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1 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA tutoria 07 Leptospirose “Enchente contaminada” C.L.B., sexo masculino, 30 anos, sem comorbidades, morador do bairro Lagoinha, compareceu à UPA queixando de febre (39,2°C), há 7 dias, calafrios, sudorese e cefaleia holocraniana de moderada intensidade. Passou por consulta na ESF onde recebeu diagnóstico de infecção viral inespecífica, prescrito Dipirona, porém, sem observar melhora do quadro. Informa, ainda o aparecimento, há 2 dias, de mialgia (principalmente em panturrilhas), náusea, vômitos, colúria e poliúria. Referiu, ainda, que entrou em contato com água de chuva, há 18 dias, após enchente em seu bairro. Ao exame: REG, hipocorado +/4, desidratado+++/4, ictérico+/4, acianótico. Sinais vitais: PA: 120x70 mmHg; FC: 88 bpm; FR: 18 irpm; Temperatura axilar: 39,3°c; Sat O2: 95% em ar ambiente. Sistema respiratório e cardiovascular: sem alterações. Abdome: RHA presentes, doloroso difusamente à palpação profunda em hipocôndrio direito e fossa ilíaca direita, descompressão brusca negativa, Murphy negativo, ausência de visceromegalias. Membros inferiores: dor à palpação em panturrilhas. Oroscopia: gengivorragia. Exame ocular: ictérica conjuntival. Diante da suspeita clínica e epidemiologia do caso, o paciente foi internado para investigação e foram solicitados os seguintes exames: Hemograma: Hb: 10,4; Ht: 35,3%; VCM:90.5, HCM:29.7, RDW:13.2%, GL 12.600 com 7% bastões e 65% segmentados. Plaquetas: 45.000. TAP: 65%; TTPA: 62 seg; INR:1.06, VHS:28, CPK:571.1; Sódio:134, Potássio: 2,8; TGO:85, TGP:94.1, Bilirrubina total: 5; BD:3.9, Ureia: 98; Creatinina: 7,5. A partir do resultado dos exames e associado à clínica, o paciente continuou internado e iniciou o tratamento com Penicilina Cristalina 1,5 milhões de UI IV de 6/6h. Além disso, recebeu medidas de suporte clínico, com acompanhamento da função renal e pulmonar. O paciente permaneceu internado até completar sete dias de antibioticoterapia e, após esse tempo, apresentou boa evolução, recebendo alta hospitalar. O médico ressaltou a importância da notificação para a prevenção de um surto ou até mesmo de uma epidemia, sobretudo nas áreas mais periféricas da cidade. Objetivo 01: analisar a leptospirose considerando a etiologia, epidemiologia, fatores de risco, fisiopatologia, quadro clínico, diagnóstico, diagnóstico diferencial, tratamento, profilaxia e programas governamentais. I. Conceito ↳ Uma das zoonoses mais importantes do nosso meio, é uma doença generalizada, febril, causada por espiroquetas patogênicos do gênero Leptospira, podendo acometer o homem e os animais domésticos e selvagens, sendo caracterizada por uma vasculite generalizada; ↳ É uma doença infecciosa febril aguda caracterizada por amplo espectro clínico, podendo apresentar quadros assintomáticos e oligossintomáticos, além de formas graves e fulminantes como a Síndrome de Hemorragia Pulmonar. É também conhecida como Doença de Weil, síndrome de Weil (forma íctero- hemorrágica), febre dos pântanos, febre dos arrozais, febre outonal. II. Etiologia ↳ As leptospiras pertencem à ordem Spirochaetales, família Leptospiraceae e gênero Leptospira, que compreende duas espécies: L. interrogans e L. biflexa. A espécie patogênica para o homem é a L. interrogans, e a de vida saprofítica ou aquática, portanto não patogênica para o homem, é a L. biflexa; ↳ Os principais reservatórios são os roedores das espécies Rattus norvegicus (ratazana ou rato de esgoto), Rattus rattus (rato de telhado ou rato preto) e Mus musculus (camundongo ou 2 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA catita). Outros reservatórios menos comuns são caninos, suínos, bovinos, equinos, ovinos e caprinos; ↳ Não crescem em meios ácidos e, para o isolamento do organismo na urina, torna-se necessário que esta seja alcalinizada. Elas têm curta sobrevivência em água salgada, ao passo que podem resistir a períodos longos em água doce, principalmente quando esta permanece armazenada por algum tempo. No solo úmido, a sobrevivência das leptospiras é longa, mas é curta em solo seco. As leptospiras têm curta sobrevivência no leite não diluído, mesmo quando proveniente de animais doentes. III. Epidemiologia ↳ No Brasil tem distribuição endêmica. Pode ocorrer durante todo o ano, com maior incidência nos períodos chuvosos, principalmente em grandes centros urbanos, devido às enchentes associadas à aglomeração populacional de baixa renda, condições inadequadas de saneamento e alta infestação de roedores infectados; ↳ As epidemias urbanas anuais estão relacionadas às condições precárias de moradia e trabalho. Os surtos, em geral, são decorrentes de desastres naturais de grande magnitude, pós enchentes e inundações. É mais frequente na zona urbana, tendo importância social e econômica significativa. Trabalhadores que fazem a limpeza dos esgotos, garis, agricultores, veterinários, tratadores de animais, pescadores, dentre outros, são mais predispostos à infecção; ↳ Em relação à faixa etária, a doença atinge com maior frequência os adultos jovens dos 10 aos 39 anos, sendo ainda mais frequente entre os 20 e 29 anos; ↳ Em relação ao sexo, não existe diferença de suscetibilidade quando ambos estão expostos de maneira igual às fontes de contágio, porém a doença ocorre predominantemente no sexo masculino, na proporção de 16 casos masculinos para um caso feminino. Fatores hormonais podem contribuir para a menor incidência da doença no sexo feminino. IV. Fatores de risco ↳ São os locais em que se tem contato com a bactéria, mais comum em locais urbanos. De uma maneira geral, as pessoas contaminadas se encontram: • Trabalho em esgotos; • Moradores de rua; • Trabalhadores em minas e túneis; • Pescaria; • Represas. V. Transmissão ↳ A infecção humana vai resulta da exposição direta ou indireta à urina de animais infectados. A penetração do microrganismo ocorre através da pele com presença de lesões, pele íntegra imersa por longos períodos em água contaminada ou através de mucosas. A incubação varia de 1 a 30 dias (média entre 5 e 14 dias); ↳ O principal animal reservatório das leptospiroses é o rato, pois é capaz de permanecer eliminando o microrganismo pela urina por toda sua vida, constituindo-se um portador é universal. Ele é considerado um dos principais responsáveis pela transmissão ao homem, e sua ocorrência no mundo inteiro faz a leptospirose não ter limites geográficos, sendo, portanto, de distribuição universal. Esta mesma condição pode ser observada em outros roedores; ↳ A transmissão ao homem pode ocorrer por contato direto com sangue, tecidos, órgãos ou urina de animais infectados, ou, por via indireta, através do contato com água ou solo contaminados com a urina dos animais portadores. A transmissão acidental em laboratório também pode ocorrer, e a mordedura de ratos pode, ocasionalmente, ser responsável pela transmissão. A via transplacentária pode ocorrer no homem e nos animais; ↳ A leptospira atinge a circulação sanguínea através da pele ou da mucosa íntegra, sendo certa a passagem por abrasões na pele. O homem se contamina ao lidar com os animais infectados ou pelo contato com águas contaminadas, ao andar descalço no solo úmido e lamacento, nadar em 3 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA lagoas ou pequenos rios. A água tem papel importante na transmissão das leptospiroses, já que a maior parte das contaminações ocorre através dela. VI. Fisiopatologia ↳ A via de aquisição da infecção ocorre pela invasão do patógeno através de pequenas lesões na pele, como abrasões ou microcortes. As membranas mucosas conjuntivas, nasofaringe e genital também podem servir de via de entrada. Após penetrarem através das mucosas ou da pele, as leptospiras atingem a corrente sanguíneae, rapidamente, alcançam todos os órgãos e tecidos do organismo, incluindo o liquor e os olhos, porém, com localização especial em determinados órgãos, particularmente fígado, rins, coração e músculo esquelético. O encontro de hialuronidase ou a motilidade do microrganismo têm sido sugeridos como mecanismos para penetração das leptospiras nesses órgãos, normalmente protegidos; ↳ As Leptospiras patogênicas têm como fator de virulência a capacidade de resistir à atividade bactericida do soro normal e, na ausência de anticorpos específicos, não são fagocitadas e destruídas pelos neutrófilos polimorfonucleares ou pelos macrófagos. A resistência à ação do complemento, por meio da neutralização pelo fator H, parece ser o mecanismo primordial da resistência bacteriana aos anticorpos, uma vez que apenas as cepas patogênicas expressam a proteína LfhA (proteína ligadora do fator H). Já as Leptospiras não-patogênicas são rapidamente destruídas, via sistema complemento, e clareadas da circulação pelo sistema retículo-endotelial pela fagocitose; ↳ A afinidade das proteínas de superfície da leptospira para com as membranas celulares sugere uma interação inicial responsável pela aderência celular e invasão do microorganismo no hospedeiro. Dentre eles, destacam-se duas proteínas de superfície (LigA e LigB) relacionadas à aderência e invasão. Ambas são expressas apenas em cepas patogênicas e exclusivamente durante o período da infecção, sendo implicadas na adesão inicial e posterior invasão do hospedeiro; ↳ A disseminação ocorre por via hematogênica e, após 48 horas, pode-se isolar a leptospira em praticamente todos os órgãos, inclusive no líquido cefalorraquiano. A motilidade parece ser fator preponderante para esta rápida disseminação; ↳ Observa-se uma resposta tipo Th1, pró- inflamatória, com níveis elevados de fator alfa de necrose tumoral (TNF-alfa), sendo esses níveis relacionados à severidade do quadro clínico e à letalidade. Outro fato que corrobora para tal observação foi a constatação que o peptidoglicano extraído da parede celular de Leptospira interrogans induz a liberação de TNF-alfa de monócitos humanos e ativa a aderência de neutrófilos a células endoteliais. A indução de TNF- alfa por fatores tóxicos bacterianos desencadeia a resposta inflamatória local e sistêmica, resultando, então, em dano capilar. VII. Patologia fígado ↳ No fígado, ocorre colestase, mais acentuada na região centro-lobular. A microscopia eletrônica revela alterações nos microvilos dos colangíolos, dilatação da cisterna de Golgi e do retículo endoplasmático, ao lado de aumento de lisossomas. Todo o conjunto sugere alterações no aparelho bile-excretor. Existem evidências experimentais de indução de apoptose de hepatócitos durante a infecção. A destrabeculação de hepatócitos é um fenômeno genuíno da doença. ↳ A vesícula biliar está geralmente vazia ou com pouca bile em seu interior, e suas paredes são espessadas por edema; 4 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA ↳ Observa-se também certo grau de hiperplasia e hipertrofia das células de Kupffer e presença de pigmento férrico em seu citoplasma. A contração de células hepáticas individuais correlaciona bem com diminuição do seu conteúdo glicogênico; ↳ De maneira geral, entretanto, as alterações das células hepáticas propriamente ditas são bem menos acentuadas que as vistas na hepatite a vírus e na febre amarela, o que se correlaciona bem com as alterações mais discretas nos níveis séricos das enzimas hepatocitárias. trato digestivo ↳ No trato digestivo, a capilaropatia exterioriza-se pelo aparecimento de sufusões hemorrágicas e edema da mucosa gástrica e/ou do intestino delgado, dando origem com frequência a extensas hemorragias gastrintestinais. rins ↳ Nos rins, as principais alterações são a nefrite intersticial e a necrose tubular aguda, resultantes da migração das Leptospiras pelos rins e deposição de antígenos em glomérulos e túbulos. Verifica-se a presença de uma glomerulonefrite leve e nefrite intersticial representada por acúmulo de mononucleares, particularmente linfócitos e histiócitos, acompanhado de edema, vasodilatação com congestão e tumefação endotelial. A necrose tubular aguda ocorre sobretudo distalmente, caracterizada por túbulos dilatados, revestidos por células epiteliais baixas e de citoplasma basófilo. Na luz, por vezes, observam-se cilindros hialinos; ↳ A insuficiência renal aguda resultante das lesões tubulares cursa em grande parte das vezes com poliúria e hipopotassemia. Esta parece decorrer da secreção ativa de potássio pelos túbulos contornados distais em resposta a sobrecarga de sódio resultante da reabsorção deficiente nos túbulos contornados proximais. pulmões ↳ Nos pulmões, são descritas pneumonite hemorrágica com capilarite septal com presença da síndrome da angústia respiratória. A síndrome da hemorragia pulmonar é hoje a principal causa de morte na doença. Em estudo microscópico, imuno-histoquímico e ultra-estrutural de biópsias pulmonares post-mortem e de plaquetas na leptospirose humana, concluíram que a trombocitopenia verificada em 11 de 12 pacientes estudados não apresenta relação com CIVD e parece ser determinada pela ativação, adesão e agregação de plaquetas ao endotélio vascular estimulado, com a presença de substância amorfa eletrondensa entre as células endoteliais e as plaquetas aderidas; ↳ Os mecanismos patogênicos relacionados à síndrome pulmonar hemorrágica na leptospirose humana avaliando material de necrópsia, evidenciou deposição linear de imunoglobulina (IgM, IgG e IgA) e complemento (C3) na superfície luminal alveolar de pneumócitos I e II e multifocal nos septos alveolares. Associa-se à intensa necrose de pneumócitos I e II, regeneração de pneumócitos II, além de inflamação septal e alveolar. coração ↳ No coração, observa-se miocardite intersticial e arterite coronária, e na musculatura estriada ocorre necrose hialina e infiltração hemorrágica. Outros órgãos ou tecidos também são afetados como as leptomeninges. VIII. Manifestações clínicas ↳ As manifestações clínicas das leptospiroses são variáveis de acordo com a região geográfica e com o sorotipo predominante. Varia desde formas assintomáticas e subclínicas até quadros clínicos graves, com alta letaliade. É uma doença bifásica sendo dividida em duas fases: fase precoce (fase leptospirêmica/ aguda) e fase tardia (fase imune); ↳ Cerca de 90 - 95% dos casos de leptospirose provavelmente apresentam-se apenas com uma síndrome febril, semelhante à influenza ou à dengue clássica. Esta é a chamada forma anictérica 5 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA da doença. Em 5-10% dos casos, o paciente evolui para uma forma grave – a forma ícterohemorrágica (a famosa síndrome de Weil), manifestando-se com icterícia, insuficiência renal aguda e hemorragia. Praticamente todos os óbitos relacionados à leptospirose são descritos nesta forma; ↳ O período de incubação é variável, em geral de 3 a 13 dias com extremos de 1 a 24 dias. A leptospirose segue geralmente uma evolução bifásica, sendo o primeiro período o de leptospirosemia, com duração de quatro a sete dias. Segue-se um período de defervescência em lise, que dura de um a dois dias, seguido de período de recrudescência da febre e dos sintomas, que pode durar de 4 a 30 dias correspondendo ao chamado segundo período ou fase imune da leptospirose. Este modelo bifásico da doença, frequentemente observado na forma anictérica, pode, com frequência, não ocorrer na forma ictérica; forma anictérica ↳ O hemograma costuma demonstrar leucocitose com desvio à esquerda, tal como outras infecções bacterianas clássicas; ↳ A leucometria encontra-se na faixa entre 3.000- 26.000/mm3. A plaquetopenia é um achado frequente na leptospirose(provavelmente por “consumo” de plaquetas em consequência à ativação endotelial), ocorrendo em até 50% dos casos, geralmente com valores entre 50.000- 100.000/mm3; ↳ O hematócrito pode estar elevado (hemoconcentração), normal ou levemente reduzido; ↳ O VHS geralmente está elevado. As enzimas musculares, como a CPK, estão elevadas em 50% dos casos. 1ª fase - fase de leptospirosemia ↳ Essa fase corresponde a cerca de 85% das formas clínicas. Resultante da disseminação da leptospira pelo organismo, caracteriza-se pelo início súbito de febre (38-40oC), acompanhada de cefaleia, mialgia, anorexia, náuseas e vômitos, diarreia, artralgia, hiperemia ou hemorragia conjuntival, fotofobia, dor ocular e tosse. Podem ocorrer exantema, hepatomegalia, esplenomegalia e linfadenopatia (em menos de 20% dos casos); ↳ Em geral, é autolimitada, com duração entre 3 e 7 dias e evolução benigna. É difícil diferenciar essa fase de outras causas de doenças febris agudas; ↳ Os sintomas respiratórios em geral se manifestam por tosse seca ou produtiva, com ou sem escarros hemoptoicos, podendo ocorrer hemoptise franca, dor torácica, desconforto respiratório com cianose, atrito pleural e ausculta pulmonar compatível com consolidação. O estudo radiológico demonstra lesões compatíveis com pneumonite intersticial hemorrágica, com infiltrados localizados ou difusos. Derrames pleurais pequenos são raramente encontrados, assim como adenopatia hilar. Essa forma grave pode cursar com insuficiência respiratória aguda e levar ao óbito por hemoptise maciça; ↳ As lesões cutâneas são variadas, podendo ocorrer exantemas maculares, meculopapulares, eritematosos, urticariformes, petequiais ou hemorrágicos. Eritema pré-tibial é comumente associado ao sorotipo autumnalis, agente etiológico da chamada “febre de Fort-Bragg”. As lesões cutâneas urticariformes podem ocorrer transitoriamente após a resolução dos sintomas; ↳ Sintomas menos frequentes associados à leptospirose anictérica podem ocorrer, como faringite, adenopatia cervical e, em outras localizações, parodite, orquite, epididimite, prostatite, edema e outros ainda mais raros. 6 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA 2ª fase - fase tardia ou fase imune ↳ O término da primeira fase é assinalado pela redução da febre em lise (uma queda gradual, sem sudorese profusa). A fase imune começa com o recrudescimento da febre, porém de menor intensidade. Neste momento, determinadas complicações reativas podem ocorrer, como meningite asséptica e uveíte. Estas complicações são decorrentes de fenômenos de hipersensibilidade; ↳ É nesta fase que os anticorpos específicos começam a ser detectados no soro; ↳ A principal manifestação clínica na fase imune das formas anictéricas é a meningite, caracterizada por cefaleia intensa, vômitos e sinais de irritação meníngea Cerca de 80 a 92% dos casos apresentam alterações liquóricas, porém somente em 50% são observadas alterações clínicas. As manifestações clínicas, semelhantes àquelas que ocorrem nas meningites virais, aparecem geralmente na segunda semana da doença e costumam desaparecer em uma a três semanas, havendo raros casos em que essas alterações persistem por 60 a 80 dias. Diversas outras manifestações neurológicas foram relatadas, como encefalite, paralisias focais, espasticidade, nistagmo, convulsões, distúrbios visuais de origem central, neurite periférica, paralisia de nervos cranianos, radiculite, síndrome de Guillain-Barré e mielite. Hemorragia cerebral ou meníngea pode ocorrer; ↳ Outra ocorrência clínica importante na fase imune diz respeito ao acometimento ocular, caracterizado por uveíte, que pode surgir da terceira semana até um ano após o desaparecimento dos sintomas, variando, em média, de quatro a oito meses. Caracteriza-se clinicamente por irite, iridociclite e, ocasionalmente, coriorretinite, podendo ser uni ou bilateral, autolimitada, com ou sem episódios recorrentes ou, ainda como processo crônico, podendo, muito raramente, levar à cegueira; ↳ Nesta fase, a leptospira dificilmente é encontrada no sangue periférico, porém a leptospirúria é frequente, durando de seis semanas até três meses. forma ictérica ou Síndrome de Weil ↳ Disfunção hepática demonstrada pela presença de icterícia combinada ou não com insuficiência renal aguda, presença de fenômenos hemorrágicos, alterações cardíacas, hemodinâmicas, pulmonares e da consciência. A taxa de letalidade nesses casos pode variar entre 10 e 15% na síndrome de Weil e mais de 50% na síndrome hemorrágica pulmonar. ↳ Normalmente o paciente inicia a doença com um quadro idêntico ao da fase leptospirêmica da leptospirose anictérica, evoluindo de maneira fulminante para uma síndrome multissistêmica. Após 4-9 dias as complicações que definem a síndrome de Weil começam a aparecer. O comportamento bifásico da febre não é mais a regra, essa febre simplesmente persiste, podendo diminuir ou até piorar. Nesta forma de leptospirose, é comum a hepatomegalia, e a esplenomegalia pode ser detectada em 20% dos casos. icterícia ↳ A icterícia, que constitui a característica principal nessa forma clínica, ocorre de três a sete dias após o início da doença. Tem um início abrupto e apresenta coloração amarelo-avermelhada, dando ao paciente o aspecto da chamada icterícia rubínica. Entretanto, essa característica nem sempre está presente. A icterícia é intensa e, frequentemente, os níveis de bilirrubinas atingem cifras superiores a 15 mg/dL no soro, podendo atingir níveis de 60 mg/dL ou mais, com predomínio das bilirrubinas diretas. A urina é escura, porém as fezes acólicas não são geralmente observadas, mesmo quando a icterícia é muito intensa. A hepatomegalia ocorreu em 70% dos casos por nós observados, porém outros autores citam cifras de 25% ou menos. Muito embora a disfunção hepática não constitua importante causa de morte, ela é associada a maior percentual de mortalidade, e o óbito em pacientes sem icterícia é menos frequente. A insuficiência renal, fenômenos hemorrágicos e complicações cardiovasculares são mais comuns em pacientes com icterícia. 7 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA isuficiência renal aguda (I R A) ↳ A insuficiência renal aguda pode ocorrer em até 40% dos pacientes, caracterizada principalmente por ser não oligúrica e hipocalêmica. Com a vasculite sistêmica, ocorre perda contínua de volume intravascular e o paciente pode evoluir para necrose tubular aguda e não responder à reposição volêmica, necessitando de início precoce de diálise; ↳ É comum, apresentando-se com elevação das escórias nitrogenadas, geralmente não superiores a 100 mg/dl de ureia e 2-8 mg/dl de creatinina. Contudo, em casos mais graves as escórias alcançam valores acima de 300 mg/dl para ureia e 18 mg/dl para creatinina, cursando com síndrome urêmica franca e necessidade iminente de diálise. A IRA da leptospirose pode ser oligúrica, oligoanúrica ou não oligúrica (e até poliúrica). Pelo aumento das frações excretórias de sódio e potássio, os pacientes são frequentemente normotensos ou hipotensos e normo ou hipocalêmicos. O encontro de IRA oligúrica com potássio sérico normal é típico de leptospirose. O rim do paciente apresenta nefrite intersticial, com edema importante, disfunção e necrose tubular multifocal. A isquemia renal, agravada pela hipovolemia, é um fator importante na gênese da disfunção renal. hemorragia pulmonar ↳ A hemorragia pulmonar é uma complicação importante na fase tardia, decorrente de lesão pulmonar aguda e sangramento pulmonar maciço, caracterizada por tosse seca, dispneia, expectoração hemoptoica e, ocasionalmente, dor torácica e cianose. A hemoptise franca indica extrema gravidade e pode ocorrer de forma súbita, levando à insuficiência respiratória (síndrome da hemorragia pulmonaraguda e síndrome da angústia respiratória aguda – SARA) e a óbito, em poucas horas Obs.: A radiografia demonstra infiltrado nodular ou alveolar heterogêneo predominando nas bases. Os alvéolos estão cheios de sangue e líquido. ↳ O comprometimento pulmonar caracteriza-se clinicamente pelas mesmas alterações referidas na forma anictérica. Na síndrome de Weil, devemos salientar a maior intensidade da pneumonite intersticial hemorrágica, observada ao exame radiológico pelo infiltrado pulmonar difuso ou localizado miocardite ↳ A miocardite da leptospirose costuma se apresentar apenas com alterações eletrocardiográficas, como mudanças da repolarização ventricular e arritmias cardíacas (as mais comuns são as extrassístoles e a fibrilação atrial). Uma minoria de pacientes pode evoluir com insuficiência cardíaca e choque cardiogênico, quase sempre com êxito letal. outras complicações ↳ Outras complicações da forma grave são arritmias, pancreatite, distúrbios neurológicos como confusão, delírio, alucinações e meningite asséptica. Mais raramente, pode-se observar encefalite, paralisias focais, espasticidade, nistagmo, convulsões, distúrbios visuais de origem 8 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA central, neurite periférica, paralisia de nervos cranianos, radiculite. A convalescença dura de 1 a 2 meses, podendo persistir sintomas como febre, cefaleia, mialgias e mal-estar geral por alguns dias. A icterícia desaparece lentamente, podendo durar por semanas. Os níveis de anticorpos diminuem progressivamente. IX. Diagnóstico ↳ O diagnóstico deverá se basear nos elementos positivos de ordem epidemiológica e clínica. Entre estes estão o contato com animais, em especial o rato, ou com águas contaminadas, sobretudo após os períodos de enchentes ou por necessidade profissional, além do relato de sintomas como febre, cefaleia intensa, mialgia (especialmente nos músculos da panturrilha) e icterícia, acompanhados ou não de oligúria. Considera-se como caso confirmado de leptospirose aquele que preencher qualquer um dos seguintes critérios: 1. Paciente no qual se tenha isolado a leptospira de qualquer espécime clínico; 2. Paciente com sintomas clínicos sugestivos associados a uma conversão sorológica com aumento de quatro vezes ou mais no título obtido pela reação de soroaglutinação microscópica, entre a fase aguda e a de convalescença; 3. Detecção de imunoglobulina M (IgM) específica pela reação de enzimaimunoensaio (ELISA). exame físico • Exame físico geral • Sinais vitais: PA, FC, FR e temperatura; • Observar o estado de hidratação; • Observar sangramentos; • Avaliar diurese; • Avaliar o nível de consciência; • Investigar a presença de icterícia. OBS: DEPENDENDO DA GRAVIDADE DO CASO, OS SINAIS VITAIS DEVERÃO SER MONITORADOS A CADA 3 HORAS. SENDO ASSIM, É FUNDAMENTAL QUE O MÉDICO FICAR ATENTO AOS SINAIS DE ALARME QUE PODEM SER PERCEBIDOS DURANTE A ANAMNESE E EXAME FÍSICO. A PRESENÇA DE UM OU MAIS SINAIS CLÍNICOS DE ALERTA LISTADOS A SEGUIR INDICAM A POSSIBILIDADE DE GRAVIDADE DO QUADRO CLÍNICO E SUGEREM A NECESSIDADE DE INTERNAÇÃO HOSPITALAR. exames laboratoriais ↳ A confirmação diagnóstica da leptospirose pode ser feita pela visualização direta da L. interrogans em exame de campo escuro, pelo isolamento em meio de cultura apropriado ou pela detecção de seu material genético através da técnica de PCR (métodos de detecção direta) ou então por exames sorológicos (métodos de detecção indireta), sempre em conjunto com o quadro clínico. Seja como for, considera-se como caso confirmado de leptospirose aquele que preencher qualquer um dos seguintes critérios: Presença de sinais e sintomas clínicos compatíveis, associados a um ou mais dos seguintes resultados de exames laboratoriais a seguir: • Teste ELISA-IgM reagente (ou reação de macroaglutinação reagente, se disponível); • Soroconversão na reação de microaglutinação, entendida como uma primeira amostra (fase aguda) não reagente e uma segunda amostra (14-21 9 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA dias após, máximo até 60 dias) com título maior ou igual a 1:200; • Aumento de quatro vezes ou mais nos títulos de microaglutinação entre duas amostras sanguíneas coletadas com um intervalo de 14 a 21 dias (máximo de 60 dias); • Quando não houver disponibilidade de duas ou mais amostras, um título maior ou igual a 1:800 na microaglutinação confirma o diagnóstico; • Isolamento da Leptospira (em sangue, liquor, urina ou tecidos) ou detecção de DNA de leptospira patogênica por PCR; • Imuno-histoquímica positiva para leptospirose nos tecidos lesados, em pacientes suspeitos que evoluíram para óbito. exames sorológicos microaglutinação ↳ O padrão-ouro é o teste da microaglutinação, com sensibilidade em torno de 75% (na terceira semana) e especificidade superior a 97%. Este teste é realizado apenas em centros de referência, como a Fiocruz, por depender de pessoal treinado e material mais sofisticado. As fontes de antígenos são leptospiras vivas dos principais sorogrupos e sorotipos. Para visualizar a reação de aglutinação, é necessário um microscópio de campo escuro. O resultado é dado em título. Um título ≥ 1:100 é apenas sugestivo; quando ≥ 1:800 é virtualmente diagnóstico. Idealmente a confirmação deve ser feita com pareamento sorológico, pelo aumento ≥ 4x do título em quatro semanas. eliisa ↳ O teste mais amplamente disponível – e por isso o mais utilizado na confirmação diagnóstica – é o ELISA-IgM. Os estudos mostraram sensibilidade em torno de 93% (na terceira semana) e especificidade superior a 94%, permitindo a detecção dos anticorpos a partir da primeira semana de doença, até um ou dois meses após. macroaglutinação ↳ O teste de macroaglutinação é um exame barato e fácil de fazer, sendo realizado em diversos laboratórios. Baseia-se na reação de aglutinação macroscópica em placa após adição do soro do paciente a uma suspensão de L. interrogans inativados (mortos) pelo formol. Apesar de uma adequada sensibilidade na fase imune da doença, a sua especificidade é baixa. exames inespecíficos ↳ Como exames inespecíficos temos hemograma (anemia, plaquetopenia, leucocitose com desvio à esquerda), ureia e creatinina (elevados), bilirrubina total (elevada com predomínio da fração direta), potássio (normal ou dimunuído), CPK (elevada – lesão muscular grave), AST, ALT (normais ou com aumento de três a cinco vezes o valor da referência), Gama-GT e fosfatase alcalina (normais ou elevadas), radiografia de tórax (infiltrado alveolar ou lobar, bilateral ou unilateral, congestão e SARA), ECG (fibrilação atrial, bloqueio atrioventricular e alteração da repolarização ventricular) e gasometria arterial (acidose metabólica, hipoxemia). diagnóstico diferencial ↳ Na forma anictérica, a leptospirose pode ser confundida com diversas doenças infecciosas, dentre as quais gripe, febre tifoide, sepse por gram-negativos, malária, período virêmico da febre amarela, toxoplasmose com comprometimento muscular, além de outras infecções inespecíficas. O diagnóstico diferencial deverá basear-se principalmente nos dados epidemiológicos e clínicos. O auxílio laboratorial é importante no direcionamento do diagnóstico, até que exames confirmativos da etiologia da infecção cheguem ao médico. O diagnóstico clínico, nesta forma clínica, é difícil, exceto em épocas de epidemias, quando a hipótese de leptospirose é formulada com maior frequência. ↳ Na forma ictérica, ou síndrome de Weil, o diagnóstico diferencial é geralmente feito com as 10 DOENÇAS INFECCIOSAS E PARASITÁRIAS SAMANTHA LEÃO F. LIMA formas ictéricas de febre tifoide, sepse por gram- negativos, malária por Plasmodium falciparum, febre amarela no período toxêmico, hepatitesviróticas graves, como na forma fulminante, além de colecistites, colangites, síndrome hemorrágica pelo vírus Hantaan, e outras doenças em que febre, icterícia, fenômenos hemorrágicos e insuficiência renal podem ser encontrados. Os dados epidemiológicos e o auxílio laboratorial, por meio de exames que avaliem o comprometimento de cada órgão, são fundamentais. X. Tratamento antibioticoterapia ↳ O esquema antimicrobiano a ser iniciado dependerá das manifestações clínicas da doença. Para pacientes com doença leve (forma anictérica) os esquemas recomendados são: Amoxicilina 500 mg VO 8/8h por 5-7 dias; ou Doxiciclina 100 mg VO 12/12h por 5-7 dias. OBS.: A DOXICICLINA É CONTRAINDICADA EM GESTANTES, MENORES DE NOVE ANOS E PACIENTES COM INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA OU INSUFICIÊNCIA HEPÁTICA. Já os pacientes que desenvolvem a forma grave devem ser tratados com: Penicilina cristalina 1,5 milhões de UI IV de 6/6h; ou Ceftriaxone 1-2 g IV a cada 24 horas; se houver alergia aos betalactâmicos, utilizar azitromicina 500 mg IV a cada 24h. Todos os esquemas que usam drogas venosas devem ser administrados por no mínimo sete dias. ↳ OBS: TRATAMENTO DA FORMA GRAVE= PARA A SÍNDROME DE WEIL (FORMA GRAVE), AS MEDIDAS DE SUPORTE SÃO FUNDAMENTAIS, INCLUINDO A HIDRATAÇÃO VENOSA PARA REPOSIÇÃO DA VOLEMIA, A REPOSIÇÃO DE POTÁSSIO QUANDO NECESSÁRIA E O ACOMPANHAMENTO DA FUNÇÃO RENAL E PULMONAR. NA PRÁTICA, PACIENTES QUE EVOLUEM COM IRA OLIGÚRICA RECEBEM TERAPIA DE SUBSTITUIÇÃO RENAL PRECOCE, QUE PODE SER A HEMODIÁLISE OU A DIÁLISE PERITONEAL. DE UM MODO GERAL, A NECESSIDADE DE DIÁLISE É BREVE, COM A MAIORIA DOS SOBREVIVENTES RECUPERANDO A FUNÇÃO RENAL APÓS SEMANAS A MESES. PACIENTES QUE EVOLUEM COM HEMORRAGIA ALVEOLAR E INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA AGUDA DEVEM SER INTUBADOS E COLOCADOS EM PRÓTESE VENTILATÓRIA, ADOTANDO-SE A MESMA ESTRATÉGIA DE VENTILAÇÃO “PROTETORA” (BAIXO VOLUME CORRENTE) UTILIZADA NA SDRA. XI. Profilaxia ↳ Programas de controle de ratos para impedir a presença e a multiplicação desses animais em moradias, depósitos, armazéns, terrenos baldios etc; • Campanhas educacionais no intuito de alertar os grupos ocupacionais de risco sobre o modo de contágio. Recomenda-se o uso de roupas especiais, botas à prova d’água, luvas, lavagem e desinfecção de ferimentos, evitar certas atividades recreativas, tais como natação em lagos e pequenos rios ou represas; • Medidas de saneamento básico, como purificação da água e destino adequado dos esgotos; • Adoção de medidas concretas que evitem enchentes durante os períodos das chuvas (ex.: construção de galerias pluviais); • Vacinação de animais domésticos (especialmente cães) contra a leptospirose. Esta medida reduz, mas não impede que o cão vacinado desenvolva uma forma subclínica de leptospirose que elimine a leptospira em sua urina. referências • Veronesi- Tratado de infectologia, 5ª ed- 2015; • GOLDMAN L., AUSIELLO D. Cecil: Medicina. 23ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier. 2018; • Brasil. Ministério da Saúde. Leptospirose: diagnóstico e manejo clínico. Brasília, 2014; • Brasil. Ministério da Saúde. Guia de vigilância em saúde. Volume único. Brasília, 2016.
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