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A hipótese Gaia A hipótese Gaia surgiu no final da década de 1960, e até hoje é bastante criti-cada por vários pesquisadores. Ao afirmar que a Terra é um superorganis-mo capaz de autorregulagem, a hipótese vai contra todas as afirmações de que a Terra é simplesmente uma “bola” de rocha com vida sobre ela. As grandes dimensões do planeta e longas escalas de tempo dificultam pensar em Gaia como um ser vivo de maneira concreta. A palavra Gaia é de origem grega e significa “Deusa Terra” ou “Mãe Terra”. A origem da hipótese Gaia O químico James Lovelock foi contratado pela Nasa (Administração Nacio- nal de Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos) nos anos 1960 para descobrir se há condições de vida em outros planetas, como Vênus e Marte. Lovelock questionou como seria a vida nesses planetas e se há meios de des- cobrir se tal vida seria semelhante à da Terra. Foi pensando sobre isso que o cientista concluiu que, para viver, os seres vivos retiram matéria e energia do meio em que vivem e descartam os resíduos também nesse meio. No caso da Terra, há a atmosfera (meio gasoso) e os oceanos (meio líquido), que servem como meios fluidos de retirada de energia e descarte de resíduos. Logo, se ele analisasse a atmosfera do planeta pode- ria concluir se existe vida ou não, sem precisar ir até o planeta. Na Terra, a atmosfera tem 21% de oxigênio, que é altamente reativo e seria facilmente eliminado por outros gases, como hidrogênio, amônia, entre outros. Isso se explica porque a vida no planeta é responsável pela constante produção do gás, repondo sua quantidade na atmosfera. Quadro 1 – Diferença da composição da atmosfera dos três planetas (Terra, Marte e Vênus) Vênus Terra Marte Nitrogênio (N2) 1,9% 78% 2,7% Oxigênio (O2) 0,1% 21% 0,13% Gás carbônico (CO2) 98% 0,03% 95% A explicação para isso é que, se a composição da atmosfera é constante, sem compostos resultantes de metabolismo sendo alterados, não há vida. Para mim, a revelação pessoal de Gaia veio subitamente – como um flash ou lampejo de iluminação. Eu estava numa pequena sala do pavimento superior do edifício do Jet Pro- pulsion Laboratory, em Pasadena, na Califórnia. Era outono de 1965, e estava conversan- A hipótese Gaia 98 do com Dian Hitchcock sobre um artigo que estávamos preparando... Foi nesse momento que, num lampejo, vislumbrei Gaia. Um pensamento assustador veio a mim. A atmosfera da Terra era uma mistura extraordinária e instável de gases, e, não obstante, eu sabia que sua composição se mantinha constante ao longo de períodos de tempo muito longos. Será que a Terra não somente criou a atmosfera, mas também a regula – mantendo-a com uma composição constante, num nível que é favorável aos organismos vivos? (LOVELOCK apud TIO ALÊ, 2005.) Para ajudá-lo na formulação da hipótese Gaia, Lovelock convidou a bióloga microbiologista Lynn Margulis. Através da hipótese, eles questionam a ideia de que a vida surgiu na Terra por causa das condições atmosféricas e climáticas fa- voráveis do planeta. Pelo contrário, dizem que a vida cria as condições necessárias para continuar existindo. Além disso, afirmam que o planeta é um ser vivo, inteli- gente e que se autorregula, mantendo as condições favoráveis para a manutenção da vida, sendo capaz de superar os desequilíbrios ambientais, criando novas con- dições de equilíbrio, mesmo que isso resulte em adaptação, grandes extinções ou surgimento de novas espécies. Em outras palavras, a hipótese Gaia afirma que a superfície da Terra, que sempre temos consi- derado o meio ambiente da vida, é na verdade parte da vida. A manta de ar – a troposfera – de- veria ser considerada um sistema circulatório, produzido e sustentando pela vida [...] Quando os cientistas nos dizem que a vida se adapta a um meio ambiente essencialmente passivo de química, física e rochas, eles perpetuam uma visão mecanicista seriamente distorcida, própria de uma visão de mundo falha. A vida, efetivamente, fabrica, modela e muda o meio ambiente ao qual se adapta. Em seguida, esse “meio ambiente” realimenta a vida que está mudando e atuando e crescendo sobre ele. Há interações cíclicas, portanto, não lineares e não estritamente determinísticas. (Margulis apud TIO ALÊ, 2005.) As evidências da hipótese O calor irradiado pelo Sol aumentou cerca de 25% desde que a vida surgiu na Terra. O questionamento de Lovelock foi como a temperatura conseguiu se manter estável, com um clima favorável à vida, durante 4 bilhões de anos? A resposta encontrada foi Gaia, a Terra como um superorganismo capaz de regular suas condições físicas e químicas. Nessa hipótese, os fatores bióticos agem sobre os abióticos modificando o ambiente. Todas as evidências apontam para essa re- lação entre os fatores. Para explicar e comprovar que a Terra é um superorganismo, os cientistas citam vários acontecimentos no planeta como sendo evidências da hipótese. A formação de ilhas por corais, as dunas com vegetais, a acidez do solo, surgimento do oxigênio na atmosfera, entre outros. Durante milhões de anos, a Terra foi habitada apenas por micro-organismos anaeróbios, ou seja, que não dependem do oxigênio para sobreviver. Com seu me- tabolismo simples, nutriam-se de compostos orgânicos, liberando como resíduos A hipótese Gaia 99 compostos inorgânicos simples. A proliferação desses organismos fez com que a quantidade de compostos orgânicos diminuísse. Na tentativa de se adaptar às no- vas condições ambientais, alguns desses organismos evoluíram e deram origem às plantas verdes, que conseguem assimilar as substâncias inorgânicas e transformá- -las em compostos orgânicos através da fotossíntese. Mas como produto desse novo processo surge o oxigênio, letal para os seres anaeróbios. Novamente, os seres evoluíram para conseguir utilizar essa nova substância e controlar sua pre- sença de uma maneira que todos conseguissem sobreviver. Os solos cultivados, por exemplo, seriam muito ácidos se não houvesse as bactérias para transformar o nitrogênio inorgânico em formas assimiláveis pelas plantas. Os corais também são exemplos, pois seu metabolismo permite fixar o cálcio da água do mar e transformar suas colônias em “rochas”. Isso modifica todo funcionamento no local onde se instalam. As dunas locomovem-se com os ventos, mas a partir do momento que começam a receber vegetação, ficam mais estáveis. A matéria mineral das dunas (silício) junta-se com a matéria orgânica dos seres vivos que passam a viver nelas, e transforma-se em solo. Hoje, é impensável a vida sem o oxigênio. Porém, sem os organismos fotos- sintetizantes, o oxigênio deixaria de ser reciclado e a maior parte dos seres vivos morreria. O planeta das margaridas James Lovelock postulou o modelo do Planeta das Margaridas para explicar como os seres vivos conseguem agir sobre o ambiente. Supondo-se que haja apenas três espécies de margarida vivendo no pla- neta: as brancas, as cinzentas e as pretas. Se a temperatura está muito baixa, as margaridas pretas reproduzem-se mais e espalham-se por todas as regiões. Isso é possível graças à sua coloração que permite que elas absorvam mais calor. À me- dida que elas vão se proliferando, o planeta vai se tornando mais quente por causa do calor absorvido por elas. Se o planeta é mais quente, as margaridas brancas se proliferariam, pois suas pétalas refletiriam mais o calor. Logo, o planeta também se tornaria mais frio. Porém, se a temperatura é média, as margaridas cinzentas iriam se proliferar mais do que as outras. Pode-se juntar às margaridas mais duas populações: coelhos e raposas. Se o número de coelhos aumentar, diminuirá o número de margaridas que seriam co- midas pelos coelhos. Entretanto, se as margaridas se esgotassem, a população de coelhos morreria de fome. Nesse caso, é necessário atingir um equilíbrio no qual o número de margaridas é exatamente o suficiente para alimentar a população de coelhos. A mesma lógica se aplica para a população de coelhos e de raposas, sendo estas os predadores doscoelhos. A hipótese Gaia 100 Ações humanas e a hipótese Gaia Os seres humanos têm uma grande capacidade para alterar o meio em que vivem. Suas atividades de caça, desmatamento, mineração, produção agrícola e pecuária e desenvolvimento de cidades transformam a paisagem e intensificam os acontecimentos naturais. Desde as civilizações pré-históricas, animais foram extintos pela caça. O desmatamento deixa o solo exposto à ação do tempo, fragmentando a paisagem natural, levando espécies à extinção e provocando catástrofes. A mineração polui rios e destrói a vegetação. A atividade agropecuária também provoca grandes estragos na paisagem, empobrecendo o solo, poluindo a água e o ar. As cidades constituídas e administradas sem planejamento estratégico provocam o mal-estar da população e dos demais seres vivos. Enchentes, enxurradas, deslizamentos, erosão, poluição – esse é o resultado da presença humana no planeta. Além disso, podem ser citadas mais consequências para o ambiente. A chu- va ácida, por exemplo, é resultante da emissão de óxidos de enxofre pela queima de combustíveis derivados do petróleo. Esses óxidos reagem com a água existente na atmosfera e transformam-se em ácido sulfúrico (água + óxido de enxofre). O resultado é a precipitação desses ácidos, que prejudicam estruturas metálicas, vegetação e construções, afetando a composição química do solo e da água na superfície do planeta. O aquecimento global, o derretimento de geleiras, o aumento do nível do mar são acontecimentos naturais que estão sendo intensificados e catalisados pela ação do homem sobre a natureza. Pela hipótese Gaia, é a Terra (Gaia) tentando achar uma saída para regular o ambiente e deixá-lo novamente favorável à vida. O estresse causado nas catástrofes resultou em extinções. Os impactos causam estresse no ambiente. Eles podem ser agudos, quando percebidos imediatamente, ou crônicos, quando percebidos depois de um tempo. Na história evolutiva do planeta, grandes e rápidas modificações foram catastró- ficas para a vida. Como exemplo de estresse crônico pode ser citado o uso de gás CFC, des- coberto como maléfico para a camada de ozônio após anos de uso. Hoje, sofre-se a consequência da ignorância de gerações passadas, assim como gerações futuras ainda vão sofrer com a ignorância das gerações atuais. Perspectivas futuras Para conservar é preciso amar. [...] minha visão de ecologia, ao contrário de muitos livros lançados sobre o assunto, não está centralizada no homem. Se quisermos ter sucesso em conservação da natureza, precisamos de uma outra lógica diferente da nossa lógica econô- mica atual. [...] só vamos poder conservar a natureza se o fizermos para o seu próprio bem. Fernando Fernandez A hipótese Gaia 101 À medida que o tempo passa e as catástrofes começam a afetar a huma- nidade, o posicionamento dos governos em relação à natureza começa a mudar. Muito já foi destruído para que as pessoas se dessem conta do que já foi perdido em relação à natureza. A inclusão da Educação Ambiental no currículo das escolas brasileiras, a conscientização sobre os problemas já causados é um bom começo. Ainda falta muito! As pessoas consomem mais do que realmente precisam. A tradição de se ter muito faz com que o ser humano não perceba os recursos naturais como finitos. Além disso, as ideias “conservacionistas” ficam apenas nas palavras e não aparecem nas atitudes do dia a dia . Poucas pessoas se preocupam em gastar menos água, menos energia. Apenas aquelas que veem seu bolso sendo atacado cada vez que precisam pagar a conta é que começam a racionar. Imagine uma cena de uma família de quatro pessoas andando na rua, pai, mãe e dois filhinhos. O pai com um pacote de bala na mão. Ele “descasca” a bala, põe na boca e joga o papel no chão, e os filhinhos fazem o mesmo. É certo que as crianças serão exatamente assim quando crescerem, pois se inspiram nos pais para aprender a viver. Na natureza acontece isso. Filhotes imitando os pais e co- piando seus hábitos e habilidades. Com o ser humano não seria diferente, apesar de esquecermos que somos animais, da espécie Homo sapiens, e que nosso DNA tem 98% de semelhança com os chimpanzés. A população humana esquece que sua sobrevivência está intimamente ligada à sobrevivência das outras espécies. Quanto mais degradamos, mais danos causamos a nós mesmos. [...] A projeção animista também serve de base para uma moderna religião travestida de ci- ência, que atende pelo nome de hipótese Gaia. A ambiciosa ideia, formulada pelo químico James Lovelock, é de que o planeta inteiro teria evoluído para servir de abrigo adequado à vida, e fun- cionaria como uma espécie de superorganismo autorregulado. A fragilidade da argumentação de Gaia chega a ser comovente. Toda e qualquer característica do ajuste Terra-organismos apontada como evidência a favor da hipótese Gaia, é explicada de maneira muito mais simples e óbvia por seleção natural. Por exemplo, Lovelock argumenta que o planeta desenvolveu uma alta concen- tração de oxigênio em sua atmosfera para se tornar acolhedor para os animais, que respiram oxi- gênio. No entanto, é infinitamente mais simples e plausível conceber que, por ser o oxigênio um recurso abundante, a seleção natural tenha favorecido os organismos que desenvolveram a capaci- dade de utilizá-lo. A popularidade da hipótese Gaia, apesar de evidente falta de bons argumentos a seu favor, a meu ver é bastante fácil de explicar: Gaia fala exatamente o que as pessoas queriam ouvir, ao fornecer um motivo “superior”, maior que nós, pelo qual deveríamos agir corretamente com o nosso planeta, que afinal de contas também seria um organismo vivo. O segundo livro A hipótese Gaia 102 de Lovelock chama-se As Idades de Gaia; é bem claro que pelo menos a ideia de Gaia de fato é muito antiga: nada mais é que a velha projeção animista em grandiosa escala, com uma roupagem “modernosa” e pseudocientífica. O caráter religioso também é bastante claro, não faltando nem mesmo a revelação (o próprio Lovelock afirma ter percebido que o nosso planeta era vivo ao ver pela primeira vez uma foto da Terra vista do espaço). Como qualquer religião, Gaia pode ser efe- tiva em mobilizar pessoas por uma causa, no caso a conservação. Porém, uma vez que Gaia não se assume como religião e prefere manter seu disfarce de ciência, espero que a conservação não dependa dela, pois cedo ou tarde vai surgir alguém para dizer “o rei está nu”, como alguns aliás já estão fazendo (FERNANDEZ, 2004, p. 237-238). 1. Sobre a hipótese Gaia, levante aspectos positivos e negativos. 2. Você acha que a hipótese Gaia pode ser verdadeira, ou não passa de religião? Como é apresen- tada no texto complementar? TAVARES, Marina de Lima; EL-HANI, Charbel Niño. Um Olhar Epistemológico Sobre A Trans- posição Didática da Teoria Gaia. Disponível em: <www.if.ufrgs.br/public/ensino/vol6/n3/v6_n3_ a4.htm>. Acesso em: 29 set. 2005.