Prévia do material em texto
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Carolina Fernandes Rodrigues Fomin O tradutor intérprete de libras no teatro: a construção de sentidos a partir de enunciados cênicos MESTRADO EM LINGUÍSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM SÃO PAULO 2018 1 Carolina Fernandes Rodrigues Fomin O tradutor intérprete de libras no teatro: a construção de sentidos a partir de enunciados cênicos Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob orientação da Professora Doutora Elisabeth Brait. SÃO PAULO 2018 2 Autorizo exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Dissertação de Mestrado por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos. Assinatura_______________________________________________ Data__________________ E-mail__________________________________________________ 3 Carolina Fernandes Rodrigues Fomin O tradutor intérprete de libras no teatro: a construção de sentidos a partir de enunciados cênicos Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, sob orientação da Professora Doutora Elisabeth Brait. Aprovado em: ____/_____/_____ BANCA EXAMINADORA ____________________________________________ Profa. Dra. Elisabeth Brait Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Orientadora ____________________________________________ Profa. Dra. Maria Lucia Hage Masini Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Titular ____________________________________________ Prof. Dr. Marcus Vinícius Batista Nascimento Universidade Federal São Carlos Titular ____________________________________________ Profa. Dra. Diana Navas Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Suplente ____________________________________________ Prof. Dr. Carlos Gontijo Rosa Universidade de São Paulo Suplente 4 Dedico esta pesquisa à comunidade surda por sua luta por direitos linguísticos e pela produção cultural em língua de sinais. 5 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento - Processo no. 88887.150002/2017-00. This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 88887.150002/2017-00. 6 AGRADECIMENTOS Apesar de estar no início do trabalho, a parte dos agradecimentos foi a última a ser escrita nesta dissertação. Era preciso terminar para então olhar para trás e perceber quanto a construção foi coletiva, e que a pesquisa não se realiza sozinha; por isso, agradeço. Da mesma forma que é prazeroso agradecer, me é também desafiador. Por um lado, fico feliz e honrada de saber que não escrevi sozinha este texto. Ele é constituído de muitas vozes, que direta ou indiretamente compõem esta dissertação. O grande desafio é colocar em palavras tantas contribuições de tantas pessoas. Assim, adianto que palavras não serão insuficientes para agradecer: À minha querida professora orientadora Beth Brait, não apenas pelas aulas, orientações precisas e valiosas sem as quais eu jamais teria concluído esta dissertação, mas também pelo carinho com que lidou comigo durante todo o processo. À professora Lucia Masini, primeiramente por ter me apresentado Bakhtin de forma apaixonante e irresistível. Sem ela, talvez tivesse enveredado outros caminhos. Agradeço também pela leitura atenta do meu texto na qualificação e pelas conversas que se sucederam. As considerações foram, sem dúvida, fundamentais. Ao professor Vinícius Nascimento, meu professor, orientador e amigo. Sua motivação desde os meus primeiros rascunhos, desde minhas primeiras publicações foram força motriz para continuar na pesquisa. Só cheguei até aqui por sua causa. À Vânia Santiago, que foi uma professora que virou amiga e parceira. Agradeço pelas muitas leituras que fez no meu texto, pelas trocas, pelas dúvidas partilhadas, pelas angústias da teoria e da vida que foram discutidas. No meio desse caminho, firmamos ainda mais nossa amizade. Ao amigo Ricardo Ferreira-Santos, pelas ajudas importantes desde o meu ingresso no mestrado até o dia do depósito. Sem você, não teria conseguido. Ao colega Carlos Gontijo Rosa, pela leitura atenta do meu texto, com contribuições valiosas sobre a teatralidade. Aos professores. Aprendo com vocês não apenas em sala de aula, mas através da vida. Às queridas colegas de trabalho que viraram “sujeitas de pesquisa”, forma como as chamo carinhosamente. Erika, Thalita, Naiane, Lívia e Amanda, obrigada pela generosidade e coragem em participar da pesquisa. Vocês são maravilhosas, incontáveis vezes eu fiquei impressionada com a capacidade e competência de vocês nesta pesquisa. Às instituições culturais – Instituto Itaú Cultural (nas pessoas de Galiana Brasil, Carlos Gomes, Natália Souza e Rodrigo) e SESC Santana, por abrirem as portas para a minha pesquisa e me acolherem tão bem. Aos grupos de teatro, Academia de Palhaços e Coletivo Negro, e aos diretores Munir Pedrosa e, especialmente, Paula Lopez, por prontamente aceitarem e entenderem a importância da pesquisa. 7 À comunidade surda com quem tenho partilhado e aprendido todos os dias. Obrigada por me proporcionarem experiências tão lindas através de sua cultura e língua. Aos amigos e colegas de trabalho com quem sempre aprendo na troca Gratidão a tudo o que me constituiu até chegar aqui. As dificuldades e as alegrias, as noites em claro e as madrugadas de aflição e inspiração. Ao Villy, meu marido, pela paciência comigo nos momentos enlouquecidos e ansiosos, nas madrugadas em claro. Agradeço pelas jantas que me preparou e que demonstraram tanto cuidado por mim, mas sobretudo por ser um grande incentivador e sempre acreditar em mim quando resolvo me aventurar em novas empreitadas. À Gabriela e ao Felipe pela paciência quando eu não pude dar atenção que precisavam e por serem a minha luz, minha inspiração. A meus pais, pela maior herança que puderam me dar: o exemplo de vida, de ética, de dedicação, inteligência, e por me ensinarem que eu sempre posso mais um pouco. Por culpa de vocês, tentarei um doutorado futuramente. E agradeço também à CAPES pela bolsa concedida, sem a qual a presente pesquisa não seria possível. Por isso, em tudo isso e através dessas pessoas, vejo Deus. Agradeço, especialmente a Ele que se manifestou a mim através do amor recebido. 8 RESUMO A presente pesquisa tem como objetivo observar a atividade do tradutor intérprete de língua de sinais (TILS) na esfera artístico-cultural, no ato interpretativo do gênero espetáculo teatral, descrevendo e analisando os elementos extraverbais, verbais e verbo-visuais que marcam a enunciação desse profissional durante a mobilização discursiva da cena teatral, que acontece com enunciados em língua portuguesa, para a língua brasileira de sinais (libras). Para tanto, realizamos um estudo qualitativo do tipo analítico-descritivo de quatro espetáculos que se apresentaram em São Paulo com acessibilidade em libras: Hotel Mariana (05/07/2017), Ida (15/08/2017) e Adeus palhaços mortos! (22/08/2017) no Instituto Itaú Cultural, e A princesinha medrosa(03/09/2017) no SESC Santana. Além do registro em vídeo dos espetáculos e da atuação dos TILS, constituiu o corpus deste estudo o questionário que elaboramos e que foi aplicado aos TILS, a resposta aos questionários e o material de divulgação dos espetáculos. As questões que motivaram a pesquisa foram: a) para além do texto proferido pelos atores, que aspectos da cena teatral influenciam a enunciação dos TILS durante o ato interpretativo?; b) quais as estratégias utilizadas pelos TILS para comunicação de aspectos extralinguísticos?; c) o preparo e a logística de atuação como posicionamento e visão da cena teatral influenciam nas estratégias interpretativas dos TILS? A fundamentação teórica se deu a partir do diálogo entre os estudos sobre a teatralidade, os estudos da tradução e da interpretação de língua de sinais (ETILS) e a perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin sobre a linguagem. Neste estudo em que lançamos olhar para a dimensão extraverbal, verbal e verbo-visual dos enunciados, observamos o contexto sócio-histórico-ideológico e entendemos a cena teatral como um enunciado verbo-visual que se dá no conjunto de textos inter- relacionados, composto tanto pelo que foi proferido pelos atores, como pelo cenário, movimentação de palco, elementos cênicos, projeções, efeitos sonoros etc. A análise de elementos extraverbais, verbais e verbo-visuais destacou diferentes posições ideológicas e enunciativas que apontam para diferentes escolhas interpretativas, dependendo dessas variáveis. A análise do corpus aponta para uma totalidade verbo-visual e o quanto o TILS influencia e é influenciado pela cena da qual é um elemento amalgamado e constitutivo do todo do espetáculo, o enunciado concreto. Palavras chave: Interpretação em libras; Teatro; Verbo-visualidade; Perspectiva dialógica. 9 ABSTRACT The present research aims to observe sign language translator and interpreter (SLI) activity in artistic-cultural sphere, during interpretative act at theatrical spectacle genre, describing and analyzing the nonverbal, verbal and verbal-visual elements that mark this professional’s enunciation during discursive mobilization of a theatrical scene that carries Portuguese language utterances into the Brazilian sign language (libras). To do so, we performed a analytical-descriptive qualitative study of four spectacles that took place in São Paulo and had their presentations accessible in libras, they were: Hotel Mariana (07/05//2017), Ida (15/08/2017) and Adeus palhaços mortos! (08/22/2017) at Instituto Itaú Cultural, and A princesinha medrosa (09/03/2017) at SESC Santana. In addition to the video recording of the shows and the performance of the SLIs, this study corpus was formed by the questionnaire we developed and that was applied to the SLIs, the response to the questionnaires and the spectacles flyers. The questions that motivated this research were: a) Beyond the text spoken by the actors, what aspects of theatrical scene influence the enunciation of the SLI during the interpretative act? b) What are the strategies used by SLI to communicate extralinguistic aspects? c) Preparation and the logistics of acting as position and vision of the theatrical scene influence the interpretive strategies of SLIs? Our theoretical basis was from the dialogue between studies on theatricality, sign language translation interpretation studies and the dialogical perspective of the Bakhtin’s Circle on language. In this study, that we consider utterances by its extraverbal, verbal and verbal-visual dimension, we observe the socio- historical-ideological context and understand the theatrical scene as a verb-visual utterance that occurs in the plot of texts composed both by what was said by the actors, as by the stage, stage movement, stage elements, projections, sound effects, etc. The analysis of nonverbal, verbal and verbal-visual elements highlighted different ideological and enunciate positions and different interpretive choices depending on these variables. The corpus analysis points to a verbal-visual totality and how SLI influences and is influenced by the scene, in which is an amalgamated and constitutive element of the spectacle totality, of the concrete utterance. Keywords: Sign Language Interpretation; Theatre; Verb-visuality; Dialogical Perspective. 10 LISTA DE FIGURAS Figura 1: Diferentes direções das luzes. .................................................................................................................. 50 Figura 2: A série de esquematizações da tradução para o palco. ........................................................................... 58 Figura 3: Esquema de Pavis - a Tradução como colocação em Jogo. .................................................................... 59 Figura 4: Esquema de alguns dentre os diversos aspectos imbricados na ópera. ................................................... 60 Figura 5: Interpretação fixa e posicionada. ............................................................................................................ 72 Figura 6: Interpretação – sombra. .......................................................................................................................... 73 Figura 7: Interpretação por área do palco. ............................................................................................................. 73 Figura 8: Posicionamento, dimensão e cone visual para espaços reservados para pessoas em cadeiras de rodas e assentos para pessoas com mobilidade reduzida e pessoa obesa – planta – exemplo. ......................................... 75 Figura 9: Ângulo visual dos espaços para pessoas em cadeira de rodas em teatros – Vista lateral. ...................... 75 Figura 10: Ângulo visual – plano vertical. .............................................................................................................. 76 Figura 11: Ângulo visual – plano horizontal. .......................................................................................................... 76 Figura 12: Ângulo visual – plano horizontal. .......................................................................................................... 77 Figura 13: Deficiências visuais e gestuais – estatura da população – altura das apresentações e dimensões do mobiliário. ............................................................................................................................................................. 77 Figura 14: Relação entre as distâncias de percepção e o tamanho dos caracteres de texto. .................................. 78 Figura 15: Ângulo de visão do público surdo. ......................................................................................................... 79 Figura 16: Intérprete posicionado no fosso, questões de visualização do cenário. ................................................. 81 Figura 17: Intérprete posicionado no fosso com praticável, questões de visualização do cenário ......................... 81 Figura 18: Efeito “ping-pong” e ângulo de visão do público surdo com relação ao palco – perspectiva. ............. 82 Figura 19: Intérprete posicionado no fosso – ângulos de visão. ............................................................................. 83 Figura 20: Interpretação posicionada no proscêncio. ............................................................................................. 84 Figura 21: Interpretação com diferentes posicionamentos em cena ....................................................................... 86 Figura 22: Divulgação online do espetáculo Hotel Mariana. ............................................................................... 108 Figura 23: Folder de divulgação do espetáculo A princesinha medrosa. ............................................................. 109 Figura 24: Divulgação do espetáculo Ida. ............................................................................................................110 Figura 25: Divulgação do espetáculo Adeus palhaços mortos! ............................................................................ 111 Figura 26: Posicionamento das câmeras antes do espetáculo começar. ............................................................... 113 Figura 27: Posicionamento da câmera lateral antes do espetáculo começar. ...................................................... 113 Figura 28: Posicionamento das câmeras ao fundo da sala para registro do espetáculo. ..................................... 114 Figura 29: Planta ilustrativa da sala de espetáculos com o mapeamento de posicionamento das câmeras e localização das TILS em relação ao palco – Hotel Mariana e Ida. .................................................................... 114 Figura 30: Planta ilustrativa da sala de espetáculos com o mapeamento de posicionamento das câmeras e localização das TILS em relação ao palco – Adeus palhaços mortos! ............................................................... 115 Figura 31: Exemplo da montagem e sincronia dos vídeos com 3 câmeras. .......................................................... 116 Figura 32: Exemplo da montagem e sincronia dos vídeos com 2 câmeras. .......................................................... 117 Figura 33: Planta ilustrativa da sala de espetáculos com o mapeamento de posicionamento das câmeras e localização das TILS em relação ao palco – A princesinha medrosa. ................................................................ 117 Figura 34: Personagens de A princesinha medrosa .............................................................................................. 118 Figura 35: Descrição dos quadros apresentados nos excertos de análise. ........................................................... 120 Figura 36: Página do folder Hotel Mariana - O que é Verbatim? ........................................................................ 125 Figura 37: Folder Hotel Mariana – capa. ............................................................................................................. 126 Figura 38: Folder Hotel Mariana – contracapa. ................................................................................................... 126 Figura 39: Folder Hotel Mariana - ficha técnica. ................................................................................................. 126 Figura 40: Divulgação nas redes sociais - Hotel Mariana. ................................................................................... 127 Figura 41: Divulgação nas redes sociais - Adeus, palhaços mortos! .................................................................... 127 Figura 42: Divulgação nas redes sociais - Ida ...................................................................................................... 127 Figura 43: Folder do espetáculo A princesinha medrosa - página interna. .......................................................... 128 Figura 44: Folder do espetáculo A princesinha medrosa - como um livro vira teatro? ........................................ 129 Figura 45: Folder A princesinha medrosa – capa. ................................................................................................ 130 Figura 46: Folder A princesinha medorsa - ficha técnica. .................................................................................... 130 Figura 47: Folder do espetáculo A princesinha medrosa – página interna texto de Kiko Marques. .................... 131 Figura 48: Folder do espetáculo A princesinha medrosa – página sobre acessibilidade. .................................... 132 Figura 49: Espetáculo A princesinha medrosa - cena em que os atores sinalizam deitados. ................................ 134 Figura 50: Interprete observando a cena no espetáculo Ida. ................................................................................ 152 11 Figura 51: Intérprete observando a cena no espetáculo Ida. ................................................................................ 152 Figura 52: Intérprete observando a cena no espetáculo Hotel Mariana. .............................................................. 152 Figura 53: Cena de A princesinha medrosa - intérprete se movimenta na cena juntamente com os atores. ......... 156 Figura 54: Cena de A princesinha medrosa - intérprete faz movimentos sincronizados com os atores. ............... 156 Figura 55: Cena de A princesinha medrosa - intérprete ao centro do palco. ........................................................ 157 Figura 56: Cena de A princesinha medrosa - intérprete se locomove acompanhando os atores quando caminham entre a plateia. .................................................................................................................................................... 157 Figura 57: Cena de A princesinha medrosa - intérprete se locomovendo no palco e fazendo uso de objetos cênicos. ................................................................................................................................................................ 158 Figura 58: Cena de A princesinha medrosa - intérprete fazendo uso de objetos cênicos. .................................... 158 Figura 59: Cena de A princesinha medrosa – guarda acende os lampiões (luminárias). ..................................... 164 Figura 60: Cena de A princesinha medrosa - TILS adota movimento dos atores para acender luminárias ......... 165 12 LISTA DE QUADROS Quadro 1: Cena de Adeus palhaços mortos! – direcionamento de olhar do espectador. ................................... 149 Quadro 2: Cena de A princesinha medrosa – TILS interage com a cena. .......................................................... 155 Quadro 3: Cena de Hotel Mariana em que a visualidade da cena é importante para entendimento do espetáculo. ............................................................................................................................................................................. 162 Quadro 4: Cena de Hotel Mariana - atores/personagens que têm o turno de fala marcados pela iluminação da cena. .................................................................................................................................................................... 163 Quadro 5: Cena do espetáculo Ida em que TILS faz referência ao objeto da cena. ........................................... 166 Quadro 6: Cena do espetáculo Ida em que TILS faz referência ao objeto da cena de forma diferente. ............. 167 Quadro 7: Cena de Adeus palhaços mortos! Visualidade do cenário influencia os enunciados das TILS. ........ 169 Quadro 8: Cena do espetáculo Adeus palhaços mortos! Projeções no cenário influenciam a interpretação em libras. .................................................................................................................................................................. 170 Quadro 9: Cena inicial de Hotel Mariana - indicação de elementos sonoros. ................................................... 174 Quadro 10: Cena do espetáculo Ida - TILS indica elementos sonoros antes de iniciar a sinalização dos depoimentos. ....................................................................................................................................................... 175 Quadro 11: Cena do espetáculo Ida em que a TILS indica elementos sonoros instrumentais. ........................... 176 Quadro 12: Cena de Adeus palhaços mortos! - TILS indica com sinais lexicais e com expressão corporal e facial. .................................................................................................................................................................. 177 Quadro 13: Cena de Adeus palhaços mortos! - TILS utiliza movimento corporal e facial para entonação. ...... 180 Quadro 14: Cena de Adeus palhaços mortos! - TILS utiliza elementos prosódicos para transmitir intensidadedas gargalhadas dos atores. ................................................................................................................................ 182 13 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 15 I. Contextualização do problema e justificativa do trabalho ........................................... 15 II. Objetivos, metodologia e fundamentação teórica ...................................................... 20 III. Organização da pesquisa ............................................................................................ 21 1. CULTURA(S) SURDA(S) E ACESSIBILIDADE A PRODUÇÕES CULTURAIS .................................................................................................................. 25 1.1. Cultura(s) surda(s) ..................................................................................................... 25 1.2. Marcos legais da acessibilidade ................................................................................. 30 2. ESTUDOS DE TEATRALIDADE .................................................................... 41 2.1. Compreendendo conceitos ......................................................................................... 41 2.2. Elementos Cênicos .................................................................................................... 48 A. Elementos sonoros e outras enunciações cênicas .................................................................. 48 B. Iluminação .............................................................................................................................. 49 C. Cenário e objetos cênicos ....................................................................................................... 51 3. TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM ESPETÁCULOS TEATRAIS ........ 53 3.1. Enquadramento teórico .............................................................................................. 53 3.2. Questões teóricas sobre a tradução para espetáculos teatrais ..................................... 56 3.3. Questões práticas da interpretação em língua de sinais em espetáculos teatrais ........ 61 3.3.1. A equipe de profissionais envolvidos .............................................................................. 61 3.3.2. Preparo para a interpretação ......................................................................................... 64 3.3.3. Posicionamento e diferentes formas de atuação ........................................................... 67 A. Interpretação fixa/posicionada no fosso ................................................................................ 80 B. Interpretação fixa/posicionada no proscênio do palco .......................................................... 83 C. Interpretação com diferentes posicionamentos em cena ...................................................... 84 D. Interpretação – sombra .......................................................................................................... 86 E. Outras possibilidades .............................................................................................................. 87 4. TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO COMO PRÁTICA DISCURSIVA ......... 89 4.1. A concepção de linguagem ........................................................................................ 90 4.2. Tradução e interpretação como prática discursiva e a autoria dos TILS ................... 93 4.3. Verbo-visualidade no teatro ..................................................................................... 102 5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS .................................................... 105 5.1. Constituição do corpus ............................................................................................ 105 5.2. Passos metodológicos para descrição e análise do corpus ....................................... 112 6. AUTORIA E CONJUNTO DE TEXTOS EM RELAÇÃO NO TEATRO. ..... 121 6.1. Lugar ideológico da acessibilidade dos espetáculos ................................................ 123 6.2. Posições enunciativas dos TILS .............................................................................. 136 6.3. Texto-corpo: posicionamento da interpretação em cena .......................................... 145 6.4. Texto verbo-visual: incorporação de elementos cênicos visuais na interpretação ... 159 6.5. Texto som: incorporação de enunciados cênicos sonoros na interpretação ............. 171 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 185 REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 193 ANEXO I – Folder do espetáculo Hotel Mariana .................................................... 204 ANEXO II – Folder do espetáculo A princesinha medrosa ...................................... 206 ANEXO III – Quadros de descrição dos espetáculos ............................................. 210 14 ANEXO IV – Questionários aplicados aos TILS ..................................................... 218 ANEXO V – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da PUCSP - CEP-PUCSP .. 238 ANEXO VI– Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (MODELO) ............... 242 ANEXO VII – Termo de cessão de imagens – para grupos dos espetáculos ........... 245 15 INTRODUÇÃO I. Contextualização do problema e justificativa do trabalho A acessibilidade comunicacional para pessoas surdas tem crescido em diferentes esferas da atividade humana principalmente a partir do reconhecimento legal da língua brasileira de sinais (doravante libras)1 como meio de comunicação da comunidade surda brasileira, por intermédio da Lei Federal 10.436/2002 e Decreto Federal 5.626/2005. Essa expansão se deu inicialmente na esfera educacional, para então ganhar espaço em diferentes esferas sociais, dentre elas a jurídica, a midiática, da saúde, de conferências, e a esfera artístico-cultural, que aqui destacamos. Diversas instituições culturais, por entenderem seu potencial educativo e formativo, vêm tornando seus espaços e programações cada vez mais acessíveis à comunidade surda, usuária da língua de sinais. A agenda das instituições culturais inclui conferências, debates, seminários, visitas educativas a exposições, shows musicais e espetáculos teatrais. Consequentemente, cresce a demanda pelo profissional tradutor e intérprete de língua de sinais (TILS)2 atuando na esfera artístico-cultural, e, na presente pesquisa, voltamos nosso olhar a esses profissionais TILS na interpretação em libras no gênero espetáculo teatral. No Brasil, a profissão do TILS foi regulamentada recentemente pela Lei 12.319/10 e a obrigatoriedade de acessibilidade em espaços culturais tem sido assegurada desde a 1 Diversos estudos usam diferentes grafias para denominar a língua brasileira de sinais (LIBRAS, Libras ou libras). ‘LIBRAS’ (com todas as letras maiúsculas) é a sigla adotada pela Lei Federal de nº10.436/2002 e em outros documentos oficiais. Já o manual de comunicação do SECOM (Secretaria de Comunicação) do Senado Federal, adota ‘Libras’ (com a inicial maiúscula e as demais minúsculas) como a sigla para língua brasileira de sinais (2013). Contudo, adotamos a grafia com todas as letras minúsculas, com base em estudos recentes que defendem essa grafia – ‘libras’ – por considerarmos a língua brasileira de sinais como uma língua natural e com o mesmo status linguístico do português (QUADROS, KARNOPP, 2004; QUADROS, 2013) e por ser essa a forma como as línguas naturais são grafadas em língua portuguesa (cf. MCCLEARY, VIOTTI, LEITE, 2010; NASCIMENTO, BEZERRA, 2012; LESSA-DE-OLIVEIRA, 2012; OLIVEIRA-SILVA e CHAVEIRO, 2017). 2 Este estudo adota o termo TILS (tradutor intérpretede língua de sinais), para o profissional que atua na mobilização discursiva entre uma língua de sinais (de modalidade gesto-viso-espacial) e uma língua oral (de modalidade (oral-auditiva). Nos ETILS (estudos da tradução e interpretação de línguas de sinais), encontramos diversas siglas para nomear esse profissional: ILS – intérprete de língua de sinais ou intérprete de libras, TILS – tradutor e intérprete de língua de sinais e TILSP – tradutor e intérprete de libras/português. Justificamos não adotar o TILSP, pois diversos estudos que trazemos nesta pesquisa são também referentes à tradução e interpretação em línguas de sinais de outros países e não necessariamente do par linguístico (libras/português). No terceiro capítulo, explicitaremos que há uma diferença entre a atividade de tradução e de interpretação e que neste estudo observaremos o ato interpretativo, ou seja, esse profissional em atividade na interpretação simultânea do espetáculo, no momento da enunciação em libras, e não especificamente a atividade de tradução de textos escritos (poderíamos então adotar o ILS – intérprete de língua de sinais). Contudo, como nesta pesquisa contemplamos também a interface com os estudos da tradução, que se dá no processo de estudos para a interpretação do espetáculo, consideramos pertinente manter a nomenclatura TILS que contempla a interface tanto com a tradução como com a interpretação de língua de sinais. 16 Constituição Federal de 1988, a Lei 10.098/00, Decreto 5626/04, Estatuto de Museus da Lei nº 11.904/09, o Plano Nacional de Cultura (PNC) de 2010 e, mais recentemente, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) - Lei nº 13.146/15, que se destina a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais para a pessoa com deficiência, visando à inclusão social e à cidadania. Esta última, a LBI, incluiu na Lei Rouanet (Lei no. 8.313/91) um parágrafo em que determina que os incentivos do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) serão concedidos a projetos culturais quando disponibilizados em formato acessível. Assim, para atendimento a questões legais e para obtenção de incentivo financeiro, uma série de editais têm contemplado essa demanda e diversos projetos culturais têm se mobilizado para atender à acessibilidade, motivo pelo qual percebe-se o crescimento de ações voltadas à acessibilidade em diversas instituições culturais. Sobre as pesquisas acadêmicas voltadas à observação da atividade desses profissionais, a maioria centraliza seus esforços na educação, provavelmente devido ao fato de a luta da comunidade surda, por questões históricas, ter sido voltada primordialmente para o direito à educação bilíngue. Contudo, Nascimento (2016b), ao realizar uma pesquisa sobre tradução no gênero televisivo, alerta-nos sobre a necessidade de a exigência de acessibilidade em outras esferas também fazer parte da agenda de discussões. O direcionamento apenas para o campo educacional – necessário e urgente sem dúvida alguma – pode fazer com que o cumprimento de leis que responda à demanda de circulação da língua de sinais em outras esferas – tão necessárias quanto a educação como, por exemplo, a saúde – seja adiado devido à ausência de uma movimentação política para tais setores. A televisão é uma das mídias passíveis de cumprimento das determinações relacionadas à acessibilidade, mas o cinema, o teatro e as produções audiovisuais em que circulam a cultura, a arte, a educação e o entretenimento precisam, também estar em pauta nas discussões dessa comunidade (NASCIMENTO, 2016b, p. 48). Rigo (2014a, p. 67) aponta a atuação do TILS na esfera artístico-cultural como “um campo relativamente recente de atuação, mas que se expande rapidamente como um novo e promissor mercado de trabalho”. Segundo a autora, acompanhando essa expansão, pesquisas acadêmicas voltadas à prática desses profissionais também acontecem crescente e gradualmente e “os inúmeros contextos de atuação já transitados por profissionais passam também a tornar-se cada vez mais presentes em forma de temáticas de reflexão e discussão teórica, acadêmica como fonte de investigação e pesquisa científica” (p. 67). Dessa forma, percebem-se algumas produções acadêmicas contemplando também a esfera de atuação 17 artístico-cultural (cf. RIGO, 2013, 2014a, 2014b; MACHADO, 2013; GRUTZMACHER et al., 2014; CORREIA E RIBEIRO, 2014; DUARTE, 2014; FELICIO, 2017; SILVA NETO, 2017; SANTANA e VIEIRA-MACHADO, 2018). Apesar das crescentes pesquisas acadêmicas na última década, com importantes contribuições ao campo dos estudos da tradução e interpretação de língua de sinais (ETILS), são ainda incipientes pesquisas que abordem o processo interpretativo em si e sua relação com o contexto em que esses enunciados se inserem, e, mais especificamente, pesquisas que abordem o processo interpretativo e a construção de sentidos no gênero espetáculo teatral. Na perspectiva bakhtiniana3 assumida neste estudo, “uma voz é sempre ideológica porque ela traz um ponto de vista constituído num determinado lugar e não em outro” (AMORIM, 2004, p. 143); por isso, neste momento da introdução, peço licença ao leitor para usar a primeira pessoa do singular e trazer o contexto em que esta dissertação se insere e o meu lugar enquanto pesquisadora. Esta pesquisa nasce, em parte, de minha experiência nos últimos anos atuando como TILS em museus e instituições culturais, nos quais tenho trabalhado na mediação educativo-cultural de exposições e eventos, acessibilizando conteúdos os mais diversos. Minha formação inicial é em arquitetura, tendo trabalhado especialmente com projetos voltados à acessibilidade, de onde decorre o meu interesse pelo assunto da diversidade e minha profissionalização em língua de sinais. Entretanto, minha atuação como tradutora intérprete de língua de sinais teve início na esfera religiosa e comunitária, em trabalhos voluntários, para apenas posteriormente entrar na esfera artístico-cultural. Meu primeiro trabalho profissional com a língua de sinais no campo das artes foi no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), em 2010, quando comecei a interpretar no setor educativo do museu, em oficinas artísticas. Assim, gradualmente, fui interseccionando os dois universos que me circundavam, das artes e da acessibilidade. Minha entrada no universo da língua de sinais foi intensa e transformadora. Nos últimos cinco anos, com cada vez mais frequência, venho atuando em diversos gêneros da 3 Teremos um capítulo destinado a apresentar os conceitos e formulações teóricas de Bakhtin e o Círculo que nortearam a pesquisa, mas vale aqui resumidamente esclarecer que o Círculo de Bakhtin foi um grupo composto por diferentes intelectuais da Rússia do final do século XIX e começo do século XX que se debruçou sobre as questões da linguagem, da literatura, da música, da arte, da filosofia, da psicologia e de outras áreas do conhecimento. Esse grupo produziu um importante conjunto de reflexões que influenciaram os estudos da linguagem e têm sido utilizado em diferentes campos do conhecimento (BRAIT, 2005; FARACO, 2009). Usaremos a expressão pensamento bakhtiniano e perspectiva dialógica para designar o conjunto dessas reflexões. 18 interpretação: visitas educativas, vídeo-guias4 em libras para exposições, seminários, palestras, tradução de vídeos, oficinas e, no objeto de estudo desta dissertação, espetáculos teatrais e musicais voltados ao público infantil e adulto. Atuando na interpretação de espetáculos vivencio muitas experiências e encontros que me fazem refletir constantemente sobre estratégias tradutórias e escolhas estéticas, uma importante motivação para a pesquisa. A experiência quanto à receptividade da minha atuação na interpretação em libras pelos grupos de teatro é diversa. Há grupos que ficam encantadoscom a possibilidade, acolhem e até interagem conosco em algumas cenas; contudo, não posso deixar de mencionar experiências de embates com produtores e diretores de teatro que não veem como importante a presença dos intérpretes de libras e consideram esse recurso como uma interferência negativa em suas obras, dificultando o acesso a ensaios e demorando para disponibilizar materiais para estudo (roteiro ou registro do espetáculo). Questionamentos recorrentes dos produtores são: “Onde elas vão ficar pode atrapalhar a cena, ou desviar a atenção dos espectadores, será que elas não podem ficar lá no fundo?”, “Mas elas precisam interpretar mesmo que não tenha público surdo?”, “Onde a gente pode colocar elas mais escondidas para não atrapalhar a cena?”, “No momento do blackout apaga as luzes delas e elas não precisam interpretar”, “Deixa a luz delas bem fraquinha”, dentre outros comentários que deixam claro um certo incômodo dos produtores, diretores, encenadores e iluminadores. Obviamente, as diferentes formas com que sou recebida pelo grupo de teatro interferem na forma como o meu corpo vai atuar em cena e na forma como me sinto (ou não) parte do projeto discursivo do espetáculo, e aqui, pontuo mais um forte incentivo à esta pesquisa. Concomitante a isso, nos últimos três anos, também atuo na docência e formação de futuros profissionais TILS em um curso de pós-graduação lato sensu. Assim, como resultado da prática profissional como TILS e reflexão dessa prática em sala de aula, surge a necessidade de bases teóricas que ajudem a compreender os processos de tradução e interpretação de uma língua de sinais e o contexto em que ela se insere. Acredito ser importante e necessário esclarecer também que conheço o meu lugar de fala e as lentes pelas quais vejo o mundo. Sou uma pesquisadora ouvinte, TILS há 4 Vídeo-guias em libras são um recurso de acessibilidade para acesso a conteúdos de espaços expositivos em que a mediação educativo-cultural é feita através de vídeos gravados em libras e legendas em português, para que o público espontâneo possa “fazer a visita à exposição de forma autônoma, escolhendo as obras que deseja ver e determinando o tempo de sua visita, independente da presença de um educador surdo ou intérprete de Libras” (FOMIN e CASTILHO, no prelo). Segundo os autores, normalmente são elaborados pelo setor educativo do museu ou instituição cultural, por educadores surdos em parceria com TILS, mas pode envolver outros setores como curadoria, comunicação, programa de parceiros, marketing e editora-crítica. 19 aproximadamente catorze anos (dos quais oito são na esfera artístico-cultural), consciente de que a partir de minha perspectiva ouvinte, nunca esgotarei a abrangência do ‘ser surdo’; portanto, ao escrever sobre a surdez e o que se denomina cultura surda, e ao observar e analisar uma interpretação em libras que objetiva comunicar com interlocutores espectadores surdos, não pretendo colocar pontos finais. Fazer isso seria contraditório à concepção teórica adotada neste estudo. Assim, com esta dissertação, pretendo ampliar o debate e somar às pesquisas voltadas à atividade profissional de interpretação em libras na esfera artístico- cultural, especificamente em espetáculos teatrais. Esses profissionais TILS, nas diversas esferas em que atuam, enfrentam diariamente desafios de tradução (e de interpretação) interlingual (JAKOBSON, 2010), intermodal (SEGALA, 2010), pois na mobilização discursiva de línguas, tanto na tradução como na interpretação, lidam com um par linguístico em que uma das línguas é de modalidade oral- auditiva (português) e a outra de modalidade gesto-visual (libras), e, no teatro, lidam com a interface da tradução intersemiótica, pois partem de um texto escrito (roteiro do espetáculo) para estudos, e, no ato interpretativo, lidam com um enunciado encenado. Na abordagem teórica bakhtiniana que assumimos nesta pesquisa, entendemos que, além da mobilização de línguas, no ato interpretativo, há a mobilização de discursos a partir de diferentes gêneros e esferas de atividade. Se muitos são os desafios da interpretação interlingual intermodal em qualquer esfera em que se pressupõe uma teia complexa de relações, quando se trata de enunciados da esfera artística, diversos fatores devem ser considerados para além das transferências culturais e linguísticas que se produzem e, no gênero espetáculo teatral, o ato interpretativo deve considerar a cena teatral como um todo que dialoga. Assim, profissionais TILS, ao interpretarem em espetáculos teatrais, mobilizam não apenas um texto escrito ou falado, mas uma “enunciação própria do teatro: a de um texto proferido pelo ator, num tempo e lugar concretos, dirigido a um público que o recebe no fundo de um texto e de uma encenação” (PAVIS, 2015a, p. 123). Ou seja, além dos desafios de tradução de um texto dramático, ou da interpretação do que será proferido oralmente pelos atores, considera-se onde esse texto foi proferido, sob quais circunstâncias, quem são os interlocutores envolvidos, e como se deu essa enunciação. Dessa forma, não se trata de um texto pronto, engessado, repetível, mas de textos vivos, únicos e irrepetíveis, colocados em cena por sujeitos em um dado contexto cênico, contexto este que se compõe por diversos textos verbais e visuais, que influenciam a compreensão dos interlocutores e ampliam sentidos. 20 II. Objetivos, metodologia e fundamentação teórica Nesta pesquisa, observaremos as peculiaridades dos textos produzidos no gênero espetáculo teatral em seu sentido amplo, o que implica não enfrentá-los apenas pela dimensão verbal de um texto escrito ou de um roteiro fornecido como base de um espetáculo, já que os sentidos produzidos em espetáculos teatrais são construídos, também, por elementos extraverbais e não verbais que compõem a teatralidade, como músicas, efeitos sonoros, movimentação de cenário, movimentação de personagens, atuação e corpo dos atores, projeções, reações da plateia etc. Com base nas formulações teóricas de Bakhtin e o Círculo, o texto a ser interpretado pelo TILS é entendido como um enunciado, um todo orgânico que dialoga com diversas vozes sociais que se inserem numa cadeia discursiva, refletindo-as e refratando-as, em uma atitude responsiva. Assim, não estudaremos isoladamente a tradução de uma produção textual dramática, ou a visualidade teatral como arte, mas a dimensão verbo-visual que, segundo Gonçalves (2013), é provocada pelo teatro na hibridização das artes visuais com a linguagem verbal na produção de sentidos. Esta pesquisa que observa a atuação de profissionais TILS na esfera artístico-cultural, no gênero espetáculo teatral, tem por objetivo descrever e analisar os elementos extraverbais, verbais e verbo-visuais constitutivos da cena teatral que são absorvidos na enunciação do TILS durante o ato interpretativo, ou seja, na mobilização discursiva da apresentação teatral para a libras. Os objetivos específicos são: a) observar o contexto extraverbal dos espetáculos e como se deu a concepção de acessibilidade; b) descrever e analisar a condição enunciativa dos TILS e a logística da interpretação; c) descrever e analisar verbo-visualidades da cena teatral que foram absorvidaos nos enunciados do TILS no ato interpretativo; d) descrever e analisar os textos inter-relacionados que compuseram os enunciados dos TILS. Para alcançar esses objetivos, para constituição do corpus, fizemos o registro em vídeo dos espetáculos e da atuação dos TILS, registramos anotações em um diário de campo durante as apresentações, levantamos o material de apoio distribuído no dia do espetáculo (folder ou material de divulgação) e aplicamos um questionário para que os TILS pudessem descrever como se prepararam para a interpretação e fazer observações sobre as impressões que tiveram sobrea atuação no momento em que o espetáculo aconteceu. A partir do contexto apresentado, as questões de pesquisa que direcionam este estudo são: a) o preparo e a logística de atuação como posicionamento e visão da cena teatral 21 influenciam nas estratégias interpretativas dos TILS?; b) para além do texto proferido pelos atores, que aspectos da cena teatral que influenciam a enunciação dos TILS durante o ato interpretativo?; c) quais as estratégias utilizadas pelos TILS para comunicação de aspectos extralinguísticos? Foram analisados quatro espetáculos: Hotel Mariana (realizado em 05/07/2017 no Instituto Itaú Cultural), Ida (realizado em 15/08/2017 no Instituto Itaú Cultural), Adeus palhaços mortos! (realizado em 22/08/2017 no Instituto Itaú Cultural) e A princesinha medrosa (realizado em 03/09/2017 no Serviço Social do Comércio – SESC, unidade Santana)5. Os espetáculos foram escolhidos por estarem em cartaz com acessibilidade em libras. Outro critério foi, a partir da sinopse, selecionarmos espetáculos que apresentassem diferentes temáticas e características, como público alvo adulto ou infantil e quantidade de atores em cena. As TILS, escolhidas pela sua experiência profissional e por estarem atuando na esfera artístico-cultural, foram cinco: Amanda Assis, Erika Mota Rodrigues, Lívia Vilas Boas, Naiane Caroline Silva Olah e Thalita Passos. Amanda foi contratada pelo grupo de teatro e foi considerada como participante do espetáculo. Já Erika, Lívia, Naiane e Thalita foram contratadas pela instituição cultural que sediou os espetáculos e a companhia de teatro não teve opção de escolha pela acessibilidade em libras, uma vez que era uma regra da instituição cultural que tiveram que acatar. Nos espetáculos Hotel Mariana, Ida e Adeus palhaços mortos!, a interpretação em libras se deu com as duas profissionais TILS atuando em equipe6, alternando entre turno de interpretação e apoio; já em A princesinha medrosa, uma TILS atuou sozinha durante todo o espetáculo. III. Organização da pesquisa A pesquisa encontra-se organizada em seis capítulos. Após esta introdução, no primeiro capítulo, nomeado Cultura(s) surda(s) e acessibilidade às produções culturais, 5 Todas as informações sobre as montagens e ficha técnica dos espetáculos encontram-se nas referências bibliográficas desta pesquisa. Doravante faremos menção aos espetáculos utilizando o nome do espetáculo em itálico, sem a indicação do ano, visto que cada apresentação do espetáculo é única e o ano da montagem não necessariamente corresponde ao ano da apresentação. 6 O conceito de “atuação em equipe” foi adotado com base nos estudos de Nogueira (2016), que traz autores e reflexões que abordam o revezamento na produção da interpretação. A atuação em equipe inclui, como uma das características, a alternância da responsabilidade do turno da interpretação, na qual um TILS assume a função de produção da interpretação e o outro de apoio. 22 abordamos questões sobre a identidade surda e a relação de surdos com a cultura ouvinte, diferenciando produções culturais idealizadas e produzidas por surdos e o acesso às produções culturais existentes na sociedade. Nesse primeiro capítulo também foram mapeados marcos legais e normativos que contribuíram para o crescimento da acessibilidade em instituições culturais. No segundo capítulo, Estudos de teatralidade, elencamos os conceitos que compõem a teatralidade e que se mostraram importantes para compreensão e análise do corpus. A atenção está focada nos conceitos de espetáculo teatral, texto dramático, situação de enunciação, encenação e representação, e nos elementos cênicos: música, objetos e iluminação. No terceiro capítulo, denominado Tradução e interpretação em espetáculos teatrais, a partir dos estudos da tradução e da interpretação de línguas de sinais – ETILS, observamos questões relacionadas à atividade de interpretação em língua de sinais em espetáculos teatrais, elencando algumas características inerentes a essa atividade e levantando questões relacionadas à equipe de interpretação, logística, posicionamento e diferentes formas de interpretação em espetáculos teatrais. Em seguida, no quarto capítulo, Tradução e Interpretação como prática discursiva, apresentamos a teoria fundante de nossa análise: a teoria enunciativo-discursiva de Bakhtin e o Círculo. Dentre os muitos conceitos imbricados nessa teoria, para descrição e análise do corpus, trabalhamos os conceitos de dialogismo, gêneros discursivos e enunciado. Na sequência, abordamos a tradução e interpretação de língua de sinais como uma prática discursiva (cf. NASCIMENTO 2011, 2014a, 2014b, 2016a), para então discutir a questão da autoria e, para finalizar o capítulo, a partir dos estudos que vêm sendo desenvolvidos por Brait (2009, 2010, 2013), trabalhamos a dimensão verbo-visual dos textos, entendendo que linguagem verbal e visual, casadas, produzem sentidos. No quinto capítulo apresentamos os Procedimentos metodológicos de análise, bem como a descrição do contexto da pesquisa, pois os excertos que são apresentados na análise foram escolhidos após longo processo de descrição tanto da cena teatral como da atuação das TILS. Conscientes que nenhum método de análise da cena teatral esgota todas as possibilidades de observá-la, a fim de fazer notar algumas das variáveis envolvidas na enunciação em libras, nesta análise, realizamos um estudo qualitativo do tipo analítico- descritivo de quatro espetáculos que contaram com apresentações teatrais acessíveis em libras por meio da contratação de TILS. 23 A análise do corpus é apresentada no sexto capítulo denominado Autoria e conjunto de textos em relação no teatro a partir dos pressupostos teórico-metodológicos adotados. Discutimos nos espetáculos Hotel Mariana, Adeus palhaços mortos!, Ida e A princesinha medrosa, nos questionários respondidos pelos TILS e no material de divulgação dos espetáculos, aspectos relacionados à autoria dos intérpretes que atuaram nas apresentações acessíveis em libras e o quanto tanto as dimensões extraverbal e verbo-visual são constitutivas de espetáculos teatrais e exercem influência na interpretação em libras. A análise do corpus aponta para questões ideológicas que estão imbricadas na concepção de acessibilidade dos espetáculos e para uma totalidade do enunciado que se dá a partir da posição enunciativa dos TILS e de conjuntos de textos inter-relacionados, dos quais o TILS em cena é parte indissolúvel, amalgamado e constitutivo do enunciado concreto. 24 25 1. CULTURA(S) SURDA(S) E ACESSIBILIDADE A PRODUÇÕES CULTURAIS Nesse encontro dialógico de duas culturas, elas não se fundem nem se confundem; cada uma mantém a sua unidade e a sua integridade aberta. Mas elas se enriquecem mutuamente Mikhail Mikhailovitch Bakhtin Arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade. Mikhail Mikhailovitch Bakhtin Neste capítulo inicial, entendemos ser fundamental fazermos a distinção entre o que se denomina cultura(s) surda(s) e a garantia de acesso às produções culturais que circulam na sociedade brasileira de forma geral. Para tal, primeiramente discutimos o conceito de cultura(s) surda(s) e, na sequência, levantamos leis e normativas de garantia de acessibilidade a produções culturais ouvintes e discutimos a necessidade de uma política que contemple os direitos linguísticos da comunidade surda de produzir cultura na sua língua natural. 1.1. Cultura(s) surda(s) Iniciamos a discussão e refletimos sobre cultura, a partir do conceito da diferença, da singularidade, e não da hegemonia. Primeiramente, estamos falando de sujeitos únicos, que se constituem na relação de alteridade e de interação no processo de comunicação discursiva que acontece entreindivíduos socialmente organizados. Portanto, não podemos ignorar a singularidade de cada um, colocando-os em um mesmo balaio generalista, tampouco podemos deixar passar ao largo a relação estreita desses sujeitos na constituição de suas consciências com o processo de comunicação e interação discursiva. As comunidades surdas no Brasil vêm lutando contra o estereótipo da deficiência, que vem carregado de um sentido de incapacidade e de necessidade de serem curados de algum mal. Lutam também pelo reconhecimento da diferença. Pela diferença linguística inclusive. Trata-se de adotar o paradigma da potência e não o da ausência. Trocar a lente pela qual se vê o sujeito surdo, sua(s) identidade(s) e sua(s) cultura(s). 26 Stuart Hall, em sua pesquisa sobre as identidades culturais de diferentes grupos sociais, traz um ponto de vista não hegemônico para os estudos culturais e ao mesmo tempo ressalta a importância da cultura nos modos de viver e na constituição dos sujeitos. Para Hall (1977, p. 16): Por "substantivo", entendemos o lugar da cultura na estrutura empírica real e na organização das atividades, instituições, e relações culturais na sociedade, em qualquer momento histórico particular. Por "epistemológico" nos referimos à posição da cultura em relação às questões de conhecimento e conceituação, em como a "cultura" é usada para transformar nossa compreensão, explicação e modelos teóricos do mundo. Para o autor, as identidades sociais são construídas através da cultura e resultam “de um processo de identificação que permite que nos posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles)”. Hall (1977) conceitua as “identidades” e afirma que estas são formadas culturalmente. Nas palavras dele, O que denominamos "nossas identidades" poderia provavelmente ser melhor conceituado como as sedimentações através do tempo daquelas diferentes identificações ou posições que adotamos e procuramos "viver", como se viessem de dentro, mas que, sem dúvida, são ocasionadas por um conjunto especial de circunstâncias, sentimentos, histórias e experiências única e peculiarmente nossas, como sujeitos individuais. Nossas identidades são, em resumo, formadas culturalmente (p. 26). Hall (1997) afirma que “nossas chamadas subjetividades são, então, produzidas parcialmente de modo discursivo e dialógico” (p. 27). E, nesse processo, sob a ótica da cultura, fica cada vez mais difícil distinguir interior e exterior, social e psíquico. [...] os processos econômicos e sociais, por dependerem do significado e terem consequências em nossa maneira de viver, em razão daquilo que somos - nossas identidades - e dada a "forma como vivemos", também têm que ser compreendidos como práticas culturais, como práticas discursivas (HALL, 1997, p.27). A cultura tem, portanto, um papel constitutivo de práticas sociais e ao mesmo tempo as práticas sociais são reguladas pela cultura. E ainda, as práticas sociais, para produzirem efeitos de sentido, são discursivas, inseridas em uma cadeia de discursos. “Toda prática social tem condições culturais ou discursivas de existência” (HALL, 1997, p. 34, grifo do autor). A partir dessa compreensão epistemológica da cultura, entendemos que não devemos pensar em uma dimensão centralizadora, devemos pensar para além de uma cultura universal, 27 reconhecendo processos culturais em grupos minoritários, como a comunidade surda (KARNOPP et al., 2011). Sobre cultura surda, Karnopp et al. (2011, p. 18) afirma que, quando a libras teve por muito tempo o seu uso proibido em escolas ou enquanto a libras não era reconhecida, “não havia espaço nem aceitação para as produções culturais em sinais”, e também não havia o reconhecimento de cultura surda nem publicações a este respeito. Contudo, a cultura e a língua de sinais sempre estiveram vivas e “entre os surdos, circulavam histórias sinalizadas, piadas, poemas, histórias de vida, mas em espaços que ficavam longe do controle daqueles que desprestigiavam a língua de sinais” (KARNOPP et al., 2011, p. 18). Esses fatos só corroboram nosso entendimento de que a cultura se materializa na linguagem e nas práticas sociais, que, ainda que marginalizadas, exercem força constitutiva de discursos. Karnopp et al. (2011, p. 16) entende a “cultura como campo de luta em torno de significação social”, e, assim como outras culturas de grupo minoritários, a cultura surda “como espaço de contestação e de constituição de identidades e diferenças que determinam a vida de indivíduos e de populações”. Os discursos e concepções que circulam em torno da surdez, segundo Assis Silva (2012), são dois: há o modelo médico e o modelo sócio antropológico. No primeiro, o surdo é visto como sendo “um outro que fundamentalmente não ouve e precisa ascender à condição de igualdade do ouvinte (este, sobretudo, um ser humano que ouve), por meio de formas de reabilitação e normalização” (ASSIS SILVA, 2012, p. 18-19), modelo que explicita uma desvantagem imposta pela falta da audição, pela falta de comunicação e pela necessidade de reabilitação, necessidade de normalização. Nesta concepção, médicos defendem cirurgias de implante coclear e tratamentos fonoaudiológicos que visam a oralização. Já no modelo sócio antropológico é adotado por intelectuais que mobilizam o saber linguístico e, com o aparato legal, defendem que o reconhecimento das particularidades linguísticas confere a possibilidade de igualdade entre surdos e ouvintes. Dessa forma, Nesta concepção, o surdo é um outro que fundamentalmente utiliza uma língua específica e que somente pode se tornar um igual no interior do Estado-nação por meio do reconhecimento de sua particularidade, já que é membro de uma comunidade linguística minoritária, a denominada comunidade surda brasileira (ASSIS SILVA, 2012, p.19). No Brasil, esse grupo falante de uma língua de sinais, a libras, passou a ser referido por religiosos, ativistas políticos, intelectuais e pesquisadores da área como “sendo a 28 comunidade surda, ou mesmo o povo surdo, grupo este com uma história particular e uma cultura específica, a chamada cultura surda” (ASSIS SILVA, 2012, p. 20, grifo do autor). Para muitos resulta curiosa e, para outros, decididamente incômoda, a referência a uma cultura surda. Em menor grau ainda, se discute hoje a existência de uma comunidade de surdos. Talvez se resulte fácil definir e localizar, no tempo e no espaço, um grupo de pessoas, mas, quando se trata de refletir sobre o fato de que nessa comunidade, surgem ou podem surgir processos culturais específicos, é comum a rejeição à ideia da “cultura surda”, trazendo como argumentação a concepção cultural universal, a cultura monolítica (SKLIAR, 2016, p. 29). Gladis Perlin (2016), pesquisadora surda, afirma que os surdos fazem parte dos movimentos marginalizados e que são muitos os estereótipos que circulam na sociedade no que tange às identidades surdas: “o surdo foi acumulando estereótipos que têm reforçado cada vez mais a hegemonia discriminatória de sua produção cultural. O discurso de poder do ouvinte mantém-se firme e controla esses estereótipos” (PERLIN, 2016, p. 55). Para a autora, “o discurso surdo inverte a ordem ouvintista, tem o peso da resistência. Rompe e contesta as práticas historicamente impostas pelo ouvintismo7. E o discurso surdo continua na busca de poder e autonomia” (p. 58). Perlin (2016, p. 54) fala também em identidades surdas e afirma que “as identidades surdas estão aí, não se diluem totalmente no encontro ou na vivência em meios socioculturais ouvintes”. A autora vê a cultura surda como diferença e afirma que a cultura surda “se constitui numa atividade criadora. Símbolos e práticas jamais conseguidos, jamais aproximados da cultura ouvinte. Ela é disciplinada por uma forma de ação e atuação visual e não auditiva”(PERLIN, 2016, p. 56). Sugiro a afirmação positiva de que a cultura surda não se mistura à ouvinte. Isto rompe o velho status social representado para o surdo: o surdo tem de ser um ouvinte, afirmação que é crescente, porém oculta socialmente. Rompe igualmente a afirmação de que o surdo seja usuário da cultura ouvinte. A cultura ouvinte, no momento, existe como constituída de signos essencialmente auditivos. No que tem de visual, como a escrita, igualmente é constituída de signos audíveis (PERLIN, 2016, p. 56-57). Karnopp et al (2011) aponta como necessário entender que ao afirmarmos que surdos brasileiros são membros de uma cultura surda não significa dizermos que todos os surdos do mundo, pelo fato de não ouvirem, compartilham da mesma cultura. Surdos brasileiros 7 Pensando em relações de poder, para Perlin (2016, p. 59), “o ouvintismo deriva de uma proximidade particular que se dá entre ouvintes e surdos, na qual o ouvinte está sempre em posição de superioridade”. 29 compartilharão da cultura surda brasileira, assim como surdos americanos, da cultura surda americana. Entretanto, o fato de viverem e experimentarem o mundo através da experiência visual, gera um ponto de contato entre culturas, independente do local onde vivem. Nesse mesmo sentido, de um ponto de contato entre culturas, que ocorre entre surdos de outros países que compartilham de experiências visuais pela modalidade de língua, discutimos também o contato cultural com a população ouvinte do local onde vivem. Quadros e Sutton-Spence (2006) afirmam que: A identidade e a cultura das pessoas surdas são complexas, já que seus membros frequentemente vivem em um ambiente bilíngue e multicultural. Por um lado, as pessoas surdas fazem parte de um grupo visual, de uma comunidade surda que pode se estender além da fronteira nacional, no nível mundial. É uma comunidade que atravessa fronteiras. Por outro lado, eles fazem parte de uma sociedade nacional, com uma língua de sinais própria e com culturas compartilhadas com pessoas ouvintes de seu país (p. 111). Para Skliar (2016, p. 30), a cultura surda não pode ser compreendida como um revés da cultura ouvinte ou “imagem velada de uma hipotética cultura ouvinte”, mas só nos cabe compreender a cultura surda “por meio de uma leitura multicultural, ou seja, a partir de um olhar de cada cultura em sua própria lógica, em sua própria historicidade, em seus próprios processos e produções”. Nesse mesmo pensamento, reconstruir a história através de sua própria cultura “é uma nova experiência de liberdade, a partir da qual se torna possível aos surdos imaginarem outras representações para narrarem a própria história do que significa ser surdo” (SKLIAR, 2016, p. 30). Esta pesquisa parte do modelo sócio antropológico apresentado por Assis Silva (2012) e do conceito proposto Karnopp (2006, 2011), que representam o reconhecimento do povo surdo brasileiro como um grupo falante de uma língua de sinais, que vive no Brasil e que se reconhece como povo que constitui uma comunidade que luta pelo seu reconhecimento cultural e identitário. E, numa perspectiva dialógica, entendemos a individualidade e singularidade do sujeito que constitui e é constituído pela cultura, que assina e valora na relação com o outro. São culturas e identidades, que se constituem na pluralidade da vida. No pensamento bakhtiniano, segundo Amorim (2015), a cultura em si (como pensamento e arte abstratos) remete ao que é indiferente ao sujeito, ao que é reprodutível universalmente. Por isso, necessita do sujeito com sua singularidade participando da cultura para renascer e atualizar possibilidades. Nessa linha, o ato de pensar de um sujeito concreto, num contexto real, deve ser responsável, e envolve doar de si ao ser da cultura. “O que há de 30 reprodutível e idêntico a si mesmo na cultura deve encontrar o irreprodutível de uma existência singular” (AMORIM, 2015, p. 33). Para Bakhtin (2017a), a cultura não pode ser entendida como algo preso a um determinado tempo ou à sua época, mas se revela no grande tempo. Para o pensador russo “a unidade da cultura é uma unidade aberta” (p. 16, grifo do autor) e não podemos ignorar a relação de reciprocidade e interdependência entre os diversos campos da cultura, nem esquecer que as fronteiras desses campos não são absolutas e variam em diferentes épocas: “a vida mais intensa e produtiva da cultura transcorre precisamente nas fronteiras de seus campos particulares e não onde e quando essas fronteiras se fecham em sua especificidade” (BAKHTIN, 2017a, p. 12). A cultura do outro só se revela com plenitude e profundidade (mas não em toda plenitude, porque virão outras culturas que a verão e compreenderão ainda mais) aos olhos de outra cultura. Um sentido só revela as suas profundezas encontrando e contatando o outro, o sentido do outro: entre eles começa uma espécie de diálogo que supera o fechamento e a unilateralidade desses sentidos, dessas culturas. Colocamos para a cultura do outro novas questões que ela mesma não se colocava; nela procuramos resposta a essas questões, e a cultura do outro nos responde, revelando-nos seus novos aspectos, novas profundezas de sentido (BAKHTIN, 2017a, p. 18-19, grifos do autor). Do ponto de vista dialógico, entendemos que além dessa discursividade que se dá ao longo do tempo, somos sujeitos em relação e que na interação sempre seremos alterados pelo outro. Assim, o povo surdo brasileiro produz cultura, seus modos de se relacionar e de se expressar, através de literatura surda, poesia surda, teatro surdo, narrativas surdas em libras, e, também, acessa, participa, influencia e é influenciado pelas produções culturais do país em que vive, mesmo que produzidas em outra língua (português oral e/ou escrito). Assim sendo, para participar da cultura nacional necessita de acessibilidade comunicacional, contudo, pode e deve produzir cultura na sociedade que integra. 1.2. Marcos legais da acessibilidade No que tange ao acesso às produções culturais ouvintes que circulam em nossa sociedade brasileira, lançaremos olhar pelo viés dos marcos legais na garantia de acesso comunicacional e discutiremos a necessidade de uma política que garanta os direitos linguísticos e a produção cultural feita na e pela comunidade surda. 31 A cultura, na compreensão de Tojal (2007, p. 79) é direito de todos e “deve ser entendida como espaço da diversidade”. O exercício desses direitos, segundo a autora, ocorreu acompanhando os processos de inclusão social na educação. Em instituições culturais, a acessibilidade teve início com questões dirigidas ao acesso físico para depois experimentar incluir outras propostas que contemplassem também a interatividade com os objetos e artefatos culturais e considerar a participação do público em exposições (TOJAL, 2010). A falta de acesso da comunidade surda brasileira aos discursos que circulam na sociedade compreende a falta de acesso nos microssistemas (nos contextos e esferas imediatos no qual a pessoa está inserida, como escola, igreja, creche, família, trabalho etc.) e nos macrossistemas (contextos e esferas de forma abrangente nos quais os ambientes imediatos estão imersos tais como os meios de comunicação, sistemas de saúde, educacional, políticos e legais) (CAMPOS-DE-CARVALHO, 2008). Essa falta de acesso, dada pela condição de minoria linguística, implica na não participação de discursos do cotidiano e na falta de acesso a informações que circulam nas grandes mídias em discursos oficiais e -ressaltamos aqui - a produções culturais que circulam na sociedade brasileira. Tudo isso traz consequências à comunidade surda e nos remete ao que explicamos no início desse capítulo, de que os surdos, por serem uma minoria linguística, acabam ficando à margem da sociedade. O que estamos problematizando é que a faltade acesso aos discursos que circulam na sociedade de forma geral corrobora o sentimento dos surdos de se sentirem estrangeiros em seu próprio país. Skliar (2016, p. 29) denuncia esse sentimento e afirma que “são numerosos e cada vez mais explícitos os testemunhos de surdos que, ao fazerem referência ao seu passado educativo, invocam imagens ligadas ao fato de se verem como estrangeiros, forasteiros, exilados”. Assim como na educação, essa exclusão, essa falta de acesso às produções culturais que circulam em nosso país, reforçam o sentimento de ‘não pertencimento’. Por esse motivo, discutimos aqui também a necessidade de uma política que garanta os direitos linguísticos da comunidade surda e o incentivo às produções culturais originalmente pensadas em línguas de sinais. Em termos de acesso às produções que circulam na sociedade brasileira, legalmente, algumas conquistas já se fizeram no Brasil no sentido do direito da comunidade surda de se comunicar e ter acesso à informação em sua língua natural. Entra para a agenda o direito à informação e à acessibilidade comunicacional. Esse processo teve início em 1975 com a 32 “Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes”8, elaborada pela ONU, que em 1981, seis anos mais tarde, foi mundialmente enfatizada no “Ano Internacional da Pessoa Deficiente”, cujo tema principal foi “Participação plena e igualdade”. Um ano depois surge o PAM – Programa de Ação Mundial para as pessoas com deficiência. Passada mais uma década, em 1992, foi estabelecido o “Dia Internacional das Pessoas com Deficiência” pela Assembleia Geral da ONU como sendo o dia 03 de dezembro, com o objetivo de compreensão universal dos direitos das pessoas com deficiência, e em 1999 com a Convenção da Guatemala promulgada no Brasil pelo Decreto no. 3.956/2001, aparece a proposta de tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, aceitando e admitindo a diferenciação das pessoas com deficiência. Em dezembro de 2004, o tema internacionalmente consagrado foi: “Nada sobre nós, sem nós” no qual a questão da real e efetiva participação das pessoas com deficiências nas pautas que tangem à deficiência foi reivindicada. É a partir desse período que as pessoas com deficiência passam a ser vistas pela sociedade como parcela ativa e participante, detentora dos mesmos direitos e deveres. Com relação à legislação brasileira, é a partir do PAM que surge a primeira norma técnica sobre acessibilidade – NBR 9050/19859 -, e após três anos a Constituição Brasileira (1988) assegura direito e universalização do acesso a bens e serviços culturais, embora dependesse de uma lei para que esse direito fosse assegurado. Lei essa que só surgirá 12 anos depois (Lei 10.098/2000 e 10.048/2000), e apenas após mais quatro anos é que surge o Decreto 5296/2004, que a regulamenta e ainda estabelece prazos generosos para a execução de adequações. No que tange aos direitos linguísticos da comunidade surda, a Lei 10.098 em 2000 estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. A lei também garante a acessibilidade na comunicação e participação social de pessoas com dificuldade de comunicação no capítulo VII, art. 17, que dispõe sobre a acessibilidade nos sistemas de comunicação e sinalização: Art. 17 O Poder Público promoverá a eliminação de barreiras na comunicação e estabelecerá mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas portadoras de deficiência sensorial e com dificuldade de comunicação, para garantir- 8 Os termos “pessoa com deficiência” e “pessoa deficiente” aparecem nesta pesquisa quando citados por autores ou quando aparecem em alguns documentos legais. Contudo, neste estudo, como comentamos anteriormente, entendemos a pessoa surda a partir de sua condição linguístico-cultural, e não pela falta da audição. 9 NBR 9050:1985 – Adequação das Edificações e do Mobiliário Urbano à Pessoa Deficiente. Esta norma técnica não está mais em vigor e já sofreu diversas revisões. A última revisão foi feita em 2015 e a norma atual carrega o seguinte nome: NBR 9050:2015 - Acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. 33 lhes o direito de acesso à informação, à comunicação, ao trabalho, à educação, ao transporte, à cultura, ao esporte e ao lazer. O Decreto 5296/04 que regulamenta a Lei 10.098/00 em seu Capítulo III das condições gerais da acessibilidade, estabelece: Art. 8o Para os fins de acessibilidade, considera-se: I - acessibilidade: condição para utilização, com segurança e autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos dispositivos, sistemas e meios de comunicação e informação, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida; II - barreiras: qualquer entrave ou obstáculo que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento, a circulação com segurança e a possibilidade de as pessoas se comunicarem ou terem acesso à informação, classificadas em: a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias públicas e nos espaços de uso público; b) barreiras nas edificações: as existentes no entorno e interior das edificações de uso público e coletivo e no entorno e nas áreas internas de uso comum nas edificações de uso privado multifamiliar; c) barreiras nos transportes: as existentes nos serviços de transportes; e d) barreiras nas comunicações e informações: qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos dispositivos, meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa, bem como aqueles que dificultem ou impossibilitem o acesso à informação; (BRASIL, 2004). Acessibilidade, portanto, não é apenas a eliminação de barreiras físicas. Para pessoas surdas a falta de acessibilidade está principalmente relacionada ao direito de comunicação, e o reconhecimento da libras com status linguístico e como meio de comunicação da comunidade surda brasileira vem através da Lei 10.436/02, que também relaciona o uso da língua de sinais e a compreensão de mundo através de experiências visuais da pessoa surda com a sua cultura. No Decreto Federal 5626/05 que regulamenta a Lei 10.436/02, no artigo 2o, lê-se: Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda àquela que, por ter perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de sinais – libras (BRASIL, 2005). Passa a ser inerente também à profissão de tradutor intérprete de libras – português o respeito à cultura surda. Como diz o artigo sétimo da Lei que regulamenta a profissão, a Lei 34 Federal 12.319/10, “o intérprete deve exercer sua profissão com rigor técnico, zelando pelos valores éticos a ela inerentes, pelo respeito à pessoa humana e à cultura do surdo [...]”. Relacionado à acessibilidade comunicacional em instituições culturais, a preocupação com o acesso de pessoas com deficiência a bens culturais, segundo Cohen, Duarte e Brasileiro (2012) tem início em 2003 quando o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - assume essa questão,edita uma Instrução Normativa para se adequar às legislações federais e estabelece “critérios, métodos e instrumentos de análise para a avaliação das condições de acessibilidade dos bens culturais imóveis acautelados em nível federal, a elaboração de diagnósticos, a implementação de projetos de intervenção e a formulação de programas, entre outras práticas” (COHEN, DUARTE E BRASILEIRO, 2012, p. 22). Segundo as autoras, é a partir desse momento que se percebe o início da preocupação com acessibilidade em museus tomar fôlego, movimento nacional tardio