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1 SUMÁRIO 2 INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 2 3 LEITURA DE IMAGENS ....................................................................................... 3 4 CULTURA VISUAL..............................................................................................14 5 COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA VISUAL ...........................................22 6 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................................27 2 1 INTRODUÇÃO Fonte: www.joaoalberto.com Na vida contemporânea, quase tudo do pouco que sabemos sobre o conhecimento produzido nos chega via Tecnologias da Informação e Comunicação – TIC – que, por sua vez, constroem imagens do mundo. Nômades em nossas próprias casas, capturamos imagens, muitas vezes sem modelo, sem fundo, cópias de cópias, no cruzamento de inúmeras significações. Imagens para deleitar, entreter, vender, que nos dizem o que vestir, comer, aparentar, pensar. O crescente interesse pelo visual tem levado historiadoras/es, antropólogas/ os, sociólogas/os, educadoras/es a discutirem sobre as imagens e sobre a necessidade de uma alfabetização visual, que se expressa em diferentes designações, como leitura de imagens e cultura visual. Podemos nos perguntar sobre o porquê de uma cultura visual. Essa cultura exclui o não visual e/ou aqueles que são privados desse sentido? A proposta da cultura visual é a mesma da leitura de imagens? Podemos utilizar as duas expressões como sinônimas? Que professor/a pode desenvolver essas atividades no contexto escolar? A cultura visual não será mais uma designação, entre tantas outras, para confundir as/os professoras/es? Anna Teresa Fabris (1998) nos auxilia a compreender o interesse pelo visual no mundo contemporâneo. Segundo ela, a imagem especular, própria do Renascimento, não é apenas resultado de uma ação artística, mas sim fruto de um cruzamento entre arte e 3 ciência. Sua perspectiva vai muito além da mera aplicação de leis geométricas e matemáticas, pois se trata de um modelo de organização e racionalização de um espaço hierárquico. É a possibilidade de estruturar o espaço a partir de um determinado ponto de vista, aquele de um sujeito onisciente, capaz de tudo dominar e determinar. A autora mostra que o lapso de tempo em que o artista do Renascimento organizava uma nova visualidade coincide com o desenvolvimento da imprensa, com um novo modo de armazenar e distribuir um conhecimento interessado na preservação do passado e na difusão do presente. Nesse período, buscava-se um novo estilo cognitivo baseado na demonstração visual. As imagens com perspectiva eram uma tentativa de tornar o mundo compreensível à poderosa figura que permanecia em pé, no centro da imagem, no único ponto a partir do qual era desenhada. Esse estilo cognitivo perdurou até a fotografia e a videoeletrônica. Mas hoje, com as tecnologias disponíveis no mundo contemporâneo, que estão redefinindo os conceitos de espaço, tempo, memória, produção e distribuição do conhecimento, estamos em busca de uma outra epistemologia, e se necessitamos de outro modo de pensamento, consequentemente necessitamos também de outra visualidade. Nesta apostila, proponho desenredar os conceitos de leitura de imagens e cultura visual, sinalizando suas proximidades e distâncias para sua aplicação à prática educativa. Por meio do contraste entre referenciais teóricos da antropologia, arte, educação, história e sociologia, sugiro linhas de trabalho em ambientes de aprendizagem com o intuito de contribuir para a reflexão que envolve nossa permanente formação como docentes. 2 LEITURA DE IMAGENS A expressão leitura de imagens começou a circular na área de comunicação e artes no final da década de 1970, com a explosão dos sistemas audiovisuais. Essa tendência foi influenciada pelo formalismo, fundamentado na teoria da Gestalt, e pela semiótica. Na psicologia da forma, a imagem constituía percepção, já que toda experiência estética, seja de produção ou recepção, supõe um processo perceptivo. A percepção é entendida aqui como uma elaboração ativa, uma complexa experiência que transforma a informação recebida. Na medida em que a imagem passa a ser compreendida como signo que incorpora diversos códigos, sua leitura requer o conhecimento e a compreensão desses códigos. 4 Fonte:www.coletivoverde.com.br Essa ideia de “ensinar a ver e ler” os dados visuais inspirou-se no trabalho de Rudolf Arnheim, Art and visual perception, de 1971, que procura identificar as categorias visuais básicas mediante as quais a percepção deduz estruturas e o produtor de imagens elabora suas configurações. Arnheim catalogou dez categorias visuais: equilíbrio, figura, forma, desenvolvimento, espaço, luz, cor, movimento, dinâmica e expressão. Nesse modelo o espectador desvela nas imagens os esquemas básicos utilizando as várias categorias visuais até descobrir a configuração que, por si mesma, possui qualidades expressivas. No Brasil, Fayga Ostrower (1983, 1987, 1990) foi uma das divulgadoras dos trabalhos de Rudolf Arnheim. As ideias desenvolvidas por Ostrower em cursos e encontros com professores enfatizavam as relações entre os aspectos formais e expressivos das imagens. Outra obra que fundamentou a tendência formalista da leitura de imagens foi a da desenhista Donis Dondis, A primer of visual literacy, publicada em 1973 pelo Masschusetts Institute of Technology2, na qual a autora introduz o conceito de alfabetismo visual. O livro propõe um sistema básico para a aprendizagem, identificação, criação e compreensão de mensagens visuais acessíveis a todas as pessoas, e não somente àquelas especialmente formadas como projetistas, artistas e estetas. Apoiando-se no sistema proposto por Dondis para uma “alfabetização visual”, alguns professores começaram a aplicar um esquema de leitura de imagens fundamentado na sintaxe visual, que mostra a disposição dos elementos básicos, como ponto, linha, forma, cor, luz, no sentido da composição. 5 A proposta da leitura de imagens de tendência formalista fundamenta-se em uma “racionalidade” perceptiva e comunicativa que justifica o uso e desenvolvimento da linguagem visual para facilitar a comunicação. No contexto escolar, essa prática era atribuída geralmente a professoras/es de arte, porém, não chegou a ser hegemônica entre eles. Hernandez (2000) chama de “racionalidade” o conjunto de argumentos e evidências que justificam a inserção da prática artística no contexto escolar. A presença de uma racionalidade não representa necessariamente uma hegemonia, pois diferentes formas de racionalidade podem conviver no mesmo espaço e tempo, e uma pode estar mais consolidada que outra. A racionalidade moral entende que a prática artística contribui para a educação moral e o cultivo da vida espiritual e emocional. A racionalidade expressiva considera a arte essencial para a projeção de emoções e sentimentos que não poderiam ser comunicados de nenhuma outra forma. Fonte: jardimpontocultural.blogspot.com.br Concebe-se a prática artística como uma forma de conhecimento que favorece o desenvolvimento intelectual para a racionalidade cognitiva. Por fim, a racionalidade cultural entende o fenômeno artístico como manifestação cultural, e vê nos artistas os responsáveis por realizar as representações mediadoras de significados para cada época e cultura. Essa forma de racionalidade está presente nos Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN –, que definem o objeto artístico, no caso as imagens, como produção cultural, documento do imaginário humano, de sua historicidade e de sua diversidade (Brasil, 1997, p. 45). 6 Outras abordagens, mais voltadas para o aspecto estético da leitura de imagens de obras de arte,apoiam-se nas investigações de Ott (1984), Housen (1992) e Parsons (1992). No Brasil, o sistema de apreciação de Ott encontrou ressonância a partir de sua apresentação em um curso promovido pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1988. Robert Willian Ott, professor da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos, desenvolveu a metodologia image watching [olhando imagens] com o intuito de estruturar a relação do apreciador com a obra de arte. Sua metodologia foi configurando- se em função dos desafios que enfrentava como professor responsável pela prática de ensino e de estágio supervisionado, no departamento de arte e educação de sua universidade, diante de uma plateia heterogênea quanto ao conhecimento e às vivências artísticas e museológicas. Inspirado em John Dewey e Edmund Feldman, Ott utilizou o gerúndio (watching) para nomear seu sistema de apreciação, para deixar claro que se tratava de um processo, articulado em seis momentos: aquecendo (ou sensibilizando): o educador prepara o potencial de percepção e de fruição do educando; descrevendo: o educador questiona sobre o que o educando vê, percebe; analisando: o educador apresenta aspectos conceituais da análise formal; interpretando: o educando expressa suas sensações, emoções e ideias, oferece suas respostas pessoais à obra de arte; fundamentando: o educador oferece elementos da História da Arte, amplia o conhecimento e não o convencimento do educando a respeito do valor da obra; revelando: o educando revela através do fazer artístico o processo vivenciado. Os estudos de Abigail Housen partem do postulado de que o desenvolvimento em determinado domínio se faz em direção a maior complexidade do pensamento, configurando estágios desse desenvolvimento. Assim, as habilidades para a compreensão estética crescem cumulativamente à medida que o leitor vai evoluindo ao longo dos estágios: narrativo, construtivo, classificativo, interpretativo e recriativo. Nessa mesma linha de raciocínio, Michael Parsons afirma que um grupo de ideias, de tópicos estéticos (tema, expressão, aspectos formais, juízo) prevalece e é entendido de maneira cada vez mais complexa, do ponto de vista estético, em cada um dos estágios de desenvolvimento. 7 Fonte: www.revistacontemporartes.com.br Ambos os autores concordam que nem todos os adultos alcançam os estágios mais elevados de compreensão estética, pois o que mais favorece o desenvolvimento estético é a familiaridade com as imagens das obras de arte, e isso depende das experiências artísticas de cada pessoa. O trabalho de Rossi (2003), apoiado nos estudos de Parsons, sustenta que uma atividade de leitura de imagens deve considerar o desenvolvimento psicológico e a familiaridade do leitor com as imagens a serem lidas. No entanto, Rossi não utiliza apenas imagens do mundo da arte, como Parsons, mas lança mão também daquelas vindas também da publicidade. Critica o enfoque formalista de leitura estética que, segundo ela, vem sendo priorizado no ensino de arte no Brasil, e que contaminou a educação básica, reduzindo-se a um roteiro preestabelecido de perguntas que não respeita a construção dos leitores nesse domínio. A faceta semiótica introduziu no modelo de leitura da imagem as noções de denotação e conotação. A denotação refere-se ao significado entendido “objetivamente”, ou seja, o que se vê na imagem “objetivamente”, a descrição das situações, figuras, pessoas e ou ações em um espaço e tempo determinados. 8 Fonte: thecreatorsproject.vice.com A conotação refere-se às apreciações do intérprete, aquilo que a imagem sugere e/ou faz pensar o leitor. Esse modelo vem sendo utilizado por alguns professores que propõem a leitura de imagens da arte (Santibáñez, Valgañón, 2000; Cruz, 2001), ou da publicidade (Joly, 1996; Barret, 2003). A abordagem formalista, influenciada pela semiótica, enfatiza a leitura da imagem a partir dos seguintes códigos: espacial: o ponto de vista do qual se contempla a realidade (acima/abaixo; esquerda/direita; fidelidade/deformação); gestual e cenográfico: sensações que produzem em nós os gestos das figuras que aparecem (tranquilidade, nervosismo, vestuário, maquiagem, cenário); lumínico: a fonte de luz (de frente achata as figuras que ganham um aspecto irreal, de cima para baixo acentua os volumes, de baixo para cima produz deformações inquietantes); simbólico: convenções (a pomba simboliza a paz; a caveira, a morte); gráfico: as imagens são tomadas de perto, de longe; relacional: relações espaciais que criam um itinerário para o olhar no jogo de tensões, equilíbrios, paralelismos, antagonismos e complementaridades. 9 Fonte: literatura.uol.com.br De outro ponto de vista, antropólogos, sociólogos e historiadores interessam-se pelo uso de imagens como fonte documental, instrumento, produto de pesquisa, ou ainda, como veículo de intervenção político-cultural (Feldman-Bianco, Leite, 1998). Diante dessas novas perspectivas teórico-metodológicas, reforça-se a tendência a construir o conhecimento utilizando a dimensão imagética como documento. O uso de imagens na pesquisa histórica é crescente, apesar do baixo número de pesquisadores “alfabetizados visualmente” (Samain, 1998) e das dificuldades e limites que o âmbito acadêmico impõe a esse tipo de pesquisa. Uma dessas dificuldades é a resistência de alguns teóricos a aceitar a aproximação, o rascunho, o movente, a criação, a imaginação e os sentimentos como campos que tecem o itinerário argumentativo do conhecimento (Cunha, 2001). Cardoso e Maud (1997) advertem que o pesquisador que lida com as imagens tende a reagir inicialmente com o mesmo encantamento que reage diante das relíquias e cortes do passado que o tempo não extinguiu. Ler uma imagem historicamente é mais do que apreciar o seu esqueleto aparente, pois ela é construção histórica em determinado momento e lugar, e quase sempre foi pensada e planejada. Por exemplo, tanto fotógrafos como pintores negociam o cenário das imagens que produzem, mas essa negociação não é aleatória, pois visa um público e o que se quer mostrar a este público. O cenário preparado aproxima a imagem de outros interesses ou intenções como, por exemplo, o de apresentar uma determinada realidade e/ou alteração da realidade. 10 No entanto, mesmo que se constitua uma realidade montada e/ou uma alteração dela, fruto da imaginação de um ou mais componentes, a imagem fixada não existe fora de um contexto, de uma situação. Pedaços desse contexto são encontrados tanto no interior da imagem quanto no seu exterior. O interior corresponderia ao próprio cenário, com seus utensílios e apetrechos, as pessoas com suas roupas, cabelos, modos e posturas corporais. O exterior corresponderia ao próprio suporte da imagem, às técnicas de produção no momento da criação, como também às perspectivas que tal novidade técnica gerou ou não nas pessoas em geral. Fonte: artefeed.com Trabalhando no campo historiográfico, Leite (1996) afirma que a imagem não comunica com clareza pois pode forjar realidades, e por isso são necessários constantes e insistentes olhares, aliados à disposição dos sentidos para captar aquilo que não vemos na superfície, a fim de discernir outros conteúdos que ultrapassem a primeira impressão que se tenta impor ou estabelecer. Para que a amplitude de possibilidades da fonte iconográfica não se transforme num empecilho, a autora indica dois elementos decisivos para a leitura da imagem: o primeiro é ter um bom conhecimento de base técnica e o segundo é dispor de uma boa dose de criação artística. Segundo ela, “decifrar” uma mensagem visual é uma tarefa que pode ser iniciada pelo conteúdo manifesto, pela unanimidade de compreensão, sem deixar de considerar o conteúdo latente. 11 Fonte: notícias.universia.com.brNo conteúdo manifesto, as contradições e os conflitos são em geral pouco observados, conforme as expectativas dos responsáveis pela imagem, não só do seu produtor, mas também daquele que encomendou a obra. Caminhando para a fase dos conteúdos latentes, é preciso buscar informações fundamentais que respondam a perguntas do tipo: como as imagens foram geradas? por quem? Para quem? Por quê? No âmbito da documentação, Valle Gastaminza (2002) refere-se às indicações para catalogar uma imagem, e afirma que uma leitura inteligente da imagem, seja o leitor um documentalista ou não, requer as seguintes competências: iconográfica: reconhecer formas visuais que reproduzem ou não algo que existe na realidade; narrativa: estabelecer uma sequência narrativa entre elementos que aparecem na imagem e/ou elementos de informação complementar (título, data, local etc.); estética: atribuir sentido estético à composição; enciclopédica: identificar personagens, situações, contextos e conotações; linguístico-comunicativa: atribuir um tema, um assunto que poderá contrapor- se ou coincidir com as informações complementares; modal: interpretar o espaço e tempo da imagem. A abordagem da leitura crítica das imagens de Kellner (1995) influenciou o trabalho de educadores que se reportam a uma pedagogia da imagem. A pedagogia da imagem situa- se no marco teórico dos Estudos Culturais, e considera que a educação não se restringe às 12 formas legais organizadas quase sempre na instituição escolar. Em qualquer sociedade há inúmeros mecanismos educativos presentes em diferentes instâncias socioculturais. Grande parte desses mecanismos tem como função primeira educar os sujeitos para que vivam de acordo com regras estabelecidas socialmente. Por estarem inseridos na área cultural, esses mecanismos revestem-se de características como prazer e diversão, mas, ao mesmo tempo, educam e produzem conhecimento. Para Giroux e McLaren, ...existe pedagogia em qualquer lugar onde o conhecimento é produzido, em qualquer lugar em que exista a possibilidade de traduzir a experiência e construir verdades, mesmo que essas verdades pareçam irremediavelmente redundantes, superficiais e próximas ao lugar comum. (1995, p.14) Fonte: br.pinterest.com É nesse sentido que se considera a produção de imagens como um desses mecanismos educativos presentes nas instâncias socioculturais. As imagens não cumprem apenas a função de informar ou ilustrar, mas também de educar e produzir conhecimento. A partir dessa compreensão da pedagogia da imagem, Kellner argumenta ainda que ler criticamente implica aprender a apreciar, decodificar e interpretar as imagens, analisando tanto a forma como elas são construídas e operam em nossas vidas, como o conteúdo que comunicam em situações concretas. O autor opõe-se à abordagem formal e anti-hermenêutica. Afirma que nossas experiências e nossas identidades são socialmente construídas e sobre determinadas por 13 uma gama variada de imagens, discursos e códigos. Para Kellner, a publicidade é um texto social multidimensional, com uma riqueza de sentidos que exige um sofisticado processo de interpretação e um importante indicador de tendências sociais, modas e valores. Ele concorda com Giroux (1996) que a pedagogia deve redefinir sua relação com a cultura e servir como veículo para sua interpretação. Fonte: br.pinterest.com Apesar do crescente interesse pelo visual, a expressão “leitura de imagem” não é consenso entre artistas, educadores, historiadores, sociólogos e antropólogos, já que para vários pesquisadores desses campos não é possível “ler” uma imagem. Afastando-se dessa polêmica, em uma vertente interacionista e significativa da leitura, Smith (1999) sugere que se evitem as intermináveis discussões semânticas sobre definições de leitura e se pense no processo da leitura. Para ele, os bens simbólicos produzidos pela humanidade são codificados de formas diversas, mas que mantêm uma estreita relação entre si e se expressam no que se convencionou chamar de “semiose” cultural, essa ampla rede de significações. A recepção desses bens simbólicos pode ser compreendida como leitura, na medida em que todo recorte na rede de significações é considerado um texto. Assim, é possível ler o traçado de uma cidade, um filme, uma coreografia. Imagem e escrita são códigos em constante interação. No sentido de semiose cultural, Freire (1983) já sustentava que a leitura do mundo precede a leitura da palavra e, nesse caso, toda leitura é influenciada pela experiência de 14 vida do leitor. Essa abordagem a partir da experiência do leitor é proposta também por Manguel (2001). Em uma perspectiva narrativa, o autor afirma que nenhuma narrativa suscitada por uma imagem é definitiva, exclusiva, pois o que vemos é sempre a imagem traduzida nos termos da nossa própria experiência. E propõe uma leitura que parta das emoções do leitor, ou seja, de como as emoções do leitor afetam e são afetadas pela leitura das imagens. Fonte: fotografia.folha.uol.com.br 3 CULTURA VISUAL Fonte: bajacultura.wordpress.com 15 Situando-se no marco dos Estudos Culturais, Bolin e Blandy (2003) opõem-se à denominação de “visual” para o trabalho dos docentes com as imagens, pois a consideram restritiva, tendo em vista o amplo leque de experiências que as imagens físicas e virtuais proporcionam. Esses autores recolocam a questão da predominância do visual e da relação desse sentido com ou sobre os demais. Respondendo a essas observações, Mitchell (1995), em uma de suas primeiras publicações, já advertira que, apesar de a noção de “visual” constituir uma dimensão diferente da linguagem verbal, isso não implica que a cultura visual considere esse aspecto isoladamente, mas, ao contrário, a cultura visual inclui a relação com todos os outros sentidos e linguagens. A questão levantada por Bolin e Blandy situa-se em uma corrente mais “restritiva” da cultura visual. Barnard (2001) identificou duas vertentes fundamentais nos estudos de cultura visual. A primeira, que no meu entendimento é a mais “restritiva”, enfatiza o visual e trata de normatizar e prescrever seus objetos de estudo como sendo a arte, o design, as expressões faciais, a moda, a tatuagem e um longo etc. A outra vertente toma a cultura como traço definidor do estudo, e portanto se refere a valores e identidades construídos e comunicados pela cultura via mediação visual, como também à natureza conflituosa desse visual devido aos seus mecanismos de inclusão e exclusão de processos identitários. Um dos representantes desta última vertente é Mirzoeff (2003). Segundo ele, a visualização é a característica do mundo contemporâneo, mas isso não significa que se conheça necessariamente aquilo que se observa. A distância entre a riqueza da experiência visual na cultura contemporânea e a habilidade para analisar esta observação cria a oportunidade e a necessidade de converter a cultura visual em um campo de estudo. Mirzoeff afirma que a cultura visual é uma “tática para estudar a genealogia, a definição e as funções da vida cotidiana pós-moderna a partir da perspectiva do consumidor, mais que do produtor” (p.20). Enfatiza que não se trata de uma história das imagens, nem depende das imagens em si mesmas, mas sim dessa tendência de plasmar a vida em imagens ou visualizar a existência, pois o visual é um “lugar sempre desafiante de interação social e definição em termos de classe, gênero, identidade sexual e racial” (p.20). 16 Fonte: artn.highforum.net No sentido indicado por Mirzoeff, a cultura visual é uma estratégia para compreender a vida contemporânea, e não uma disciplina acadêmica. Lembra que a cultura pública dos cafés do século XVIII, exaltada por Jürgen Habermas, e o capitalismo impresso do mundo editorial do século XIX, descrito por BenedictAnderson, foram características particulares de um período e centrais para a análise produzida por esses autores, apesar das múltiplas alternativas que poderiam ter escolhido. À maneira desses autores, Mirzoeff procura plasmar a vida em imagens ou visualizar a existência para estudar a contemporaneidade. Ele busca compreender a resposta dos indivíduos e dos grupos aos meios visuais de comunicação em uma estrutura interpretativa fluida. Enfatiza que a noção de cultura visual é nova precisamente por centrar-se no visual como lugar onde se criam e se discutem significados. Assim, distancia-se das obras de arte, dos museus e do cinema para focalizar sua atenção na experiência cotidiana. Do mesmo modo que os estudos culturais tratam de compreender de que maneira os sujeitos buscam dar sentido ao consumo na cultura de massas, a cultura visual dá prioridade à experiência cotidiana do visual, interessa-se pelos acontecimentos visuais nos quais o consumidor busca informação, significado e/ou prazer conectados com a tecnologia visual. O autor define a tecnologia visual “como qualquer forma de dispositivo desenhado para ser observado e/ou para aumentar a visão natural, abarcando da pintura a óleo até a televisão e a Internet” (Mirzoeff, 2003, p.19). 17 Fonte: docplayer.com.br A cultura visual, nessa concepção, contém uma proposta bem mais ampla que a de leitura de imagens baseada no formalismo perceptivo e semiótico. Trabalhar nesse enfoque amplo é aceitar a capacidade das imagens de atuarem como mediadoras de “velhas e novas formas de poder, como também de ensaios contradiscursivos de novas formas de sociabilidade” (Moraza, 2004). Essa abordagem fundamenta-se em uma base socioantropológica, o que significa focalizar o conhecimento tanto nos produtores dessas experiências quanto no contexto sociocultural em que são produzidas. As noções de visão e visualidade são básicas para esse entendimento da cultura visual. Walker e Chaplin (2002) definem a visão como o processo fisiológico em que a luz impressiona os olhos e a visualidade como o olhar socializado. Não há diferença entre o sistema ótico de um brasileiro, de um europeu ou de um africano, mas sim no modo de descrever e representar o mundo de cada um, pois eles têm maneiras próprias de olhar para o mundo o que, consequentemente, dá lugar a diferentes sistemas de representação. 18 Fonte: www.newcitybrazil.com Nessa mesma linha de raciocínio, Freedman (2002, 2003) mostra que nossas identidades se refletem e se definem nas maneiras como representamos a nós mesmos visualmente, do que vestimos ao que assistimos na televisão. Para essa autora, as práticas educativas com a cultura visual podem incluir tanto a discussão sobre um videojogo quanto as possíveis modificações no meio imediato, como, por exemplo, a decoração do quarto das/os educandas/os. Segundo Freedman, as/os educandas/os tomam consciência de que as imagens e os objetos portam significados e começam a se interessar por sua interpretação, procurando sugerir significados em suas próprias produções. E isso ocorre à medida que as/os educandas/os se empenham com maior afinco em contar histórias e fazer afirmações através de suas experiências. Ainda segundo Freedman (2003), a cultura é a forma de viver e a cultura visual dá forma ao nosso mundo, ao mesmo tempo em que é nossa forma de olhar o mundo. Sua proposta de trabalho com a cultura visual pretende ser uma resposta razoável ao caráter cada vez mais interativo das artes visuais, que vão das Belas Artes às histórias em quadrinhos. A autora opõe-se ao elitismo das Belas Artes como uma linha divisória das práticas com imagens no contexto escolar, e destaca três objetivos que podem proporcionar os fundamentos de um enfoque social no trabalho com a cultura visual: o desenvolvimento de ideias, a visualização e a reflexão crítica. Ressalva que trabalhar com histórias em quadrinhos não significa copiar imagens e/ou personagens dessas produções, 19 mas sim tentar “visualizar”, a partir da narrativa dessas produções, uma outra sociedade que também enfrenta conflitos, e propor soluções para eles. Fonte: artn.highforum.net Sintonizada a essa vertente cultural, Chanda (2002) propõe uma aproximação dos artefatos visuais a partir da perspectiva do observador, da perspectiva histórico-cultural do artefato e da perspectiva do produtor. A autora argumenta que se nos aproximarmos de um artefato visual somente a partir de nossa visão individual teremos uma interpretação bastante restrita, pois os artefatos visuais constituem veículos perfeitos para descobrirmos como percebemos a nós mesmos e compreendemos o mundo, e como percebemos e compreendemos o outro. Isso nos coloca diante de um problema duplo, pois temos de tratar com culturas que muitas vezes são alheias a nós e com culturas que estão ao mesmo tempo próximas e separadas de nós. As descrições e as interpretações de um artefato visual com os olhos de alguém que não está familiarizado com a cultura da qual o artefato procede refletirão unicamente os conceitos filosóficos, os ideais e a história do/a observador/a, e não os da cultura de origem do artefato. 20 Fonte: www.projetoartefato.com As descrições do artefato visual desvelam, de acordo com Chanda, os medos, os estereótipos, e as ideias que o/a observador/a do artefato leva consigo no olhar. Para a autora, contemplar um artefato visual com os olhos do Outro oferece uma oportunidade única de experimentarmos os comportamentos e as formas de pensar que criam as diferenças. Ela sugere um segundo movimento: olharmos para nós mesmos do marco contextual do Outro. Para exemplificar, pergunta quais são os aspectos da cultura negra que fazem parte da cultura americana em geral e que permitiriam aos americanos afirmar que em muitos aspectos são diferentes, mas que em outros são próximos. Esse deveria ser, segundo ela, o objetivo de uma educação visual multicultural. No Brasil, Richter (2003) mostra que as questões do multiculturalismo têm chegado por muitos caminhos, a partir das discussões que se iniciaram nos Estados Unidos e na Europa. Observa que os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem o pluralismo cultural como um dos temas transversais que devem ser trabalhados nos currículos escolares da Educação Básica, mas não chegam a discutir questões básicas. Ela cita como exemplo a questão do gênero nas práticas visuais. Do seu ponto de vista, essa é uma das questões fundamentais a serem discutidas nas práticas visuais do contexto escolar, visto que os padrões estéticos familiares que as crianças levam para a escola são construídos a partir dos padrões estéticos femininos. Ela afirma que as práticas visuais nas escolas do país costumam estar imbuídas dos códigos hegemônicos norte-americanos e europeus, com uma supervalorizada visualidade desenvolvida por brancos, do sexo masculino, europeus ou de 21 origem europeia, segundo os cânones formais da modernidade, o que acaba excluindo aquela visualidade não condizente com esse padrão. Assim, as práticas visuais no contexto escolar caracterizariam- se por uma atitude em que os padrões culturais e estéticos da comunidade e da família são respeitados e inseridos na educação, e aceitos como códigos básicos a partir dos quais se deve construir a compreensão e imersão em outros códigos culturais. Outro educador que se situa nessa vertente cultural é o australiano Paul Duncun (2002). Para ele, a cultura visual vincula-se aos estudos culturais nas questões relacionadas às práticas significantes, tanto em termos das experiências vividas pelas pessoas como da dinâmica estrutural da sociedade. Esta se estrutura em torno do domínio, e as práticas significantes são sempre um meio de estabelecer e manter o poder; porém, as pessoas podem resistir e negociar o significado dessas práticaspor si mesmas. O autor rejeita a noção de cultura como um refinamento pessoal, ou como obras de uma sensibilidade determinada, pois isto representa apenas uma parte muito seletiva da cultura. Rejeita igualmente a noção antropológica de cultura como prática de vida, por considerá-la muito ampla. Adota uma concepção de cultura como práticas significantes, não como objetos específicos, mas sim como as relações sociais, valores, as crenças e as práticas das quais os objetos são uma parte constitutiva. Em meio à saturação visual da vida contemporânea, seja em seus aspectos de vigilância, espetáculo, prazer, controle ou manipulação, Duncun (2003) oferece algumas pistas sobre como trabalhar com a cultura visual em ambientes de aprendizagem. Em sua abordagem, os artefatos visuais podem ser os mais variados, das fotografias pessoais aos suvenires da cidade. No trabalho com as fotografias familiares, propõe tanto a aprendizagem dos códigos desse tipo de fotografia como a reflexão sobre como e por que esses códigos se transformam. Para isso, sugere que as/os educandas/os falem de suas experiências ao serem fotografadas/os ao mesmo tempo em que examinam pinturas das famílias de séculos passados, observando diferenças formais nas posturas, na expressão facial, nas vestimentas, no cenário, na ação e o que isso pode implicar nas relações familiares. Também questiona se a fotografia familiar é sexista, se exclui, na mesma medida em que inclui, e portanto estrutura uma falsa ideia de vida familiar, se pode chegar a ser um jogo de poder a partir de um lado da câmara fotográfica ou de ambos os lados. 22 Fonte: britishlibrary.typepad.co.uk 4 COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA VISUAL Fonte: sildipaculturavisual.blogspot.com.br Hernandez (2000) adiciona a expressão compreensão crítica à abordagem da cultura visual. Para esse autor, o vocábulo “crítica” significa avaliação e juízo que resultam de diferentes modelos de análise (semiótico, estruturalista, desconstrucionista, intertextual, hermenêutico, discursivo). Ele fundamenta sua proposta em ideias provenientes do pós- estruturalismo e do feminismo pós-estruturalista. Prefere utilizar os termos representações e artefatos visuais ao invés de imagens. Utiliza o conceito de cultura no sentido socioantropológico próximo da experiência cotidiana de qualquer grupo atual e/ou passado. Percebe a importância da Cultura Visual não só como campo de estudo, mas também em 23 termos de economia, negócios, tecnologia, experiências da vida diária, de forma que tanto produtores como intérpretes possam se beneficiar do seu estudo. A compreensão crítica aborda a cultura visual como um campo de estudo transdisciplinar multireferencial que pode tomar seus referentes da arte, da arquitetura, da história, da psicologia cultural, da psicanálise lacaniana, do construcionismo social, dos estudos culturais, da antropologia, dos estudos de gênero e mídia, sem fechar-se nessas ou somente sobre essas referências. Essa proposta ampla e aberta enfatiza que o campo de estudos não se organiza a partir de nomes de artefatos, fatos e ou sujeitos, mas sim de seus significados culturais, vinculando-se à noção de mediação de representações, valores e identidades. Para Hernandez, um estudo sistemático da cultura visual pode proporcionar uma compreensão crítica do seu papel e de suas funções sociais, como também de suas relações de poder, indo além da apreciação ou do prazer que as imagens nos proporcionam. Hernandez (no prelo) entende o campo de estudo como sendo móvel, pois a cada dia se incorporam novos aspectos relacionados tanto às representações quanto aos artefatos visuais, que rapidamente tornam obsoletas as aproximações restritivas. Nessa perspectiva, não há receptores nem leitores, mas sim construtores e intérpretes, na medida em que a aproximação não é passiva nem dependente, mas sim interativa e condizente com as experiências que cada sujeito vive no seu dia-a-dia. Uma primeira meta a ser perseguida nessa abordagem seria explorar as representações que as pessoas constroem da realidade a partir das suas características sociais, culturais e históricas, ou seja, compreender o que se representa para compreender as próprias representações. Fonte: wwwculturavisual.blogspot.com.br 24 Um trabalho na linha da compreensão crítica da cultura visual “não pode ficar à margem de uma reflexão mais ampla sobre o papel da escola e dos sujeitos pedagógicos nesses tempos de mudança” (Hernandez, 2002, p.3). Nós, educadoras e educadores, temos de estar atentos ao que se passa no mundo, seja nos saberes, na sociedade ou nos sujeitos, e responder com propostas imaginativas, transgressoras, que possibilitem às/aos educandas/os elaborar formas de compreensão e de atuação na parcela do mundo que lhes toca viver, de forma que possam desenvolver seus projetos de vida. A situação que o/a educador/a cria para iniciar o processo de aprendizagem sinaliza sua orientação educativa, o lugar que destina à/ao educanda/o e a si mesma/o. Não cabe mais ao/à educador/a se perguntar o que as/os educandas/os não sabem e propor-se a ensinar-lhes, e sim o que já sabem e como é possível ampliar as conexões, para que, juntos, possam organizar outros discursos com os saberes-mosaico que todos possuem. A abordagem da compreensão crítica não enfatiza nem as representações nem os artefatos visuais, pois, ao se trabalhar na perspectiva de projetos de trabalho, o mais relevante é a construção de uma história que se compartilha e que será narrada. Mais do que pensar em representações e artefatos, interessa ao/à educador/a saber o que o grupo de trabalho, que inclui educandas/os e educadoras/es, quer aprender e o que pode aprender. Fonte: www.rioeduca.net 25 Essa abordagem requer uma mudança na forma como se organiza tradicionalmente o conhecimento escolar. Sugere às/aos educadoras/es que estejam especialmente atentos aos objetos da Cultura Visual do grupo, ou seja, as imagens que estão nas capas dos cadernos e pastas das/os educandas/os, as revistas que leem, os programas de televisão a que assistem, seus conjuntos musicais e jogos preferidos, suas roupas e seus ícones populares. A compreensão crítica dessas representações e artefatos visuais implica diferentes aspectos, tais como: • Histórico-antropológico: as representações e artefatos visuais são frutos de determinados contextos que os produzem e legitimam. Por isso, é necessário ir além de uma abordagem perceptiva daquilo que se vê na produção, para estabelecer conexões entre os significados dessa produção e a tradição: valores, costumes, crenças, ideias políticas e religiosas que as geraram. • Estético-artístico: este aspecto refere-se aos sistemas de representação. O aspecto estético artístico é compreendido em relação à cultura de origem da produção, e não em termos universais, pois o código europeu ocidental não é o único válido para a compreensão crítica da cultura visual. • Biográfico: as representações e artefatos fomentam uma relação com os processos identitários, construindo valores e crenças, visões sobre a realidade. • Crítico-social: representações e artefatos têm contribuído para a configuração atual das políticas da diferença e das relações de poder. Fonte: culturavisualqueer.wordpress.com Esses aspectos não são sequenciais, mas estão interconectados, e cabe às/aos educadoras/es fomentar sua compreensão, propondo que se estabeleçam relações entre o que se produz e os contextos de produção, distribuição e consumo, e que se procure perceber seus efeitos na construção dos processos identitários. Como pistas de caminhos 26 possíveis em um trabalho para a compreensão crítica da cultura visual, Hernandez (2000, 2002) sugere: explorar os discursos sobre os quais as representações constroem relatos do mundo social e favorecemdeterminadas visões sobre ele e sobre nós mesmos; questionar a tentativa de fixar significados às representações e como isso afeta nossas vidas; discutir as relações de poder que se produzem e se articulam por meio das representações, e que podem ser reforçadas pela maneira de ver e produzir essas representações; elaborar representações por procedimentos diversos, como forma, resposta e modo de diálogo com as representações existentes; construir relatos visuais utilizando diferentes suportes relacionados com a própria identidade e contexto sociocultural que ajudem a construir um posicionamento. Fonte: www.tate.org.uk 27 5 BIBLIOGRAFIA ARNHEIM, R. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Edusp, Pioneira, 1989. BARNARD, M. 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Isto não foi uma conquista de arte-educadores brasileiros, mas uma criação ideológica de educadores norte-americanos que, sob um acordo oficial (Acordo MEC-USAID), reformulou a Educação Brasileira, estabelecendo em 1971 os objetivos e o currículo configurado na Lei Federal nº 5692 denominada "Diretrizes e Bases da Educação". Essa lei estabeleceu uma educação tecnologicamente orientada que começou a profissionalizar a criança na 7ª série, sendo a escola secundária completamente profissionalizante. Esta foi uma maneira de profissionalizar mão-de-obra barata para as companhias multinacionais que adquiriram grande poder econômico no País sob o regime da ditadura militar de 1964 a 1983. No currículo estabelecido em 1971, as artes eram aparentemente a única matéria que poderia mostrar alguma abertura em relação às humanidades e ao trabalho criativo, porque mesmo filosofia e história haviam sido eliminadas do currículo. Naquele período não tínhamos cursos de arte-educação nas universidades, apenas cursos para preparar professores de desenho, principalmente desenho geométrico. Fora das universidades um movimento bastante ativo (Movimento Escolinhas de Arte) tentava desenvolver, desde 1948, a auto expressão da criança e do adolescente através do ensino das artes. Em 1971 o "Movimento Escolinhas de Arte" estava difundido por todo o país com 32 Escolinhas, a maioria delas particulares, oferecendo cursos de artes para crianças e adolescentes e cursos de arte-educação para professores e artistas. A Lei Federal que tornou obrigatório artes nas escolas, entretanto, não pôde assimilar, como professores de arte, os artistas que tinham sido preparados pelas Escolinhas, porque para lecionar a partir da 5ª série exigia-se o grau universitário que a maioria deles não tinha. O Governo Federal decidiu criar um novo curso universitário para preparar professores para a disciplina Educação Artística criada pela nova lei. Os cursos de arte- educação nas universidades foram criados em 1973, compreendendo um currículo básico que poderia ser aplicado em todo o país. O currículo de Licenciatura em Educação Artística na universidade pretende preparar um professor de arte em apenas dois anos, que seja capaz de lecionar música, teatro, artes visuais, desenho, dança e desenho geométrico, tudo ao mesmo tempo, da 1ª à 8ª séries e, em alguns casos, até o 2º grau. 31 É um absurdo epistemológico ter a intenção de transformar um jovem estudante (a média de idade de um estudante ingressante na universidade no Brasil é de 18 anos) com um curso de apenas dois anos, num professor de tantas disciplinas artísticas. Nós temos 78 cursos de Licenciatura em Educação Artística nas faculdades e universidades do Brasil outorgando diplomas a arte-educadores. A maioria deles são cursos de dois anos de duração. Somente no estado de São Paulo nós temos 39 cursos. Poucas universidades, principalmente públicas, como a Universidade de São Paulo, recusam-se a oferecer o curso de dois anos e optam por um curso de quatro anos, possível através de regulamentação do Ministério da Educação seguindo, entretanto,um currículo mínimo estabelecido que não é adequado para preparar professores capazes de definirem seus objetivos e estabelecerem suas metodologias. De março a julho de 1983, eu tive a oportunidade de entrevistar 2.500 professores de artes de escolas de São Paulo (BARBOSA, 1983). Todos eles mencionaram o desenvolvimento da criatividade como o primeiro objetivo de seu ensino. Para aqueles que enfatizaram as artes visuais, o conceito de criatividade era espontaneidade, auto liberação e originalidade, e eles praticavam o desenho no seu ensino; para aqueles que lecionavam principalmente canto-coral, criatividade era definida como auto liberação e organização. A identificação da criatividade como espontaneidade não é surpreendente porque é uma compreensão de senso comum da criatividade. Os professores de arte não têm tido a oportunidade de estudar as teorias da criatividade ou disciplinas similares nas universidades porque estas não são disciplinas determinadas pelo currículo mínimo. Nas universidades que estendem o currículo além do mínimo, tendo examinado 11 currículos, não encontrei nenhuma disciplina ligada ao estudo da criatividade, exceto na Universidade de São Paulo onde um curso intitulado Teoria da Criatividade foi lecionado de 1977 a 1979 para alunos de artes, nas áreas de cinema, música, artes plásticas e teatro. A mais corrente identificação da criatividade com auto liberação pode ser explicada como uma resposta que os professores de arte foram levados a dar para a situação social e política do País. Em 1983 nós estávamos sendo libertados de 19 anos de ditadura militar que reprimira a expressão individual através de uma severa censura. Não é totalmente incomum que após regimes políticos repressores a ansiedade da auto liberação domine as artes, a arte-educação e os conceitos ligados a eles. 32 A identificação da criatividade como espontaneidade não é surpreendente porque é uma compreensão de senso comum da criatividade. Os professores de arte não têm tido a oportunidade de estudar as teorias da criatividade ou disciplinas similares nas universidades porque estas não são disciplinas determinadas pelo currículo mínimo. Outra pesquisa de Heloísa Ferraz e Idméa Siqueira (1987, p.26-7) que começou em 1983 (continuou em 84 e 85), analisando questionários respondidos por 150 professores de arte sobre as fontes de seu ensino, encontrou que os livros didáticos são a fonte de ensino para 82,8% deles. Isso parece uma contradição, porque os livros didáticos para a arte-educação são modernizações na aparência gráfica de livros didáticos usados no ensino de desenho geométrico nos anos 40 e 50, sem nenhuma preocupação com o desenvolvimento da autoliberação — objetivo que os professores de arte da primeira pesquisa deram como a prioridade de seu curso. A falta de correspondência entre os objetivos e a prática real na sala de aula é provada pelas duas pesquisas juntas. Objetivos são simplesmente palavras escritas nos programas ou estatutos que não têm sido postos em prática. Nas artes visuais ainda domina na sala de aula o ensino de desenho geométrico, o laissez-faire, temas banais, as folhas para colorir, a variação de técnicas e o desenho de observação, os mesmos métodos, procedimentos e princípios ideológicos encontrados numa pesquisa feita em programas de ensino de artes de 1971 e 1973 (BARBOSA, 1975, p.86-7). Evoluções não têm lugar em salas de aula nas escolas públicas. O sistema educacional não exige notas em artes porque arte-educação é concebida como uma atividade, mas não como uma disciplina de acordo com interpretações da lei educacional 5692. Algumas escolas exigem notas a fim de colocar artes num mesmo nível de importância com outras disciplinas; nestes casos, o professor deixa as crianças se auto avaliarem ou as avalia a partir do interesse, do bom comportamento e da dedicação ao trabalho. Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas imagens na sala de aula são as imagens ruins dos livros didáticos, as imagens das folhas de colorir, e no melhor dos casos, as imagens produzidas pelas próprias crianças. Mesmo os livros didáticos são raramente oferecidos às crianças porque elas não têm dinheiro para comprar livros. O professor tem sua cópia e segue os exercícios propostos pelo livro didático com as crianças. Este é o caso de 74,5% dos professores entrevistados por Heloísa Ferraz e Idméa 33 Siqueira (1987, p.27). Visitas a exposições são raras e em geral pobremente preparadas. A viagem de ônibus é mais significativa para as crianças do que a apreciação das obras de arte. A fonte mais frequente de imagens para as crianças é a TV, os fracos padrões dos desenhos para colorir e cartazes pela cidade (outdoors). As crianças de escolas públicas, na sua grande maioria, não têm revistas em casa, sendo o acesso à TV mais frequente e mesmo que não se tenha o aparelho em casa, há a possibilidade do acesso a algum tipo de TV comunitária. Mesmo nas escolas particulares mais caras a imagem não é usada nas aulas de arte. Eles lecionam arte sem oferecer a possibilidade de ver. É como ensinar a ler sem livros na sala de aula. Em São Paulo há somente duas escolas que usam regularmente imagens nas aulas de arte. A primeira, uma escola1 para a elite, usa a imagem em um convencional curso de história da arte para alunos do 2º grau. A segunda é uma escola particular2, preferida pelos intelectuais para suas crianças, que incorpora a gramática visual, a história e a prática. Eu não quero parecer apocalíptica em afirmar que 17 anos de ensino obrigatório da arte não desenvolveu a qualidade estética da arte-educação nas escolas. O problema de baixa qualidade afeta não somente a arte-educação mas todas as outras áreas de ensino no Brasil. A atual situação da educação geral no Brasil é dramática. Mais de 50% das crianças abandonam a escola no primeiro ano (sete anos de idade, antes da alfabetização ser completada). A profissionalização no 2º grau tornou-se um fracasso. As companhias não empregam os estudantes quando eles terminam os cursos porque sua preparação para o trabalho é insuficiente. Os anos 80 têm sido identificados como a década da crítica da educação imposta pela ditadura militar e da pesquisa por soluções, mas estas não têm sido ainda implementadas no País porque a primeira preocupação depois da restauração da democracia em 1983 foi uma campanha por uma Nova Constituição que libertaria o País do regime autoritário. A Constituição da Nova República de 1988 menciona cinco vezes as artes no que se refere a proteção de obras, liberdade de expressão e identidade nacional. Na Seção sobre educação, artigo 206, parágrafo II, a Constituição determina: "O ensino tomará lugar sobre os seguintes princípios (...). II — liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e disseminar pensamento, arte e conhecimento." Esta é uma conquista dos arte-educadores que pressionaram e persuadiram alguns deputados que tinham a responsabilidade de delinear as linhas mestras da nova Constituição. Os arte-educadores no Brasil são politicamente bastante ativos. A politização 34 dos arte-educadores começou em 1980 na Semana de Arte e Ensino (15-19 de setembro) na Universidade de São Paulo, a qual reuniu 2.700 arte-educadores de todo o País. Este foi um encontro que enfatizou aspectos políticos através de debates estruturados em pequenos grupos ao redor de problemas preestabelecidos como a imobilização e isolamento do ensino da arte; política educacional para as artes e arte-educação; ação cultural do arte-educador na realidade brasileira; educação de arte-educadores, etc. Apreciação artística e história da arte não têm lugar na escola. As únicas imagens na sala de aula são as imagens ruins dos livros didáticos, as imagens das folhas de colorir e, no melhor dos casos, as imagens produzidas pelaspróprias crianças. Das discussões surgiu a necessidade do trabalho criativo a fim de abrir o diálogo com os políticos locais e regionalizar os procedimentos com respeito à diversidade cultural do País. Até aquele momento nós tínhamos apenas uma associação de arte-educação, a SOBREART, de âmbito nacional, filiada ao INSEA, mas operando principalmente no Rio de Janeiro e estava dominada desde sua criação, em 1970, por uma pessoa ligada ao regime da ditadura militar. Em março de 1982 a AESP (Associação de Arte-Educadores de São Paulo) foi criada como a primeira associação estadual e foi seguida pela ANARTE (Associação de Arte- Educadores do Nordeste) compreendendo oito estados do Nordeste, AGA (Associação de Arte-Educadores do Rio Grande do Sul), APAEP (Associação de Profissionais em Arte- Educação do Paraná), e outras. Já temos 14 associações estaduais que, juntas, em agosto de 1988, criaram a Federação Nacional sediada pelos próximos dois anos em Brasília, DF. A presidência mudará de um estado para outro. A SOBREART, sob nova presidência, também pertence à Federação Nacional. Estas associações são fortes batalhadoras por melhores condições de ensino de arte, negociando com as Secretarias da Educação e Cultura, o Ministério da Cultura, legisladores e líderes políticos. A primeira preocupação das associações tem sido a politização dos arte-educadores preparando-os para repelir a manipulação governamental sobre os arte-educadores, como aconteceu no incidente de 1979 em São Paulo, quando o Governador — indicado pelo governo militar e não eleito — determinou que, durante todo o segundo semestre, os professores de arte deveriam preparar seus alunos para cantar algumas canções, a fim de participar de um coral de 30.000 vozes na Festa de Natal do Governo. Para aqueles professores que treinassem seus alunos, ele iria aumentar seus salários cinco pontos na escala (um título de mestrado valia 10 pontos!). Naquele momento nós não tínhamos 35 maneiras de lutar contra este abuso da arte-educação mas a situação agora é diferente, depois da criação das Associações Estaduais de Arte-Educação. As associações têm sido bastante vitoriosas na preparação política dos professores de arte mas poucas delas teriam tempo de desenvolver programas de pesquisa (exceto a AESP, São Paulo) e de aperfeiçoamento conceituai para arte-educadores. Como resultado, nós chegamos a 1989 tendo arte-educadores com uma atuação bastante ativa e consciente, mas com uma formação fraca e superficial no que diz respeito ao conhecimento de arte-educação e de arte. Algumas universidades federais e estaduais, preocupadas com a fraca preparação de professores de arte, começaram a partir de 1983 progressivamente a organizar cursos de especialização para professores universitários de arte. Os cursos são curtos e intensivos (algumas vezes com aulas de 10 horas diárias) e são em geral conduzidos por professores e artistas de outros estados. A ideia da auto expressão e do preconceito contra a imagem do ensino de arte para crianças é dominante nestes cursos. A primeira tentativa de analisar imagens em cursos de arte-educadores teve lugar durante a Semana de Arte e Ensino na Universidade de São Paulo, 1980, através de workshops utilizando a imagem de TV, e a maioria dos participantes considerou aquilo uma heresia. A experiência prova que, com poucas exceções como os cursos de especialização na Universidade da Paraíba, 1984, em Curitiba, 1986, e na UDESC em Florianópolis, 1987, em geral os cursos rápidos de especialização não são suficientes para fornecer aos professores universitários o conhecimento básico que eles precisam para preparar professores de arte para escolas secundárias. Em geral, aqueles cursos funcionam como uma fonte para um diploma que conta por melhores salários ou para melhorar o status dos professores universitários. O sistema educacional não exige notas em artes porque arte-educação é concebida como uma atividade, mas não como uma disciplina de acordo com interpretações da lei educacional 5692. A Universidade de São Paulo organiza, desde 1983, um curso de Especialização em Arte-Educação, de um ano de duração, compreendendo quatro cursos de pós-graduação dentre os oferecidos também para os programas de mestrado e doutorado em Artes, e um curso de um ano em Fundamentos em Arte-Educação. O curso recebe estudantes de todo o País e os egressos deste curso começam a conseguir boas posições em universidades federais em outros estados. 36 No Brasil ainda não temos programas de mestrado e doutorado em Arte-Educação. Na Universidade de São Paulo nós temos o único programa de mestrado e doutorado em Artes do País. Este programa é constituído por oito linhas de pesquisas. A partir de 1982, Arte-Educação foi aceita como uma destas linhas de pesquisa, e arte-educadores dos Estados Unidos e Inglaterra têm sido convidados para ministrar cursos de pós-graduação na linha de pesquisa de Arte-Educação. A única oportunidade para um professor de arte no Brasil obter um diploma de mestrado ou doutorado em Arte-Educação é conseguir uma vaga no Programa de Artes da Universidade de São Paulo que tem somente 13 vagas para Arte- Educação. Como resultado, nós temos no Brasil apenas uma pessoa com grau de doutorado em Arte-Educação em Artes Visuais (Ed. D. Boston University), duas em Teatro/Educação (PhD França e PhD na Universidade de São Paulo) e uma em Educação Musical (PhD Canadá). Os cursos de atualização ou treinamento, financiados pelo governo para professores de arte de escolas públicas primárias e secundárias, começaram a acontecer após a ditadura militar. O programa pioneiro foi o Festival de Campos de Jordão3 em São Paulo, em 1983, o primeiro a conectar análise da obra de arte, da imagem com história da arte e com trabalho prático. Tivemos 400 professores de arte convivendo juntos por 15 dias numa cidade de férias de inverno, Campos de Jordão. Eles podiam fazer uma escolha por 4 entre 25 cursos práticos e 7 teóricos. Os cursos de apreciação artística foram baseados na decodificação do meio ambiente estético da cidade (da música de compositores populares locais, num projeto de lazer na cidade, pintores e escultores locais, grupos de dança, etc.). Os cursos de leituras de imagens móveis estavam ligados com a decifração da imagem televisiva e a leitura de imagens fixas, principalmente com as pinturas e esculturas da coleção do palácio de inverno do governador, a segunda melhor coleção de arte moderna brasileira, fechada para o público até aquele momento. A leitura da imagem impressa aconteceu como curso de arte-xerox. Tivemos críticos residentes tentando ajudar os professores-alunos a analisar seu próprio trabalho artístico e localizá-lo no contexto histórico e social, bem como ler os trabalhos artísticos profissionais apresentados à noite e que foram escolhidos entre os melhores eventos do ano em teatro, concerto, dança, música popular, cinema, shows de multimídia e exposição de pintura. Seis meses mais tarde, 40% dos professores-alunos que participaram do programa apresentaram, num amplo encontro, os resultados da renovação 37 de seu ensino com seus alunos e seu esforço de difundir a informação e o processo educacional experimentado por eles entre outros colegas em cursos informais. A Secretaria de Educação de São Paulo continuou o programa de preparação de seus professores de arte através de cursos de inverno e verão oferecidos pela Universidade de São Paulo que tem, até agora, enfatizado a ideia de ensinar imagem através da imagem. Os cursos da Universidade de São Paulo são baseados num conceito de arte- educação como epistemologia da arte e/ou arte-educação como um intermediário entre arte e público. A ideia é que arte-educação esclarecida pode preparar os seres humanos, que são capazes de desenvolver sensibilidade e criatividade atravésda compreensão da arte durante suas vidas inteiras. Outra ideia sustentada pelos mesmos cursos é que todas as atividades profissionais envolvidas com a imagem (TV, publicidade, propaganda, confecção, etc.) e com o meio ambiente produzido pelo homem (arquitetura, moda, mobiliário, etc.) são melhores desenvolvidas por pessoas que têm algum conhecimento de arte. Estas duas ideias juntas lideram a organização dos cursos de arte na USP para professores de escolas primária e secundária da Secretaria de Educação de São Paulo para incluir não somente pintura, escultura, desenho, mas também design, TV e vídeo. Vários outros cursos de atualização foram organizados em outros estados. Merece ser mencionado o programa de preparação de professores para os CIEPs, 100 instituições criadas pelo governo do Rio de Janeiro, no período de 1983 a 1986, para recuperar a educação usando principalmente arte. A concepção de arte era expressionista, enfatizando auto expressão combinada com a valorização da experiência estética assistemática da criança. O governo mudou e o projeto dos CIEPs parou. Mesmo os prédios estão sendo invadidos pela população para outros propósitos. Outro programa para recuperação da educação que dá grande importância à arte é o programa para alfabetização (lª e 2ª séries) do GEMPA no Rio Grande do Sul, um grupo não-governamental financiado através de projetos pela UNESCO, Fundação Ford, etc. Baseado na linha pedagógica de Emilia Ferrero (México), eles utilizam a arte para formação de conceitos, catarse e desenvolvimento da habilidade motora. A preparação de professores de arte para o 1º grau é a prioridade deste bem-sucedido programa que está influenciando todo o País. Outro programa interessante que poderia ser mencionado são os projetos de arte-educação financiados por Fazendo Artes da FUNARTE, uma Fundação Nacional pelas Artes do Ministério da Cultura. 38 Os cursos da Universidade de São Paulo são baseados num conceito de arte- educação como epistemologia da arte e/ou arte-educação como um intermediário entre arte e público. Estes projetos enfatizavam arte comunitária para crianças, adolescentes e professores de arte. Um dos melhores projetos aconteceu em Canelinha, Rio Grande do Sul, que sistematicamente explorou imagens de obras de arte do catálogo da Bienal de Arte de São Paulo. A Bienal de São Paulo criou, em 1987, com recursos da Fundação VITAE, um programa de preparação de professores de arte em apreciação artística, culminando em ateliers para os alunos destes professores na XIX Bienal. Um acompanhamento do trabalho em sala de aula dos que participaram do projeto permite continuidade do processo. Uma porcentagem pequena de professores de escolas secundárias concorda com a necessidade de ensinar arte através da arte, imagem através da imagem. O artigo de Vivent Lanier, "Returning Art to Art Education", traduzido para o português e publicado na revista Ar'te (LANIER, 1984), teve grande impacto nos professores de arte universitários melhor preparados juntamente com o livro The socialization of Art, de Canclini (1980). Contudo, eles ainda não sabem o que fazer ou quais são os limites da invasão da auto expressão dos alunos. A maioria deles, que por um longo período praticaram desenho de observação de objetos e da natureza com seus alunos, estão chocados com a introdução da imagem nas suas salas de aula e com crianças observando trabalhos de arte de adultos. O preconceito contra a imagem é estendido e mais forte na escola primária. Após 83, apesar de alguns esforços feitos pelo governo do estado para desenvolver o conhecimento de arte-educação, mais de 50% dos professores primários (lª a 4ª séries) estudaram apenas até a 4ª série. Eles não têm nenhum preparo mas lecionam todas as matérias incluindo arte. Uma das razões são os baixos salários. Uma mulher, e são sempre mulheres os professores primários, que terminou a escola secundária faz mais dinheiro trabalhando como secretária do que como professor primário. Como resultado, nós temos professores dando aulas de arte que nunca leram nenhum livro sobre arte-educação e pensam que arte na escola é dar folhas para colorir com corações para o Dia das Mães, soldados no Dia da Independência, e assim por diante. Aqueles professores nunca ouviram falar sobre auto expressão ou educação estética. Por outro lado, os professores instruídos são intoxicados pelo expressionismo. Num ensaio apresentado no Congresso de Arte-Educação dos Estados do Sul em Florianópolis, em novembro de 1988, Susana Vieira da Cunha apontou que, de acordo com sua pesquisa no 39 Rio Grande do Sul, para os professores de arte instruídos, arte significa: intuição ou emoção e, como resultado, eles pensam que "arte-educadores não precisam pensar" e "arte é só fazer", excluindo a possibilidade de observação e compreensão da arte. Em 1987 comecei um programa de arte-educação no Museu de Arte Contemporânea (MAC), combinando trabalho prático com história da arte e leitura de obras de arte. A metodologia utilizada para a leitura de uma obra de arte varia; de acordo com o conhecimento anterior do professor esta pode ser estética, semiológica, iconológica, princípios da Gestalt, etc. Temos sido muito cuidadosos para não transformar a leitura de uma obra de arte num simples questionário. Esta simplificação está acontecendo com a metodologia da Getty Foundation apesar da estrutura teórica e complexa construída por Harry Broudy, porque os professores de arte estão reduzindo a análise ou apreciação artística num jogo de questões e respostas — um mero exercício escolar que leva a leitura a um nível medíocre e simplifica a condensação de significados de uma obra de arte, limitando a imaginação do leitor. Nossa ideia de leitura da imagem é construir uma metalinguagem da imagem. Isto não é falar sobre uma pintura mas falar a pintura num outro discurso, às vezes silencioso, algumas vezes gráfico, e verbal somente na sua visibilidade primária. Para compreender as relações de significado dentro das imagens nós temos sido ajudados por sistematizações de Louis Marin (1978), Jean-Louis Schefer (1969), Oscar Morina y Maria Elena Jubrias (1982), Edmundo Burke Feldman, Harry Broudy, J. Bronowski, Rudolf Arnheim, etc. Nossa concepção de história da arte não é linear mas pretende contextualizar a obra de arte no tempo e explorar suas circunstancias. Em lugar de estar preocupado em mostrar a então chamada evolução das formas artísticas através dos tempos, pretendemos mostrar que a arte não está isolada de nosso cotidiano, de nossa história pessoal. Apesar de ser um produto da fantasia e da imaginação, a arte não está separada da economia, política e dos padrões sociais que operam na sociedade. Ideias, emoções, linguagens diferem de tempos em tempos e de lugar para lugar e não existe visão desinfluenciada e isolada. Construímos a História a partir de cada obra de arte examinada pelas crianças, estabelecendo conexões e relações entre outras obras de arte e outras manifestações culturais. O financiamento de um atelier por algumas corporações tornou possível oferecer às crianças os melhores materiais artísticos à disposição no Brasil, incluindo uma máquina Xerox. Estas condições especiais, aliadas a uma coleção de 5.000 obras de arte com obras 40 significativas da arte moderna francesa, italiana4 e latino-americana, estimulam os arte- educadores no MAC. Porém, alguns arte-educadores visitando o Museu ficaram chocados com as reinterpretações de obras de artistas pelas crianças, acusando-nos de impor restrições ao processo criativo. Decidi fazer uma pesquisa para investigar a reação de professores de arte para com a introdução de imagens no ensino da arte e a produção infantil sob a influência destas imagens. Organizei uma palestra mostrando como os artistas vêm tomando de empréstimo imagens de outrosartistas, quer seja suprimindo referências à sua origem ou com citações abertas, como no caso dos artistas Pop. Minha palestra começa com a análise da "Vênus de Giorgione" (Dresden Art Gallery) tomada primeiramente por Ticiano para sua "Resting Venus" (Florença, Uffize) e mais tarde por Manet para sua "Olympia" (Paris, Louvre) que, finalmente, foi reinterpretada por Mel Ramos em "Manet's Olympia" (Chicago, Coleção de Sr. e Srª Norton G. Newmann) e Larry Rivers em "I like Olympia in Black Face" (Paris, M.N.A.M. Centro Nacional das Artes e da Cultura Georges Pompidou). Os outros exemplos de arte sobre arte foram tomados principalmente a partir do livro de Jean Lipman e Richard Marshall (1978). Minha ideia era convencer os arte-educadores do seguinte: 1º) Que se o artista utiliza imagens de outros artistas, por que sonegar imagens às crianças; 2º) Que se nós preparamos as crianças para lerem imagens produzidas por artistas, estamos preparando-as para ler as imagens que as cercam em seu meio ambiente; 3º) Que a percepção pura da criança sem influência de imagens não existe realmente, uma vez que está provado que 80% de nosso conhecimento informal vem através de imagens; 4º) Que no aprendizado artístico, a mimese está presente no sentido grego procura pela similaridade e não como cópia. A segunda parte da palestra estava planejada para mostrar algumas interpretações gráficas de obras de arte por crianças. Fui cuidadosa ao escolher, pelo menos, dez exemplos de interpretações de uma mesma obra tentando convencer que a auto expressão não foi reprimida dada a diversidade de interpretações. No caso da obra de Max Bill, uma criança transformou a escultura abstrata do artista num pássaro, uma outra representou o movimento da obra, mas não sua materialidade, outra representou apenas a base da escultura, etc. Outras crianças do mesmo grupo 41 escolheram outras obras e outras duas recusaram qualquer obra de arte, desenhando seus habituais barcos e pôr-do-sol. De junho a outubro de 1988, escolhi seis ocasiões para falar para grandes audiências de arte-educadores através do País. Para três grupos dei apenas a primeira parte da palestra, aquela planejada para convencer sobre a necessidade de introduzir a obra de arte em aulas de arte, da necessidade de iniciar as crianças na leitura de imagens e necessidade de dar informação histórica, mas não mostrei nenhuma interpretação de obra de arte por crianças incluída na segunda parte da palestra. Os grupos que tiveram apenas a primeira parte da palestra foram estes: a) Curitiba, estado do Paraná. Para professores de arte universitários e estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades; b) Florianópolis, estado de Santa Catarina. Para professores de arte universitários e estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades; c) Brasília, Distrito Federal. Para professores de arte universitários, estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades e na maioria professores de escolas secundárias (mais de 50%). Nossa ideia de leitura da imagem é construir uma metalinguagem da imagem. Isto não é falar sobre uma pintura mas falar a pintura num outro discurso, às vezes silencioso, algumas vezes gráfico, e verbal somente na sua visibilidade primária. A palestra despertou grande interesse na audiência, as pessoas faziam perguntas mas ninguém discordou de minhas afirmações. Desenvolvi ambas as partes da palestra (mostrando os trabalhos feitos por crianças interpretando obras de arte) durante três outros encontros: a) Em Recife, estado de Pernambuco. Para professores de arte universitários, estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades e principalmente professores de arte de escolas secundárias (mais de 50%); b) Em Florianópolis, estado de Santa Catarina. Para professores de arte universitários, estudantes de cursos de Educação Artística nas universidades, e principalmente professores de arte de escolas secundárias (mais de 50%); c) Em Uberlândia, estado de Minas Gerais. Para professores de arte universitários, estudantes de cursos de Educação Artística na universidade e 8% de professores de arte de escolas secundárias. Somente o grupo de Uberlândia aceitou os argumentos. Os outros dois grupos tiveram reações agressivas. Em lugar de perguntas eles me enviaram acusações escritas de ser 42 conservadora, alienada, escrava do capitalismo internacional, de rechaçar a arte-educação, etc. Em Florianópolis, um grupo de professores universitários havia aceitado previamente os argumentos em favor das imagens nas aulas de arte; num segundo momento, este mesmo argumento, utilizando as mesmas imagens ligadas com trabalhos das crianças baseados nas imagens artísticas, foi fortemente rejeitado quando apresentado ao mesmo grupo acrescido de professores secundários. Frente a esse grupo, um orador convidado, que foi aplaudido quase histericamente pelo público, manifestou-se contra a avaliação e mesmo contra o comentário do trabalho de arte dos estudantes em sala de aula, e definiu a arte como "uma sonora gargalhada para oxigenar a vida quando a velhice chega". A aclamação do laissez-faire da arte-educação e emotividade da arte por alguns observadores da situação está ligada com a ideologia do Movimento Escolinhas de Arte; mas apesar do fato de que o Congresso de Florianópolis foi organizado pela Escolinha de Arte de Florianópolis, penso que a reação contra a sistematização é mais ampla e não somente um eco da ideologia das Escolinhas (BARBOSA, 1983). O Movimento Escolinhas de Arte perdeu poder contra o poder das universidades nos anos 70, e a célula mater do Movimento, a Escolinha de Arte do Brasil no Rio de Janeiro perdeu credibilidade depois de uma mudança de política interna nos anos 80, que afastou por idiossincrasias pessoais os melhores mestres daquela entidade. Talvez a semente da crença na espontaneidade venha de uma interpretação simplificada da prática das Escolinhas nos anos 60, mas isto tem sido exacerbado como uma forma de autoproteção pelos professores de arte deficientemente preparados pelas universidades. Os professores de arte conseguem os seus diplomas mas eles são incapazes de prover uma educação artística e estética que forneça informação histórica, compreensão de uma gramática visual e compreensão do fazer artístico como auto expressão. Muito aprendizado seria necessário além do que a universidade vem dando até agora. Os professores reagem contra o que não estão preparados para ensinar. Além disso, é interessante notar que no estado de Santa Catarina (Florianópolis), na época do Congresso não havia a Associação Estadual de Arte-Educação, que só foi criada durante o Congresso. A Associação trará um tipo de força política que forneça mais segurança para ousar conceitualmente. 43 Os arte-educadores no Brasil (apenas em São Paulo nós tem os 18.000) estão sendo confrontados com um novo problema que precisa tanto de força política como conceitual. Uma nova lei federal para substituir a Lei Federal de 1971 está sendo estudada. Já existe um projeto escrito que exclui as artes do currículo das escolas primárias e secundárias. Neste momento de democratização existe algum preconceito contra as artes nas escolas, não somente porque seu ensino é fraco, mas porque foi uma exigência de uma lei federal imposta pela ditadura militar. Esta é a causa obscura da exclusão das artes das escolas na nova organização da educação brasileira. A razão explícita dada pelos educadores é que a educação no Brasil tem de ser direcionada no sentido da recuperação de conteúdos e que arte não tem conteúdo. É algo similar ao movimento de volta ao básico nos EUA. Um simpósio foi planejado (agosto, 1989) para demonstrar os conteúdos da arte na educação. Apesar de termos a maioria dos arte-educadores das escolas secundárias defendendo o laissez-faire
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