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PATOLOGIAS DO SISTEMA ENDÓCRINO VALESSA VALENÇA – 2020.1 1 Doença de Addison FISIOPATOLOGIA E CONSEQUÊNCIAS DA INSUFICIÊNCIA DO CÓRTEX ADRENAL A insuficiência suprarrenal, ou hipofunção, pode ser provocada por doença suprarrenal (hipoadrenalismo primário) ou pela redução do estímulo das suprarrenais resultante de deficiência de ACTH (hipoadrenalismo secundário). Os padrões de insuficiência adrenocortical podem ser divididos em três categorias gerais: (1) insuficiência adrenocortical aguda primária (crise suprarrenal); (2) insuficiência adrenocortical crônica primária (doença de Addison); e (3) insuficiência adrenocortical secundária. INSUFICIÊNCIA ADRENOCORTICAL AGUDA As pessoas com insuficiência adrenocortical crônica podem desenvolver uma crise aguda após qualquer estresse que sobrecarregue as suas reservas fisiológicas limitadas. Nos pacientes mantidos com corticosteroides exógenos, a retirada rápida dos esteroides ou o insucesso no aumento das doses de esteroides em resposta a um estresse agudo podem precipitar uma crise suprarrenal semelhante, devido à incapacidade das suprarrenais atróficas em produzirem hormônios glicocorticoides. A hemorragia suprarrenal maciça pode destruir suficientemente o córtex suprarrenal para produzir insuficiência adrenocortical. Essa condição pode ocorrer em pacientes mantidos em terapia anticoagulante, em pacientes no pós-operatório que desenvolvem coagulação intravascular disseminada, durante a gravidez e em pacientes que sofrem de sepse devastadora; neste último contexto, é conhecida como síndrome de Waterhouse-Friderichsen. Essa síndrome catastrófica é classicamente associada à septicemia pela Neisseria meningitidis, mas também pode ser provocada por outros organismos, incluindo Pseudomonas spp., pneumococos e Haemophilus influenzae. INSUFICIÊNCIA ADRENOCORTICAL CRÔNICA: DOENÇA DE ADDISON A doença de Addison, ou insuficiência adrenocortical crônica, é um distúrbio raro resultante da destruição progressiva do córtex suprarrenal. Mais de 90% de todos os casos são atribuíveis a um destes quatro distúrbios: 1. Adrenalite autoimune: Como diz o nome, destruição autoimune das células produtoras de esteroides e autoanticorpos para várias enzimas fundamentais. A adrenalite autoimune ocorre em uma das duas síndromes poliendócrinas autoimunes: SPA1, que é provocada por mutações no gene regulador autoimune (AIRE) no cromossomo; que se caracteriza por candidíase mucocutânea crônica e anomalias da pele, do esmalte dentário e das unhas (distrofia ectodérmica), ocorrendo em associação com uma combinação de distúrbios autoimunes órgão- específicos (adrenalite autoimune, hipoparatireoidismo autoimune, hipogonadismo idiopático, anemia perniciosa), que resulta na destruição dos órgãos-alvo. O segundo cenário é o da SPA2, que se manifesta no início da vida adulta, exibindo uma combinação de insuficiência suprarrenal e tireoidite autoimune ou diabetes do tipo 1. Ao contrário da SPA1, na SPA2 a candidíase mucocutânea, a displasia ectodérmica e o hipoparatireoidismo autoimune não ocorrem. 2. As infecções, particularmente a tuberculose e aquelas produzidas por fungos, também podem provocar insuficiência adrenocortical crônica primária. 3. As neoplasias metastáticas envolvendo as suprarrenais constituem outra potencial causa de insuficiência suprarrenal. Os carcinomas de pulmão e de mama constituem a fonte da maioria das metástases nas suprarrenais, embora muitas outras neoplasias, incluindo os carcinomas gastrointestinais, os melanomas malignos e as neoplasias hematopoiéticas, também possam metastatizar para o órgão. PATOLOGIAS DO SISTEMA ENDÓCRINO VALESSA VALENÇA – 2020.1 2 INSUFICIÊNCIA ADRENOCORTICAL SECUNDÁRIA Qualquer distúrbio do hipotálamo e da hipófise, como, por exemplo, câncer metastático, infecção, infarto ou irradiação que reduza o débito de ACTH, leva a uma síndrome de hipoadrenalismo que possui muitas semelhanças com a doença de Addison. Na doença secundária, a hiperpigmentação da doença de Addison primária está ausente porque os níveis de hormônio melanotrófico estão baixos. A deficiência de ACTH pode ocorrer isoladamente, mas, em alguns casos, é só uma parte do pan-hipopituitarismo, associado a deficiências múltiplas de hormônios trópicos. Nos pacientes com doença primária, os níveis séricos de ACTH podem ser normais, mas a destruição do córtex suprarrenal não permite uma resposta ao ACTH exogenamente administrado sob a forma de um aumento dos níveis plasmáticos de cortisol. Em contraposição, a insuficiência adrenocortical secundária se caracteriza pelo baixo ACTH sérico e imediata elevação dos níveis plasmáticos de cortisol em resposta à administração de ACTH. O aspecto das glândulas suprarrenais varia de acordo com a causa da insuficiência adrenocortical. No hipoadrenalismo secundário, as suprarrenais estão reduzidas a estruturas pequenas e achatadas que geralmente conservam a sua cor amarelada devido a pequenas quantidades residuais de lipídios. Uma borda uniforme e fina de córtex amarelo atrófico circunda a medula central intacta. A avaliação histológica revela atrofia das células corticais com perda de lipídios citoplasmáticos, particularmente na zona fasciculada e na zona reticulada. MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS DA INSUFICIÊNCIA ADRENAL As manifestações iniciais frequentemente incluem fraqueza progressiva e cansaço fácil, que podem ser descartados como queixas inespecíficas. Os distúrbios gastrointestinais são comuns e incluem anorexia, náusea, vômitos, perda de peso e diarreia. Nos pacientes com doença suprarrenal primária, os níveis aumentados do hormônio precursor do ACTH estimulam os melanócitos, com a resultante hiperpigmentação da pele e das superfícies mucosas. Face, axilas, mamilos, aréolas e períneo são locais particularmente comuns de hiperpigmentação. Em contraposição, a hiperpigmentação não é observada nos pacientes com insuficiência adrenocortical secundária. A redução da atividade mineralocorticoide (aldosterona) nos pacientes com insuficiência suprarrenal primária resulta em retenção de potássio e perda de sódio, com consequente hipercalemia, hiponatremia, depleção volumétrica e hipotensão, enquanto o hipoadrenalismo secundário se caracteriza por débito deficiente de cortisol e androgênios, mas com síntese normal ou quase normal de aldosterona. Hipoglicemia ocasionalmente pode ocorrer como resultado da deficiência de glicocorticoides e do comprometimento da gliconeogênese. Estresses como infecções, trauma ou procedimentos cirúrgicos nos pacientes afetados podem precipitar uma crise suprarrenal aguda, manifestada por vômitos intratáveis, dor abdominal, hipotensão, coma e colapso vascular. O óbito se segue rapidamente, a menos que os corticosteroides sejam imediatamente repostos. A adrenalite autoimune primária se caracteriza por glândulas irregularmente atrofiadas, que podem ser extremamente difíceis de identificar no interior do tecido adiposo suprarrenal. Ao exame histológico, o córtex contém apenas células corticais residuais espalhadas em uma trama colapsada de tecido conjuntivo. Um infiltrado linfoide variável está presente no córtex e pode se estender para a medula subjacente. A medula não se mostra afetada. Nas doenças tuberculósica ou fúngica, a arquitetura suprarrenal pode estar apagada por uma reação inflamatória granulomatosa idêntica àquela encontrada em outros locais de infecção. Quando o hipoadrenalismo é provocado por carcinoma metastático, as suprarrenais estão aumentadas e a sua arquitetura normal está obscurecida pela neoplasia infiltrante. PATOLOGIAS DO SISTEMA ENDÓCRINO VALESSA VALENÇA – 2020.1 3 INSUFICIÊNCIA ADRENAL CRÔNICA E AGUDA - MARGARET DE CASTRO E LUCILA L. K. ELIAS (USP-RIBEIRÃOPRETO) INTRODUÇÃO O córtex adrenal produz glicocorticóides, mineralocorticóides e andrógenos, e a medula produz catecolaminas. Os glicocorticóides regulam o metabolismo dos carboidratos agindo como contrarreguladores da insulina, estimulando a gliconeogênese hepática e a glicogenólise. Diminuem, ainda, a utilização periférica de glicose, atuando sobre o receptor da insulina e diminuindo os transportadores de glicose. No metabolismo dos lipídeos, quando administrados agudamente, aumentam a lipólise, porém a exposição crônica resulta no acúmulo de gorduras nas regiões supraclaviculares, dorsocervical e tronco. Estimulam a mobilização de proteínas musculares, inibindo a síntese proteica e acelerando a proteólise, resultando em importante miopatia. Atuam ainda nos ossos, no crescimento esquelético, no sistema nervoso central, no comportamento, e como anti-inflamatórios e imunossupressores, modulando a migração de células imunocompetentes e a liberação de citocinas. INSUFICIÊNCIA ADRENAL CRÔNICA A falência da produção de cortisol e aldosterona é observada na insuficiência adrenal primária, enquanto, na secundária, a deficiência é apenas de cortisol, pois com as adrenais preservadas, há a manutenção da secreção de aldosterona que é regulada primariamente pelo sistema renina-angiotensina. As diferentes causas de insuficiência adrenal primária podem ser agrupadas em alterações do desenvolvimento ou destruição da glândula e deficiência na síntese de cortisol e podem ser de causa genética ou adquirida. Na criança, a causa mais comum é a hiperplasia adrenal congênita, doença autossômica, recessiva, decorrente da deficiência de uma das cinco enzimas envolvidas na síntese de cortisol. A hipoglicemia pode ser uma manifestação inicial da insuficiência adrenal. Pacientes com insuficiência adrenal grave ou de longa duração podem apresentar mialgias e artralgias difusas, além de sintomas psiquiátricos, como perda de memória, delírio, depressão e psicose. Todos estes sinais e sintomas não permitem a diferenciação entre a causa primária e secundária da insuficiência adrenal, no entanto, o achado objetivo de hiperpigmentação, devido ao excesso de ACTH, obtido pela semiologia da pele, mucosas e cicatrizes, indica a causa primária da doença. As anormalidades laboratoriais incluem anemia normocítica e normocrômica, linfocitose relativa com eosinofilia e discreta acidose metabólica. • O teste da hipoglicemia insulínica (ITT) consiste na indução de hipoglicemia (< 40mg/dl) pela aplicação de 1U/Kg de peso de insulina regular por via endovenosa. É um potente estímulo para liberação de cortisol, entretanto, apresenta algumas contra-indicações, como a presença de crise convulsiva, coronariopatia em idosos. É um teste utilizado principalmente para avaliar a integridade do eixo hipotalamoipófiseadrenal. O tratamento da insuficiência adrenal crônica consiste na reposição de cortisol na insuficiência adrenal secundária e cortisol e mineralocorticóide na primária. DOENÇA DE ADDISON: A DIFICULDADE DE DIAGNÓSTICO - CLARA PRETO E JOANA CORREIA (RELATO DE CASO - REVISTA MÉDICA NASCER E CRESCER/2018) DESCRIÇÃO DO CASO Adolescente do sexo masculino, de 15 anos, caucasiano. Sem doenças heredofamiliares conhecidas ou antecedentes patológicos relevantes. História de astenia com quatro meses de evolução. No mês anterior ao internamento recorreu três vezes ao serviço de urgência (SU) por dor abdominal, náuseas e vómitos (tabela 1). Recorreu de novo ao SU, no episódio que motivou o internamento, por dor abdominal generalizada associada a anorexia e náuseas. Sem vómitos, diarreia ou febre. História de perda ponderal de dez quilos no último mês. Sem história recente de consumo de fármacos. À admissão no SU apresentava razoável estado geral, pele e mucosas coradas e hidratadas, sem hiperpigmentação cutânea e hemodinamicamente estável (FC 108bpm, TA 112/57mmHg, sem hipotensão ortostática). Apresentava um peso de 73Kg, estatura de 171,1cm, índice de massa corporal de 25Kg/m2 (P8597) e encontrava-se no estágio V de Tanner. Manifestava dor à palpação abdominal profunda nos hipocôndrios, sem defesa. Sem outras alterações ao exame objetivo. O estudo analítico inicial revelou hiponatremia (126meq/l) e hipocloremia (92meq/l), PATOLOGIAS DO SISTEMA ENDÓCRINO VALESSA VALENÇA – 2020.1 4 com potássio normal (K 4,1meq/l), hemograma e função renal sem alterações, normoglicemia (91mg/ dl) e proteína C reativa de 5,7mg/l. Iniciou fluidoterapia endovenosa, com correção da hiponatremia em 12 horas. Da investigação efetuada a realçar: cortisol 7,7ug/dl (6,219,4), ACTH 1489pg/ml (9-52), renina 644,3pg/ml (1,6-47,2), aldosterona 17pg/ml (40-310). A insuficiência suprarrenal primária foi confirmada por prova de estimulação com ACTH através da administração, de modo endovenoso, de 250 µg de tetracosatido (ACTH sintético) e doseamento de cortisol endovenoso aos 0 e aos 60 minutos (cortisol: tempo 0 minutos - 6,4 µg /dl / tempo 60 minutos – 6,4 µg /dl). Iniciou hidrocortisona oral na dose oito mg/m2, dividida em três tomas diárias e fludrocortisona na dose de 100 µg/dia, dose única. Verificou-se melhoria clínica progressiva com resolução completa dos sintomas e normalização do ionograma cerca de três semanas após início da terapêutica e aumento gradual do peso com recuperação dos 10 Kg perdidos em um mês e meio. Realizada investigação para identificação da etiologia da ISR: ecografia e tomografia computorizada abdominal sem alterações, prova de Mantoux negativa, pesquisa de anticorpos antissuprarrenal positiva (1/640). Apresentava função tiroideia normal. O doseamento dos anticorpos antitiroideus, antiparatiroideus, antifactor intrínseco, anticélula parietal gástrica e antitransglutaminase foi negativo. DISCUSSÃO Neste caso clínico, a presença de hiponatremia associada a sintomas constitucionais e gastrointestinais orientou-nos no diagnóstico. A ausência de hiperpigmentação cutânea, presente em cerca de 94% dos casos, dificultou-o. A hiperpigmentação cutânea está relacionada com a deficiência de cortisol e consequente estimulação da pro- opiomelonocortina, uma pró-hormona que é clivada, originando ACTH e hormona estimuladora dos melanócitos (MSH). Posteriormente a ACTH sofre mais clivagens, resultando em α-MSH. Os níveis elevados de MSH estimulam a síntese de melanina, causando hiperpigmentação. Neste caso clínico a ausência de hiperpigmentação pode ser explicada pelo início recente da doença. O diagnóstico foi sugerido laboratorialmente pela associação de um valor sérico de cortisol normal a um valor de ACTH aumentado e confirmado pelo teste de estimulação com ACTH. Este último, embora seja um teste mais elaborado, apresenta uma maior sensibilidade e especificidade. A presença de anticorpos antissuprarrenal confirmou a etiologia autoimune. Dada a elevada frequência de associação de ISR autoimune e outras endocrinopatias autoimunes é necessário realizar um rastreio no momento do diagnóstico. Apesar da investigação ter sido negativa, a possibilidade de poderem surgir posteriormente outros autoanticorpos implica vigilância clínica e laboratorial a longo prazo.
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