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1 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV ANESTESIOLOGIA CONSULTÓRIO DE AVALIAÇÃO PRÉ-ANESTÉSICA – As recomendações (guidelines) existentes sobre avaliação pré- anestésica (APA) concluem que deve ser realizada, embora não existam publicações na literatura que comparem a realização da APA e a não realização (provavelmente porque a não realização pode levar a processos médico-legais). Atualmente, o padrão ouro de APA pressupõe sua realização em consultório próprio, antes da internação, em nível ambulatorial, sempre que possível. A força-tarefa (FT) da American Society of Anesthesiologists (ASA) propõe, em suas recomendações de APA, que o intervalo de tempo entre o atendimento do paciente no consultório para avaliação pré-anestésica (CAPA) e o procedimento a ser realizado sob anestesia seja determinado pela gravidade da doença e pelo grau de invasividade do procedimento, e, nos casos de pacientes portadores de doenças graves, a APA deve ser sempre realizada antes do dia do procedimento. Nos portadores de doenças não graves e procedimentos pouco ou não invasivos, pode ser feita antes ou no dia do procedimento. Não existe padrão numérico de intervalo de tempo entre o atendimento do paciente no CAPA e a internação, mas o bom senso demonstra que o atendimento nos CAPA não deve ser realizado muito próximo à data prevista para o procedimento sob anestesia (alguns dias), porque se o paciente apresentar outras doenças concomitantes e necessitar de encaminhamento para avaliação clínica especializada, a cirurgia provavelmente será adiada. Também, o bom senso mostra que a APA não deve ser feita muitos meses antes do procedimento sob anestesia, devido a possibilidade de alterações do estado clínico do paciente por descompensação de doenças associadas já compensadas ou o aparecimento de novas doenças. Mais ainda pela possibilidade de o relacionamento anestesiolo- paciente, adquirido na consulta, perder-se após um tempo longo. O ideal é que, no momento em que o cirurgião/clínico indica o procedimento sob anestesia, ocorra o encaminhamento para o anestesiologista. RISCO ANESTÉSICO CIRURGICO – A determinação do estado clínico do paciente implica na avaliação do risco perioperatório ou da probabilidade de morbimortalidade. Na procura pela melhoria da qualidade em relação a esse item, alguns métodos ou sistemas de classificação dos pacientes quanto ao risco anestésico foram propostos. O termo risco anestésico-cirúrgico, ou risco perioperatório, embora frequentemente utilizado referindo-se ao risco de morte e/ou complicações inerentes ao ato anestésico em si, é sempre associado a uma tríade em que estão implicados: a anestesia propriamente dita, considerando-se os fármacos e as técnicas utilizadas; o procedimento a ser realizado sob anestesia/sedação, que pode ser cirúrgico, diagnóstico ou terapêutico; e os fatores intrínsecos do paciente, entre eles idade, condição clínica, complicações anestésicas anteriores e fatores de risco. Várias classificações do risco anestésico-cirúrgico são descritas na literatura. Algumas utilizam critérios não específicos e destinam-se a qualquer procedimento sob anestesia, sendo a mais utilizada a classificação do estado físico da ASA, conhecida como classificação da ASA. No entanto, apresenta como limitações a subjetividade e o fato de o escore valer para o momento da APA em si, podendo estar alterado no ato da anestesia. O PACIENTE – É um consenso no mundo todo que todo paciente deve ser avaliado quanto a sua história clínica, presença de comorbidades atuais e anteriores e de fatores de risco, anestesias precedentes, uso de medicamentos e/ou terapias alternativas, uso/abuso de substâncias lícitas ou ilícitas, assim como deve ser realizado exame físico. Independentemente da idade, da doença principal e dos fármacos/técnica anestésica a serem utilizados, deve se interrogar sobre os diversos sistemas e órgãos, a saber: cardiovascular; respiratório; nervoso-ósseo-muscular; digestório; endócrino; geniturinário, hematopoiético e sua coagulação. MÓDULO 15 – DOR PROBLEMA 8 – EU AVALIO, TU AVALIAS, NÓS AVALIAMOS 2 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV Em pacientes que vão ser submetidos a anestesia regional deve-se averiguar a ocorrência atual ou antiga de doenças neurológicas, musculares e/ou ósseas que podem levantar suspeitas, no pós-operatório, de alguma lesão causada pela anestesia ou podem apresentar agravamento. Deve-se também inquirir o paciente sobre sua história pessoal e/ou familiar sugestiva de hipertermia maligna e deficiência de pseudocolinesterase e, independentemente da técnica anestésica a ser escolhida a posteriori, deve-se questionar sobre a história atual ou antiga de alergia. Deve- se procurar identificar o(s) fármaco(s) envolvido(s), o quadro clínico apresentado e sua evolução. Na dúvida, deve-se encaminhar o paciente para um alergista/imunologista. O número de reações aos derivados do látex (RL) tem aumentado no Brasil, o que demanda averiguação de rotina em toda a APA, devendo os casos suspeitos serem avaliados por alergista/imunologista, para confirmação ou não de sensibilidade. Nos casos positivos, o corpo dos profissionais da saúde do hospital que vai ter contato com o paciente deve ser alertado para a troca de todo o material derivado de látex no centro cirúrgico, UTI, enfermaria etc., independente da escolha da técnica anestésica. Devem, ainda, ser inquiridas informações sobre as condições da dentição (presença ou não de todos os dentes e de próteses fixas ou móveis); o uso de medicamentos, fitoterápicos e suplementos vitamínicos; tabagismo e dependência de drogas e álcool. A condição cardiorrespiratória dos pacientes feita no período pré-operatório pode ser considerada preditor da evolução pós-operatória. A avaliação da capacidade funcional ou atividade física pode ser quantificada em termos de equivalentes metabólicos consumidos nas tarefas (METs), que estão associados ao consumo de oxigênio gastos nessas atividades. Aspectos do exame físico de importância e/ou risco durante o ato anestésico-cirúrgico – A FT da ASA, em relação à realização do exame físico na APA, define que um exame físico deve conter: sinais vitais; avaliação da permeabilidade das vias aéreas e exame cardiopulmonar, incluindo a ausculta. Pressão arterial: a hipertensão arterial crônica é a comorbidade mais frequente associada em pacientes cirúrgicos e é a principal causa clínica de suspensão ou adiamento de cirurgias, sendo, então, importante sua detecção no CAPA, em que é preciso verificar quais pacientes são realmente hipertensos e quais estão hipertensos no momento da consulta, por causa do estresse ou em função de obesidade, quando a PA medida com esfigmomanômetro comum mostra níveis falsamente elevados, sendo necessária a utilização de manguito apropriado. Avaliação da permeabilidade das vias aéreas: geralmente não é realizada por cirurgiões e clínicos. Deve ser feita minuciosamente, observando-se: a presença de dentes falhos, anômalos e próteses; anormalidades da boca, da cavidade oral, do queixo e do pescoço. Vários testes foram propostos para a verificação da previsibilidade de dificuldade na intubação traqueal, mas nenhum deles é eficaz em 100% das vezes. Entre os testes preditivos de intubação orotraqueal (IOT) difícil podem ser citados: teste de Mallampati; distância esterno-mento; distância tiro-mento; comprimento entre os incisivos durante protrusão voluntária; visibilidade da úvula (Mallampati > 2); forma do palato (muito arqueado ou estreito); e largura do pescoço. Teste de Mallampati modificado: é realizado com o paciente sentado, com o pescoço em posição normal, boca em abertura total e língua em protrusão máxima. O observador deve estar sentado, com os olhos à mesma altura dopaciente. A cavidade oral é classificada em 4 categorias: I. Palato mole, fauce, úvula e pilares visíveis; II. Palato mole, fauce e úvula visíveis; III. Palato mole e base da úvula visíveis; IV. Palato mole parcialmente ou não visível. As classes III e IV são sugestivas de intubação difícil. Nas gestantes, verificou-se haver aumento do número de casos de Mallampati IV, sem correlação com o crescimento dos casos de intubação difícil, o que torna esse índice de uso limitado na gestação. Distância esterno-mento: com o paciente sentado, pescoço em extensão máxima, boca fechada, mede-se a distância entre o bordo superior do esterno (manúbrio) e o queixo. 3 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV Distância igual ou < 12,5 cm é considerada sugestiva de intubação difícil. Outro item importante em relação à permeabilidade das vias aéreas é a avaliação de preditores de ventilação difícil. A ventilação difícil sob máscara facial é definida como uma condição em que não é possível sua consecução pelo anestesiologista por causa de: vedação ineficiente/ineficaz entre a máscara e a face do paciente e/ou excessiva resistência à entrada do fluxo de ar gerado pelo balão de ventilação. Preditores de ventilação difícil: presença de barba; ausência de dentes; IMC > 26 kg.m-2; idade > 55 anos; Mallampati III ou IV; protrusão mandibular limitada e histórico de apneia do sono ou roncos. Em pacientes a serem submetidos à anestesia regional, deve-se verificar a região a ser puncionada (abscessos, tatuagens, processos inflamatórios locais). AVALIAÇÃO DA CONDIÇÃO EMOCIONAL DO PACIENTE – Vários fatores são responsáveis pela ansiedade e pelo medo que podem estar envolvidos no procedimento anestésico- cirúrgico, como o tipo de procedimento cirúrgico e de anestesia; desconforto e dor no pós-operatório; incapacitação; dependência e medo da morte. No momento da APA, além da avaliação clínica, deve ser priorizada a avaliação das condições emocionais, uma vez que, em pacientes no pré-operatório, com frequência, são encontrados sintomas psicológicos de ansiedade e depressão que se confundem com os sinais da doença que originou a intervenção cirúrgica e que merecem algum tipo de intervenção farmacológica diferenciada. OS FÁRMACOS – Existe a orientação de se manterem os fármacos de uso contínuo no período pré-operatório, devendo-se anotar as doses e os horários de administração e verificar as possíveis interações com os agentes anestésicos. Antiarrítmicos, anti-hipertensivos, betabloqueadores, digitálicos, estatinas, diuréticos, medicamentos para tratamento de hipotireoidismo, hipertireoidismo, miastenia grave e regimes antirretrovirais para tratamento da AIDS: A conduta é a não suspensão, inclusive no dia do procedimento anestésico-cirúrgico. Em pacientes que utilizam diuréticos de alça no controle da insuficiência cardíaca, estes devem ser mantidos e deve-se tomar o cuidado com a depleção volêmica causada por eles. Os inibidores da enzima conversora da angiotensina e bloqueadores do receptor da angiotensina continuados até o dia da cirurgia têm sido associados à hipotensão arterial intraoperatória significativa, que responde, de forma inadequada, ao tratamento com hidratação, efedrina e fenilefrina. Assim, recomenda-se retirar essa classe de anti- hipertensivos 12 horas a 24 horas antes da cirurgia, nos pacientes que não toleram hipotensão arterial. Hipoglicemiantes: Um estudo publicado em 2010, refere que a ocorrência de hipoglicemia com o uso de hipoglicemiantes orais (HO) é rara, exceto ocasionalmente, com sulfonilureias e meglitinidas e que não existem evidências de que a metformina esteja associada ao aumento do risco de acidose láctica, mas em pacientes com disfunção renal e naqueles que serão submetidos a exame com contraste por via venosa, a metformina deve ser suspensa entre 24 horas e 48 horas antes do procedimento. Os autores concluem que não existem evidências suficientes sobre o manejo pré-operatório dos hipoglicemiantes orais e sugerem a suspensão dos HO no dia da cirurgia até que a alimentação normal seja restabelecida. Outros estudos propõem que a metformina deve ser reintroduzida 48 horas a 72 horas após a cirurgia, quando a função renal estiver normal. As tiazolidinedionas devem ser reintroduzidas após a recuperação pós-operatória completa, sem evidências de comprometimento cardiopulmonar ou sobrecarga de volume. Para pacientes em uso de insulina, existem vários esquemas de administração do fármaco no período pré-operatório, com vantagens e desvantagens. Grande parte dos pacientes se beneficiará se utilizar, na manhã da cirurgia, apenas parte da dose em uso de insulina (de 1/3 à metade), havendo a possibilidade de se administrar glicose se o paciente desenvolver hipoglicemia. Os pacientes ambulatoriais devem ser instruídos a não fazer uso de insulina na manhã do procedimento, pois devem ter os níveis de glicemia monitorados ao chegar ao hospital, e pequenas doses de insulina devem ser aplicadas conforme as concentrações de glicose plasmática. Anticoagulantes: Vários pacientes são admitidos para procedimentos cirúrgicos enquanto fazem uso de medicações que podem causar sangramento, e o anestesio deve sempre avaliar a relação risco-benefício do uso de anticoagulantes vs o procedimento anestésico adotado. Alguns fitoterápicos, como alho, gynkgo biloba e ginseng, diminuem a agregação plaquetária, podendo ter efeito sobre a coagulação, principalmente em pacientes que usam medicação anticoagulante. Estudos sugerem que a aspirina e AINE não são fatores maiores de risco para a formação de hematoma após o bloqueio espinhal. 4 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV Em relação à indicação de bloqueio regional em pacientes que estão usando tromboprofilaxia, o último consenso da ASRA propõe que os AINES são contraindicados e devem ser suspensos: tienopiridínicos entre 7 e 14 dias antes do bloqueio (clopidogrel – 7 dias; prasugrel – 7 a 10 dias; ticlopidina – 14 dias); inibidores da GP IIb/IIIa entre 8 e 24 h antes (epitifibatide e tirofiban – 8 -24h) ou – 2 a 5 dias (abcximab); novos anticoagulantes entre 3 e 5 dias (dabigastran – 4 a 5 dias; rivaroxaban – 3 dias; apixaban - 3 a 5 dias); fondaparinux - 4 dias; aspirina - 7 dias (profilaxia primária). No entanto, nas recomendações da ASRA de 2015, sobre o “Interventional spine and pain procedures in patients on antiplatelet and anticoagulant medications”, consta que o uso de AINE em procedimentos de alto risco deve ser descontinuado por pelo menos 24 horas (diclofenaco, cetorolaco, ibuprofeno), chegando a 10 dias (piroxicam). Medicamentos de ação sobre SNC: Os antidepressivos, antiepilépticos, antipsicóticos, antiparkinsonianos e benzodiazepínicos são utilizados em grande número de doenças (pacientes com dor crônica; com diferentes neuroses e psicoses; síndrome do pânico; obesidade). Inúmeras interações medicamentosas podem ocorrer entre essas classes de medicamentos e os anestésicos e as técnicas anestésicas. A conduta atual é se manter a medicação em uso até o dia do procedimento anestésico-cirúrgico. No caso de uso de inibidores da monoaminoxidase (iMAO), a conduta clássica de suspensão, de 3 semanas antes, pode desencadear descompensação do quadro mental, tendo sido descritos, na literatura, casos de tentativa de suicídio e depressão grave, o que sugere a manutenção da medicação até o dia da anestesia, evitando-se o uso de meperidina e vasopressores de ação indireta (efedrina). É importante lembrar que a suspensão só pode ser decidida de comum acordo com o médico que indicou a medicação e que, no caso de síndrome do pânico, a descontinuação pode acarretar o desencadeamento dessa síndrome no pré- operatório, pela situação de ansiedade característica desse momento. Fitoterápicose suplementos vitamínicos: Levando-se em conta a possibilidade de interação medicamentosa e efeitos adversos (aumento do risco de sangramento, principalmente em uso de anticoagulantes; hipoglicemia; hipertensão; sedação prolongada), fica evidente a necessidade, durante a APA, de se obterem informações sobre o uso dessas substâncias e avaliar a necessidade de descontinuação do uso antes do procedimento anestésico. Outro fato comum é o uso de suplementos vitamínicos, com a finalidade de promover aumento do desempenho físico e sexual, e a não informação na avaliação pré-anestésica (os pacientes negam seu uso) é perigosa, porque essas substâncias podem levar a interações medicamentosas e complicações, principalmente cardiovasculares, no período intraoperatório. É necessário insistir no questionamento com os pacientes de risco (ex. homens jovens), explicando os perigos da não informação ao anestesiologista. Drogas e álcool: Grande parte dos pacientes que sofreram acidentes automobilístico e de moto, pertence a uma faixa etária mais jovem, em que a incidência de uso de drogas e álcool é muito comum e subnotificada, constituindo população de risco, pelas drogas em uso/álcool e suas repercussões sistêmicas e pela interação com os agentes anestésicos. Fica evidente a importância, na APA, de o paciente ter confiança plena no anestesiologista e, assim, sentir-se confortável para relatar o uso/abuso de drogas e/ou álcool. O desconhecimento desse fato pode implicar complicações no ato anestésico, inclusive no pós-operatório, que são classificadas como de causa(s) desconhecida(s). Quimioterápicos: O uso de cisplatina, suramin, taxane (paclitaxel e docetaxel) ou alcaloides da vinca pode levar a várias condições neuropáticas, sendo as mais frequentes as neuropatias periféricas, que, algumas vezes, só são identificadas por meio de testes neurofisiológicos, podendo haver evolução após semanas de suspensão da medicação. Assim, faz-se necessário analisar, com cuidado, os riscos/benefícios de se optar pela anestesia do neuroeixo nesse tipo de paciente. Outras medicações: Pacientes obesos são, algumas vezes, usuários de fármacos para perder peso. Os mais comuns são os anorexígenos, sacietógenos, termogênicos e inibidores da lipase intestinal, associados ou não com algum tipo de antidepressivo. Não há consenso sobre a necessidade de suspensão desses medicamentos antes do procedimento cirúrgico. Todos apresentam efeitos colaterais e podem levar a interação com agentes anestésicos, e o anestesiologista deve conhecê-los antes da indicação da técnica anestésica. A ANESTESIA – A escolha dos fármacos e da técnica anestésica depende das condições clínicas do paciente – presença de comorbidades atuais e anteriores e de fatores de risco; anestesias precedentes; uso de medicamentos e/ou terapias alternativas; uso/abuso de outras substâncias lícitas ou ilícitas; alterações do exame físico e de exames complementares. Depende, também, do procedimento a ser feito sob anestesia (cirúrgico, diagnóstico ou terapêutico), da habilidade técnica do profissional que o realizará (médico assistente ou residente) e das condições do local onde será realizada a anestesia (ex. parque de equipamentos; disponibilidade de fármacos mais caros; material de via aérea difícil; US etc.). 5 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV Uma vez definida a técnica anestésica, o anestesiologista deve comunicar ao paciente sua decisão, relatar em detalhes a sequência de eventos que vão acontecer, desde sua entrada no hospital até a alta da recuperação anestésica. Embora o cirurgião, a equipe de enfermagem e funcionários administrativos possam explicar também o processo de internação/estada no hospital pelo qual o paciente vai passar, o momento da APA é de muita ansiedade para o paciente, portanto, essa conversa é importante. O paciente, por sua vez, tem o direito de tirar dúvidas e opinar sobre a decisão médica/anestésica, podendo não aceitar a técnica escolhida, portanto, nesses casos, ao anestesiologista cabe estar aberto ao diálogo. Também o cirurgião deve estar ciente da técnica e dos fármacos que serão utilizados e, no caso de haver discordância sobre eles, o bom senso deve prevalecer. A CIRURGIA – Os procedimentos a serem realizados sob anestesia ou sedação são, na maioria das vezes, cirúrgicos, mas, muitas vezes, são procedimentos diagnósticos e/ou terapêuticos (endoscopia; TC; RM; litotripsia; redução incruenta de fraturas; intervenções guiadas por imagem – ex.: vasculares, biliares – ou procedimentos terapêuticos para pacientes com dor crônica). Existem inúmeras publicações que propõem escores de risco específicos de acordo com o procedimento a ser realizado sob anestesia/sedação (ex.: EuroSCORE II; escore de risco em cirurgia torácica e cardíaca da STS; escore de risco da Mayo Clinic; guideline de risco de acidente vascular encefálico), enquanto outras são mais abrangentes (sistema de classificação de risco Johns Hopkins, classificação do Estudo VISION). EXAMES COMPLEMENTARES – Independentemente do tipo de anestesia a ser realizada (regional, geral, sedação), a tendência atual na APA é a solicitação de exames pré- operatórios segundo informações da história clínica e/ou do exame físico do paciente; de acordo com a necessidade de avaliação sequencial de exames que podem sofrer alterações durante o procedimento cirúrgico; conforme a inclusão do paciente em população de alto risco para alguma condição específica, mesmo que sem dados positivos da história clínica e/ou do exame físico; e de acordo com o tipo e o grau de invasividade do procedimento cirúrgico. Um levantamento bibliográfico feito desde 1961 revelou 3 fontes principais para a análise do assunto: revisão sistemática da Health Tecnology Assessment (HTA – divisão da National Health Service (NHS)); guia de orientação de exames pré-operatórios da referida HTA-NHS e recomendações práticas para avaliação pré-anestésica da FT da ASA. As 3 fontes citadas definiram como exames “de rotina” aqueles solicitados com a finalidade de identificar condições não detectadas pela história clínica e pelo exame físico em pacientes assintomáticos, aparentemente saudáveis (ASA I) e na ausência de qualquer indicação clínica. Foram analisados, nesses estudos os exames: ECG; Rx de tórax; hematócrito e hemoglobina; testes de coagulação; testes de bioquímica sanguínea (dosagem sérica de sódio, potássio, ureia, creatinina e glicose) e teste de urina do tipo I. Segundo ainda a FT da ASA e a HTA-NHS, a literatura científica disponível não contém informações suficientemente rigorosas sobre exames pré-operatórios de rotina que permitam recomendações que não sejam ambíguas. Assim sendo, é recomendado que os exames pré- operatórios não devem ser solicitados de rotina e, sim, de acordo com o propósito básico de guiar e otimizar o cuidado perioperatório, e que a indicação desses exames deve ser baseada nas informações obtidas por meio do prontuário do paciente, da história clínica, do exame físico, do tipo e do porte do procedimento cirúrgico. A FT da ASA considerou que algumas características clínicas devem ser levadas em consideração no momento da decisão de solicitar os exames pré-operatórios: ➔ ECG – características clínicas: doenças cardiovasculares e respiratórias; tipo e invasividade da cirurgia. ➔ A FT da ASA reconhece que alterações do ECG podem ser mais frequentes em idosos e com múltiplos fatores de risco cardíacos. Considera que o ECG pode ser indicado para fatores de risco cardiovascular já identificados anteriormente ou detectados no momento da APA. Considera também que a idade como fator isolado pode não ser critério para a solicitação do exame. ➔ Outros exames cardiológicos – a FT da ASA concluiu que a literatura é escassa quanto ao impactode exames de avaliação cardiológica, como ecocardiograma, teste de estresse e teste ergométrico, na evolução perioperatória, sendo indicados em situações específicas após consulta com especialistas. ➔ Rx de tórax – tabagismo; infecção respiratória recente; DPOC e doença cardíaca. Alterações do RX são mais frequentes nesses pacientes e nos extremos de idade, mas não considera a presença dessas condições clínicas como critério isolado para a solicitação do exame. ➔ Outros exames de avaliação pulmonar como prova de função pulmonar; gasometria arterial e venosa; oximetria de pulso e espirometria são indicados em situações específicas após consulta com especialistas. 6 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV ➔ Hemoglobina e hematócrito – pacientes com doença hepática; história de anemia; sangramento; outras alterações hematológicas; tipo e invasividade da cirurgia e extremos de idade. ➔ Testes de coagulação – alterações da coagulação; doenças renal e hepática; tipo e invasividade da cirurgia. A FT reconhece que o uso de medicação anticoagulante e terapias alternativas pode aumentar o risco perioperatório. Conclui também que não existem evidências que provem a necessidade desses exames quando da indicação de anestesia regional. ➔ Bioquímica sanguínea (dosagem sérica de potássio, sódio, glicose, função renal e hepática) – doenças endócrinas; risco de doenças renal e hepática; uso de terapias perioperatórias; certas medicações e terapias alternativas. A FT da ASA reconhece que nos extremos de idade os valores desses exames podem diferir do padrão de normalidade. ➔ Urina tipo I – a FT considera indicada apenas em procedimentos urológicos específicos ou quando ocorre infecção urinária. ➔ Teste de gravidez – mulheres em idade fértil que podem estar em início de gestação ainda não diagnosticada. O resultado pode alterar a conduta anestésica/cirúrgica. Não existem evidências na literatura que permitam definir um prazo de validade dos exames pré-operatórios. Propõe que resultados de exames realizados até 6 meses antes do procedimento anestésico-cirúrgico são aceitáveis se a condição clínica do paciente não sofreu mudanças significativas. Quando essas condições mudaram ou quando o resultado dos testes tem papel importante na decisão da técnica anestésica, devem-se realizar os exames em data mais próxima do procedimento anestésico-cirúrgico. JEJUM – O jejum pré-operatório foi instituído com o objetivo de garantir o esvaziamento gástrico e prevenir complicações como regurgitação e broncoaspiração (síndrome de Mendelson). O jejum pré-operatório de 8 horas a 12 horas foi estabelecido a partir da ocorrência de um caso de broncoaspiração perioperatória em parto com anestesia geral, quando as técnicas anestésicas eram ainda rudimentares. O jejum pré-operatório é a principal medida para evitar a aspiração do conteúdo gástrico nos pacientes a serem anestesiados para procedimentos eletivos. A ASA e a ESA propõem recomendações de jejum de acordo com o tipo de alimento ingerido, para pacientes a serem submetidos a procedimentos eletivos. ➔ Tempo de jejum para líquidos claros (sem resíduos) – 2 horas antes de procedimentos eletivos sob anestesia ou sedação, por serem eliminados rapidamente do estômago. São considerados líquidos claros: água, suco sem polpa, café ou chá sem leite e bebidas com carboidratos. O volume gástrico residual médio não é alterado pela ingestão de líquidos claros ou líquidos com carboidratos duas horas antes da cirurgia. ➔ Tempo de jejum para líquidos não claros (com resíduos) – 6 horas, pois esses líquidos demoram mais tempo para sair do estômago e podem deixar resíduos e partículas no órgão. ➔ Tempo de jejum para leite humano – 4 horas. O leite industrializado não diluído, por conter proteínas e gordura, deve ser considerado alimento sólido, com o propósito de recomendação de jejum pré-operatório. ➔ Tempo de jejum pré-operatório de 6 horas para refeições leves (como chá e torrada ou bolacha água e sal) e de 8 horas para refeições pesadas, com gordura ou frituras, pois o tempo de esvaziamento de alimentos sólidos depende de seu volume e conteúdo e é retardado pelo aumento da quantidade de alimento, densidade calórica e adição de gordura. Recomenda-se exceção para o protocolo de jejum: gestantes em TP; obesos mórbidos; gastroparesia; mau esvaziamento gástrico de qualquer etiologia; suboclusão ou obstrução intestinal e DRGE moderado a grave. A literatura é controversa quanto ao tempo de jejum em pacientes com sonda nasogástrica e sem tubo endotraqueal ou traqueostomia, mas sugere que devem ficar em jejum por 8 horas, pois as fórmulas enterais frequentemente contêm carboidratos, proteínas e gordura. Não há consenso em relação aos pacientes com sonda nasogástrica e tubo endotraqueal ou traquestomia com balonete, assim como quanto à necessidade e ao tempo de jejum em pacientes com sondas gástricas pós-pilóricas a serem submetidos a cirurgias não abdominais. Nas recomendações da FT da ASA sobre o uso de agentes farmacológicos para reduzir o risco de aspiração do suco gástrico consta que não devem ser utilizados, de rotina, os estimulantes GI (metoclopramida); bloqueadores da secreção gástrica (cimetidina, ranitidina, omeprazol); 7 LÚRIA NIEMIC ONOFRE – MED UNIC XXXIV antiácidos (citrato e bicarbonato de sódio); antieméticos (droperidol, ondansedron); ou qualquer combinação das medicações citadas. A mastigação de chiclete no período perioperatório causa um pequeno aumento do volume gástrico e nenhuma alteração no pH. Entretanto, o aumento do volume gástrico não teve significância clínica em termos de risco de aspiração do conteúdo gástrico e que pacientes saudáveis (ASA I) que acidentalmente estejam mastigando chicletes não devem ter necessariamente seu procedimento eletivo cancelado ou postergado. Diferentes publicações mostram que a diminuição do tempo de jejum com a oferta de líquido claro rico em carboidrato 2 horas antes da indução anestésica não aumenta o perigo de morbidade associada à anestesia; por outro lado, diminui a sede, a fome e a resistência à insulina no pós-cirúrgico, melhorando a resposta metabólica do paciente ao trauma cirúrgico. Assim, baseado na experiência europeia (projeto ERAS) e por recomendação da ESA, teve início, no Brasil, em 2005, o projeto ACERTO, que, entre suas recomendações inclui a abreviação do jejum com a utilização de líquidos claros ricos em carboidrato de fácil absorção, acrescidos ou não de aminoácidos, 2 horas antes da cirurgia. MEDICAÇÃO PRÉ-ANESTÉSICA – O uso de fármacos na véspera ou no dia da cirurgia, a chamada medicação pré- anestésica (MPA), deve ser decidido somente ao término da APA. O mais importante é nunca esquecer que a MPA não substitui a APA bem-feita, em relação à ansiedade. A APA adequadamente realizada, considerando os aspectos emocionais do paciente, reduz significativamente a prevalência e a intensidade da ansiedade com mais eficiência do que a MPA. Antes da prescrição da MPA deve- se: avaliar o peso do paciente; pacientes com dor aguda ou crônica devem receber um analgésico isolado ou associado a outro fármaco; pacientes com hipoproteinemia devem receber menor dose/kg de MPA. A medicação pré-anestésica tem como objetivos principais: diminuição da ansiedade, medo e do metabolismo basal; potencialização de fármacos anestésicos; amnésia; redução da dor no pré-operatório e analgesia pós-operatória. O fármaco mais comumente utilizado, tanto em crianças como em adultos, é o midazolam, benzodiazepínico (BZD) de curta duração de ação. Em adultos são mais utilizadas as vias muscular (2,5mg a 15mg) e oral (5mg a 15mg). Em pediatria, podem ser utilizadas as vias muscular: 0,05–0,1mg.kg-1; oral: 0,25–0,75mg.kg-1 – dose máxima: 20mg; sublingual: 0,2–0,3mg.kg-1– dose máxima: 10mg; nasal: 0,2–0,3mg.kg- 1 instilados nas narinas através de seringa de vidro sem agulha ou spray – volume máximo 1ml (5mg) solução de 5mg.ml-1; retal: 0,3 – 0,35mg.kg-1 em 5ml de solução salina. Tem curta duração de ação, metabolismo rápido e é solúvel em água. Apresenta como características importantes: sedação; produção de amnésia; relaxamento muscular; depressão mínima da ventilação e do sistema cardiovascular e ação anticonvulsivante; não possui efeito analgésico, podendo causar agitação na vigência de dor; pode causar hipotensão arterial em situações de intoxicação grave ou instabilidade hemodinâmica, apesar de ser praticamente desprovido de efeitos cardiovasculares; é metabolizado no fígado, com formação de metabólitos ativos que são excretados pelos rins. A MPA é contraindicada para pacientes com história de reação paradoxal ou alérgica ao BZD; usuários de drogas e álcool; portadores de DPOC; apneia do sono, miopatias, miastenia grave e insuficiência respiratória ou os ASA III. Deve-se considerar a indicação de MPA ou reduzir sua dose em pacientes portadores de insuficiência hepática e/ou renal ou com idade avançada; obesos; em uso de medicação com possibilidade de interação com o BZD (fármacos que inibem o citocromo P450 – cimetidina, eritromicina, antifúngicos, bloqueadores do canal Ca++; depressores do SNC; álcool; valeriana, kava kava; medicamentos que contêm em sua fórmula ciclosporina ou saquinavir ou aqueles com fator de risco de obstrução respiratória (ex.: hipertrofia +++ amígdalas, roncos)). PLANEJAMENO ANESTÉSICO – Este item é fundamental para a qualidade do ato anestésico, principalmente quando quem faz a avaliação pré-anestésica não é o anestesiologista que vai anestesiar o paciente. O primeiro deve planejar as possíveis técnicas anestésicas para cada paciente e deve, naqueles mais complicados (ex.: com síndromes raras, pacientes ASA > II), decidir sobre os cuidados especiais e informar, por escrito e pessoalmente, os anestesiologistas do centro cirúrgico e cirurgiões sobre tais cuidados. Vale ressaltar que a finalidade da avaliação pré-anestésica de per si nunca é, nem será liberar ou não um paciente para o ato anestésico-cirúrgico, mas tentar, de todas as formas possíveis, definir o risco-benefício do ato anestésico- cirúrgico para cada paciente na situação específica em que ele se encontra no momento da APA.
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