Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Identidade, Língua e Cultura Cristiane Rodrigues de Oliveira 03 Sumário CAPÍTULO 3 – O preconceito linguístico .........................................................................05 Introdução ....................................................................................................................05 3.1 O preconceito linguístico e seus reflexos na sociedade brasileira ...................................06 3.1.1 O conceito de gramática normativa e sua influência na construção do preconceito linguístico ...................................................................09 3.1.2 O preconceito linguístico e as práticas pedagógicas ...........................................10 3.2 Variações linguísticas e preconceito ............................................................................16 3.2.1 Entendendo alguns conceitos: gramática natural, gramática padrão, variedades urbanas e variedades estigmatizadas ..........................................................17 Síntese ..........................................................................................................................21 Referências Bibliográficas ................................................................................................22 Capítulo 3 05 Introdução Antes de começar a leitura deste material, reflita: qual seria a sua reação se ouvisse alguém falar “macaxeira me dá gastura” ou “você sabe que eu te amo”? Ao estudar o conteúdo apresentado aqui, você entenderá o que significa preconceito linguístico e quais os reflexos na sociedade bra- sileira. Você encontrará informações, conceitos e exemplos que podem complementar e reforçar a sua formação nos estudos sobre a língua portuguesa. Você sabia que o preconceito linguístico deve-se à falta de esclarecimento e de aceitação das variantes linguísticas? Ou, ainda, que o preconceito linguístico fomentou-se a partir da confusão que se faz sobre conceitos entre língua falada e língua escrita? A noção de “certo” em língua foi canonizada a partir de textos escritos ainda no século XIX. Mas você ainda ouve alguém falar da mesma maneira que naquela época? Provavelmente, não. Isso porque a língua é viva e sofre mudanças ao longo dos tempos. Você já deve ter ouvido falar sobre preconceitos relacionados à língua, mesmo que de maneira informal. Contudo, se não conhece muito sobre o assunto ou ainda não presenciou uma situa- ção desse tipo, a partir do estudo deste conteúdo, você entenderá que o preconceito linguístico é causado por um julgamento depreciativo em relação à existência de variedades linguísticas, assim como a confusão que foi criada, especialmente no “curso da história, entre o que é língua e o que é a gramática normativa” (BAGNO, 2000, p. 9). A partir do conhecimento das causas, você poderá compreender o que é e como se faz o pre- conceito linguístico, utilizando-se de diversos apontamentos, dados e práticas já realizadas por teóricos e linguistas renomados no meio acadêmico (BAGNO, 2000, p. 49). Mais adiante, você verá que, inclusive, a didática tradicional usada para o ensino da língua portuguesa reforça a ma- nutenção do preconceito linguístico. Por isso, é preciso “remodelar o ensino da língua, de modo que tenha funcionalidade na vida de nossos alunos” (CAPELLO; LOBÃO; COELHO, 2010, p. 16). Você entenderá, ainda, como algumas noções de “erro” e de “acerto” (desvio da norma culta pa- drão) geram o preconceito linguístico, fortemente evidenciado em certas situações comunicativas. Bom estudo! O preconceito linguístico 06 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa Figura 1 – A língua é um instrumento vivo e importantíssimo na comunicação humana. Fonte: Shutterstock, 2015. 3.1 O preconceito linguístico e seus reflexos na sociedade brasileira Você sabia que a língua é um instrumento vivo e de altíssimo valor? Graças à vivacidade, que é elemento próprio da língua, foi possível a evolução da comunicação humana. Assimilar a ideia de que a língua é viva e fundamental para compreender a sua evolução. E esse entendimento ajuda a desmitificar algumas questões concernentes à construção do preconceito linguístico. Antes de identificar os elementos que formam o preconceito contra as diversas variedades da língua, veja o que afirma Saussure (1995, p. 22-24), no livro de sua autoria, Curso de Linguística Geral: “a língua é um fenômeno exterior ao indivíduo, que por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la [...] ela é um sistema de signos que exprimem ideias”. De acordo com Saussure (1995, p. 22-24), é a língua quem determina o seu próprio sistema. Dessa maneira, muitos elementos exteriores podem influenciar no movimento de construção feito pela própria língua. Em outras palavras, fatores sociais, culturais e até mesmo políticos podem alterar a língua falada por um grupo de pessoas de determinada região e/ou época, uma vez que é o reflexo do meio. Os elementos são fenômenos que vão além do domínio do grupo de falantes, que não conseguem modificar a própria língua. Nesse sentido, é muito importante que você tome por base alguns conceitos que serão vistos a seguir. A partir daí, você identificará os movimentos pelos quais a língua portuguesa – assim como outras – passou ao longo dos tempos. Ficará mais fácil entender, também, como se dão dois outros importantes processos que precisam ser analisados de antemão para dar sequência ao entendimento do que é e como surge o preconceito linguístico: a normatização da língua e as variedades linguísticas. Nossos estudos serão centrados, primeiramente, na questão da normatização da língua. 07 Para Camacho (1984, p. 35), “toda língua varia, isto é, não existe comunidade linguística algu- ma em que todos falem do mesmo modo e porque, por outro lado, a variação é o reflexo de di- ferenças sociais, como origem geográfica e classe social, e de circunstâncias da comunicação”. A língua, portanto, é um sistema dinâmico em transformação constante. A afirmação corrobora a teoria elementar de Saussure, que você viu anteriormente e pode ser notada em textos escritos em épocas diferentes. Para entender um pouco mais, leia um trecho da crônica Entre palavras, de Carlos Drummond de Andrade, que tem como tema a afirmação de Camacho: Entre palavras “Entre coisas e palavras – principalmente entre palavras – circulamos. A maioria delas não figura nos dicionários de há 30 anos, ou figura com outras acepções. A todo momento impõe-se tomar conhecimento de novas palavras e combinações de. Você que me lê, preste atenção. Não deixe passar nenhuma palavra ou locução atual pelo seu ouvido sem registrá-la. Amanhã, pode preci- sar dela. E cuidado ao conversar com seu avô; talvez ele não entenda o que você diz. O malote, o cassete, o spray, o fuscão, o copião, a Vemaguette, a chacrete, o linóleo, o nylon, o nycron, o ditafone, a informática, a dublagem, o sinteco, o telex... existiam em 1940? Ponha aí o computador, os anticoncepcionais, os mísseis, a motoneta, a Velosolex, o biquíni, o módulo lunar, o antibiótico, o enfarte, a acupuntura, a biônica, o acrílico, a tá legal, o apartheid, o som pop, a arte pop, as estruturas e a infraestrutura. Não esqueça também (seria imperdoável) o Terceiro Mundo, a descapitalização, o desenvolvi- mento, o unissex, o bandeirinha, o mass media, o Ibope, a renda per capita, a mixagem [...]” (ANDRADE, 2004, p. 55-56). Nesse texto, o importante poeta do modernismo aponta que, em tempos distintos, as palavras mudam conforme o uso. Atualmente, termos como “motoneta” e “ditafone”, por exemplo, certa- mente seriam desconhecidos por leitores com menos de 40 anos de idade. Leia agora outro exemplo extraído de um trecho da poesia de Manuel Bandeira publicada pela primeira vez em 1912, que elucida ainda mais a questão. Concentre-se no uso dos termos sele- cionados para a construção do texto: Paisagem noturna “[...] O plenilúnio vai romper... Já da penumbra Lentamentereslumbra A paisagem de grandes árvores dormentes. E cambiantes sutis, tonalidades fugidias, Tintas delinquescentes Mancham para o levante as nuvens langorosas [...]” (BANDEIRA, 2014, p. 23). Em ambos os exemplos, note que há certos vocábulos que causariam problemas para o enten- dimento de leitores menos afeitos a essas palavras. Ao observá-los, você perceberá a ação do tempo nas variações da língua. Ainda vale lembrar que, na literatura, há certas intencionalidades no contexto literário. Por exem- plo, você consegue imaginar alguém utilizando palavras como plenúrio, dormentes, cambiantes? Não seria algo considerado pedante ou culto demais? E, dependendo de quem ouvir o discurso, poderá concluir: “esse aí conhece bem a gramática 08 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa Tanto Manuel Bandeira quanto Carlos Drummond de Andrade foram poetas que, para os cânones de sua época – primeiras décadas do século XX – “agrediram a língua” em sua concepção mais formal. Isso porque eles participaram do modernismo, importante movimento artístico-literário que tinha, entre outras premissas, “promover uma valori- zação da língua falada no Brasil”, levando-a aos textos literários. VOCÊ O CONHECE? Outro exemplo que demonstra como ocorre o movimento de transformação da língua é a ques- tão do vocábulo você. Com o passar do tempo, o termo foi substituindo o pronome de tratamen- to tu. Você origina-se de vossa mercê, que assumiu as formas vossemecê, vosmecê e, finalmente, você, alterando-se também em seu significante e significado. O português falado no Brasil não evoca um interlocutor hierarquicamente superior ao falante, mas, sim, passou a ser usado por interlocutores que se veem de igual para igual com os seus (NICOLA, 2014, p. 15). A partir do que você estudou até aqui, reflita: em sua região, como as pessoas usam os prono- mes para se referirem a um interlocutor durante as conversações? Essa noção de “errado” está presente em seu dia a dia? Você já vivenciou alguma situação em que o interlocutor chegou a dizer que o correto seria o tu? Vale lembrar que, em algumas regiões, o pronome tu não neces- sariamente é acompanhado de um verbo conjugado na segunda pessoa. Considerando o que você aprendeu, você sabe onde acontecem as transformações das palavras? Elas acontecem naturalmente, conforme são usadas nas ruas e nos prédios de grandes instituições, na linguagem de palestras, nos discursos de políticos e nos dos advogados. A mesma transformação acaba acontecendo também na escrita, o tempo todo e em todas as localidades, quer seja na cidade, quer seja no campo. Das poesias aos documentos, nada permanece igual. Para saber com mais profundidade como o processo acontece, consulte uma gramática histórica da língua portuguesa. Nesse tipo de gramática, é possível verificar que há alterações que vêm naturalmente com o uso das palavras. Há ainda as que são determinadas por lei, como é o caso do Acordo de Unificação Ortográfica, elaborado em 1990 e recentemente ratificado pelo Brasil, que pretende aproximar as maneiras de escrever de todos os países que têm o Português como idioma oficial. NÓS QUEREMOS SABER! O preconceito linguístico não aceita as variedades da língua e decorre da percepção equivoca- da de que há um modo correto de falar. De acordo com Bagno (2000, p. 12), “pessoas menos escolarizadas, de classes sociais de menor prestígio social, nordestinos, analfabetos” são estig- matizadas por não se adequarem ao jeito “certo” de falar, construído e intensificado por diversos setores sociais. O preconceito linguístico está diretamente ligado à questão social e até mesmo à política, como aponta Bagno (2000, p. 73): São transmitidos e perpetuados em nossa sociedade, cada um deles em grau maior ou menor, por um mecanismo que podemos chamar de círculo vicioso do preconceito linguístico que se forma pela união de três elementos: a gramática tradicional, os métodos tradicionais de ensino e os livros didáticos. 09 A Língua de Eulália, de Marcos Bagno, publicado pela Editora Contexto. Nessa novela sociolinguística, o autor demonstra que a tradição educacional sempre negou a existência de uma pluralidade de normas linguísticas dentro do universo da língua portuguesa. De acordo com ele, a própria escola não reconhece que a norma padrão culta é apenas uma das muitas variedades possíveis no uso do português e rejeita de forma intolerante qualquer manifestação linguística diferente, tratando os alunos, muitas vezes, como “deficientes linguísticos”, o que gera ainda mais o preconceito. NÃO DEIXE DE LER... 3.1.1 O conceito de gramática normativa e sua influência na construção do preconceito linguístico A gramática normativa constituiu-se, com o passar do tempo, como aquela que estabelece um modelo “ideal” de uso da língua escrita e, para muitos, também da falada. Vale lembrar que “as gramáticas foram escritas precisamente para descrever e fixar como ‘regras’ e ‘padrões’ as manifestações linguísticas usadas espontaneamente pelos escritores considerados dignos de admiração, modelos a ser imitados. Ou seja, a gramática normativa é decorrência do uso da língua” (BAGNO, 2000, p. 64). Figura 2 – A gramática normativa costuma ser a variante de maior prestígio da língua. Fonte: Shutterstock, 2015. O modelo de língua utilizado para escrever o que se consideravam (ou ainda se consideram, em muitas situações) os bons textos era totalmente baseado na fala. A partir do que foi dito, reflita: se a normatização da língua é proveniente da fala, por que a gramática normativa deve ser o único modelo “ideal” ou correto a ser seguido? É dessa premissa que surge a ideia de que há uma maneira certa e outra considerada errada na hora de falar, o que reflete nas questões sociais (BAGNO, 2000, p. 13). 10 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa Figura 3 – Mazzaropi inspirou-se no tipo e no jeito de falar do caipira brasileiro para criar os personagens que interpretou em dezenas de filmes. Fonte: Adorocinema, 2015. Pois bem, se há uma maneira “correta” de falar, que deva seguir a norma culta, imagine como ficariam as falas das pessoas de diferentes regiões do país, que não possuem a uniformidade de pronúncia em suas falas, apregoadas pelas gramáticas? Esse tipo de ideia consiste em um “provincianismo” destacado por Monteiro Lobato, em seu livro Emília no país da gramática (1934). Por meio da personagem Emília, que não “queria saber de nenhum tipo de preconceito” (BAGNO, 2000, p. 43), Lobato (2009, p. 114), provoca no leitor uma reflexão acerca da existência de preconceito “contra a fala característica de certas regiões do país” (BAGNO, 2000, p. 43). Além disso, é um dos mitos mais prejudiciais na educação porque não “reconhece a verdadeira diversidade do português falado no Brasil” (BAGNO, 2000, p. 15). 3.1.2 O preconceito linguístico e as práticas pedagógicas Como você já viu, anteriormente, há um empenho na área da sociolinguística para desmitificar a ideia de que a língua falada só é correta se obedecer à gramática normativa. Será que há trabalhos atuais e atuantes no combate à permanência do preconceito linguístico? Imagine que você esteja em sala de aula: como trataria o assunto com seus alunos? Já pensou em algum tipo de prática que valorize o conhecimento prévio dos estudantes, tanto dé que se refere ao apren- dizado que acumularam na vida acadêmica quanto em relação às competências adquiridas em ambientes onde nasceram e foram criados? Para que você entenda e reflita sobre a importância da valorização da bagagem cultural que um aluno possui, leia o trecho a seguir, em que estão expressos os valores e os objetivos que devam ser atingidos nas escolas no que concerne ao ensino e à aprendizagem da língua portuguesa, conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais: O exercício da cidadania exige o acesso de todos à totalidade dos recursos culturaisrelevantes para a intervenção e a participação responsável na vida social. O domínio da língua falada e es- crita, [...] organizam a percepção do mundo, os princípios da explicação científica, as condições de fruição da arte e das mensagens estéticas, domínios de saber tradicionalmente presentes nas diferentes concepções do papel da educação no mundo democrático, até outras tantas exigên- cias que se impõem no mundo contemporâneo. Essas exigências apontam a relevância de discus- sões sobre a dignidade do ser humano, a igualdade de direitos, a recusa categórica de formas 11 de discriminação, a importância da solidariedade e do respeito. Cabe ao campo educacional propiciar aos alunos as capacidades de vivenciar as diferentes formas de inserção sociopolítica e cultural. Apresenta-se para a escola, hoje mais do que nunca, a necessidade de assumir-se como espaço social de construção dos significados éticos necessários e constitutivos de toda e qualquer ação de cidadania. (BRASIL, 1997, p. 24) De acordo com Mollica (2004, p. 13), o preconceito linguístico tem sido um ponto bastante debatido na área da sociolinguística, uma vez que se nota ainda a predominância de “práticas pedagógicas assentadas em diretrizes maniqueístas do tipo certo/errado”, que tomam como refe- rência o padrão culto. Um pouco mais à frente em sua reflexão, a autora aponta que os estudos sociolinguísticos “oferecem valiosa contribuição no sentido de destruir preconceitos linguísticos e de relativizar a noção de erro, ao buscar descrever o padrão real que a escola, por exemplo, procura desqualificar e banir como expressão linguística natural e legítima”. Você sabe o que é norma culta? Trata-se de um conjunto de práticas linguísticas que pertencem a um dado lugar ou classe social de maior prestígio em um país, os quais definem o uso correto de uma língua. Confunde-se norma culta com a fala que, por sua vez, é a utilização oral da língua por um indivíduo. Por exemplo, de acordo com a norma culta, o correto seria “Diga-me o que sabe sobre o assunto”, fazendo a co- locação do pronome oblíquo átono me após o verbo. No entanto, na língua falada, o que se ouve é “me diga”, fazendo o uso do pronome antes do verbo. Outro exemplo: em uma enunciação escrita de acordo com a norma culta, seria correto escrever “você está bem?” em vez do “ d tá bem?” que costumeiramente ouvimos e/ou falamos. Ou- tras diferenças acontecem também na pronúncia, como menino com e fechado, mais comum nas regiões Sul e Sudeste, e o mesmo e com som aberto, na região Nordeste. NÓS QUEREMOS SABER! O que a maioria das pessoas desconhece é a diferença de uso entre a norma culta e a língua falada, com suas origens e suas funcionalidades. A norma culta deve ser empregada em textos formais, a exemplo dos acadêmicos e jurídicos. Por sua vez, a fala é natural e se adapta de acordo com a situação. Em uma palestra, por exemplo, o esperado é que o interlocutor use uma linguagem mais sóbria, sem gírias ou palavras de baixo calão. Entretanto, se a intenção do fa- lante é o uso de tais palavras, não haverá problema. Bagno (2000, p. 10) afirma que a norma é apenas um “iceberg na língua”. Em outras palavras, apenas um dos aspectos que devem ser observados. Podemos, agora, seguir adiante para iden- tificar uma das causas do preconceito linguístico: ligar a norma culta (ou a gramática normativa) à língua falada é, portanto, a maneira mais acentuada de promover o preconceito linguístico. Não se pode negar que o papel da norma é [...] óbvio: o valor simbólico das variedades linguísticas disponíveis está em função da distância que as separa da variedade-padrão que a escola impõe. A tradição da instituição escolar consiste em não apenas ignorar a legitimidade da variação linguística, mas também submeter as variedades linguísticas ao critério de correção, como uma peneira fina. O que passa é um conjunto de expressões vinculadas ao registro formal da modalidade escrita e o que sobra é estigmatizado como realizações incorretas e deficientes em confronto com a matriz de valores eleita como a variedade-padrão (CAMACHO, 1984, p. 48). 12 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa No entanto, é importante lembrar que há uma separação de valor simbólico entre as variedades linguísticas disponíveis e que há séculos vem sendo imposta pela própria escola. Se o primeiro cânone de “bem falar da língua” foram leituras de autores consagrados, somente estes, que es- crevem de acordo com a gramática, seriam os falantes corretos? É sempre importante pontuar que as diferenças entre o português falado no Brasil e o falado em Portugal são acentuadas quando se trata da língua falada, muitas das quais geram dificuldades de entendimento não apenas nos sentidos de palavras e expressões, como também nas constru- ções sintáticas e na própria questão da pronúncia. Por exemplo, você conhece as palavras uprar e dlibrar (escritas assim mesmo!), bastante usadas entre os portugueses? No Brasil, significam, respectivamente, operar e deliberar (BAGNO, 2000, p. 24). Figura 4 – Gramática e fala são questões distintas. Fonte: Shutterstock, 2015. Até hoje, na gramática normativa, as regras do bom português são colocadas em pauta para que os estudantes tenham de memorizar as regras da “língua correta” como uso adequado e colocação dos pronomes na frase, regras de sintaxe, regras de concordância verbal e nominal, regências, classificação morfológica – temas que não constituem a “real língua nem aprimoram o conhecimento do aluno” (CAPELLO; LOBÃO; COELHO, 2010, p. 39). Além disso, o uso das regras encontradas nas gramáticas tradicionais não reflete em nada a real – e natural – situação da fala. A postura de combater o preconceito contra a língua falada no Brasil já era perceptível em textos literários desde as primeiras décadas do século XX. Pontuações em favor do uso da língua de maneira mais natural podiam ser observadas em obras de Monteiro Lobato, Mário de Andrade, 13 Oswald de Andrade, autores referências na literatura nacional. Vale lembrar que isso ocorreu antes de a sociolinguística se valer de diversos estudos e coletas de dados concretos, como o uso de gravações e de transcrições das falas de pessoas de regiões distintas do país, oriundas de diferentes camadas sociais (BAGNO, 2000, p. 49). Figura 5 – Oswald de Andrade, assim como outros autores de sua época, lutou pela aceitação e pela valorização da diversidade da língua falada. Fonte: Correio do Brasil, 2015. Um dos principais literatos do movimento modernista, Oswald de Andrade citava, em suas poe- sias, a necessidade de valorizar a língua falada no Brasil – nas ruas, pelo povo –, ou, como dizia este autor: “a fala do povo brasileiro”. De maneira sutil, em seus textos, o poeta já prenunciava a existência de um preconceito linguístico, de caráter muito mais social do que de qualquer outra questão. Para ilustrar essa colocação, leia o poema originalmente publicado no jornal Correio da Manhã, em 1924: Pronominais “Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido. Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro.” (ANDRADE, 1924). O que você precisa entender é que insistir na modalidade culta como a única a ser valorizada é fortalecer o preconceito linguístico. É negar também a existência de variedades linguísticas, relegando-as a uma desvalorização constante e permanente. Deve-se reforçar a presença de novos caminhos e posturas no que concerne ao ensino da língua portuguesa. 14 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa Figura 6 – As variedades linguísticas devem ser aceitas e valorizadas. Fonte: Shutterstock, 2015. Com o que você estudou até aqui, já pode concluir que ensinar a norma padrão aos alunos como maneira certa ou ideia de fala correta é não cumprir o que apontam as diretrizesdo PCN, que sinalizam um direcionamento formativo para o ensino da língua portuguesa que respeite a diversidade: “fazer o aluno decorar uma série de regras, sempre insistindo na tradição é senão, não apenas ignorar a legitimidade da variação linguística, mas também submeter as variedades linguísticas ao critério de correção, como uma peneira fina” (CAMACHO, 1984, p. 48). Ainda de acordo com Camacho (1984, p. 48), o que passa a ser ensinado nas escolas “são con- juntos de regras e expressões vinculadas ao registro formal da modalidade escrita e, o que sobra, acaba sendo estigmatizado, e que pode ser percebido nas realizações incorretas e deficientes dos textos, em confronto com a matriz de valores eleita como a variedade-padrão”. Em outras palavras, há um descompasso no ensino do idioma materno nas escolas, mesmo dian- te de esforços sendo realizados concomitantemente: professores, linguistas, entidades públicas e governamentais já sinalizaram e comprovaram que apenas ensinar a gramática normativa não dá conta de resolver a dissonância que há na formação de aluno – de quem se espera ser capaz de ler diversos gêneros textuais, escrever usando diferentes variantes da língua, além de estar apto a fazer o uso da língua nas diferentes situações em que ela é aplicada (CAPELLO; LOBÃO; COELHO, 2010, p. 16). A forma atual de encaminhar o ensino da língua portuguesa nas escolas, como você viu ante- riormente, sobrepõe-se ao trabalho com uma linguagem viva e dinâmica, afastando, assim, os alunos dos sentidos que a linguagem tem em suas vidas. “Essa dificuldade de propiciar espaço para a interlocução na sala de aula leva o aluno a construir a ideia de subordinação à língua. Com isso, a língua deixa de ser concebida como um processo dinâmico realizado por seus fa- lantes” (DUARTE, 2008, p. 2). 15 O clássico My Fair Lady (1964) narra a história de um professor de fonética que deseja transformar a fala de uma florista (interpretada por Audrey Hepburn) que, segundo o professor, não sabe falar direito. O filme aborda questões acerca do preconceito lin- guístico, ao mostrar que determinados valores sociais acabam se sobressaindo quando surgem diferenças. Nessa obra dirigida por George Cukor, é possível perceber um forte preconceito linguístico diretamente ligado aos dialetos da língua inglesa, falados pelos indivíduos de menor escolaridade e baixo poder aquisitivo. NÃO DEIXE DE LER... Para refletir sobre as questões tratadas, leia o caso prático a seguir. Em 2011, o livro didático Por uma vida melhor, de Heloísa Campos, adotado pelo MEC e aprovado pelo Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), causou uma verdadeira celeuma entre literatos, jornalistas e diversos cânones da literatura. Distribuído nas escolas públicas brasileiras para orientar o ensino da lín- gua materna, o livro traz, em um de seus capítulos, que o uso de certas construções presentes na oralidade são variações linguísticas. Lidas fora do contexto, as expressões usadas para ilustrar e exemplificar a diversidade linguística, entre as quais “nós pega o peixe”, “os menino pega o peixe”, “mas eu posso falar os livro”, foram consideradas “erros de língua portuguesa que transgrediam profundamente a norma” por gra- máticos, jornalistas e intelectuais, além de milhares de pais de alunos e professores. Houve quem afirmasse que o livro ajudava a cooperar com a manutenção de grande parcela da população no obscurantismo e na ignorância, não favorecendo ascensão social dos alunos que tivessem contato com tal instrumento pedagógico (SEGALLA; CAVALCANTI, 2011). Contudo, entre as diversas declarações em defesa da publicação, destaca-se a da escritora Ana Maria Machado, conhecida mundialmente por descrever o universo infanto-juvenil – gênero que lhe rendeu dezenas de prêmios, entre os quais o Hans Christian Andersen e o Prêmio Machado de Assis, pelo conjunto da obra. As impressões de Ana Maria Machado sobre o livro Por uma vida melhor foram publicadas na revista ISTOÉ (SEGALLA; CAVALCANTI, 2011): “[...] lendo o capítulo todo, dá para ver que não estão ensinando a falar errado, mas apenas registram as diferenças no falar. A frase deixa de ser uma lição do professor e passa a ser uma constatação de um linguista. Não é um absurdo”. A autora, Heloísa Campos, foi considerada “equivocada”, “inexperiente” e teve de justificar a presença de tais expressões em seu livro didático. Heloísa foi selecionada pela Editora Global por conta de sua larga experiência no ensino público. A professora aposentada redigiu o livro que foi adotado pelo Ministério da Educação (MEC) e distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos (PNLD-EJA). Foram tantas as críticas negativas que o MEC emitiu nota justificando a adoção do livro. Em contrapartida, importantes linguistas – Sírio Possenti, Ludmila Thomé de Andrade, Hélio Schwartz- man, Marcos Bagno, Paquale Cipro Neto, entre outros – não somente saíram em defesa do livro, como também chamaram a atenção sobre a importância de se ensinar aos alunos as variedades linguísticas presentes no português falado. Agora, reflita: o que você conclui a partir do caso descrito? A parcela tida como mais culta da sociedade deveria validar e reconhecer a existência das variações presentes na língua. Não reconhecê-las e não validá-las é deixar à margem uma grande parcela da população que se re- conhece em diferentes falares. Tal ação negativa não somente perpetua o preconceito linguístico como também o reforça, impossibilitando a formação plena do indivíduo, que precisa conhecer tanto a norma culta quanto as diferentes manifestações de linguagem em seu dia a dia. 16 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa Para fechar essa etapa de estudos, leia o trecho do artigo “Uma nação com variadas línguas” (GLOBAL, apud LEMLE, 2011, p. 24), da linguista Miriam Lemle: Mediante critérios científicos objetivos da ciência da linguagem não há como passar atestados de qualidade superior para uma forma de falar em detrimento da outra. Valorações sociais sobre a variação existem, tal como existem valorações sociais para cores de pele e olhos, lisura de cabelos, formato de narizes, preferências culinárias, artísticas, de parceria sexual, laborial e tantas outras. 3.2 Variações linguísticas e preconceito Você já sabe que a língua é um elemento vivo. Partindo dessa premissa, ainda se pode afirmar que há uniformidade linguística no Brasil? E é possível insistir na ideia de que há um idioma único para os 200 milhões de falantes brasileiros? Nesta etapa dos seus estudos, você verá que alguns mitos sobre a língua falada já foram desfei- tos, mas que ainda há muito a fazer para derrubar o preconceito linguístico, isso porque não há uma unidade linguística ideal, como costuma ser descrito nas gramáticas tradicionais. De acordo com Lemle (2011, p. 24), “é impossível atingirmos a uniformidade linguística, tendo em vista como acontece o processo de aquisição de linguagem: ele é baseado na interação entre prin- cípios universais da gramática e parâmetros de variação que permitem um leque de alternativas para a diversidade na linguagem”. Dessa maneira, é preciso relembrar os conceitos a seguir, que provavelmente você já deva ter ouvido ou lido. Em língua, há duas modalidades: 1. a conhecida norma padrão, ou modalidade culta da língua, sempre de maior prestígio social e que, erroneamente, crê-se garantir ascensão social; 2. e a modalidade oral, ou seja, a “fala”, a qual apresenta as variações linguísticas. No item seguinte, você entenderá como tais variações estão profundamente ligadas à questão do preconceito linguístico. O dicionário Houaiss define preconceito linguístico como [...] qualquer crença sem fundamento científico acerca das línguas e de seus usuários, como, p. ex., a crença de que existem línguas desenvolvidas e línguas primitivas, ou de que só a língua das classes cultas possuigramática, ou de que os povos indígenas da África e da América não possuem línguas, apenas dialetos. Considerando essa definição, não se pode negar a existência do preconceito linguístico no Bra- sil, em especial quando os envolvidos na questão, de maneira geral, são pessoas que não per- tençam à elite econômica, intelectual e política. Isso nos permite dizer que preconceito linguístico é um tipo de preconceito social. Trata-se de um [...] tipo de discriminação sem fundamento que atinge falantes inferiorizados por alguma razão e por algum fato histórico. Nós o compreenderíamos melhor se nos déssemos conta de que falar bem é uma regra da mesma natureza das regras de etiqueta, das regras de comportamento social. Os que dizemos que falam errado são apenas cidadãos que seguem outras regras e que não têm poder para ditar quais são as elegantes (POSSENTI, 2011). Qualquer um que não fale de acordo com a norma culta está sujeito a sofrer algum tipo de pre- conceito linguístico. Entretanto, cabe aqui lembrar que as variações de uma língua são naturais e que nenhum falante que domine a norma culta fala, o tempo todo, de acordo com as regras estabelecidas pela gramática. Isso seria impossível, uma vez que a língua portuguesa não apre- 17 senta unidade, por conta de “um alto grau de diversidade e de variabilidade” (BAGNO, 2000, p. 16). As variações se devem não somente à extensão territorial do país, mas também às questões de desigualdades, como as diferenças sociais, regionais e culturais. 3.2.1 Entendendo alguns conceitos: gramática natural, gramática padrão, variedades urbanas e variedades estigmatizadas Antes de prosseguir, retome algumas ideias iniciais deste estudo: gramática é um conjunto de regras. Entenda por gramática natural uma “associação de sons, de conceitos, de palavras que ordenadas permitem gerar e estabelecer comunicação” (NICOLA, 2014, p. 15). A gramática normativa é “aquela que tenta estabelecer um modelo ‘ideal’ de uso da língua cha- mado de ‘norma-padrão’, no qual se espelham as variantes de prestígio” (NICOLA, 2014, p. 15). Figura 7 – Cada falante usa a língua de maneira individual. Fonte: Shutterstock, 2015. Não se pode, porém, deixar de salientar que o conhecimento e o uso da norma culta considerada variante de prestígio social é importante, uma vez que deve ser empregada em diversas situações de ordem social. Vale retomar o conceito de que não existe “igualdade em língua”, mas, sim, “uniformidade”, isso porque não se fala o português de maneira única no país – pronúncias são diferentes, vocábulos ganham novas acepções. Sem contar as marcas individuais da língua: estas costumam ser forças opostas, já que “a norma-padrão é um modelo criado, convencionado, por 18 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa meio de outras gramáticas normativas, que ditam o uso ideal de uma dada língua. Norma possui caráter abstrato, estático; enquanto a fala, possui caráter dinâmico” (TERRA, 1997, p. 40-41). Já as variedades urbanas de prestígio social podem ser traduzidas por meio da norma culta. Em tese, são aquelas apresentadas e colocadas aos falantes da língua pelas instituições de ensino, ou seja, a língua que se deve aprender na escola, a mesma que também é usada em segmentos mais “escolarizados” da sociedade, bem como em diversas instituições, entre as quais órgãos públicos e imprensa. Há também as variedades estigmatizadas, ou seja, o uso real da língua. Estas representam “as variantes das camadas sociais de menor prestígio, aquelas que aprendemos serem inadequadas ou inapropriadas, erradas. Tais variedades estigmatizadas costumam se desdobrar em níveis da fala” (TERRA, 1997, p. 61). O que você entende por níveis da fala? Você sabia que o seu nível de fala é diferente do nível dos demais colegas de trabalho, dos familiares e dos amigos, mesmo que estes sejam da mesma região? Isso porque os níveis da fala são os atos individuais da fala, os quais são responsáveis pela diversidade da língua. “Cada falante usa a língua de maneira bastante individual, e damos o nome de ‘registro’ à variação na fala em função da situação que o falante se encontra” (TERRA, 1997, p. 62). Figura 8 – Há diferentes níveis da fala que atuam diretamente na formação das variações linguísticas. Fonte: Shutterstock, 2015. A diversidade na utilização da língua portuguesa no Brasil decorre de inúmeros fatores, como veremos a seguir. Fatores regionais São facilmente percebidos. Tome como exemplo as regiões Sul e Nordeste do país: o português falado no Rio Grande do Sul distingue-se do português falado na Bahia, não somente pelas 1919 pronúncias características de cada um desses estados, mas também por vocábulos e expressões diferentes, que elucidam o mesmo significado no plano semântico. Exemplo: aipim no Sul; ma- caxeira no Nordeste. Fatores culturais Estão ligados diretamente à questão de escolarização. Esses fatores determinam os usos de di- ferentes modos da língua, já que uma pessoa culta e escolarizada tende a usar um padrão mais normativo, o que não acontece primordialmente com alguém que não tenha o mesmo nível de escolarização. Uma pessoa de baixa escolarização tende a não respeitar a concordância verbal e/ou nominal (em que o verbo concorda com o sujeito em número e pessoa). Exemplo: “a gente vai no cinema”. E quem tem maior grau de escolarização tende à concordância como dita a gra- mática: “nós iremos ao cinema”. A variedade é legítima, mas sua variabilidade acentua o abismo linguístico em que muitas pessoas ainda vivem (BAGNO, 2000, p. 16-17). Fatores contextuais Um mesmo falante pode alterar os níveis da sua fala de acordo com o contexto em que está inserido. Notar esse tipo de nível é de suma importância. Em uma roda de amigos, não se fala como em uma palestra ou em uma entrevista de trabalho. Em sala de aula, a reflexão sobre as possibilidades de adequação da fala, bem como da escrita, é primordial para acabar com a ideia de certo e errado. Fatores naturais Vários são os elementos que influenciam diretamente na fala do indivíduo: se o falante é uma criança do sexo feminino, se o falante é um adulto com baixo grau de escolarização e assim segue. Os fatores naturais podem criar diferenças acentuadas nas falas de diferentes indivíduos. No entanto, as diferenças entre gêneros, por exemplo, costumam ser menos marcadas nos cen- tros urbanos, em especial em se tratando de determinados grupos sociais (TERRA, 1997, p. 61). Por conta dos fatores que influenciam diretamente na fala de um indivíduo, precisamos observar ainda os níveis de fala. Nível coloquial e popular Usado pela maioria das pessoas, letradas ou não, em particular nas situações menos formais. Caracteriza-se pela naturalidade com que se fala. Não há preocupação em falar de acordo com a norma culta, mas, sim, em usar (inconscientemente) as “regras” ditadas pelo registro de uma comunidade (TERRA, 1997, 64). Para exemplificar, veja este pequeno diálogo entre dois adoles- centes: “Vamô nessa aê?”, “Saca só, tô afim não, morô!”, “Tô na mó brisa...”. Nível formal-culto É o mais comum utilizado pelas pessoas de alto grau de escolarização – fundamental, médio, graduação e pós-graduação. O aumento no grau de escolaridade altera a composição dos enunciados de seus interlocutores, assim como a escolha e o cuidado com vocabulários. Esse nível está mais consonante com “com as regras ditadas pela sociedade” (TERRA, 1997, 64), além de ser utilizado em situações formais. É o nível também utilizado pela maioria dos órgãos públicos ou por pessoas que estejam ligadas aos meios de comunicação escrita. Veja o trecho em que esse nível pode ser percebido: “O governo quer selecionar os integrantes do segundo escalão por meio de concurso público. Depois de passarem na prova, os pretendentes aos car- gos de secretário-executivo de ministérios e diretor de empresas públicas farão curso que será ministrado por órgãos da administraçãofederal.” (TERRA, 1997, p. 65). Nível técnico ou profissional Também nomeado como “jargão”, uma vez que pertence diretamente à fala de grupos especí- ficos e de profissionais de determinadas áreas. Para os jornalistas, por exemplo, brinde é jabá; letra maiúscula é caixa alta; foto 3x4 é boneco. É importante salientar, contudo, que o uso 20 Laureate- International Universities Diversidade linguística e formação da língua portuguesa 20 Laureate- International Universities exagerado de jargões pode dificultar o entendimento e prejudicar a comunicação entre grupos diferentes, em especial de pessoas que estejam ligadas às profissões beletristas. Nível artístico ou literário Ocorre quando a língua é utilizada de maneira expressiva, com fins estéticos. Esse nível tem intenções claras de ressaltar o próprio código, oferecendo uma mensagem original e repleta de criatividade. Aqui, as variedades podem ser mescladas, sempre com o intuito artístico (TERRA, 1997, p. 66). Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é um bom exemplo de escrita original e criativa. A partir da trajetória de Riobaldo, o autor trabalha a reprodução da língua falada do homem sertanejo, procurando trazer toda a poesia e musicalidade em uma prosa poética, que valoriza o falar natural e a variedade linguística. NÃO DEIXE DE LER... Gíria Variante da língua padrão utilizada por indivíduos de determinado grupo social, ou profissional, que sempre surge na comunicação em situações especiais. Cada grupo social tem a sua gíria específica, como os skatistas, surfistas e até os jogadores de futebol. Veja exemplos: “mano”, “brother”, regularmente gírias usadas pelos skatistas e também surfistas. “A gíria, por ser uma variante da língua, também sofre evolução: constantemente surgem novas gírias e outras desa- parecem. Na década de 1960, era moda dizer fiquei gamada naquele broto, ele era um pão” (TERRA, 1997, p. 67). Em geral, a gíria é descontraída, debochada e dá “colorido” à linguagem, “mas ainda há preconceito contra esse modo de falar. Por trás do preconceito contra a gíria há sempre um conflito entre conservadores e juventude, grupo social contra grupo social” (BRA- GANÇA, 1991, p. 34). 21 Síntese Nesse capítulo, você: • entendeu a importância do empenho dos estudiosos para combater o preconceito linguístico; • aprendeu que algumas noções de “erro” e de “acerto” geram o preconceito linguístico tão fortemente evidenciado em certas situações comunicativas; • identificou a língua como instrumento vivo e que determina o seu próprio sistema; • refletiu a respeito de dois importantes processos na construção e manutenção do preconceito linguístico: a normatização da língua e as variedades linguísticas; • compreendeu que o preconceito linguístico é um fator sociocultural e, em certa medida, também político; • aprendeu que elementos sociais, culturais e políticos podem alterar a língua falada por um grupo de pessoas de determinadas regiões e épocas, uma vez que é o reflexo do meio; • refletiu sobre a não aceitação das variedades da língua e a construção errônea do conceito do modo correto de falar; • conheceu o ensino tradicional da língua materna e quais são as consequências da manutenção da ideia de que “a língua certa é a da gramática”; • viu que há esforços de vários segmentos da sociedade na tentativa de combater o preconceito linguístico; • entendeu que o modelo de ensino da língua materna precisa ser modificado para tornar os alunos aptos a usarem a língua ao seu favor; • entendeu que, embora a norma culta não seja a única variedade, ela deve ser aprendida para ser usada nas situações adequadas; • conheceu os conceitos de norma culta, variedades linguísticas, variantes e níveis da fala e refletiu sobre como fatores naturais, geográficos, sociais e profissionais podem interferir na fala de um indivíduo e levá-lo a sofrer preconceito linguístico. Síntese 22 Laureate- International Universities Referências ADORO CINEMA. My Fair Lady. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/fil- me-1943/>. Acesso em: 7 ago. 2015. ANDRADE, C. D. De notícias e não-notícias faz-se a crônica. 8. ed. Rio de Janeiro: Record, 2004. BANDEIRA, M. Os melhores poemas. Disponível em: <http://www.sapienscursos.com.br/ downloads/M_Antonio/MELHORES%20POEMAS%20DE%20MANUEL%20BANDEIRA.pdf>. Acesso em: 4 ago. 2015. BAGNO, M. A língua de Eulália: novela sociolinguística. 2. ed. São Paulo: Contexto, 1997. ______. O preconceito linguístico: o que é como se faz. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2000. BRAGANÇA. M. A. Gíria: o lado jovem e transitório da linguagem. Revista ZN, Porto Alegre, 30 jun. 1991. BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: introdução aos parâmetros curriculares nacionais. Brasília: MEC/SEEF, 1997. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/ seb/arquivos/pdf/livro01.pdf>. Acesso em: 3 ago. 2015. CAMACHO, R. G. Norma culta e variedades linguísticas. São José do Rio Preto: Unesp, 1984. Disponível em: <http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/174227/mod_resource/ content/1/01d17t03.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2015. CAMPOS, H. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, O. Pau Brasil. 2. ed. São Paulo: Globo, 2003. (Obras completas de Oswald de Andrade). CAPELLO, C.; LOBÃO, F. L.; COELHO M. C. C. Língua Portuguesa na Educação 1. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2010. COUTINHO, I. L. Gramática histórica da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Novo Milênio, 2011. CORREIO DO BRASIL. Exposição mostra como Oswald de Andrade antecipou discussão sobre direitos autorais. Correio do Brasil, [s. l.], 9 out. 2011. Disponível em: <http://correiodobrasil. com.br/exposicao-mostra-como-oswald-de-andrade-antecipou-discussao-sobre-direitos-auto- rais/>. Acesso em: 3 ago. 2015. DUARTE, D. A. S. O ensino de língua portuguesa: perspectivas e contradições. Curitiba: Uni- versidade Federal do Paraná, 2008. Disponível em: <www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/ pde/arquivos/137-4.pdf> Acesso em: 3 ago. 2015. LEMLE, M. Uma nação com variadas línguas. In: AÇÃO EDUCATIVA. Por uma vida melhor: intelectuais, pesquisadores e educadores falam sobre o livro. São Paulo: Ação Educativa, 2011. Disponível em: <www.globaleditora.com.br/pdf/por_uma_vida_melhor.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2015. LOBATO, M. Emília no país da gramática. 2. ed. comentada. São Paulo: Globo, 2000. Bibliográficas 23 MOLLICA, M .C. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In: MOLLICA, M. C.; BRA- GA, M. L. (Orgs.). Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. NICOLA, J. Gramática e texto. Volume único. 1. ed. São Paulo: Scipione, 2014. POSSENTI, S. Preconceito linguístico. Instituto Ciência Hoje, Campinas, 23 dez. 2011. Dispo- nível em: <http://cienciahoje.uol.com.br/colunas/palavreado/preconceito-linguistico>. Acesso em: 30 jul. 2015. SEGALLA, A.; CAVALCANTI, B. O assassinato da língua portuguesa. ISTOÉ Independente, São Paulo, 20 maio 2011. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/paginar/138200_ O+ASSASSINATO+DA+LINGUA+PORTUGUESA/2>. Acesso em: 30 jul. 2015. PRECONCEITO. In: DICIONÁRIO Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto An- tônio Houaiss, 2012. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca?palavra=preconceito> Acesso em: 30 jul. 2015. ROSA, J. G. Grandes Sertão: Veredas. 1. ed. Rio de Janeiro, 2006. SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 26. ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1995. TERRA, E. Linguagem, língua e fala. 1. ed. São Paulo: Scipione, 1997.
Compartilhar