasilchik (1987) salienta que muitos movimentos, nessa época, começaram a ser organizados – em nível internacional, por exemplo, formava-se a chamada primeira geração de projetos curriculares e de sociedades científicas. 10 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia experimental e treinamento de professores), vinculados a uma valorização do conteúdo a ser ensinado. Na década de 1960, apesar do intenso desenvolvimento industrial e da eclosão de movimentos sociais em busca de igualdade de direitos civis (movimentos feminista, negro, LGBT etc.), ocorreu um acirramento da chamada “Guerra Fria”, uma multiplicação de conflitos ao redor do mundo e de movimen- tos de “contracultura” (movimentos ecológico, hippie, punk, grunge, etc.). No Brasil, a década de 1960 está marcada pelo Golpe Militar de 1964, no qual o presidente democraticamen- te eleito, João Goulart, foi deposto pelos militares. O golpe instaurou um período autoritário, nacionalista e conservador que vigorou no Brasil até 1985, caracterizado pela censura dos meios de comunicação; por prisões, interrogatórios, tortu- ra e morte de cidadãos considerados “opositores” do regime militar; e, por fim, por intensa repressão individual e política. No que diz respeito à aprendizagem de Ciências na dé- cada de 1960, pode-se afirmar que ela estava fortemente vinculada ao desenvolvimento industrial do mundo moder- no e à experimentação12. Assim, pode-se dizer que havia 12 Alguns materiais didáticos e propostas curriculares da época davam muito des- taque à experimentação, dizendo que sem ela não haveria o “verdadeiro” ensino de Ciências na escola (isto é, consideravam que a experimentação seria uma caracte- rística definidora do ensino de Ciências). Além disso, algumas propostas curriculares enfatizavam a necessidade de formação de uma “mentalidade científica” para um país em pleno processo de desenvolvimento. Segundo Wortmann (1992; 2001), as Feiras de Ciências, comuns nos anos 1960-1970, tinham a pretensão, justamente, de aprimorar o espírito de equipe e de competição entre os jovens, “buscando des- pertar neles futuras vocações científicas, além de premiar o esforço conjunto de pro- fessores e alunos no trabalho diário, na transmissão e aquisição de cultura científica e manifestar a participação decisiva do colégio na formação dos futuros cientistas”. Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 11 ênfase tecnicista e na “vivência do método científico”: uma valorização da participação do aluno na elaboração de hi- póteses, na identificação e solução de problemas, na análise de variáveis, na planificação de experimentos e na aplicação dos resultados obtidos. Além disso, é importante mencionar que a valorização da tecnologia, o tratamento das questões ecológicas – especialmente, dos conceitos relacionados à compreensão do equilíbrio biológico na natureza – sob o ponto de vista científico e as primeiras discussões envolvendo o uso e a conservação dos chamados (à época) “recursos naturais” eram destaque nas programações curriculares, nos livros didáticos etc. nos anos 1960. E, ao final da década, surgem as primeiras manifestações sistemáticas a favor de levar-se em conta o cotidiano do estudante na aprendizagem escolar – especialmente, em função da adoção das verten- tes comportamentalistas e cognitivistas. Segundo Delizoicov e Angotti (2000), a partir dos anos 1970 é que se verifica o maior investimento de recursos oficiais no ensino de Ciências sob a orientação do modelo militar e do chamado “milagre” econômico brasileiro, considerado, então, “a oitava econo- mia do mundo”. De acordo com Fracalanza (1986), ao final dos anos 60 e início dos 70, ocorreram profundas reestruturações na educação brasileira, com repercussões no ensino de Ciên- cias. Propôs-se um tratamento interdisciplinar ao conteúdo de ciências em todo o desenrolar do primeiro grau13 – e, de acordo com Krasilchik (1987), neste período acontece outra 13 Hoje, Ensino Fundamental. 12 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia modificação radical no que diz respeito ao ensino de Ciên- cias: a adoção de um discurso pedagógico que preconizava o “aprender brincando14”. Isso significou, para o ensino de Ciências e Biologia, uma verdadeira proliferação na utiliza- ção de jogos, modelos, modelagens e simulações,aliados à resolução de problemas propostos pelo professor. Mas, con- traditoriamente, foi também nesse período (década de 1970) que o livro didático15 passou a ser uma peça de importân- cia central, impondo-se o modelo metodológico chamado de “estudo dirigido” – exercícios que dependiam apenas da leitura e da transcrição literal do texto do livro para a resposta do aluno. Tanto o livro didático quanto o “estudo dirigido” são, ainda hoje, os métodos de ensino prevalentes na maio- ria das salas de aula brasileiras. Os anos 1980 foram um período de grande recessão eco- nômica e hiperinflação na maioria dos países em desenvol- vimento, bem como de intensa competição tecnológica. Nos Estados Unidos, Steven Jobs e Steve Wosniak desenvolveram e comercializaram os primeiros computadores pessoais, a sé- rie Apple II – o que possibilitou (juntamente com a abertura 14 Há uma série de críticas feitas ao “aprender brincando”. Um texto muito simples, disponível em http://revistaescola.abril.com.br/formacao/discurso-vazio-466745. shtml?page=1, por exemplo, mostra como essa “verdade pedagógica” – de que as crianças são seres em desenvolvimento e que, portanto, aprendem melhor qualquer conteúdo por meio de brincadeiras e jogos – pode ser um “discurso vazio” na área da Educação. O Capítulo 5 deste livro abordará novamente essa questão. 15 O livro didático de Ciências e Biologia será abordado no Capítulo 3. http://revistaescola.abril.com.br/formacao/discurso-vazio-466745.shtml?page=1 http://revistaescola.abril.com.br/formacao/discurso-vazio-466745.shtml?page=1 Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 13 das telecomunicações e a internet tal como conhecemos16) uma verdadeira revolução nos modos de vida atuais. Mas, no Brasil, a informatização da sociedade caminhava a passos lentos – muito provavelmente, em razão da ditadura militar. A transição política para a democracia só aconteceu em 1985 (Movimento Diretas Já) e, com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição de 1988, foram abertos os caminhos para modificações ainda mais pro- fundas no país. Uma das preocupações do período, dentro da área do En- sino de Ciências, era proporcionar uma maior compreensão (e uma maior utilização) da tecnologia pelos alunos – isto é, acreditava-se que a escola deveria formar “cidadãos-trabalha- dores” (KRASILCHIK, 1987) – e que era necessário um ensino de Ciências para todos de forma a garantir a manutenção de uma sociedade democrática. A finalidade do ensino de Ci- ências, diferente das finalidades dos anos 1950 e 1960, não deveria ser a promoção da elitização – a Ciência não deveria servir como um instrumento de poder à disposição de apenas 16 O surgimento da internet está profundamente relacionado à Guerra Fria. O governo dos Estados Unidos, em plena década de 1960, temia um ataque russo às suas bases militares (e o consequente “vazamento” de informações sigilosas) e, assim, os militares americanos idealizaram um modelo de troca e compartilha- mento de informações que permitisse a descentralização das mesmas (isto é, as informações estariam dispostas em rede, conectadas umas às outras). Ao longo dos anos, de uma rede que unia apenas as bases militares, o sistema “migrou”, por assim dizer, para contemplar também as Universidades americanas e os grandes centros de pesquisa. Mas a internet “aberta”, tal como a conhecemos, surgiu com a invenção do protocolo de transmissão WWW (World Wide Web) pelo britânico Timothy Berners-Lee entre 1989 e 1992. 14 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia alguns poucos privilegiados17. Além disso, o Ensino de Ciên- cias (enquanto área do conhecimento organizada) participava de uma discussão mais ampla acerca do papel da escola em uma sociedade democrática, multicultural e plural. Nesse sen- tido, é importante ressaltar que os currículos nacionais foram estruturados nesse período para que houvesse uma prepara- ção para o trabalho e uma atualização das metodologias de ensino. Segundo Fracalanza (1986), houve uma espécie de “modernização” dos métodos mais tradicionais de ensino18, que incorporou (muito superficialmente) os principais traços das concepções ditas inovadoras (ensino por projetos, utiliza- ção de livros compostos por estudos dirigidos, trechos teóricos, atividades práticas, perguntas de revisão e espaços em branco para as respostas dos alunos, atividades práticas etc.). Além disso, houve a permanência dos jogos, simulações e resolução de problemas, além da ênfase na informática a serviço da edu- cação (KRASILCHIK, 1987). Na pesquisa educacional, a ênfa- se, nas décadas de 1980 e 1990, era o estudo das “concep- ções prévias” ou “concepções alternativas” (as ideias infantis em relação a diferentes fenômenos naturais relacionados com o conhecimento científico), por meio de entrevistas, desenhos etc. Essa metodologia prevê que o professor precisa conhecer as concepções prévias de seus estudantes para, então, pro- 17 Para Krasilchik (1987), a Ciência passou a ser vista como produto do contexto econômico, político, social e de movimentos intrínsecos (isto é, houve uma espécie de perda da aura de neutralidade da Ciência e do conhecimento científico). 18 Krasilchik (1987) afirma que há uma espécie de contestação das metodologias ativas, pretensamente ineficientes, em favor dos métodos que favorecem a aqui- sição de informações (um suposto retorno à Educação Tradicional, ligeiramente modificada e “recheada” com preocupações de cunho social e das liberdades in- dividuais). Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 15 por atividades específicas de modo a promover uma mudan- ça conceitual efetiva. Pode-se verificar, nas escolas brasileiras, apenas “rastros” dessa proposta metodológica nos dias atuais (estamos em 2015), especialmente, em instruções aos profes- sores presentes em livros didáticos, que preveem uma espécie de “conversa introdutória” com os alunos sempre antes do iní- cio do estudo de cada tema ou unidade de um livro. A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação19, pro- mulgada em 1996, foram estabelecidos os Parâmetros Cur- riculares Nacionais – PCN (BRASIL, 1997), que definiram a transversalidade como estratégia de abordagem metodoló- gica (e temas como Ética, Orientação Sexual, Meio Ambiente e Pluralidade Cultural foram eleitos como transversais). Além disso, cabe ressaltar que os PCN reforçam a ênfase no papel do ensino de Ciências na formação da cidadania em um mun- do repleto de desigualdades sociais. Nos últimos 20 anos, o mundo mergulhou em um período de crises de toda ordem: econômica, política, social, energé- tica e, sobretudo, ambiental. Assistimos a guerras pela televi- são20 e, em tempo real, presenciamos atentados terroristas, a emergência de movimentos radicais extremistas e de into- lerância religiosa, cultural e política. A vida cotidiana mudou radicalmente: presenciamos o declínio do trabalho na indústria e o crescimento dos serviços e outros tipos de ocupação, com seus diversos 19 Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. 20 A Guerra do Golfo (1990-1991) foi a primeira a ser transmitida em tempo real, via satélite, por canais americanos de televisão. 16 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia estilos de vida, motivações, ciclos vitais, ritmos, riscos e recompensas; o aumento dos períodos de folga e o re- lativo vazio do chamado ‘lazer’; o declínio das perspec- tivas de ‘carreira’ e dos empregos vitalícios dando lugar ao que tem sido chamado de ‘flexibilidade no empre- go’, mas que, frequentemente, constitui uma questão de desemprego não planejado; as mudanças no tamanho das famílias, nos padrões de diferenças de geração, de responsabilidade e autoridade dos pais; o aumento de famílias uniparentais e a diversificação de arranjos fami- liares; o envelhecimento da população (...); a redução das tradicionais idas à igreja e da autoridade dos pa- drões morais e sociais tradicionais e das sançõessobre as condutas dos jovens; os conflitos de gerações em con- sequência da divergência entre jovens e adultos, entre o declínio da ética puritana, de um lado e o crescimento de uma ética consumista hedonista, de outro. (HALL, 1997, p. 21-22) Os meios de comunicação se transformaram em uma parte crítica da infraestrutura material das sociedades ocidentais mo- dernas e, também, em um dos principais meios de circulação das ideias e imagens vigentes nestas sociedades21, sustentando os circuitos globais de trocas econômicas dos quais depende todo o movimento mundial de informação, conhecimento, ca- pital, investimento, produção de bens, comércio de matéria 21 No Brasil, a internet para usuários domésticos foi liberada em 1995 e, em 1998, houve a privatização da TELEBRAS, o que permitiu a abertura ao acesso público às telecomunicações de modo mais amplo no país (telefonia fixa, telefonia móvel, TV por assinatura etc.). Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 17 prima e marketing de produtos e ideias (HALL, 1997). Dados recentes dão conta de que, no Brasil, mais de 85 milhões de pessoas utilizaram a internet em 2013 pelo celular, tablet ou computador (um crescimento de mais de 50% em cinco anos) (IBGE, 2015). Além disso, há mais de 280 milhões de linhas ativas de telefonia móvel e 103 milhões de aparelhos de TV no país – em um universo de 204 milhões de brasileiros. Na escola, o ensino tradicional centrado no livro didático, no quadro e no giz divide espaço com o cotidiano de uso da internet e suas ferramentas (blogs, sites, redes sociais, ferra- mentas de busca, etc.), bem como com outras metodologias diversas. Esse é, de fato, um ponto importante a ser considera- do: o que presenciamos nos dias de hoje, no ensino de Ciên- cias, é uma miscelânea de técnicas, metodologias e propostas teóricas. Por fim, ressalto também a presença de “rastros” de um campo de estudos – os Estudos Culturais em Educação – na es- cola, em materiais didático-pedagógicos, cursos de formação de professores, etc. Tais estudos propõem, de modo amplo, a análise de práticas que nos são culturalmente ensinadas e, em particular, a desestabilização das metodologias e prá- ticas comumente utilizadas no ensino de Ciências; além disso, os Estudos Culturais assumem a Educação, a Ciência e a Biologia como produções culturais, tramadas em meio a disputas econômicas, históricas e sociais. Eles examinam, den- tre outras coisas, os processos constitutivos das representações de conceitos usualmente identificados como biológicos (cor- po, natureza e saúde, por exemplo) a partir do entendimento de que eles são produzidos pelos discursos que circulam na 18 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia escola e em uma pluralidade de outras instâncias culturais (ci- nema, jornais, revistas, literatura infanto-juvenil, propagandas, museus de ciência, etc.). Exemplos desse modo diferente de entender (e de ensinar) os conteúdos biológicos poderão ser vistos nos Capítulos 8, 9 e 10 deste livro. Recapitulando Este capítulo efetuou uma breve revisão histórica das transfor- mações socioculturais ocorridas entre o final do século XIX e o início do século XXI – e seus impactos no que diz respeito às programações curriculares e ao ensino de Ciências no Bra- sil. Essa revisão histórica pretendeu mostrar a você que cada método utilizado em sala de aula apresenta uma “herança” teórico-histórica, adequando-se a determinados objetivos pe- dagógicos e a determinadas finalidades sociais. Referências BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais – Ciências Naturais. Disponível em: >http://portal.mec.gov.br/seb/ arquivos/pdf/ciencias.pdf>. Acesso em 30 abr. 2015. DELIZOICOV, Demétrio; ANGOTTI, José André. Metodologia do Ensino de Ciências. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2000. FRACALANZA, Hilário et alii. O ensino de Ciências no Pri- meiro Grau. São Paulo: Atual, 1986. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencias.pdf http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/ciencias.pdf Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 19 HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revo- luções culturais do nosso tempo. Educação e Realidade, V.22, n.2, jul./dez. 1997. IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD 2013). Acesso à internet e à televisão e posse de te- lefone móvel celular para uso pessoal. Rio de Janeiro: 2015. Disponível em: <ftp://ftp.ibge.gov.br/Acesso_a_ internet_e_posse_celular/2013/pnad2013_tic.pdf>. Aces- so em 30 abr. 2015. KRASILCHIK, Myriam. O professor e o currículo das Ciên- cias. São Paulo: EPU: Editora da Universidade de São Pau- lo, 1987. WORTMANN, Maria Lúcia Castagna. Currículo e Ciências – as especificidades pedagógicas do ensino de Ciências. In: COSTA, Marisa Vorraber (Org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. WORTMANN, Maria Lúcia Castagna. Os programas de ensi- no de Ciências no Rio Grande do Sul. Educação & Reali- dade, 17 (1), 1992. Atividades 1) A década de 1950, no Brasil, foi marcada pelos processos de industrialização, por movimentos políticos contrários às formas ditatoriais de governo e intervenções do Estado nas instituições de educação do país. O intento do ensino de ftp://ftp.ibge.gov.br/Acesso_a_internet_e_posse_celular/2013/pnad2013_tic.pdf ftp://ftp.ibge.gov.br/Acesso_a_internet_e_posse_celular/2013/pnad2013_tic.pdf 20 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Ciências neste período, pelo programa oficial do Estado, era trazer para a sala de aula métodos semelhante às ati- vidades científicas para que os alunos fossem preparados, desde os primeiros anos da escola, para contribuir para o desenvolvimento industrial e científico do país. Segundo o texto lido, qual metodologia de ensino vigora- va, na maioria das escolas, no período acima descrito? a) Método militar, visando à formação de quadros para ocupar as forças armadas de todo o país. b) Método científico, com uso de laboratórios, aulas prá- ticas, experimentos, projetos de ensino. c) Método tecnicista, com a participação do aluno ela- borando hipóteses, análises de resultados e identifica- ção e solução de problemas. d) Método moderno, com estudos dirigidos adequados ao contexto dos alunos e utilização de atividades lúdi- cas para compreensão dos conteúdos. e) Método construtivista, procurando instigar a curiosida- de e autonomia dos alunos para encontrar respostas e soluções a partir de seus próprios conhecimentos. 2) A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e a Ditadura Mi- litar (1965-1985) foram eventos históricos importantes que reorganizaram o cenário do mundo e modificaram profun- damente questões culturais, sociais, trabalhistas e educa- cionais. Sabendo que os discursos pedagógicos e científicos são derivados de determinados períodos históricos e, tam- Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 21 bém, construídos a partir de certos posicionamentos políti- cos, sociais e culturais, qual sentença a seguir está correta? a) O Ensino de Ciências, assim como a própria Ciência, historicamente, sempre trabalharam com neutralidade e imparcialidade, buscando, acima de tudo, o bem estar social da coletividade. b) O Ensino de Ciências, apesar de ter passado por di- versas reformulações curriculares, sempre objetivou abolir e transformar os conhecimentos de senso co- mum das crianças. c) O Ensino de Ciências é um produto de seu contexto histórico e social – e, nesse sentido, as mudanças cur- riculares e os métodos de ensino também estão sujei- tos aos discursos de cada época. d) O Ensino de Ciências não tem ligação com os acon- tecimentos mais marcantes do mundo e do Brasil, pois seus conteúdos são derivados diretamente do mundo natural e do trabalho de pesquisa dos cientistas. e) O Ensino de Ciências possui um currículo universaliza- do – isto é, os conteúdos programáticos dos currículos são os mesmos em todas as escolas do mundo, pois foram estabelecidos por meio de um acordointerna- cional. 22 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia 3) Entre 1980 e 1990, houve a expansão das telecomunica- ções no Brasil. Com o surgimento dos computadores de uso pessoal, teve início um processo de informatização que, rapidamente, interligaria o mundo pela Rede Mundial de Computadores. O Ensino de Ciências nas escolas, respon- dendo aos imperativos de modernização de vários setores da sociedade, passou a se preocupar em proporcionar a to- dos os alunos uma compreensão mais efetiva (e a utilização mais eficiente) das novas tecnologias, relacionando-as com os conteúdos curriculares. Os currículos nacionais desse período foram reestruturados com a pretensão de: a) Promover a elitização, gerando privilégios para as classes mais altas. b) Responsabilizar o aluno por sua própria aprendiza- gem, gerando sua autonomia. c) Promover e reforçar os valores de uma sociedade de- mocrática. d) Através do uso de tecnologias da informática, trazer um modelo metodológico centrado na utilização de computadores nas salas de aula. e) Fazer um resgate das metodologias mais tradicionais de ensino que foram deixadas de lado, como uso pre- dominante livros, cadernos e aula expositiva. 4) Sobre o chamado “Ensino Tradicional”, são feitas as seguin- tes afirmações: Capítulo 1 Ensino de Ciências e Biologia: Uma... 23 I – Consiste na transmissão dos conhecimentos produzidos e acumulados pela civilização ocidental; II – É eminentemente diretivo, centrado no professor, com base em livros didáticos e em relatos de experiências neles contidas. III – Os professores fazem exposições (orais ou visuais) e demonstrações, visando assegurar, fundamentalmente, a memorização da informação por parte do aluno. Estão corretas: a) Apenas a I. b) Apenas a II. c) Apenas a III. d) Apenas I e II. e) Todas as alternativas. 5) São feitas as seguintes afirmações sobre os Estudos Cultu- rais em Educação: I – São estudos que propõem a análise de práticas que nos são culturalmente ensinadas. II – Propõem a problematização dos conteúdos, das meto- dologias de ensino e das práticas comumente utilizadas pelos professores nas salas de aula. III – Assumem a existência de uma verdade absoluta e ob- jetiva, dotada de uma essência oculta a ser revelada pela Ciência. 24 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Estão corretas: a) Apenas a I. b) Apenas a II. c) Apenas a III. d) Apenas I e II. e) Todas as alternativas. Gabarito 1) b 2) c 3) c 4) e 5) d Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem e o Ensino de Ciências e Biologia1 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 1 Daniela Ripoll é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com Doutorado Sanduíche pela University of Plymouth (2004). Atualmente, em nível de Graduação, é professora dos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas (presencial e EAD) e Licenciatura em Pedagogia (EAD) da Uni- versidade Luterana do Brasil. Em nível de Pós-Graduação, é professora permanente e membro da Comissão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Edu- cação da Universidade Luterana do Brasil. É líder do GP Cultura e Educação do CNPq. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Estudos Culturais e Educação em Ciências e Biologia. E-mail: daniela_ripoll@terra.com.br Profa. Dra. Daniela Ripoll1 Capítulo 2 mailto:daniela_ripoll@terra.com.br 26 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Introdução Rabello e Passos (2015, p. 2) mostram a existência de, pelo menos, cinco perspectivas teóricas – todas relacionadas à área da Psicologia do Desenvolvimento – que buscam explicar o de- senvolvimento e a aprendizagem dos seres humanos (ou seja, como nos tornamos aquilo que somos): Â Para os teóricos Ambientalistas e Comportamentalis- tas, entre eles Watson e Skinner (do movimento Beha- viorista), as crianças nascem como tábulas rasas, apren- dendo tudo do ambiente por processos de imitação ou reforço. Â Para os teóricos Inatistas, como Chomsky, as crianças já nascem com tudo que precisam na sua estrutura bio- lógica para se desenvolver. Nada é aprendido no am- biente e, sim, apenas “disparado” por este2. Â Para os teóricos Construcionistas ou, ainda, Constru- tivistas, tendo como ícone Piaget, o desenvolvimento é construído a partir de uma interação entre o desenvolvi- mento biológico e as aquisições da criança com o meio. Â Para a abordagem Sociointeracionista, de Vygotsky, o desenvolvimento humano se dá em relação nas trocas entre parceiros sociais, por meio de processos de intera- ção e mediação. 2 Tal perspectiva não será abordada neste capítulo. Para saber mais sobre Noel Chomsky, acesse http://www.chomsky.info/ (site eminentemente em inglês, mas com alguns artigos em espanhol). http://www.chomsky.info/ Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 27 Â Na perspectiva Psicanalítica, com Freud, Lacan e Klein, há o entendimento de que o desenvolvimento humano se dá a partir de motivações conscientes e inconscientes da criança, focando seus conflitos internos durante a in- fância e pelo resto do ciclo vital3. Há, pelo menos, dois aspectos comuns a todas essas hipó- teses explicativas: a ideia de que o meio (social, familiar) e a cultura (enquanto um conjunto de práticas e interações e, tam- bém, enquanto uma rede de significados sociais partilhados) desempenham papéis fundamentais no que diz respeito ao de- senvolvimento e à aprendizagem. Rabello e Passos (2015, p. 3) afirmam que, embora ainda haja discordâncias teóricas entre as abor- dagens (...) sobre o grau de influência da maturação biológica e da aprendizagem com o meio no desenvolvi- mento, o contexto cultural é o palco das principais trans- formações (...) do bebê humano ao idoso. Pela interação social, aprendemos e nos desenvolvemos, criamos novas formas de agir no mundo, ampliando nossas ferramen- tas de atuação neste contexto cultural complexo que nos recebeu. É importante que o licenciando em Ciências Biológicas entenda, desde já, que todas as perspectivas teóricas aqui apresentadas possuem potencialidades e limitações expli- cativas – e que, a partir delas, vários métodos de trabalho 3 Tal perspectiva não será abordada neste capítulo. Para saber mais sobre Freud e Lacan, acesse http://www.comciencia.br/reportagens/psicanalise/psique09.htm (site da revista ComCiência da UNICAMP). http://www.comciencia.br/reportagens/psicanalise/psique09.htm 28 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia e metodologias de ensino-aprendizagem foram desenvol- vidos. Tais metodologias, métodos e concepções, descontex- tualizados de suas bases fundantes, convivem juntos, contem- poraneamente, nos documentos oficiais da área do Ensino de Ciências e Biologia, nos livros didáticos, nos exercícios e ativi- dades propostas por nós etc., compondo uma espécie de “col- cha de retalhos” acerca do modo como as crianças e adultos aprendem. Gostaria de ilustrar o que estou dizendo com alguns exem- plos: quando ouvimos alguns especialistas falarem que as crianças pequenas são como “esponjas” (absorvendo tudo: informações, impressões sobre o mundo, conceitos científi- cos, etc.) e vemos outros especialistas dizendo que é mais fácil aprender um segundo idioma quando se é pequeno, estamos diante de um entendimento eminentemente comportamen- talista ou behaviorista – uma vertente psicológica que de- fende que a criança é um adulto em miniatura, que precisa ser preenchido com experiências e informações para tornar- -se um adulto “completo”. A utilização de grandes sequências de exercícios repetitivos (presentes em muitos livros didáticos ainda hoje) e, por vezes, a adoção de premiações em sala de aula (para alunos ou grupos que se destacariam em alguma tarefa) também se baseia em uma concepção comportamen- talista, que entende que é através da imitação e do reforço positivodas ações que os seres humanos aprendem. Além disso, é importante reforçar que as vertentes educa- cionais ditas tecnicistas – introduzidas no Brasil no final da década de 1960, no decorrer do regime militar – também es- tavam baseadas em concepções oriundas da psicologia com- Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 29 portamental (com a utilização de práticas tais como: instrução programada; ensino por módulos e ensino auto instrutivo com ênfase na avaliação4; aplicação de testes para indicar mudan- ças de comportamento ao longo dos estudos etc.). Naquele período, havia grande ênfase nos planejamentos de ensino; nos conhecimentos e ações que deveriam vir antes ou depois uns dos outros; em uma suposta sequência de “passos” a se- rem percorridos pelo estudante no processo de aprendizagem; e na elaboração de materiais escritos (planos de unidades, guias de laboratório e protocolos de aulas práticas, livros-tex- tos, manuais de metodologia, etc.). Para esse vertente, não haveria nada que a criança não pudesse aprender – tudo de- penderia da forma como ela é ensinada. Como a área do Ensino de Ciências se configura no Brasil? A área da Educação no Brasil (de modo geral) e o Ensino de Ciências (em particular) apresentam bases firmemente assen- tadas em dois referenciais teóricos cognitivistas – o piagetiano5 e o vygotskyano6 –, que têm em comum o fato de entenderem que a criança é um ser com características especiais, não só fisiológicas, mas também psicológicas e intelectuais, que evoluem no decorrer dos anos, passando por es- 4 O chamado “estudo dirigido”. 5 Relativo à obra do suíço Jean William Fritz Piaget (1896 - 1980). 6 Relativo à obra do bielo-russo Lev Semenovitch Vygotsky (1896-1934). 30 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia tágios [ou zonas] de desenvolvimento qualitativamente diferentes. (KRASILCHIK, 1987) É possível encontrar “rastros” dessas duas teorizações em do- cumentos oficiais – por exemplo, as Diretrizes Curriculares Na- cionais (BRASIL, 2013) admitem tanto a existência de estágios/ fases de desenvolvimento relacionadas ao desenvolvimento cerebral e a progressiva descentração do eu (Piaget) quanto enfatizam o processo histórico-social, o papel da linguagem no desenvolvimento do indivíduo e a aquisição de conheci- mentos pela interação do sujeito consigo mesmo e com o meio (processo chamado de mediação por Vygotsky): Os alunos do Ensino Fundamental regular são crianças e adolescentes de faixas etárias cujo desenvolvimento está marcado por interesses próprios, relacionado aos seus aspectos físico, emocional, social e cognitivo, em constante interação. Como sujeitos históricos que são, as características de desenvolvimento dos alunos estão muito relacionadas com seus modos próprios de vida e suas múltiplas experiências culturais e sociais, de sorte que mais adequado seria falar de infâncias e adolescên- cias no plural. Nos anos iniciais do Ensino Fundamental, a criança desenvolve a capacidade de representação, indispensável para a aprendizagem da leitura, dos con- ceitos matemáticos básicos e para a compreensão da realidade que a cerca, conhecimentos que se postulam para esse período da escolarização. O desenvolvimento da linguagem permite a ela reconstruir pela memória as suas ações e descrevê-las, bem como planejá-las, habi- lidades também necessárias às aprendizagens previstas Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 31 para esse estágio. A aquisição da leitura e da escrita na escola, fortemente relacionada aos usos sociais da escri- ta nos ambientes familiares de onde veem as crianças, pode demandar tempos e esforços diferenciados entre os alunos da mesma faixa etária. A criança nessa fase tem maior interação nos espaços públicos, entre os quais se destaca a escola. Esse é, pois, um período em que se deve intensificar a aprendizagem das normas da conduta social, com ênfase no desenvolvimento de habilidades que facilitem os processos de ensino e de aprendizagem. Mas é também durante a etapa da escolarização obri- gatória que os alunos entram na puberdade e se tornam adolescentes. Eles passam por grandes transformações biológicas, psicológicas, sociais e emocionais. Os ado- lescentes, nesse período da vida, modificam as relações sociais e os laços afetivos, intensificando suas relações com os pares de idade e as aprendizagens referentes à sexualidade e às relações de gênero, acelerando o pro- cesso de ruptura com a infância na tentativa de construir valores próprios. Ampliam-se as suas possibilidades in- telectuais, o que resulta na capacidade de realização de raciocínios mais abstratos. Os alunos se tornam crescen- temente capazes de ver as coisas a partir do ponto de vis- ta dos outros, superando, dessa maneira, o egocentrismo próprio da infância. Essa capacidade de descentração é importante na construção da autonomia e na aquisição de valores morais e éticos. (BRASIL, 2013) A criança, nesse excerto, não é um adulto em miniatura – é um sujeito plural e em desenvolvimento em várias esferas (física, emocional, sociocultural, psicológica e cognitiva); além 32 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia disso, não há qualquer tipo de crença inabalável no poder dos métodos e das metodologias no que diz respeito ao ensino- -aprendizagem: elas são, antes de mais nada, “facilitadoras” da interação entre os jovens e o mundo natural. Jean Piaget, os estágios de desenvolvimento e a perspectiva maturacionista Filho de um professor de língua e literatura medievais e de uma das primeiras socialistas suíças, Piaget (Figura 1) viveu a infância e a adolescência na cidade suíça de Neuchâtel. Bas- tante precoce, aos 11 anos se tornou auxiliar de Paul Godet, especialista em Malacologia e diretor do Museu de História Natural da cidade. Aos 14 anos, Piaget ingressou no “Clube dos Amigos da Natureza” de Neuchâtel e, com 15 anos, es- creveu os primeiros artigos científicos sobre moluscos da re- gião. No período da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), Piaget ingressou na Faculdade de Ciências da Universidade de Neuchâtel e obteve o bacharelado em Ciências Naturais. Depois, ele buscou formação em Psicologia em Zurique, tendo trabalhado com Eugène Bleuler (Psiquiatra conhecido por seus trabalhos na área da Esquizofrenia) e Carl Gustav Jung. Na Sorbonne, em Paris, Piaget começa a investigar o pensamen- to e a lógica peculiar de raciocínio infantil. Suas obras publi- cadas – A linguagem e o pensamento na criança (1923); O raciocínio da criança (1924); A representação do mundo na criança (1926); A causalidade física na criança (1927); e O jul- gamento moral na criança (1931) – apresentam uma metodo- Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 33 logia de pesquisa distinta da utilizada comumente (o chamado método clínico que, no lugar de grandes amostragens po- pulacionais, privilegiava entrevistas e testes com crianças ob- servadas individualmente). Além disso, suas obras consideram que a aprendizagem é um processo ativo em que as estruturas cognitivas resultam da interação dinâmica entre o organismo (a maturação interna de suas estruturas mentais) e o ambiente por meio de processos denominados equilibração, desequili- bração e reequilibração7. A perspectiva piagetiana é conside- rada maturacionista, no sentido de que ela atribui ao desen- volvimento das funções biológicas a base para os avanços na aprendizagem (RABELLO; PASSOS, 2015). Assim, o que não é aprendido em uma aula é porque envolveria operações men- tais complexas demais – operações essas que o cérebro do sujeito infantil ainda não estaria preparado para desenvolver. Isso significa dizer que não é possível ensinar qualquer coisa à criança, pois o aprender dependeria do nível de desenvolvi- mento psicogenético de sua inteligência. Piaget identificou quatro estágios de desenvolvimento – isto é, quatro estágios de maturação das funções biológicas: 7 Ao explicaro mecanismo de construção do conhecimento pelos indivíduos, Piaget propõe esses três conceitos (equilibração, desequilibração e reequilibração). O im- portante dessa teorização é o entendimento que qualquer novo conhecimento tem origem em um conhecimento anterior. Esse aspecto é um princípio geral de todas as teorias construtivistas e revolucionou o planejamento do ensino, uma vez que não é possível iniciar nenhuma aula, nenhum novo tópico, sem procurar saber o que os alunos já conhecem ou como eles entendem as propostas a serem realizadas (CARVALHO, 2013). 34 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia 1) Sensório-motor – desde o nascimento até cerca de dois anos8. Período não verbal caracterizado por atos reflexos, exploração com os sentidos, imitação e permanência dos objetos, o que significa que a criança esquece do objeto quando este é removido de sua presença (KRASILCHIK, 2008). A criança conhece o mundo através dos sentidos e das habilidades motoras e, no final do período, emprega representações mentais (ALVAREZ; LEMOS, 2006). 2) Pré-operatório – dos 3 anos até cerca de 7-8 anos. A criança é egocêntrica – isto é, relaciona-se apenas por meio de sua perspectiva individual – e, nessa fase, ocorre o desenvolvimento da linguagem. Nessa fase, ela já é ca- paz de representar mental e simbolicamente objetos, mes- mo ausência destes, e classificá-los de acordo com uma dada característica. Desenvolve também a capacidade de lidar com novos objetos e eventos (KRASILCHIK, 2008). O mundo é fruto da percepção imediata. 3) Operatório-concreto – aproximadamente dos 7 aos 11-12 anos. Nesta fase, o sujeito infantil aplica operações lógicas a experiências centradas no aqui e agora; a criança consegue ordenar e classificar, bem como estabelecer relações causais e espaço-temporais. Também consegue realizar operações lógicas com objetos concretos – portanto, a manipulação é muito importante, tendo con- sequências claras para o ensino de Ciências. Também a capacidade de classificar é um pré-requisito para o de- 8 É importante mencionar que podem existir diferenças individuais no que diz res- peito às idades médias consideradas pela teorização piagetiana. Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 35 senvolvimento de conceitos como planta, raiz, fruto, etc. (KRASILCHIK, 2008, p. 27-28) 4) Operatório-formal – estágio que compreende a adoles- cência em diante. O indivíduo desenvolve a capacidade de pensar de maneira abstrata, especular sobre situações hipotéticas, deduzir, planejar e imaginar. Segundo Krasil- chik (2008), estudantes acima dos 14 anos “desenvolvem raciocínio proporcional, probabilístico, correlacional e controle de variáveis” (p. 28). Os estágios mostram que, progressivamente, a criança passa da ação manipulativa para a ação intelectual na cons- trução do conhecimento – e, portanto, os professores também poderiam incluir, em seus planejamentos de ensino, algumas atividades manipulativas antes da abordagem conceitual for- mal. Tanto Krasilchik (2008) quanto Carvalho (2013) apontam que o ensino de Ciências e Biologia, de acordo com tal pers- pectiva teórica, deve ser adaptado à maneira como o raciocí- nio progressivamente de desenvolve, enfatizando-se o apren- dizado ativo (realização de atividades práticas, experimentos e jogos; realização de trabalhos em grupo; aprendizagem por projetos de ensino; organização dos conteúdos tendo em vista os níveis de complexidade dos raciocínios a serem desenvolvi- dos pelos estudantes) e a pesquisa, por parte do professor, das “concepções prévias” dos alunos (ver Capítulo 1). A teorização piagetiana também mostra a importância de um problema (ou, ainda, de uma problematização) para o iní- cio da construção do conhecimento. Propor um problema para que os alunos possam resolvê-lo é, de acordo com Carvalho (2013), um divisor de águas entre o ensino expositivo e o ensi- 36 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia no que proporciona condições para os alunos desenvolverem o raciocínio e construam, efetivamente, o conhecimento. Outro ponto a ser destacado na teorização piagetiana é a importân- cia do erro na construção de novos conhecimentos. Segundo a referida autora (op. cit.), é muito difícil um aluno acertar de primeira, é preciso dar tempo para ele pensar, refazer a pergunta, deixá-lo errar, refletir sobre o seu erro e depois tentar um acer- to. O erro, quando trabalhado e superado pelo próprio aluno, ensina mais que muitas aulas expositivas quando o aluno segue o raciocínio do professor e não o seu próprio. (p. 3) Figura 1 – Piaget Figura 2 - Vygotsky Fonte: http://www.ufrgs.br/psicoe- duc/piaget/fotos-de-jean-piaget/, acesso em 30/03/2015 Fonte: The Vigotsky Project - http://web- pages.charter.net/schmolze1/vygotsky/. Li- cenciado sob CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons - http://commons.wikimedia.org/ wiki/File:Lev_Vygotsky_1896-1934.jpg#/ media/File:Lev_Vygotsky_1896-1934.jpg http://www.ufrgs.br/psicoeduc/piaget/fotos-de-jean-piaget/ http://www.ufrgs.br/psicoeduc/piaget/fotos-de-jean-piaget/ Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 37 Lev Vygotsky e a abordagem sociointeracionista Lev Vygotsky9 nasceu em 1896, na cidade de Orshe, Rússia, mas passou sua infância e juventude em uma cidade russa chamada Gomel (morreu muito jovem, aos 37 anos, de tu- berculose). Formou-se em Direito pela Universidade de Mos- cou, em 1918, tendo estudado simultaneamente Literatura e História na Universidade Popular de Shanyavskii. Ao trabalhar em um curso de formação de professores, começou a estu- dar Psicologia (a Gestalt, a Psicanálise, a Neuropsicologia, o Behaviorismo e as ideias de Piaget) e, com a Revolução Russa (1917), também teve contato com o pensamento de Marx e Engels. Foi convidado a trabalhar no Instituto de Psicologia de Moscou e, mais tarde, no Instituto de Deficiências de Moscou. Publicou “A Formação Social da Mente”, livro no qual abor- da os problemas relacionados aos processos psicológicos hu- manos, analisando-os desde a infância à luz do seu contexto sócio-histórico-cultural10. Vygotsky enfatizou a importância do meio sociocultural no processo de aprendizagem infantil (para ele, “as mais elevadas funções mentais emergem de processos sociais”), bem como apontou para o papel central que as figu- ras mais velhas (pais, avós, professores) desempenham no de- senvolvimento mental das crianças" (KRASILCHIK, 2008). Ele 9 Os dados biográficos de Vygotsky foram retirados do site The Vygotsky Project e da Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Lev_Vygotsky, acesso em 20/03/2015). 10 Todo o livro de Vygotsky pode ser acessado no endereço http://www.egov. ufsc.br/portal/sites/default/files/vygotsky-a-formac3a7c3a3o-social-da-mente.pdf (acesso em 20/04/2015). http://pt.wikipedia.org/wiki/Lev_Vygotsky http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/vygotsky-a-formac3a7c3a3o-social-da-mente.pdf http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/vygotsky-a-formac3a7c3a3o-social-da-mente.pdf 38 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia demonstrou que “os processos sociais e psicológicos huma- nos se firmam por meio de ferramentas, ou artefatos culturais, que medeiam a interação entre os indivíduos e entre esses e o mundo físico” (CARVALHO, 2013). Vygotsky considera que o mais importante artefato social culturalmente construído é a linguagem (transformadora do funcionamento da mente e não apenas um meio facilitador dos processos mentais já existentes). E a linguagem, em Ciências, não é só verbal – há figuras, tabelas, gráficos, porcentagens etc. Os professores, assim, precisariam prestar atenção à construção dessas múlti- plas linguagens em sala de aula, uma vez que somente a lin- guagem verbal (oral e escrita) não é suficiente para comunicar os saberes científicos. Outro conceito importante é o de “zona de desenvolvimen- to proximal” (ZDP), que define a distância entre o “nível de desenvolvimentoreal”, determinado pela capacidade de re- solver um problema sem ajuda, e o “nível de desenvolvimento potencial”, determinado pela resolução de um problema sob a orientação de um adulto ou em colaboração com outro alu- no. A teorização mostra que o desenvolvimento real é aque- le que já foi consolidado pelo indivíduo, de forma a torná-lo capaz de resolver situações utilizando seu conhecimento de forma autônoma – portanto, o nível de desenvolvimento real é dinâmico, aumentando com os movimentos do processo de aprendizagem. Já o desenvolvimento potencial é uma in- cógnita, já que ainda não foi atingido, e equivale ao conjunto de conhecimentos e habilidades que a pessoa potencialmente pode aprender, mas ainda não completou o processo (CARVA- LHO, 2013). Carvalho (op. cit.) dá, como exemplo de ativida- Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 39 de de sala de aula que tem elementos sociointeracionistas, o trabalho em grupo. Diz ela: Com o conceito de zona de desenvolvimento proximal podemos entender por que os alunos se sentem bem nes- ta atividade: estando todos dentro da mesma zona de desenvolvimento real, é muito mais fácil o entendimento entre eles, às vezes mais fácil mesmo do que entender o professor. Além disso, como mostra o conceito, os alu- nos têm condições de se desenvolver potencialmente em termos de conhecimento e habilidades com a orientação de seus colegas. O trabalho em grupo sobe de status no planejamento do trabalho em sala de aula passando de uma atividade optativa do professor para uma neces- sidade quando o ensino tem por objetivo a construção do conhecimento pelos alunos. Entretanto, para utili- zar a dinâmica de grupo eficazmente, dentro da teoria vygotskyana, deve-se escolher deixar os alunos trabalha- rem juntos quando na atividade de ensino tiver conte- údos e/ou habilidades a serem discutidos, ou quando eles terão a oportunidade de trocar ideias e ajudar-se mutuamente no trabalho coletivo. É o que chamamos de atividades sociointeracionistas. (CARVALHO, 2013, p. 5) Recapitulando Este capítulo mostrou algumas das perspectivas teóricas rela- cionadas à área da Psicologia do Desenvolvimento que bus- cam explicar o desenvolvimento e a aprendizagem dos seres 40 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia humanos. Você viu que as perspectivas teóricas possuem po- tencialidades e limitações explicativas – e que, a partir delas, vários métodos de trabalho e metodologias de ensino-apren- dizagem foram desenvolvidos. Referências ALVAREZ, Ana; LEMOS, Ivana. Os neurobiomecanismos do aprender: a aplicação de novos conceitos no dia-a-dia es- colar e terapêutico. Revista Psicopedagogia, vol.23, nº 71, São Paulo, 2006. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Bá- sica. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação Profissio- nal e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câ- mara Nacional de Educação Básica. Diretrizes Curricu- lares Nacionais Gerais da Educação Básica. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013. CARVALHO, Anna Maria Pessoa de. (Org.). Ensino de Ciên- cias por investigação: condições para implementação em sala de aula. São Paulo: Cengage Learning, 2013. KRASILCHIK, Myriam. O professor e o currículo das Ciên- cias. São Paulo: EPU: Editora da Universidade de São Pau- lo, 1987. Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 41 _____. Prática de Ensino de Biologia. 4ª Edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008. RABELLO, E.T. e PASSOS, J. S. Vygotsky e o desenvolvimen- to humano. Disponível em http://www.josesilveira.com, acesso em 20/03/2015. Para saber mais: Blog da Psicologia da Educação – UFRGS: http://www.ufrgs. br/psicoeduc/ (acesso em 20/03/2015). The Vygotsky Project (site em ingles): http://webpages.charter. net/schmolze1/vygotsky/ (acesso em 20/03/2015). Atividades 1) Dentre as cinco perspectivas teóricas que visam compreender o desenvolvimento e a aprendizagem humana abordadas neste capítulo (comportamentalista, inatista, construtivista, sociointeracionista e psicanalítica), qual alternativa abaixo corresponde aos aspectos em comum das diferentes hipóteses formuladas? a) A ideia de que o meio e a cultura desempenham papéis fundamentais no que diz respeito ao desenvolvimento e à aprendizagem. b) A ideia do determinismo biológico, que postula que o ser humano possui capacidades e talentos programados ge- neticamente. http://www.josesilveira.com http://www.ufrgs.br/psicoeduc/ http://www.ufrgs.br/psicoeduc/ http://webpages.charter.net/schmolze1/vygotsky/ http://webpages.charter.net/schmolze1/vygotsky/ 42 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia c) A ideia de que o meio social não é fator relevante no de- senvolvimento social, intelectual e biológico humano. d) A ideia de que todos os humanos nascem iguais e que é em convívio na sociedade que ele se diferencia, de acordo com os estímulos recebidos na infância. e) As diferentes teorias formuladas não possuem nenhum as- pecto em comum. 2) A área da Psicologia do Desenvolvimento embasou concei- tualmente as diversas teorias do desenvolvimento estudadas no Capítulo 2. O que buscam tais teorias? a) Explicar a origem da vida em nosso planeta. b) Desvendar os motivos pelos quais as pessoas desen- volvem problemas psicológicos. c) Justificar as diferenças sociobiológicas entre homens e mulheres. d) Demonstrar, por meio de experimentos, as funções do corpo humano. e) Explicar como se dão o desenvolvimento e a aprendi- zagem dos seres humanos. 3) A área da Educação no Brasil, principalmente na área do Ensino de Ciências, é marcadamente embasada por dois referenciais teóricos. Quais são eles? a) Piagetiano e o vygotskyano. Capítulo 2 Teorias do Desenvolvimento e da Aprendizagem... 43 b) Lacaniano e freudiano. c) Montessoriano e piagetiano. d) Progressista e escolanovista. e) Tradicionalista. 4) Sobre o método do trabalho em grupo desde a perspectiva sociointeracionista, são feitas as seguintes afirmações: I – Para o sociointeracionismo, o trabalho em grupo é uma atividade optativa, pois não há construção real do co- nhecimento pelos alunos. II – Os alunos têm mais condições de se desenvolver em termos de conhecimento e de desenvolvimento de ha- bilidades diversas com a orientação de seus próprios colegas. III – Os alunos devem trabalhar juntos apenas quando hou- ver a oportunidade de trocar ideias e ajudar-se mutua- mente no trabalho coletivo. Estão corretas: a) Apenas a I. b) Apenas a II. c) Apenas a III. d) Apenas I e II. e) Apenas II e III. 44 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia 5) Sobre a teorização Piagetiana, são feitas as seguintes afirma- ções: I – O erro é uma ferramenta fundamental no processo de ensino-aprendizagem. II – A pesquisa das concepções prévias em sala de aula serve para verificar se o aluno entende a importância das Ciências Biológicas e da Biologia no mundo con- temporâneo. III – Os Estágios de Desenvolvimento demonstram que a criança passa, progressivamente, da ação manipula- tiva para a ação intelectual na construção do conhe- cimento. Estão corretas: a) Apenas a I. b) Apenas a II. c) Apenas a III. d) Apenas I e II. e) Apenas I e III. Gabarito 1) a 2) e 3) a 4) e 5) e O Livro Didático de Ciências no Brasil1 1 Daniela Ripoll é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com Doutorado Sanduíche pela University of Plymouth (2004). Atualmente, em nível de Graduação, é professora dos cursos de Licenciatura em Ciências Biológicas (presencial e EAD) e Licenciatura em Pedagogia (EAD) da Uni- versidade Luterana do Brasil. Em nível de Pós-Graduação, é professora permanente e membro da Comissão Coordenadora do Programade Pós-Graduação em Edu- cação da Universidade Luterana do Brasil. É líder do GP Cultura e Educação do CNPq. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Estudos Culturais e Educação em Ciências e Biologia. E-mail: daniela_ripoll@terra.com.br Profa. Dra. Daniela Ripoll1 Capítulo 3 mailto:daniela_ripoll@terra.com.br 46 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia Introdução Em meados da década de 1980, no Brasil, alguns pesquisa- dores da área da Educação em Ciências argumentavam que um dos fatores que influenciavam negativamente o ensino era a má qualidade dos livros didáticos. Myriam Krasilchik (1987, p. 48-49), por exemplo, afirmava: Aos livros didáticos é atribuída grande parte das deficiên- cias do ensino de Ciências nas escolas de 1º e 2º Graus. (...) Com fins mercadológicos, exagera-se o uso de pre- tensos elementos motivadores, como cores nas ilustra- ções, figuras caricaturescas que supostamente agradam aos alunos, além de exercícios do tipo quebra-cabeças que são primários na sua demanda intelectual. São in- cluídas grandes quantidades de exercícios, denominados “estudos dirigidos”, que ocupam os alunos em boa parte do tempo das aulas, apenas para transcrever trechos do próprio texto dos livros. Estas são, em geral, as maiores queixas apontadas contra os livros, somadas a outras de igual importância, mas que aparecem menos na literatu- ra e ainda menos nas discussões com os professores. São veículos explícitos ou implícitos de ideologias incoerentes com as propostas das mudanças. Transmitem preconcei- tos contra minorias sociais e étnicas. Apresentam valores controvertidos sobre as relações entre a Ciência e a So- ciedade e entre os pesquisadores e a comunidade. Em sua estrutura, servem muito mais a interesses comerciais do que a objetivos educacionais de alto nível. Acresçam- -se a este estado de coisas os problemas relacionados à divulgação dos livros, dependente do poderio das gran- Capítulo 3 O Livro Didático de Ciências no Brasil 47 des editoras, o que contribui para a formação de um verdadeiro monopólio por um pequeno grupo que tem maior acesso aos compradores em potencial. Trata-se de uma afirmação “datada” – isto é, feita em meados dos anos 1980 –, porém, verdadeira. De fato, “era comum que os livros didáticos de Ciências trouxessem uma grande quantidade de informações e exercícios na forma de perguntas objetivas do tipo ‘o que é’, ‘defina’ etc.” (BIZZO, 2009, p. 86), e os alunos apenas tinham o trabalho mecânico de encontrar as respostas nos textos e copiá-las em seus cader- nos. Os livros, naquele período, também continham erros con- ceituais, informações parciais sobre os processos biológicos, textos antropocêntricos, ideias preconceituosas de toda ordem etc. Mas, desde 1996, os livros didáticos brasileiros têm sido avaliados pelo Ministério da Educação e, indiscutivelmente, a qualidade dos livros melhorou. O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi instituído em 1985, em substituição a programas anteriores que ape- nas previam a compra e distribuição de livros às escolas sem processos avaliativos ou qualquer consulta aos professores. A Fundação de Assistência ao Estudante (FAE), vinculada ao Ministério da Educação, já vinha, desde 1983, encontrando problemas nos livros didáticos e propondo a participação dos professores na escolha dos livros. A partir de 1985, com a criação do PNLD, os livros passaram a ser: a) escolhidos pelos 48 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia professores das escolas; b) reutilizáveis (implicando a abolição do livro descartável e o aperfeiçoamento das especificações técnicas para sua produção, visando maior durabilidade e possibilitando a implantação de bancos de livros didáticos); c) ofertados aos alunos de 1ª e 2ª séries das escolas públicas e comunitárias; d) custeados unicamente pela União, sem a participação dos Estados2. Apenas entre 1995 e 1996 é que se iniciou formalmente, no Brasil, o processo de avaliação peda- gógica e de conteúdo dos livros inscritos no PNLD por meio de Edital. Os livros começaram a ser avaliados pelo MEC confor- me critérios que veremos a seguir. Esse procedimento de ava- liação foi aperfeiçoado e atualizado (para incluir, em especial, normativas e leis promulgadas a posteriori), sendo empregado hoje por equipes formadas por professores do Ensino Superior (em especial, graduados em Ciências Biológicas e especialis- tas em Educação), professores de Ciências (Ensino Fundamen- tal) e Biologia (Ensino Médio) e por professores especialistas das áreas da Biologia (Botânica, Ecologia, Embriologia, Cito- logia, Histologia, Fisiologia, Genética e Zoologia). Os livros que apresentam erros conceituais (definições genéricas, apli- cações práticas equivocadas de algum conceito científico ou, ainda, sentenças que, em termos gramaticais, podem induzir a erro), desatualizações diversas, evidências de preconceito ou discriminação de qualquer tipo são excluídos da avaliação e, eventualmente, também do Guia Nacional do Livro Didático (não sendo, portanto, comprados pelo Governo Federal). Mas 2 Mas é importante considerar que o PNLD só se tornou realmente efetivo com a promulgação da Constituição de 1988, que prevê, em seu Art. 208, parágrafo VII, que “o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de (...) atendimento ao educando no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde” (HÖFLING, 2006, p. 21). Capítulo 3 O Livro Didático de Ciências no Brasil 49 é importante considerar que, apesar de todo o esforço empre- endido na avaliação, o processo não é infalível. Entre 1996 e 2000, Nelio Bizzo – professor da Faculdade de Educação da USP e então coordenador da equipe técnica do PNLD para a área das Ciências Naturais – publicou dois artigos que se tornaram referência no que diz respeito aos li- vros didáticos de Ciências no Brasil. No primeiro deles (BIZZO, 1996), Bizzo explica que a avaliação começou examinando, em um primeiro momento, apenas os quatro primeiros anos do Ensino Fundamental. Foram encontrados, naquela época, pelo menos dois tipos de problemas: “a formação geral do aluno e de sua integridade, tanto física quanto moral; e a acuidade da informação veiculada com os conceitos centrais para a estrutu- ração do conhecimento científico” (BIZZO, 1996, p. 31), sem contar os inúmeros problemas de ordem didático-pedagógica e metodológica. Naquele período, havia a existência de livros didáticos contendo recomendações de primeiros socorros, rea- lização de experiências perigosas sem precauções de seguran- ça (com eletricidade, ácidos diversos, com utilização de fogo etc.) e procedimentos bastante duvidosos (por exemplo, ima- gens mostravam crianças compartilhando a sua comida com animais, o que não é aconselhável). Além disso, começava-se a prestar atenção às imagens e ilustrações dos livros didáticos: Não é raro que as figuras humanas representadas sejam sempre brancas. O corpo humano, como peça anatômi- ca, é sempre branco. Em muitas obras, o negro, quan- do aparece, está sempre em condição de inferioridade social. Em um livro, o negro aparece uma única vez e, mesmo assim, na figura de um lixeiro (...). Em outro, fo- ram contadas 230 figuras brancas, na maioria loiras, e 50 Metodologias de Ensino de Ciências e Biologia sete figuras de uma mesma pessoa negra. Trata-se de um frentista de posto, que recebe aula de uma criança loira sobre combustíveis (...). A imagem negativa do pobre, e mesmo do serviço público, também está evidente em di- versas obras, em afirmações como “As pessoas que não têm dinheiro para pagar um médico podem procurar os postos de saúde pública” (...). (BIZZO, 1996, p. 32) É importante notar que um dos critérios para a análise de livros didáticos nos dias de hoje diz respeito, exatamente, ao projeto gráfico-editorial.
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