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Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 1 RADIAÇÃO DE CORPO NEGRO Prof. Manoel M. Ferreira Jr (DEFIS-UFMA) 1 – Introdução 2 – Emissão e absorção de radiação térmica (Lei de Stefan-Boltzamann) 3 – O teorema de Kirchhoff e desafio de Kirchhoff 4 – O desafio teórico de Kirchhoff (a Lei de Wein, a Teoria de Rayleigh–Jeans e a catástrofe do ultravioleta, realização física do corpo negro) 5 – A hipótese de Planck e a solução teórica para o desafio de Kirchhoff 6 – Comentários Finais 1) INTRODUÇÃO A Física do final do século XIX era fortemente alicerçada em três teorias dominantes: a Mecânica Clássica de Newton, a teoria eletromagnética de Maxwell, e a termodinâmica. Todas estas três teorias, que compõem o corpo da Física Clássica, tinham suas leis e previsões teóricas confirmadas pelos mais diversos experimentos, levando os físicos da época à crença de que tais teorias explicariam todos os problemas e fenômenos da natureza investigados pelo homem. Este cenário de confiança ilimitada nas leis da Física Clássica começou a estremecer quando os cientistas da época se defrontaram com a problemática da radiação (emissividade) do corpo negro. As atenções se voltaram para este problema em 1859, quando Gustav Kirchhoff, um dos mais renomados físicos alemães da época, lançou o chamado desafio de Kirchhoff, em que instigava a comunidade científica a resolver a questão do espectro do corpo negro. A partir de então, esse problema permaneceu na fronteira da Física durante muitos anos, só vindo a ser solucionado (teoricamente e experimentalmente) em 1900. A solução teórica desse problema, realizada por Max Planck, ocupa lugar de destaque na história da Física por ter lançado as bases da nova teoria quântica. De fato, a hipótese de quantização de energia que Max Planck adotou para resolver a catástrofe do ultravioleta, constitui a primeira hipótese de quantização da ciência moderna. Tão inovadora era, que os físicos da época não a levaram a sério, tomando-a apenas como um artifício matemático que servia para resolver uma questão importante. Inicialmente, nem o próprio Planck acreditava na realidade física da hipótese que ele mesmo lançou. A percepção geral era que um novo caminho teórico haveria de ser encontrado para resolver essa questão, sem se contrapor com os preceitos da Física Clássica. Na realidade, muito tempo se passou até que a hipótese de Planck fosse reconhecida como representativa de uma verdade da natureza. Somente depois de 1916, com a publicação dos resultados dos experimentos de Millikan, confirmando a teoria de Einstein para o efeito fotoelétrico é que as idéias de quantização passaram a ser aceitas como uma característica dos sistemas atômicos. Em resumo, o estudo do problema do corpo negro coloca-se como problema de grande relevância histórica para o desenvolvimento da Física Moderna, tendo sido o primeiro a demonstrar que a interação entre matéria e radiação não poderia ser convenientemente tratada em termos meramente clássicos. Com o passar dos anos, a questão da natureza da interação da radiação com a matéria ocupou cada vez destaque no cenário físico do início do século XX, dada a sua onipresença Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 2 em diversos problemas de interesse. A confirmação do caráter quântico desta interação, assim como o entendimento das suas particularidades, confunde-se com o próprio desenvolvimento da Mecânica Quântica. A importância da problemática do corpo negro está justamente em ter constituído o primeiro cenário onde as atenções estiveram voltadas para tal questão, e por ter revelado, pela primeira vez, que a explicação dessa interação estava além do domínio da Física Clássica. 2) EMISSÃO E ABSORVÂNCIA DA RADIAÇÃO TÉRMICA Todo corpo mantido a uma determinada temperatura absoluta T absorve, reflete e emite radiação térmica. A origem da radiação térmica está na interação entre as ondas eletromagnéticas (que constituem a radiação térmica) e as partículas carregadas (constituintes dos corpos aquecidos) em agitação térmica. Tal problema ocupou um lugar de destaque na história da Física a partir da segunda metade do século XIX, principalmente depois do trabalho de Kirchhoff que chamou atenção da comunidade científica para esta relevante questão. Espectro de radiação emitida por um corpo aquecido Para iniciar o estudo da radiação térmica emitida por um dado corpo, é necessário discutir o conceito de espectro de radiação. Ocorre que a radiação emitida por um corpo à temperatura T possui contribuições em diversas freqüências diferentes, de modo que para ter um bom conhecimento acerca da radiação emitida, torna-se importante saber a quantidade ou intensidade de energia emitida em cada freqüência - ( )I T , ou seja, em cada janela de freqüência , , sendo a largura do intervalo de medida. Este procedimento de medida deve ser repetido para vários valores de freqüência diferentes, ao longo de todo eixo das freqüências ( 0 ). Fazer isto equivale a determinar o espectro ou a curva espectral da radiação. A determinação da curva espectral, na forma de um gráfico vI , corresponde a uma caracterização completa da radiação emitida, uma vez que mostra o quanto o corpo emite de radiação em cada freqüência . A quantidade ( )I T é denominada de emitância espectral. Obviamente, ao integrarmos ( )I T sobre todas as freqüências, obtém-se a quantidade total de radiação emitida pelo corpo (em todas as freqüências): 0 ( ) ( )TotalI T I T d , (1) quantidade esta denominada de emitância total, que depende apenas da temperatura do corpo. Em geral, toda curva de emitância espectral possui um máximo de intensidade em algum valor de freqüência, que acaba sendo a freqüência dominante do espectro, ou seja, a frequência na qual o corpo aquecido mais emite radiação. Experiências cotidianas mostram claramente que o valor da freqüência em que a emitância é máxima desloca-se com a temperatura. Com efeito, ao se aquecer um metal no fogo durante um bom tempo, o mesmo atinge a cor avermelhada. Quando é aquecido mais ainda, o mesmo atinge uma cor azulada. Tal observação indica que o pico da emitância é deslocado do vermelho para o azul com o aumento da temperatura, o que implica na mudança perceptível de cor. Portanto, vemos que a freqüência do pico de emissão aumenta com a temperatura. Esses tipos de evidência mostram a existência de uma relação entre a temperatura do corpo emissor e a freqüência de máxima emissão. Esta relação veio mais tarde a ser descrita pela lei do deslocamento de Wein. Em 1879, Josef Stefan, baseado em dados experimentais, lançou uma conjectura empírica: que a quantidade de energia emitida por segundo por um corpo negro mantido a temperatura absoluta T é proporcional a quarta potência da temperatura, ou seja: 4TotalI T . Em 1884, Ludwig Boltzmann conseguiu demonstrar teoricamente a conjectura de Stefan, usando os preceitos da Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 3 termodinâmica e do eletromagnetismo de Maxwell, obtendo o que ficou conhecido como lei de Stefan-Boltzmann: (2) Tal lei afirma que a quantidade total de energia TotalI emitida por segundo por unidade de área, em todas as freqüências, por uma dada superfície à temperatura T, é proporcional à quarta potência de T, onde: 4 2 4 10,567 10 erg cm K s é a constante de Stefan-Boltzmann ( 8 2 4 15,67 10 Wm Ks no SI). Outro fator que aparece na lei de Stefan é o poder de emissão total ou emissividade ( e ), que depende da natureza de cada corpo, e tem seu valor situado entre 0 e 1 ( 10 e ). Tal lei mostra que um aumento moderado de T ocasiona um grande aumento na emissão de radiação, de fato, dobrando-se T, obtém-se um aumento de 16 vezes na emitância. A lei de Stefan-Boltzmann foi enunciada para descrever a emissão de radiação por qualquer corpo à temperatura T, que teria origem, de acordo com a Física clássica, na aceleração de cargas elétricas próximas à superfície. O movimento acelerado de cargas elétricas próximo da superfície é decorrência do grau de agitação térmica, que reflete a temperatura do material. Esquematicamente, temos o seguinte esquema de ordem causal: OBS: Em 1879, a radiação emitida por cargas aceleradas ainda não era identificada como Ondas Eletromagnéticas (entidades previstas pela teoria de Maxwell). Tal identificação só começou a ocorrer a partir de 1885, com o advento dos trabalhos de Hertz, que mostrou que as ondas eletromagnéticas tinham propriedades semelhantes a das ondas luminosas. Neste ínterim, cabe observar que em 1880 a Academia de Ciências de Berlim ofereceu um prêmio para quem fosse capaz de produzir e detectar as ondas de Maxwell (naquela data ainda não identificadas com a luz) através de algum mecanismo ou processo de natureza elétrica. O físico alemão H. Hertz obteve sucesso usando um circuito oscilante que produzia ondas de comprimento de onda m3,0 , chamadas depois de ondas hertzianas ou ondas de rádio. Hertz mostrou que tais ondas exibiam uma série de propriedades similares às ondas de luz (reflexão, refração, difração, polarização), além de se propagarem com velocidade c . Após tais experimentos, o próprio Hertz concluiu: “As experiências descritas me parecem em alto grau adequadas para remover as dúvidas sobre a identidade da luz, a radiação térmica e as ondas eletromagnéticas”. Foi então a partir dos trabalhos de Hertz que ondas eletromagnéticas, radiação térmica, e ondas de luz passaram a ser entendidas e percebidas como uma única entidade. Desde então, os físicos do final do século XIX passaram a tentar tratar o problema da radiação térmica de um corpo tomando como base a teoria eletromagnética de Maxwell aliada a alguns pressupostos fundamentais da termodinâmica. Vale destacar que, antes da elucidação da natureza eletromagnética da radiação térmica, os físicos estudavam o problema da radiação térmica baseando-se apenas nas leis da termodinâmica. Como veremos, a utilização conjunta do eletromagnetismo e termodinâmica foi o caminho adotado pelos teóricos que se predispuseram a estudar o problema da emissividade de radiação dos corpos a partir de 1890. Retornando à lei de Stefan, é possível perceber que a única constante que particulariza ou diferencia o poder de emissão de corpos deferentes é a chamada emissividade e , que pode 4 TotalI eT Agitação térmica Cargas em aceleração Emissão de radiação Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 4 depender dos atributos específicos de cada corpo em questão. Assim como um corpo emite energia na forma de radiação, ele também é capaz de absorvê-la, sendo esta capacidade denominada de “poder de absorção” ou absorvância a , definida como a razão entre a energia térmica absorvida e a energia térmica total incidente sobre o corpo. Em 1859, Gustav Robert Kirchhoff 1 , eminente físico alemão, demonstrou através de argumentos termodinâmicos que, para um corpo em equilíbrio térmico (temperatura constante) e submetido à incidência de radiação, que a emissividade e absorvância são iguais, ou seja, e a . Kirchhoff chegou a tal resultado tomando por base as leis gerais da termodinâmica, sem lançar mão de qualquer hipótese específica relativa aos processos microscópicos de absorção ou emissão de radiação, o que lhe confere uma validade geral (independente das características particulares de cada corpo). Kirchhoff também foi o primeiro a usar a denominação de corpo negro para um corpo que absorve toda a radiação sobre ele incidente, ou seja: tem 1a . Se para um corpo negro vale 1a , vale também 1e , o que leva a lei de Stefan a seguinte forma: 4 TotalI T , evidenciando que para um corpo negro a energia emitida em forma de radiação térmica depende apenas da temperatura absoluta, e cresce com a quarta potência da temperatura: quanto maior T, muito maior será a emitância total. Dado o caráter totalmente geral associado à lei de Stefan aplicada para um corpo negro, chega-se à conclusão de que o estudo detalhado da emissão de radiação por um corpo negro deve revelar algum padrão de universalidade, comum a todos os corpos. Observe que todos os corpos negros, desde que mantidos a mesma temperatura T, devem irradiar exatamente no mesmo padrão espectral, ou seja, emitir iguais quantidades de energia (por unidade de tempo e unidade de área, e elemento de frequência), independentemente de sua composição ou estrutura interna. Esse fato é reflexo da existência de um padrão de universalidade, associado ao mecanismo de emissão de radiação térmica (eletromagnética), que deve ser o mesmo em todos os corpos negros. Portanto, para elucidação de fenômeno, é necessário ter entendimento sobre aspectos essenciais da interação 2 entre radiação e matéria que viabiliza a emissão de radiação. Em resumo, foi a percepção de que o padrão de universalidade - vinculado à emissão de radiação (por um corpo negro) - pudesse revelar alguns segredos fundamentais da interação radiação/matéria que levou Kirchhoff, já em 1859, a lançar um desafio, cuja solução traria consigo as sementes de uma nova e revolucionária teoria: a Mecânica Quântica. Vejamos então no que consistia o chamado desafio de Kirchhoff, como ficou conhecido. Antes disso, porém, apresentaremos o teorema de Kirchhoff sobre a radiação térmica, necessário ao entendimento do desafio. 3) O TEOREMA DE KIRCHHOFF PARA A RADIAÇÃO TÉRMICA DO CORPO NEGRO No período de 1854 e 1859, Kirchhoff e Busen estabeleceram as bases da espectroscopia. Em seus inúmeros experimentos, perceberam que a absorvância (a) e a emitância (I) de um corpo 1 Além dos seus estudos sobre a termodinâmica do corpo negro, Kirchhoff realizou outras contribuições importantes para o desenvolvimento da Física. Demonstrou, pela primeira vez, que as raias espectrais são características dos elementos químicos, ou seja, cada elemento tem um espectro particular, o que deu origem à técnica da análise espectral (isto foi feito conjuntamente com Bunsen). Baseado na análise espectral, descobriu os elementos rubídio e césio (1861). Realizou ainda importantes contribuições em diversos outros ramos da Física, tais como a famosa lei das malhas, de ampla aplicação em circuitos elétricos. 2 Deve-se destacar que a emissão de radiação é fruto de um processo de interação entre a matéria (átomos, elétrons, íon, e partículas carregadas) com as ondas eletromagnéticas. Este processo de interação foi objeto de estudo da nascente teoria quântica, e da teoria quântica propriamente dita, só estabelecida no início dos anos 30. Atualmente, esta questão pertence ao domínio de validade da Mecânica Quântica. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 5 dependiam da temperatura e das características de cada corpo, embora a razão /I a dependesse apenas da temperatura do corpo emissor. Em 1859, Kirchhoff demonstrou este resultado empírico em um importante teorema (teorema de Kichhoff), enunciado da seguinte forma: - Considere um corpo em equilíbrio térmico com a radiação. Seja I d a quantidade de energia emitida pelo corpo, por unidade tempo e de área, no intervalo de freqüência , . Seja a o coeficiente de absorção de radiação pelo corpo na freqüência . O teorema de Kirchhoff estabelece que a razão /I a depende apenas de e da temperatura T, sendo independente de qualquer outra característica do corpo, de modo que se pode escrever ( ) , I T a , onde ,T é uma função de forma desconhecida. Kirchhoff chegou a este resultado por meio de argumentos termodinâmicos, o que conferia ao seu teorema ampla validade e aceitação 3 . Interessante observar que demonstrações do tipo do teorema de Kirchhoff, realizadas tomando por base argumentos termodinâmicos, têm ampla validade porque estão apoiadas em cima de princípios gerais (princípios da termodinâmica), aplicáveis a todos os sistemas físicos (tais como conservação de energia). Entretanto, tais demonstrações não conduzem a um conhecimento mais específico sobre o sistema, uma vez que a termodinâmica ocupa-se primordialmente da descrição macroscópica, nada acrescentando sobre os mecanismos microscópicos subjacentes. Para um corpo negro 1a , temos apenas: ( ) ,I T , o que mostrou pela primeira vez que a radiação emitida por um corpo negro (por unidade de área e unidade de tempo) não deveria depender de qualquer propriedade particular do corpo (forma, constituição e estrutura química), mas apenas da freqüência da radiação e da temperatura absoluta do corpo emissor. Intrigado por este resultado, Kirchhoff percebeu que se defrontava com um problema que envolvia um mistério fundamental da natureza, pois como seria possível que corpos de propriedades físico- químicas totalmente distintas emitissem radiação térmica exatamente na mesma quantidade e padrão espectral? Foi então que a intuição de bom físico de Kirchhoff falou mais alto. Se as coisas na escala macroscópica (regime no qual Kirchhoff fazia seus experimentos) revelavam-se desta forma era porque algo no interior destes corpos, no âmbito da escala microscópica, deveria estar ocorrendo de maneira igual, independentemente da sua composição ou propriedades de cada corpo. Certamente isso estaria relacionado ao mecanismo de produção da radiação térmica pela matéria (emissão de radiação). A percepção da existência de um padrão de universidade concernente ao processo de produção da radiação pela matéria em escala microscópica, e da importância do entendimento deste mecanismo, é que levou Kirchhoff a enunciar um desafio, cuja solução constituiria as sementes do que mais tarde se tornaria a teoria quântica. O desafio de Kirchhoff, colocado para a comunidade científica da época 4 , era: - descobrir a forma matemática da função . Nas próprias palavras do kirchhoff: - “É tarefa de primordial 3 A termodinâmica, por ser uma teoria com forte base empírica, era considerada um porto seguro para a demonstração confiável de novos resultados concernentes aos processos envolvendo radiação térmica. Kirchhoff demonstrou este teorema mostrando que, caso a razão /I a não fosse uma função apenas de ,T , então seria possível conceber a existência de uma máquina tipo moto-contínuo, que implica na violação da segunda lei da termodinâmica. 4 No século XIX era comum um cientista colocar problemas de primeira importância para a comunidade científica lançando um desafio. Tais desafios tinham o efeito de chamar a atenção dos outros cientistas para o problema em questão e, em geral, levavam a uma solução mais rápida. Não foi esse o caso, entretanto, do desafio de Kirchhoff, que levou 41 anos para ser resolvido. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 6 importância descobrir a forma da função . Surgem grandes dificuldades no caminho de sua determinação experimental. Todavia, há fundada esperança de que ela tenha uma forma simples, como todas as funções que não dependem das propriedades dos corpos individuais e com as quais já travamos conhecimentos no passado”. Como o próprio Kirchhoff anteviu, seu desafio pode ser separado numa parte teórica e experimental, uma vez que era uma tarefa além do domínio tanto dos teóricos quanto dos físicos experimentais da época. Portanto, havia um desafio de Kirchhoff experimental, que consistia em determinar a forma da curva espectral da radiação emitida através de métodos experimentais, e um teórico, que consistia em obter teoricamente, através de idéias pertencentes à termodinâmica e ao eletromagnetismo de Maxwell, a forma matemática da curva espectral. Do ponto de vista experimental, para realizar tal tarefa, as seguintes etapas deveriam ser superadas: (i) Construção de versões manipuláveis de um corpo negro, que pudessem ser usadas e controladas nos experimentos como fonte da radiação sob investigação; (ii) Construção de detectores de radiação com sensibilidade adequada; (iii) Descoberta de novas técnicas para viabilizar medidas em intervalos mais amplos de freqüência; (iv) Descoberta de novos materiais transparentes aos grandes comprimentos de onda e desenvolvimento de técnicas de separação espectral, que permitissem analisar o comportamento dos materiais para cada faixa de freqüência isolada. Estas 4 etapas constituem o que ficou conhecido como desafio experimental de Kirchhoff, cuja solução, finalizada por volta de 1900, levou à determinação (experimental) da forma da função de Kirchhoff, ou seja, da distribuição espectral da intensidade de energia ( , )T do corpo negro. PROCESSO EXPERIMENTAL: até meados do século XIX, só era possível medir em laboratório comprimentos de onda de até m5,1 m 5,1 . Isto significa que a radiação eletromagnética com comprimento de onda maior que este valor simplesmente não podia ser detectada. Os progressos nesse ramo da física experimental foram lentos. Por volta de 1885, conseguia-se detectar radiação com comprimento de onda menor ou igual a m7,2 m 7,2 , um pequeno avanço realizado ao longo de mais de trinta anos de esforços. Novos progressos nesta área só foram realizados quando os físicos experimentais começaram a desenvolver e dominar técnicas de espalhamento de radiação infravermelha, desencadeando uma seqüência de grandes avanços na última década do século XIX: F. Paschen (1897) – conseguiu realizar boas medidas na faixa do infravermelho – próximo: m 81 , na seguinte faixa de temperatura KT 1600400 . Otto Lummer & Ernest Pringsheim (em 1900) – obtiveram boas medidas numa faixa mais distante do infravermelho: m 1812 , a KT 1650300 . Heinrich Rubens & F. Kurlbaum – (em 1900) – obtiveram boas medidas na faixa do infravermelho longínquo: m 6020 . Todas estas medidas e, principalmente as de Rubens e Kurlbaum, foram de grande importância para confirmação da forma da curva espectral do corpo negro. As medidas experimentais realizadas nesse período 5 conduziram à obtenção da curva espectral ou espectro da radiação do corpo negro, que revela quanta radiação está sendo emitida em 5 Boa parte delas foram realizadas no Physikalisch Technische Reichsanstalt de Belirm (o equivalente alemão do Instituto Nacional de Padrões e Medidas de cada país). Neste instituto trabalhavam H. Rubens, E. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 7 cada valor de freqüência , ou em cada janela , de freqüência. No caso, a largura do intervalo está associada à resolução do detector de radiação 6 . A Fig. 1, exibida a seguir, exibe um esboço de um aparato experimental usado para determinar curvas espectrais. Funciona assim: uma vez colimada a radiação emitida pelo corponegro, a mesma é passada através de um prisma ou qualquer instrumento de separação espectral, a fim de separar as diferentes freqüências. Como resultado, tem-se então um leque disperso de radiação, onde a freqüência cresce em uma única direção. Só então entra em cena o detector, que mede a intensidade de cada freqüência ( )I , em várias posições sucessivas ao longo do feixe, cujos resultados compõem a chamada curva espectral. Fig. 1: Esquema do aparato de medida da curva espectral da radiação de um corpo negro. Pringsheim, e O. Lummer. O Physikalisch Technische Reichsanstalt foi fundado em 1887 por Werner Von Siemens e Hermann Von Helmholtz, com objetivo de desenvolver inovações tecnológicas para a indústria alemã. Na época Siemens declarou: - “Na competição entre as nações, na era atual cada vez mais aguerrida, o país que primeiro estabelecer os pés em novos caminhos científicos e primeiramente os aplicar em ramos estabelecidos da indústria, terá uma decisiva vantagem.” Em 1903, este instituto ocupava dez edifícios e empregava 110 pessoas, 41 das quais dedicadas a atividades científicas. A importância deste instituto no desenvolvimento de novas tecnologias e assistência a indústrias de ponta foi logo reconhecida por todas as nações avançadas. Isto levou à criação de institutos similares na Inglaterra (“National Physical Laboratory”, 1898), nos Estados Unidos (“National Bureau of Standards”, 1901), no Japão (“Institute of Physical and Chemical Research). Para mais detalhes, ver Ref. [7], cap. 9. 6 Todo aparelho de detecção de radiação tem uma resolução espectral, que reflete o intervalo de freqüência que o mesmo capta em cada medida em torno de um determinado valor de freqüência . Fig. 2: Representação gráfica da forma da função espectral (ou densidade de energia espectral) do corpo negro para temperaturas diferentes, obtidas experimentalmente. O eixo das ordenadas indica a quantidade de energia emitida Observe que a quantidade de energia emitida em todas as freqüências, correspondente à área sob cada uma das curvas espectrais, cresce com a quarta potência da temperatura, como previsto pela lei de Stefan. Outro ponto relevante a ser destacado é o deslocamento do ponto onde a densidade de energia é máxima. De fato, da ilustração ao lado percebe-se que o comprimento de onda correspondente ao pico da curva espectral diminui à medida que T cresce. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 8 O gráfico da Fig. 2 exibe a forma da densidade espectral de energia, obtido para várias temperaturas diferentes, pelos trabalhos experimentais de Lummer & Pringshein e Rubens & Kurlbaum. A função ( , )T é a densidade de energia eletromagnética emitida no intervalo de freqüência , , ou seja, corresponde à energia (da radiação) dividida pelo volume V. A determinação desta função, chamada de distribuição espectral, permite saber quanta radiação (energia) o corpo emite em cada janela de freqüência , por unidade tempo por unidade de área. 4) DESAFIO TEÓRICO DE KIRCHHOFF Desde o lançamento do desafio de Kirchhoff , muitos foram os físicos que se aventuraram na busca de uma formulação teórica que pudesse levar à obtenção da forma da função de Kirchhoff. Entretanto, apesar dos contínuos esforços, apenas alguns indicativos gerais à respeito da forma dessa função foram obtidos, até que surgisse, em 1900, a solução de Planck, que é considerada a solução cabal do desafio teórico de Kirchhoff. De 1859 a 1890, poucos progressos teóricos foram feitos no que concerne à solução do desafio de Kirchhoff. Uma das contribuições teóricas mais importantes, foi dada por W. Wein, que se baseou em argumentos termodinâmicos e da eletrodinâmica de Maxwell, para enunciar a chamada lei do deslocamento de Wein (1893). Tal lei estabelece que a procurada função de Kirchhoff ( ,T ), representativa do espectro de radiação de um corpo negro, seria dada por: (3) Onde ( / )f T é uma função de forma desconhecida. Esta lei tem um caráter intermediário no processo geral de solução do desafio, pois apesar de representar um real avanço em direção à solução, não representa a solução final, uma vez que nada afirma acerca da forma da função ( / )f T . Partindo da eq.(3), é possível obter a lei de Stefan-Boltzmann integrando-se ( , )v T sobre todo o espectro de freqüência e multiplicando-se pelo volume (V) da cavidade: 0 ( , ) TotalV T d I , onde TotalI representa a energia total irradiada pelo corpo negro (à temperatura T). Temos assim: 3 0 ( )TotalI V f T d . Fazendo-se a substituição x T , temos: 3 4 3 0 0 ( ) ( ) ( )Total cte I V xT f x Tdx VT x f x dx , o que conduz ao resultado 4( )TotalI T T , que é a Lei de Stefan. Este resultado é obtido desde que a integral 3 0 ( )x f x dx seja convergente 7 . 7 A integral 3 0 ( )x f x dx cte só pode ser verdadeira quando a função f(x) apresenta um decaimento assintótico forte o suficiente para aniquilar a potência em 3x presente no integrando. É fácil constatar que cxexf )( cumpre muito bem esta tarefa. Veremos mais à frente que a solução do problema do corpo negro, quando encontrada, atribui uma forma exponencial decrescente para esta função. 3( , ) ( )T f T , Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 9 Esta lei pode também ser expressa em termos do comprimento de onda . De fato, substituindo c na eq. (3), resulta: 3 3 ( , ) ( ) c T f c T . A função ),( T correspondente a ( , )T deve satisfazer a lei de Stefan-Boltzmann, ou seja: 3 3 2 0 0 ( , ) ( )Total c c I V t d V f c T d , onde foi usado 2 c d d . Temos então: 4 5 0 0 ( ) ( , )Total c I V f c T d V T d , que nos leva a: 4 5 ( , ) ( ) c T f c T . (4) A lei de Wein recebeu a denominação de lei de deslocamento porque consegue explicar um fenômeno experimentalmente observado: o deslocamento do pico da curva espectral em direção a menores comprimentos de onda à medida que a temperatura cresce. Tal resultado é expresso através da relação: cteTMáx , onde Máx é o comprimento de onda para o qual a densidade de energia irradiada é máxima, para uma dada temperatura constante. O ponto onde a densidade espectral é máxima pode ser encontrado impondo-se ( , ) 0T . Derivando-se a eq. (4), resulta: 4 2 5 6 1 ( ) 5 ( , ) ( ) 0 c f c T T c f c T T . Multiplicando tudo por 6 , e usando-se a redefinição x c T , temos: ( ) 5 ( ) 0xf x f x , equação esta que possui solução para um determinado valor da variável x. Isto permite escrever: cteTMáx . Com o advento dos trabalhos experimentais (por volta de 1900) que determina a curva espectral para a densidade de energia, a lei de Wein foi perfeitamente confirmada. Mais especificamente, a lei do deslocamento é escrita na forma 8 : 32,898 10MaxT K m . (5) Tal lei permite realizar algumas aplicações interessantes, tais como determinar a temperatura da superfície de estrelas distantes ou determinar a região do espectroem que o corpo humano mais emite radiação. Permite também fazer uma estimativa prévia da faixa freqüência a ser detectada simplesmente conhecendo-se a temperatura do corpo emissor. 8 Importante ressaltar que a lei de Wein, dada pela eq. (3), permite apenas obter cteTMáx , sem determinar o valor da constante. Para determinar o valor da constante, exibido na eq. (4), é necessário conhecer a forma da função de Kirchhoff. Portanto, o valor desta constante só foi calculado depois do advento dos trabalhos de Planck. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 10 Alguns anos tarde (1896), através da observação dos primeiros espectros de corpo negro (ainda imprecisos), Wein enunciou uma forma exponencial para a função ( , )T , válida apenas altas freqüências: 3( , ) B h K T T e . Como veremos mais à frente, esta lei reproduz a solução de Planck no regime das altas freqüências Bh K T , sendo a forma matemática da função de Kirchhhoff até 1900, ano em que Max Planck conseguiu deduzir uma outra forma para esta função que se ajustava completamente aos dados experimentais de Rubens & Kurlbaum. Antes de discutir as primeiras formulações teóricas para tratar o problema do espectro do corpo negro, convém apresentar uma versão manipulável do corpo negro que seja útil nas construções teóricas. Realização Física manipulável de um corpo negro: para estudar a radiação emitida por um corpo negro, era obviamente necessário construir um corpo negro que fosse facilmente manipulável em experimentos, de modo a produzir a radiação a ser observada e medida em laboratório. Tal versão do corpo negro pode ser tomada como a cavidade interna de uma caixa de paredes metálicas de dimensões zyx LLL ,, , dotada de um pequeno orifício, por onde um feixe de radiação eletromagnética entra mas dificilmente sai, sendo absorvido pelas paredes da caixa após sofrer muitas reflexões internas. Isto equivale à realização física do Corpo Negro (quase ideal) 9 , proposta originalmente por Kirchhoff. Portanto, estudar a radiação, ou melhor, o espectro da radiação presente dentro da cavidade, é equivalente a estudar o espectro de um Corpo Negro. 9 Quase ideal porque uma pequena fração da radiação que entra pelo buraco acaba saindo por ele após as muitas reflexões, sem antes ser absorvido. Fig. 2: Realização física de um corpo negro: caixa metálica dotada de um pequeno orifício numa das paredes, por onde um feixe de radiação eletromagnética entra, mas tem probabilidade desprezível de sair após sofrer reflexões sucessivas. Importante destacar que é por este pequeno orifício que sai a radiação do corpo negro que será estudada em laboratório. Por tal orifício sai a mesma quantidade de radiação (por unidade de tempo) que é absorvida pelo corpo negro em equilíbrio térmico. Importante observar que a radiação de interesse é aquela emitida pelas paredes internas do corpo negro e em equilíbrio térmico com o mesmo, ou seja, a radiação presente dentro da cavidade metálica. No tocante a esta realização física do corpo negro, muitas dúvidas são recorrentes. Primeiro ponto de questionamento é sobre a radiação que está sendo refletida pelas paredes laterais externas do corpo negro, pois pode-se pensar que se há radiação refletida, então não se trata de um corpo negro. Ocorre que esta radiação não deve mesmo ser levada em conta, pois ela não faz parte do sistema do corpo negro, que é constituído apenas pelas paredes internas e ondas eletromagnéticas presentes na cavidade interna. A radiação que não entra na cavidade pelo pequeno orifício e não é absorvida pelas paredes internas não pode nunca ser considerada como radiação do corpo negro, pois não pertence ao sistema. E quanto à parcela da radiação absorvida pelas paredes externas? Esta radiação pode ser zerada revestindo-se as Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 11 paredes externas com uma película espelhada ou algo parecido. Nesta situação, temos uma cavidade que não interage de forma alguma com a radiação externa, a não ser pelo pequeno orifício. Portanto, só pode absorver radiação pelas paredes internas. Outro motivo de dúvida recorrente faz referência à radiação emitida pelo corpo negro pelo orifício. De fato, esta radiação existe, e tem mesmo que existir, pois todo corpo negro em equilíbrio térmico emite radiação, e é esta radiação emitida que revela o seu padrão espectral. A radiação do corpo negro é aquela emitida pelas partículas que o compõem e que permanece em equilíbrio térmico com as suas paredes internas (paredes da cavidade), e não aquela que é simplesmente refletida n vezes pelas suas paredes, e sai de volta pelo orifício. Esta radiação que sai pelo orifício sem ser absorvida, é uma radiação refletida que não faz parte do sistema do corpo negro e não contém nenhuma informação sobre o espectro deste corpo. Pelo fato desta radiação refletida estar sempre presente, embora em pequeníssima quantidade, é que esta realização do corpo negro é dita “quase ideal”. Quanto menor o orifício, menor será a parcela da radiação refletida, e a caixa mais se aproximará do corpo negro ideal. Neste caso, a maior parte da radiação que entra pelo orifício é absorvida pelas paredes do corpo negro, assim como a maior parte da radiação que sai pelo orifício é verdadeiramente emitida pelo corpo negro. Da sua observação, advém a curva espectral do corpo negro, nosso objeto de estudo. Tentativas teóricas para explicar a radiação do corpo negro Historicamente, a primeira abordagem teórica para o problema do corpo negro (devido a Max Planck) consistia em focalizar atenção sobre as partículas que compunham as paredes do corpo, supostas em MHS - movimento harmônico mais simples, por este ser o movimento oscilatório simples de tratar e bom representante de uma situação física real. Conseqüentemente, esta seria a representação mais adequada para uma partícula radiante oscilante. Temos assim a parede do corpo negro tratada como um conjunto de dipolos oscilantes, cada dipolo correspondendo a uma partícula carregada em MHS. No equilíbrio térmico, a quantidade de energia irradiada pelo dipolo oscilante é dada por 10 : 2 2 2 3 8 3 e v E mc , onde ,m e , são a massa, carga elementar e energia média de cada partícula oscilante, enquanto é a freqüência da radiação emitida. Se o corpo emissor está em equilíbrio térmico, então a quantidade de radiação emitida por cada dipolo tem que ser igual ao trabalho fornecido a este dipolo. No caso, a entidade que está realizando trabalho sobre os dipolos oscilantes é o campo eletromagnético presente na cavidade térmica. Então, o trabalho (por unidade de tempo) realizado sobre o oscilador pelo campo eletromagnético vale: 2 ( ) 3 e W m , onde ( ) é a densidade de energia espectral, ou seja, densidade de energia com freqüência no intervalo , . Igualando-se estas duas quantidades, resulta: 22 2 2 3 ( )8 33 ee mmc , de onde se conclui que: 2 3 8 ( ) c . Essa é a expressão para a densidade de energia espectral do corpo negro obtida por Planck em 1899, a partir da abordagem clássica para o movimento oscilatório das partículas radiantes localizadas nas paredes do corpo. Neste caso, conhecendo-se a energia média ( ) de um oscilador, determina-se a 10 Esse resultado advém da teoria eletromagnética de Maxwell. O mesmo não será aqui deduzido por envolver cálculos de teoriade radiação, além do escopo do presente curso. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 12 distribuição espectral da intensidade de radiação, ( ) , do corpo negro. Tal resultado, como veremos mais adiante, conduz a uma quantidade de energia divergente ( )E para altas freqüências ( ) , resultado que não poderia ser verdadeiro, uma vez que a quantidade de energia associada ao corpo negro não pode ser infinita. Esta problemática ficou conhecida como a catástrofe do ultravioleta, por ocorrer para altas freqüências (regime do ultravioleta). O método descrito acima, baseado nas oscilações das partículas das paredes do corpo negro, foi o primeiro a ser aplicado na tentativa de construção da função de Kirchhoff - ( ) . Veremos a seguir um outro método, baseado nas ondas estacionárias presentes dentro da cavidade metálica, que também foi usado para este mesmo propósito, fornecendo o mesmíssimo resultado. A formulação de Rayleigh-Jeans para ondas eletromagnéticas estacionárias A exatidão dos resultados obtidos pela formulação do dipolo oscilante foi atestada quando a mesma expressão para a densidade de energia espectral - ( )v - foi derivada a partir de uma abordagem teórica alternativa, que centrava atenção na configuração das ondas eletromagnéticas estacionárias presentes dentro da cavidade que constitui o corpo negro [em vez de focalizar no movimento oscilatório das partículas das paredes que estariam em equilíbrio térmico com tais ondas eletromagnéticas]. Esta descrição alternativa para a radiação do corpo negro foi construída principalmente sobre os resultados obtidos pelo Lord Rayleigh (J. W. Strutt Rayleigh) em 1900, que ao aplicar o princípio da eqüipartição de energia à radiação dentro da caixa, obteve pela primeira vez a seguinte expressão 2( , )T c T para a densidade espectral de energia, dispensando completamente a figura dos osciladores carregados presentes nas paredes da caixa. Coube então ao Sir. James Jeans (em 1905) obter o resultado já aqui apresentado, partindo da formulação do Lord Rayleigh. Daí segue a denominação dada a esta formulação. Passamos agora a descrever tal abordagem. Inicialmente é necessário ressaltar que dentro da cavidade forma-se um padrão de ondas (eletromagnéticas) estacionárias, uma vez que as paredes da cavidade atuam como elementos impositores de condições de contorno adequadas para tal. Dentro da visão do corpo negro como o sistema caixa metálica/ondas eletromagnéticas estacionárias, torna-se possível calcular a distribuição espectral da intensidade radiação do corpo negro. Para isto, é necessário determinar quanta energia está associada às ondas eletromagnéticas. Para calcular a curva espectral, devemos determinar quanta energia eletromagnética existe no intervalo de freqüência , d . Para cumprir este objetivo teórico, deve-se: (i) determinar a quantidade de ondas eletromagnéticas estacionárias que está compreendida no intervalo infinitesimal de freqüência considerado; (ii) avaliar a energia média carregada ou associada a cada modo de oscilação, ou seja, a energia de cada onda eletromagnética considerada. A intensidade de energia por intervalo de freqüência - ( )I v - será então dada pelo produto das duas quantidades acima. (i) Determinação da quantidade de modos vibracionais presentes na cavidade metálica: De acordo com as equações de Maxwell, o campo eletromagnético numa região do espaço livre de cargas satisfaz a equação de onda homogênea, que pode ser escrita tanto para o campo elétrico, E , quanto para o campo magnético, B . Em termos do campo elétrico, escrevemos: 2 2 2 2 2 2 2 2 2 1 0E x y z c t , (6) que é válida para cada uma das componentes cartesianas de E , ou seja:: Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 13 2 2 2 2 2 2 2 2 2 1 0x x x x E E E E x y z c t , ou genericamente: 2 2 2 2 2 2 2 2 2 1 0i i i i E E E E x y z c t , com 1,2,3i designando as componentes x,y,z respectivamente. Tal equação é satisfeita tanto por ondas progressivas quanto estacionárias. No presente caso, estamos interessados apenas nas soluções estacionárias estabelecidas dentro da caixa metálica fechada de lados , ,x y zL L L , que são as únicas soluções possíveis nesse caso. As paredes dessa caixa estão em equilíbrio térmico, à temperatura T, com a radiação eletromagnética contida em seu interior. Nessa situação, a radiação térmica presente no interior a caixa metálica 11 , em forma de ondas estacionárias, equivale exatamente à radiação do corpo negro. Importante destacar que o padrão de ondas estacionário surge como uma decorrência direta das condições de contorno impostas nas paredes da caixa. De fato, sendo tais paredes constituídas por um material condutor, o campo elétrico deve se anular nas mesmas 12 , como usualmente estudado no eletromagnetismo clássico. A nulidade do campo elétrico implica na nulidade da amplitude de oscilação nas paredes da caixa (uma vez que tal amplitude é proporcional a 2E ). Esta observação tem analogia com as ondas estacionárias (mecânicas) estabelecidas em uma corda de pontas fixas, pontos nos quais a amplitude de oscilação é nula. Admitindo a natureza estacionária das ondas eletromagnéticas dentro da caixa, podemos escrever: ( , ) sen cosx ox xE x t E k x wt , (7A) ( , ) (sen )cosy oy yE y t E k y wt , (7B) ( , ) (sen )cosz oz zE z t E k z wt . (7C) onde 0 0 0, ,x y zE E E são as amplitudes ao longo de cada dimensão espacial. Observe que tais soluções apresentam uma dependência no tempo que não configura uma propagação espacial 13 . Sendo a onda eletromagnética transversal, o campo E acaba sendo paralelo às paredes da caixa para cada direção de propagação x, y ou z. OBS.: Para efeito de contagem, cada onda estacionária equivale a dois modos de vibração do campo eletromagnético, uma vez que é composta por dois estados de polarização independentes. Contagem das ondas estacionárias ao longo do eixo – x: a componente xE deve ser nula nas duas paredes da caixa perpendiculares a esta direção, ou seja, as paredes paralelas situadas em: 0x e xLx ; para assegurar tal condição, devemos impor: 0sen xxLk x x xk L n , onde 1, 2,3, 4...,xn Temos assim: x x x k n L ou xx x L n k . (8) 11 Realização física de um corpo negro. 12 Interessante observar que esta condição de campo nulo nas paredes, mesmo que não imposta a princípio, acaba se concretizando a posteriori, devido à ação das correntes geradas por E nas paredes, que têm o efeito de criar um campo E oposto ao inicial, após o rearranjo de cargas, implicando num campo total nulo. Observe que, se o campo E não for nulo, ele gera o aparecimento de correntes elétricas ao longo das paredes. Como não há correntes (condição de equilíbrio eletrostático), o campo deve ser nulo. 13 A dependência em ( )kx wt , típica de ondas que se propagam no espaço, aparece apenas nas chamadas ondas progressivas. Um padrão de ondas estacionário surge da superposição de ondas progressivas e, uma vez estabelecido,não apresenta mais dependência temporal deste tipo. No caso, a dependência temporal apenas dita a freqüência da variação da amplitude do padrão estacionário. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 14 Da definição de vetor de onda, 2 xk , obtemos: x x L n 2 ou x x n L2 . (9) A eq. (9) expressão revela os valores de comprimento de onda, correspondentes a cada valor de xn , que satisfazem a condição de contorno 0xE nas duas paredes perpendiculares ao eixo-x. A eq. (8) estabelece o mesmo tipo de relação, mas para os valores permitidos do vetor de onda xk . Vemos assim que, para cada valor de xn , temos uma onda de comprimento de onda ( ) diferente, de modo que contar a quantidade ondas (que satisfazem a condição 0xE nas paredes), dispostas ao longo do eixo-x, equivale a observar o conjunto de valores permitidos para xn . Podemos fazer esta contagem de várias maneiras. Uma delas é contando a quantidade xn de ondas cujo vetor de onda está situado no intervalo xxx kk,k , de extensão xk . Este número vale: xk x x L n . (10) A eq. (10) revela o número de ondas que possuem vetor de onda situado no intervalo xxx kk,k , que é igual número de ondas que possuem freqüência situada no intervalo , , pois: 2 k c , o que nos leva a: 2 k c . Agora que aprendemos a contar as ondas dispostas ao longo do eixo–x que satisfazem as condições de contorno, podemos aplicar o mesmo procedimento para as ondas ao longo dos eixos– y e z: No eixo–y, temos: 0yE nas paredes 0y e yLy , o que implica em: yy nLyk zy y k n L y y y L n k . (11) A eq. (11) corresponde à quantidade de ondas que apresentam vetor de onda yk situado no intervalo yyy kk,k . No eixo–z: devemos ter 0zE nas paredes 0z e zLz , de modo que: z z zk L n zn z zk L zz z L n k . (12) A eq. (12) corresponde à quantidade de ondas que apresentam vetor de onda yk situado no intervalo zzz kk,k . Podemos determinar agora o número total de ondas que se anulam sobre as paredes da caixa e possuem vetor de onda situado no intervalo ,k k k ; onde kkjkik zyx ˆˆˆk . Tal número representa a quantidade de onda presente num volume, e por isso será dado pelo produto do número de ondas existente ao longo de cada um dos eixos. Temos assim: 3 x y z x y z x y z L L L N n n n k k k , ou (13) onde 3 x y zd k k k k é o elemento infinitesimal de volume no espaço- k (espaço dos vetores de onda ou espaço da variável k), e x y zV L L L é o volume da caixa. Uma boa maneira de representar o elemento de volume 3d k é fazendo uma analogia ao elemento de volume de uma casca esférica de espessura dr , 3 24d r r dr , medido em coordenadas esféricas. No caso, devemos pensar em termos de uma casca esférica de raio k e espessura dk no espaço-k (espaço do vetor de onda), cujo volume é escrito na forma: 3 3 V N d k , Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 15 3 24d k k dk . A vantagem de escrever 3d k nesta forma está no fato de permitir expressá-lo em termos apenas do módulo de k, o que permitirá obter um resultado em termos da freqüência e do elemento d . ky k kx Fig. 3: Representação gráfica do vetor k no espaço da variável k, onde um elemento de volume infinitesimal está dado por 3 24d k k dk . Inserindo o elemento de volume dentro da eq. (13), resulta: 2 3 4 , V N k dk kz Usando 2 dk d c , obtemos: 3 2 2 4 2V N d c 2 3 32 V N d c (14) A eq. (14) representa a quantidade ondas estacionárias presente na janela de freqüência , . Tais ondas estão distribuídas ocupando os 8 quadrantes que constituem uma esfera. Explica-se: quando usamos a expressão 3 24d k k dk , estamos estendendo nosso domínio de interesse sobre uma esfera inteira, que é composta por 8 quadrantes. Agora, é necessário adequar o resultado obtido para a realidade de uma caixa (que representa apenas 1 quadrante da esfera), o que nos leva a dividir por 8 o resultado obtido: 1 8 N 2 3 4 V dN d c ; Finalmente, devemos multiplicar por 2 este resultado, uma vez que cada onda estacionária é constituída por dois modos independentes de vibração (um indo, outro voltando) para cada valor da freqüência. Assim, finalmente obtemos: 2 3 8 V dN d c (15) Este é o número de modos vibracionais com freqüência no intervalo , d dentro da caixa, que corresponde ao dobro do número de ondas estacionárias nas mesmas circunstâncias. Pela teoria de Rayleigh–Jeans, conseguimos determinar o número de modos vibrantes com freqüência situada no intervalo , d . Para saber quanta energia está associada a estes modos, é necessário avaliar a energia média )( carregada por cada um deles, pois desta forma a energia do sistema seria dada pelo produto do número de modos )(dN pela energia média )( , ou seja: dN . Para calcular a energia média, faremos uso da famosa distribuição de probabilidade de Boltzmann, válida para um sistema clássico composto por muitas partículas. Tal distribuição associa a cada estado de energia uma probabilidade dada por: dkk V N 2 3 4 Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 16 ( ) Bk TP e . (16) onde Bk é a constante de Boltzmann. Tal expressão estabelece a probabilidade da partícula estar ocupando o estado de energia . O papel de uma distribuição de probabilidade ou distribuição estatística (na Física) é justamente mostrar como as N partículas do sistema estão distribuídas sobre os vários estados de energia do sistema. Dado que ondas eletromagnéticas eram vistas como entidades de uma teoria clássica (eletromagnetismo e Maxwell), não havia dúvidas acerca da aplicabilidade da distribuição de Boltzmann também elas. Desta forma, a energia média de tais ondas seria dada de acordo com as regras estabelecidas pela teoria geral de uma distribuição de probabilidade contínua, ou seja: 0 0 ( ) ( )P d P d . (17) Temos então: 0 0 0 0 ,B B k T k Te d e d e d e d onde: 1/ Bk T . É possível escrever a expressão anterior na forma: 0 ln d e d d , pois: 0 0 0 1 ln d e d e d d e d . Finalizando: 0 1 0 11 ede , com o que obtemos: 1 1 ln ln d d d d 1 , (18) A eq. (18) representa a energia média para cada modo de vibração do campo eletromagnético, que depende apenas da temperatura, sendo independente da freqüência da onda. Como veremos a seguir, o fato da energia média ser constante e independente da freqüência, leva a uma divergência na energia existente dentro da caixa (energia do corpo negro), uma vez que o número de modos cresce com 2 . Podemos finalmente escrever a densidade de energia presente na caixa: ( ) dN V 2 3 8 ( ) Bk T c (19) Este é mesmo resultado obtido por meio da abordagem focada sobre os osciladores elementares. Esta expressão é a solução do desafio teórico de Kirchhoff que a Física clássica pode proporcionar para o problema do espectro do corpo negro. A energia total dentro da caixa: 0 ( , )TI V T d ; sendo V o volume da caixa. É fácil agora mostrar que a energia presente na caixa é infinita. Para isto, fazemos a integração na freqüência: 2 2 3 3 3 3 0 0 0 8 8 8 3 T B B BI V k Td k T d k T c c c . (20) Vemos assim que a energia carregada pelas ondas eletromagnéticas estacionárias, contidas dentro da caixa, é infinita, uma vez que a freqüência das ondas pode assumir valores ilimitados. Classicamente, não há motivos para supor que a freqüência das ondas admita um corte superior, ou TkB Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 17 seja, tenha um valor máximo, chamado de cut-off. A princípio, ondas de freqüência tão alta quanto se imagine são tão plausíveis quanto ondas de baixa freqüência, o que justifica os extremos de integração adotados. De qualquer forma, o resultado obtido não pode corresponder à realidade, dado que dentro da caixa não pode existir uma quantidade infinita de energia, ou equivalentemente, um corpo negro não pode emitir ou conter uma quantidade infinita de energia. Esta divergência na energia para altas freqüências ficou conhecida como catástrofe do ultravioleta, sendo este o resultado final para a distribuição espectral previsto pela teoria de Rayleigh–Jeans. A figura a seguir exibe um gráfico comparativo entre o espectro previsto por Rayleigh – Jeans e o resultado experimental conhecido. Fig. 4: Comparação entre a curva espectral obtida pelo experimento e aquela fornecida pela teoria de Rayleigh-Jeans, onde se observa a divergência da densidade de energia para altas freqüências (pequenos comprimentos de onda), comportamento denominado de catástrofe do ultravioleta. 5) A TEORIA DE PLANCK E A SOLUÇÃO TEÓRICA PARA O PROBLEMA DA RADIAÇÃO DO CORPO NEGRO (1900) De 1859 a 1926, o problema da radiação do corpo negro manteve-se na fronteira da física teórica. Inicialmente como um problema de termodinâmica, logo depois de eletromagnetismo, da velha teoria quântica, e finalmente de estatística quântica, só desenvolvida nos anos 30. Sob o ponto de vista experimental, a resposta correta foi encontrada por volta de 1900, com os trabalhos de Lummer & Pringshein e Rubens & Kurlbaum. Do lado teórico, a solução, inicialmente enigmática, adveio com os trabalhos de Max Planck, um renomado físico alemão, especialista em termodinâmica clássica. Planck desenvolveu sua solução para o corpo negro usando conceitos de entropia e termodinâmica. No entanto, não mostraremos a formulação (termodinâmica) original de Planck aqui. Mostraremos como a hipótese de Planck é capaz de conduzir à função de Kirchhoff dentro da abordagem de Rayleigh-Jeans. Para maiores detalhes sobre a abordadem original de Planck, consultar Ref. [6]. Voltando ao resultado da seção anterior, é possível atribuir a divergência da curva espectral ao fato do número de modos vibracionais ser proporcional a 2 enquanto a energia média de cada modo é constante. Uma solução para este problema passa por duas possibilidades: (i) manter o resultado para a energia média inalterada, e rever o cálculo do número de modos, tentando obter um comportamento para ( , )T não crescente com a freqüência; (ii) manter o resultado do número de modos inalterado, enquanto se altera o cálculo da energia média de cada onda, pois se um comportamento decrescente para for obtido, pode-se contrabalançar o crescimento em 2 do número de modos, de tal modo a implicar numa densidade de energia bem comportada (não divergente). Como veremos a seguir, a solução de Planck seguiu o caminho (ii). Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 18 No intuito de encontrar uma solução para este problema, Planck considerou um cenário onde figuram como elementos relevantes tanto os osciladores elementares das paredes do corpo negro, quanto as ondas estacionárias de Rayleigh-Jeans. Planck considerou o corpo negro como um sistema radiante onde a radiação eletromagnética está em equilíbrio térmico dinâmico com o conjunto de osciladores carregados que compõem as paredes do sistema, em permanente troca de energia. Classicamente, cada um dos osciladores elementares pode vibrar numa freqüência arbitrária, sendo a sua energia dependente apenas da amplitude e da freqüência da oscilação. A radiação eletromagnética emitida tem a mesma freqüência do dipolo oscilante, mas como cada oscilador pode vibrar numa freqüência diferente e arbitrária, todas as freqüências acabam sendo permitidas. Classicamente, a energia das partículas oscilantes é uma grandeza contínua, ou seja, pode assumir todos os valores possíveis, o mesmo ocorrendo com a energia das ondas eletromagnéticas em equilíbrio térmico com os osciladores. Levando-se a cabo um cálculo da densidade espectral dentro deste contexto, o resultado obtido é o da catástrofe do ultravioleta, já comentado na seção anterior, e representado no gráfico da Fig. 4. Trabalhando dentro deste cenário, e ciente das limitações de uma abordagem totalmente clássica, Planck decide testar uma hipótese inovadora, a hipótese do quantum de ação, que estabelece: - A emissão e absorção de radiação por um oscilador elementar ocorre através da troca de uma quantidade de energia dada por nh , onde 0,1,2,3,...n , h é uma constante fundamental14, e a freqüência da radiação. Esta hipótese estabelece que a energia só pode ser absorvida ou emitida em quantidades que sejam um múltiplo da quantidade fundamental h , conhecido como quantum de energia ou quantum de ação. Em termos práticos, a hipótese de Planck implica que a energia dos osciladores elementares e das ondas eletromagnéticas dentro da caixa seja quantizada, isto é, seja dada como um múltiplo de h . Neste caso, a energia assume um conjunto discreto de valores. Isto é chamado de discretização ou quantização da energia. Como veremos a seguir, esta nova hipótese conduz à obtenção de uma expressão para a energia média ( ) de cada modo vibracional que decresce acentuadamente com a freqüência, de modo a impedir a ocorrência da catástrofe do ultravioleta. A hipótese de Planck é apresentada em forma diferente em diferentes textos, mas com equivalente conteúdo. O livro do Eisberg (ref. [2]), por exemplo, apresenta a hipótese de Planck na forma de um postulado, com o seguinte conteúdo: - A energia total de qualquer entidade física cuja única “coordenada” executa oscilações harmônicas simples, pode assumir apenas valores que satisfaçam a seguinte relação: nh , ,...3,2,1,0n , onde é a freqüência e h uma constante de fundamental 15 . A revolucionária hipótese de Planck só recebeu atenção da comunidade científica porque foi capaz de conduzir, com exatidão, a uma formamatemática para a função de Kirchhoff, que se adequava perfeitamente à forma da curva obtida experimentalmente, superando o problema da catástrofe do ultravioleta de uma maneira completamente original. De fato, quando o cálculo da energia média de cada modo vibracional é refeito à luz da hipótese de Planck, as integrais (definidas sobre variáveis contínuas) são por somatórios (definidos sobre variáveis discretas), o que conduz a uma expressão para decrescente com a freqüência. A solução encontrada por Planck, através do uso do seu postulado, concordou tão bem com os dados experimentais, que logo passou a ser identificado como a solução do desafio de Kirchhoff. Em 14 Mais tarde, quando se percebeu a importância desta nova constante nos sistemas quânticos, a mesma foi batizada merecidamente como constante de Planck, a constante fundamental da Mecânica Quântica. Valor atual de h : 346, 6217 10h Js ou 276, 6217 10h ergs . 15 Esta forma de enunciar a hipótese de Planck reflete um entendimento posterior de Planck, que depois percebeu que poderia também quantizar a energia das ondas estacionárias na caixa. De início, Planck quantizou apenas a energia dos osciladores elementares. Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 19 1903, Pringsheim declarou numa conferência: “a equação de Planck apresenta tão bom acordo com a experiência, que pode ser considerada, pelo menos com grande aproximação, como a expressão matemática da função de Kirchhoff”. Outra informação de cunho histórico refere-se ao objeto inicial, passível de sofrer quantização, de acordo com a primeira versão do postulado de Planck. Em tal versão, era proposta uma quantização para a energia das partículas das paredes do corpo negro, que executavam um movimento tipo oscilador harmônico simples. Com o advento da teoria de Rayleigh – Jeans (1905), que abordou problema do corpo negro sob a perspectiva de ondas estacionárias em equilíbrio térmico com as suas paredes, ficou claro que o postulado de Planck poderia ser estendido para estabelecer a quantização da energia de grandezas físicas cuja coordenada executasse oscilações harmônicas simples, incluindo obviamente, as ondas eletromagnéticas estacionárias. Voltando ao postulado de Planck, vemos que a energia das ondas estacionárias é dada por: nh , ,...3,2,1,0n . Esta expressão indica um conjunto de níveis de energia igualmente separados por uma quantidade ( )hv , que representam os únicos estados de energia acessíveis para cada onda. _______________________ 5 _______________________ 4 _______________________ 3 _______________________ 2 _______________________ _______________________ 0 hv hv hv hv hv Em vista desta nova realidade, não faz mais sentido realizar integrações na energia, uma vez que agora se trata de uma grandeza discreta. A seguir, calculamos a energia média , de cada modo das ondas eletromagnéticas, supondo válida a distribuição de Boltzmann e a hipótese de quantização de Planck. Devemos substituir integrais por somatórios: 0 0 ( ) ( ) p d p d 0 0 0 0 0 0 ( ) ( ) nh B B nh B B e k T k T n n n e k T k T n n n p e nh e p e e , 0 0 0 ln nh nhn nh n nh e d e d e , onde TkB 1 . Para obter este resultado, devemos calcular o somatório, que resulta igual a uma série: 2 3 2 3 0 1 ... 1 ...nx x x x n e e e e y y y , onde: xey . Mas sabemos que 1132 11...1 xeyyyy . Portanto: 0 0 1 1 1 1 nx nh x h n n e e e e . Calculando finalmente , obtemos: Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 20 1 2 1ln(1 ) ln(1 )( 1)(1 ) (1 )h h h h h h d e e e h e e h e d , (1 ) h h h e e (21) Planck obteve desta forma uma energia média exponencialmente decrescente da freqüência, de tal modo a ter 0 no regime de altas freqüências Bh k T , pois: 1 0Bh k T h , pois 0 he . Este é um resultado que consegue se contrapor ao crescimento do número de modos, proporcional a 2 , de tal modo a evitar o grande problema da divergência da densidade de energia, que aparece no tratamento totalmente clássico. Neste novo panorama, vemos que à medida que a freqüência da onda cresce, a energia da onda decresce exponencialmente a zero. Esta é a chave para a solução de Planck para o problema da catástrofe do ultravioleta. DENSIDADE ESPECTRAL DE ENERGIA NA CAVIDADE: A hipótese de Planck não prevê qualquer alteração no cálculo do número de ondas ou modos de vibração por intervalo de freqüência ,v v dv . Desta forma, o resultado já calculado por intermédio da teoria de Rayleigh – Jeans é mantido: 2 3 8 Vv dN dv c . Para se obter a densidade de energia no intervalo ,v v dv , basta multiplicar um pelo outro: 2 3 8 ( , ) ( , ) ( 1)h dN v hv T dv v T V c e (22) A eq. (22) corresponde exatamente à forma matemática da função de Kirchhoff para a distribuição espectral de densidade de energia de um corpo negro, em outras palavras, corresponde à solução do desafio lançado por Kirchhoff em 1859. É fácil observar que este resultado engloba a lei de Wein: 3( , ) ( , )T f T ; onde 1 ( , ) 8 1B h k T f T h e . Não havia dúvidas que a função encontrada por Planck era de fato a expressão matemática para função de Kirchhoff; dado a sua magnífica concordância com os dados experimentais. Restava, entretanto, buscar um entendimento satisfatório para a hipótese de quantização de Planck, uma vez que, para os físicos da época, tal hipótese não passava de um artifício matemático, sem realidade física, que deveria ser justificada por outros meios ou substituída por uma outra hipótese (dotada de realidade física) que conduzisse a mesma expressão encontrada por Planck. Em suma, a comunidade científica aceitou imediatamente o resultado de Planck expresso em termos da função ( , )T , mas se opôs veementemente ao caminho de sua obtenção: a hipótese da quantização da energia. Os resultados obtidos por Planck foram enviados para a Academia Alemã de Física em outubro de 1900 e publicados em 1901 16 . Na parte final do seu trabalho, Planck faz uso da curva teórica encontrada, 16 M. Planck, “On the law of distribution of energy in the normal spectrum”, Annalen der Physik 4, 553 (1901). ( 1)h h e 3 ( , ) 8 ( 1)B h k T v v T h e Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 21 em comparação com os dados das curvas espectrais (obtidas experimentalmente) já conhecidas, para determinar o valor da constante h e da constante de Boltzmann. Em seus cálculos, obtém: 27 16 6, 55 10 . 1, 346 10 /B h erg s K erg K . Interessante observar a proximidade desses resultados com os valores atuais destas constantes:27 16 6, 6237 10 . 1, 3803 10 /B h erg s K erg K . Uma observação interessante refere-se ao fato de Planck ter usado, em sua dedução da função de Kirchhoff, a distribuição de probabilidade de Maxwell-Boltzmann, que é uma distribuição eminentemente clássica. Ocorre que Planck que não tinha outra opção: simplesmente não existia, em 1900, outra distribuição além de Boltzmann. As distribuições de probabilidade para sistemas quantizados compostos por N partículas (distribuição de Bose-Einstein 17 e distribuição de Fermi-Dirac 18 ), distribuições quânticas, só seriam obtidas a partir de 1920, por Einstein, Bose, Fermi e Dirac, físicos que tiveram papel decisivo no desenvolvimento e formulação da Mecânica Quântica. O fato de Planck ter obtido o resultado correto usando uma distribuição de probabilidade clássica para tratar um sistema que na verdade tem natureza quântica não é uma simples coincidência. Ocorre que, em sistemas quânticos de baixa densidade de partículas, a distribuição quântica reproduz o resultado de clássico de Maxwell-Boltzmann. 6) COMENTÁRIOS FINAIS A hipótese de Planck ocupa um lugar de destaque no desenvolvimento da Física do século XX. Poucas hipóteses na história da Física tiveram efeitos tão amplos e revolucionários quanto esta, não apenas pelo seu conteúdo inovador, mas também por ter sido a semente original dos desenvolvimentos teóricos que culminaram na construção da Mecânica Quântica nos idos de 1924-1926. Por ter sido a primeira hipótese de quantização a ser lançada, no início quase ninguém a levou sério como verdade da natureza. O próprio Planck não acreditava no conteúdo físico da sua hipótese. Tal hipótese só começou a ganhar crédito a partir do advento da teoria da Einstein para o efeito fotoelétrico (em 1905), que pressupunha quantização da energia de ondas eletromagnéticas, e conduziu a um valor da constante h com erro de apenas 0,5% em relação ao valor calculado por Planck em 1900. Por volta de 1907, Einstein volta a fazer uso de uma hipótese de quantização para explicar a fenomenologia do calor específico dos sólidos, obtendo grande sucesso. A partir daí, novas hipóteses de quantização foram surgindo para resolver outros problemas fundamentais perante os quais a Física Clássica mostrava-se impotente. Em 1913, Niels Bohr lança os postulados de quantização para o átomo de hidrogênio, conseguindo obter teoricamente as séries espectrais já conhecidas deste átomo. As hipóteses de quantização assumiram de fato um status de verdade da natureza quando, em 1915, Robert Millikan publica os resultados de seus experimentos meticulosos, 17 A distribuição de Bose-Einstein aplica-se a um sistema quântico de N bósons idênticos (partículas de spin inteiro), afirmando que a probabilidade de encontrar um bóson no estado de energia é dada por: / 1( ) ( 1)Bk TP e . Esta distribuição foi formulada inicialmente por Satyendra Nath Bose, um professor da University of Dhaka (Índia), na tentativa de derivar a fórmula da radiação de Planck usando o conceito de fótons (partículas de luz), introduzido por Einstein em 1905. Este resultado foi generalizado por Einstein em 1924, depois que este tomou conhecimento do trabalho de Bose. 18 A distribuição de Fermi-Dirac aplica-se a um sistema quântico de N férmions idênticos (partículas de spin semi- inteiro), afirmando que a probabilidade de encontrar um férmion no estado de energia é dada por: / 1( ) ( 1)B k T P e . Esta estatística foi formulada independentemente por Enrico Fermi e Paul Dirac em 1926. A distribuição de Fermi-Dirac diferencia-se de Bose-Einstein por apenas um sinal, que está atrelado a um significado físico importante: dois férmions não podem ocupar o mesmo estado físico. http://en.wikipedia.org/wiki/Satyendra_Nath_Bose http://en.wikipedia.org/wiki/University_of_Dhaka Prof. Manoel M. Ferreira Jr. (Física Moderna: Radiação de Corpo Negro) 22 confirmando a hipótese de Einstein para o efeito fotoelétrico. A partir de então, passou a ser raro encontrar um físico de gabarito que ainda se opusesse às hipóteses de quantização. Nos primeiros anos do século XX, a teoria da Planck teve pouquíssimos adeptos, um deles, entretanto, desempenhou papel importantíssimo para a sua consolidação. Trata-se de Albert Einstein que, desde que tomou conhecimento do teor do trabalho de Planck, passou a leva-lo em conta em suas elucubrações teóricas. Os resultados obtidos por Planck, através de sua inovadora hipótese da quantização, constituíram, desde o início, uma fonte de perplexidade e inspiração para Einstein, como pode ser atestado pela seguinte passagem de um pronunciamento de Einstein dirigido a Planck, datado de 1929: - “Há 29 anos fui inspirado por sua engenhosa dedução da fórmula da radiação, que aplicou o método estatístico de Boltzmann de forma tão inovadora”. Já em 1913, Einstein escreveu sobre a hipótese de Planck: “tal trabalho revigora e ao mesmo tempo torna tão difícil a existência do físico [...]. seria edificante se se pudesse pesar a massa cinzenta que foi sacrificada pelos físicos no altar da [função de Kirchhoff]; e o fim destes cruéis sacrifícios ainda não está à vista!” 19 . Obs: os sacrifícios que ainda estão por vir, a que Einstein se referia em 1913, diziam respeito às conseqüências da hipótese de quantização proposta por Planck, que levariam ao desenvolvimento da teoria quântica e à obtenção das distribuições estatísticas de Bose-Einstein (válida para bósons) e Fermi–Dirac (válida para férmions), que viriam a constituir a base da descrição dos gases quânticos. Sem dúvida, pode-se afirmar que a hipótese de Planck, a sua influência sobre Einstein, e os trabalhos de Einstein baseados nessa hipótese de quantização, foram fundamentais para o desenvolvimento da teoria quântica, uma vez que todas as hipóteses de quantização posteriores foram fortemente influenciados pelos trabalhos de Planck e Einstein. Ainda sobre a hipótese de Planck, Niels Bohr declarou em 1938: “Raramente uma descoberta na história da ciência chegou a produzir efeitos tão extraordinários no curto espaço de nossa geração quanto os decorrentes da descoberta de Max Planck sobre o quantum de energia. ... Tal idéia tem abalado os fundamentos de nossas idéias não apenas no âmago da ciência clássica mas também na nossa maneira cotidiana de pensar. É devido a esta emancipação do pensamento herdado das tradições (clássicas) que nós devemos o maravilhoso progresso que tem sido feito no entendimento dos fenômenos naturais durante a última geração...” 20 Numa entrevista com Planck , em 1931, físico americano R. W. Wood lhe perguntou como tinha inventado algo tão extraordinário quanto a teoria dos quanta. Planck então respondeu: “Foi um ato de desespero. Durante seis anos fiquei lutando com a teoria dos corpos negros. Era preciso que eu descobrisse uma explicação teórica a qualquer preço que não fosse a violação das leis da termodinâmica” 21 . Neste comentário percebe-se a relutância de Planck em aceitar o conteúdo físico da sua hipótese. Apenas depois que Einstein adotou e ampliou sua hipótese para explicar o efeito fotoelétrico e o calor específico dos sólidos, é que o Planck passou a crer no fenômeno da quantização como sendo uma realidade dos sistemas microscópicos. Ao final de sua vida, Planck teceu o seguinte comentário sobre sua teoria: “Minhas tentativas inúteis de conciliar de alguma forma o quantum elementar com a teoria clássica prosseguiram durante muitos anos e me custaram um grande esforço. Muitos dos meus colegas viram nisto quase uma tragédia, mas meu enfoque era diferente porque o profundo aperfeiçoamento dos meus conceitos, resultante desse trabalho, significou muito para mim. Agora, tenho certeza de que o quantum de ação