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'lavio Coelho Edler
I • ' K
»oticas & Pharmacias
A HISTÓRIA ILUSTRADA DA FARMÁCIA NO BRASIL
^S A D A l É a P A L A V R A
lavio Coelho Edler
óticas & Pharmacias
Flavio Coelho Edler
Boticas & Pharmacias
U M A H I S T Ó R I A I L U S T R A D A DA F A R M Á C I A N O B R A S I L
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Ó de ca sa
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Copyright © 2006 desta edição Casa da Palavra 
Copyright © 2006 do texto Flavio Coelho Edler 
Copyrights individuais de fotografias assegurados 
em conformidade com a Lei 9.610, dc 19.02.1988.
E proibida a reprodução total ou parcial 
sem a expressa anuência da editora.
C a sa da Pa la v r a
Rua Joaquim Silva, 98, 4'- andar. Rio de Janeiro RJ 
20241-110
21.2222*3167 21.2224-7461 
www.casadapaiavra.com.br
Cl P-BRASI L. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE 
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
E25,b
Edler. Flavio Coelho, 1960-
Boticas e pharmácias : uma história ilustrada da 
farmácia no Brasil / Flavio Coelho Edler - Rio de 
Janeiro : Casa da Palavra, 2006 
i6 o p .: il.
Inclui bibliografia 
ISBN 8 $-7734 -0 0 4 -X
1. Farmácia - Brasil História Obras ilustradas.
2. Farmacêuticos Brasil - História. 3. Industria 
farmacêutica Brasil História. 4. Medicamentos 
Brasil História. I. Título.
06-1292. CDD 613.0981
CDU 615.1(09)
13.04.06 18.04.06 014169
m
Profarma
II I Dli\o N mo A<111VRA
http://www.casadapaiavra.com.br
Este livro é dedicado ao médico que, antes de tornar-se 
psiquiatra e pai do autor, fora, por curto período, 
representante de um laboratório farmacêutico inglês.
Nessa ocasião, em meados da década de 1950, ele formulou 
um remédio - descongestionante nasal - 0 qual, 
comercializado pelo mesmo laboratório, ganhou largo público 
país afora. Alas a maior façanha do doutor Nikodem Edler 
foi a de manter-se fiel aos seus ideais democráticos 
e igualitários, l i assim tem sido, como médico e cidadão, 
apesar de todos os pesares.
Sumário
8 Apresentação
PARTE 1 .)
B O T IC A S E B O T IC Á R IO S N O B R A S IL C O L O N IA L 
14 A sociedade luso-brasileira, suas doenças e condições sanitárias 
24 A mata é a botica dos índios
30 As ordens religiosas: a assistência médica como caridade
34 Sob o império de Galeno: as doenças e seus tratamentos 
na tradição médica européia
42 As farmacopéias portuguesas e os tratados de naturalistas, 
médicos e cirurgiões do Brasil colonial
48 O cozinheiro do médico e sua botica
F A R M Á C IA S E F A R M A C Ê U T IC O S N O O IT O C E N T O S 
56 Panorama da medicina e da farmácia no século xix 
62 A formação médica e farmacêutica 
66 Boticários ou farmacêuticos?
68 Velhas boticas: comércio e segredos 
72 Da fase heróica ao ceticismo terapêutico
76 Farmacopéias, medicamentos, remédios e plantas medicinais brasileiras 
80 Remédios da moda e distinção social
82 Associações farmacêuticas na cidade imperial do Rio de Janeiro 
86 Da matéria médica à farmacologia
D E S E N V O L V IM E N T O S D A F A R M Á C IA C O N T E M P O R Â N E A 
94 O crepúsculo da farmácia oficinal e da arte de formular 
too Os sucessos da nova terapêutica
Origens e evolução dos medicamentos industrializados no Brasil 
110 A formação do farmacêutico na República 
114 Farmácias e práticas farmacêuticas 
120 Órgãos de classe e sociedades farmacêuticas 
] 2 1 Novas respostas aos antigos desafios: tendências atuais
122 Referências bibliográficas 
12 ~ Referências iconográficos 
12 s Englis/i Version
• ' \
P A R T E
Boticas e boticários 
no Brasil Colonial
» A sociedade luso-brasileira, 
suas doenças e a 
legislação sanitária
>) Medicamentos e terapêutica 
entre índios e escravos
• • M j
» As ordens religiosas e a
assistência médica na Colônia
)) Tratados médicos e
farmacopéias portuguesas
>) O boticário: suas origens e seu 
ofício; sua relação com os 
demais terapeutas; as diferentes 
formas de inserção social e 
sua atuação política antes da 
vinda da corte portuguesa
>) A medicina jesuítica e a 
triaga brasílica
)) As doenças e seus tratamentos 
na tradição medica européia 
e em Portugal
1.)
A sociedade luso-brasileira
S U A S d o e n ç a s e c o n d i ç õ e s s a n i t á r i a s
i RIBEIRO, Lourival. Medicina , 
no Brasil colonial. Rio de Janeiro: < 
Ed. Sul-americana, 1971, p.187.'
Quando os portugueses aqui chegaram, em 1500, encontraram uma 
população indígena pouco heterogênea cm termos culturais e lingüísticos. 
Tupis-guaranis, tapuias, goitacazes, aimorés e outras etnias se dispersavam 
pelo litoral e pelo interior. Não eram muitas as doenças de que sofriam os 
indígenas no início da colonização do Brasil. O historiador Lourival Ribeiro1 
cita as “ febres” , as disenterias, as dermatoses, os pleürises e o bócio endêmico 
como as moléstias prevalentcs.
Passado o período de exploração da costa, cuja principal atividade 
econômica era a extração do pau-brasil, a coroa portuguesa inicia, com a 
expedição de Martim Afonso de Souza (1530-33), o processo de colonização 
e ocupação territorial. Esse período é marcado pela 
exaltação da natureza brasílica. Parecia que a doença 
raramente afligia os habitantes da América. O certo é que, 
ao findar o período colonial, os poucos índios que viviam 
sob o domínio português eram pertencentes ao último 
escalão da sociedade. A escravização e a matança, iniciadas 
com a captura ou desocupação de terras, contribuíram 
menos que as doenças importadas para o que os 
historiadores chamam de catástrofe demográfica da 
população indígena. Os índios foram vítimas de doenças,' 
como sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose, 
febre tifoide, malária, disenteria, gripe, trazidas pelos
ViiX
colonizadores europeus, para as quais não tinham defesa i.b !
\--"------------------------------- --- ------ --- "--- _ ,---------.-- f -
imunológica. Junto com os escravos africanos, aportou 
também um novo tipo de malária em solo americano.
As condições de saúde da população negra 
eram igualmente deploráveis. Embora houvesse uma 
multiplicidade de situações e atividades exercidas pelo 
escravo africano, bem como formas de tratamento 
recebidas por parte dos senhores, os cronistas do período 
colonial sublinham que os negros que prestavam servjço 
na terra trabalhavam quase sem descanso, sempre 
mantidos com muito açoite e, em geral, mal alimentados.
O regime de trabalho nas minas era totalmente diverso 
do observado nos engenhos de açúcar. A atividade
a c im a : Na cena de Rugendas, escravos 
trabalham em uma mina de ouro. 
Assim como os indígenas, os negros 
trazidos da África viviam em 
péssimas condições de saúde. Mal 
alimentados, eram mantidos 
com muito açoite.
pÁciNA-AO l a d o : Capa do livro 
de Guilherme Piso e George Marcgraf, 
“História natural e médica da índia 
Ocidental” expressa uma natureza 
idealizada onde se valoriza a 
diversidade da flora e fauna da 
América tropical.
) R l a N a t v r a i . i s
A S I L I AE J
*ic'io t-( Beneficio
• Al a VIA I T I I CO.U .\ 'l SS.
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at'u,,î morl„
Ic°Hlbl,s il,,.
^ l S T E X o j j
J Aid. E lzev
l 6 B O T I C A S & P H A R M A C I A S
Doenças dos escravos nas minas
(...) os pretos, porque uns habitam dentro da 
água, como são os mineiros que mineram nas 
partes baixas da terra e veios dela, outros, feito 
toupeiras, meneirando por debaixo da terra (...); 
lá trabalham, lá comem e lá dormem muitas 
vezes, e como estes, quando trabalham andam 
banhados em suor, com os pés sempre em terra 
fria, pedras ou água, e, quando descansam ou 
comem, se lhes constipam os poros e se resfriam 
de tal modo que dai se lhes originam várias 
enfermidades perigosas, como são pleurises 
apertadíssimos, estupores, paralisias, 
convulsões, peripneumonias e outras muitas 
doenças, para as quais os melhores remédios 
que se lhes deve dar são sudoríficos, diaforéticos 
e vulnerários, para que abram os poros e se 
promova a circulação do sangue e mais líquidos 
com os remédios que em seu lugar se apontarão 
(...)
FERREIRA, Luís Gomes (org. Júnia 
Ferreira Furtado). Erário mineral. Belo 
Horizonte: Fundação joâo Pinheiro; Rio de n\0 
Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002
mineradora exigia uma mão-de-obra mais especializada, permitindo aos cativos 
uma relativa liberdade de ação e mais oportunidades que em outras regiões 
da América portuguesa. No auge da produção aurífera, em meados do século 
xvni, a população escrava correspondia a três quartos dos habitantes das 
Minas, e os riscos para a saúde dos escravos foram aumentando com a 
gradativa complexidade do trabalho, na busca do ouro que escasseava.
No Erário mineral, Luís Gomes Ferreira registrou as “ crises reumáticas” ,
“ as febres com catarros” , as “ chagas nas pernas” que acometiam os escravos 
faiscadores obrigados a permanecer com metade do corpo submerso nos leitos 
pedregosos de rios gélidos durante horas, mergulhando, tirando cascalho e 
lavando. Hstima-se que p tempo médio de vida nessas condições fosse de sete 
anos. Nos principais centros urbanos, como Olinda, Recife, Salvador e Rio de 
janeiro, os negros exerciam atividades variadas, desde os serviços domésticos 
até o artesanato, passando pelo comércio ambulante e o carregamento de 
fardos c mercadorias. A ancilostomíase, conhecida como opilação, as doenças 
de carência, como o escorbuto, a tuberculose e o maculo, não chegavam a 
distinguir a população de escravos negros do restante da população de 
mulatos, brancos pobres, cafuzos que viviam na base da pirâmide social.
Quanto às condições de saúde da população branca, é 
impossível uma generalização, tal era a variedade de situações de vida nesse 
período. Ser nobre ou plebeu, viver nos grandes centros urbanos ou refugiado 
em engenhos e fazendas; ser homem de negócios, médico, advogado, 
pertencer ao clero regular, morar em conventos ou aldeias no sertão, 
instalar-se em zona de mineração, conduzir tropas de gado, tudo isso afetava 
o ritmo de vida, o regime alimentar e o padrão de salubridade, a despeito 
da posição social. Está claro que barnabés, mascates, artesãos, oficiais 
mecânicos, carreiros, feitores, capangas, soldados de baixa patente, mendigos
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L I ?
e pobres sitiantes não viviam em condições muito melhores do que 
algumas categorias de escravos e se distanciavam muito da elite branca, 
de fidalgos, clérigos e comerciantes.
Durante os três primeiros séculos da colonização brasileira, a 
sociedade branca recorreu indiferentemente às formas de cura trazidas da 
Europa ou àquelas a que diversas etnias, com as quais se manteve em 
constante contato, utilizavam para lutar contra os males que as acometiam. 
Mesmo os portugueses opulentos, muito embora se tratassem com seus 
médicos, cirurgiões e barbeiros vindos de Portugal, não hesitavam, quando 
precisavam curar suas feridas, em se servir do óleo de copaíba utilizado pelos 
indígenas para esse fim. Depois, com a vinda dos escravos africanos, aderiram 
igualmente a certas curas relacionadas com a magia, como nos revelaram os 
documentos das visitas inquisitoriais do Santo Oficio.
Os próprios franceses conheceram e fizeram uso de plantas 
medicinais indígenas, no período das invasões francesas comandadas por 
Villegaignon (1510 -71). Um naturalista francês, Jean de Léry (1534-1611), 
que esteve no Brasil entre 1555 e 1556, descreveu o tratamento e a gravidade do 
piã (doença semelhante à sífilis): “ O iurare tem a casca espessa de meio dedo e 
é muito agradável ao paladar, principalmente quando colhido fresco; os dois 
botânicos que vieram conosco afirmavam ser uma espécie de guaiaco. Os índios 
o empregam contra o piã, doença tão grave entre eles como entre nós a bexiga” .
Nas correspondências avulsas encetadas entre metrópole e colônia 
enfatizava-se com freqüência a falta de médicos, remédios 
e hospitais. Mas, ao contrário da avaliação apressada 
realizada por alguns historiadores que afirmavam ser a 
falta de médicos o fator responsável pelo grande número 
de curandeiros e charlatães, é preciso que se pergunte: 
quais setores da população se ressentiam da escassez 
desses profissionais? Ora, o florescimento das demais 
artes de cura esteve intrinsecamente ligado às diferentes 
raízes culturais das populações aqui residentes. Além 
disso, os missionários jesuítas - principais suportes da 
educação colonial que tomaram para si o papel de 
curadores - aproveitaram muito da medicina indígena, 
tornando as plantas medicinais brasileiras famosas em 
todo o mundo. Pelas mãos dos jesuitas, a triaga brasílica, 
uma panacéia composta de elementos da flora nativa, que 
chegou a ser a segunda fonte de renda da ordem jesuítica 
na Bahia, ganhou fama internacional. Aos jesuítas deve-se 
imputar a iniciativa pioneira de intercâmbio entre esses 
universos da medicina, já que eles também absorviam o 
saber dos físicos, cirurgiões e boticários, aplicando-os nos 
precários hospitais da Santa Casa da Misericórdia. I
Bons conselhos do Erário mineral
Os medicamentos que se aplicarem às 
enfermidades das minas sejam sempre de 
qualidades quentes em sua natureza, ou que 
inclinem a quentes, porque as doenças do tal 
clima pela maior parte procedem de causas 
frias, e, por esta razão, os que são de sua 
natureza quentes obram excelentemente, como 
a aguardente do Reino, a água do chá, a água 
de capeba, de que hei de fa lar muitas vezes e 
queira Deus inclinar os ânimos a darem crédito 
ao que se disser (de que resultarão grandes 
proveitos), que tudo será com ajuda do mesmo 
Senhor, verdade lisa e sem dúvida: e outros 
muitos remedios. Os medicamento que se 
aplicarem aos olhos sempre hão de ser frios, isto 
é, sem se aquentarem, e pelo contrário, os que 
se aplicarem aos ouvidos sempre hão de ser 
mornos: isto. digo para os principiantes e tudo 0 
mais para o comum. (Op. cit.)
p á g in a a o l a d o , À e s q u e r d a : O s 
escravos africanos que trabalhavam nas 
minas de ouro sofriam comumente 
com "crises reumáticas’’, “febres com 
catarros” e “chagas nas pernas". 
Estima-se que o tempo médio de vida 
do negro que trabalhava na atividade 
aurífera era de sete anos.
PÁGINA AO LADO, À DIREITA:
Chegada de portugueses na Baia de 
Cuanabara: na costa brasileira, eles 
encontraram vários grupos indígenas. 
Organizados em tribos, formavam uma 
população heterogénea em termos 
lingüísticos e culturais
a c im a : Hans Staden realiza uma 
sangria em índio adoecido. Europeus 
que chegavam ao Brasil conheceram c 
fizeram uso das diversas práticas 
medicinais de indígenas nativos.
1 8 B O T I C A S & P H A R M A C I A S
.*y
V
Saber erudito e saber popular na medicina colonial
Mas que relações mantinham físicos, cirurgiões e boticários portugueses com 
os demais agentes de cura? Embora geralmentcpreconceituosos com relação fy
a outros elementos pagãos e “ selvagens” da cultura indígena, os colonizadores 
se interessaram em recolher informações sobre o procedimento de indígenas e 
seus pajés para combater as doenças que grassavam no lugar. Observavam, 
imitavam, experimentavam, descreviam as propriedades terapêuticas das 
novas espécies c seus usos, e divulgavam-nas na metrópole, ampliando os 
saberes sobre a matéria médica. Mais tarde, tal saber retornava à Colônia em 
compêndios de farmacopéia, orientando a atividade de boticários 
profissionais, religiosos ou leigos.
Tal roteiro não foi tão linear, entretanto, como pode parecer.
Bernardino Antônio Gomes (1768-1823), médico português e estudioso de 
nossa flora, em fins do século xvm observou o pouco uso feito pelos médicos 
portugueses das plantas medicinais do país, entendendo que isso ocorria 
porque, tendo aprendido medicina das universidades européias, eles curavam 
tudo “ à européia” , desprezando a medicina indígena.
De todas as práticas terapêuticas, o uso das ervas medicinais 
brasileiras era a de mais legitimidade popular. Mezinheiros (vendedores de 
medicinas, ou mezinhas), curandeiros africanos e pajés utilizavam folhas, 
frutos, sementes, raizes, essências, bálsamos e resinas, partes lenhosas e 
brancas que esmagavam entre as pedras, pulverizavam, carbonizavam, 
dissolviam, maceravam. Cozinhavam, para ingerir, aspirar, friccionar ou 
aplicar em cataplasma numa série de extensas doenças. Não se pode esquecer 
que o emprego dessas plantas tinha um sentido mágico ou místico.
Determinados minerais, bem como partes do corpo de animais, eram usados 
como medicamentos ou amuletos. Se a antropofagia ritual era encarada com 
horror pelos europeus, a utilização da saliva, da urina e das fezes, humanas ou 
animais, era compartilhada como recurso terapêutico, embora com significado 
distinto para as duas culturas. Enquanto a sucção ou sopro dos espíritos 
malignos, a fumigação pelo tabaco, os banhos, fricções com cinzas e ervas 
aromáticas e o jejum ritualístico eram desprezados como elementos bárbaros, 
a teoria das assinaturas, que supunha existir, radicado em cada região, o 
antídoto das doenças do lugar, autorizava a assimilação da farmacopéia 
empírica popular. Se em ampla variedade de aspectos o saber erudito e o 
popular eram indissociáveis na experiência dos distintos estratos sociais, os 
representantes da arte oficial lutavam ferrenhamente contra os que praticavam 
as curas na informalidade. Reivindicando para si o controle do corpo doente, 
a medicina oficial esvaziava o sentido dos conhecimentos terapêuticos 
populares e reinterpretava-os à luz do saber erudito. A fluidez entre os 
domínios da medicina e aquele da feitiçaria, com o emprego de cadáveres 
humanos e de animais associados ao universo demoníaco - como o sapo,
WH f
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\ \ u / y ;
m b ? •a c i m a : O m é d ic o p o r t u g u ê s PÁGINA AO LADO, NO ALTO! O COntatO
1 / / — ' B e r n a r d in o A n t ô n io G o m e s fo i p r ó x im o c o m o s ín d io s f iz e ra m d o s
g r a n d e e s t u d io s o d a f lo ra m e d ic in a l j e s u ít a s p r o f u n d o s c o n h e c e d o r e s d e
b ra s i le ira e c r ít ic o d a m e d ic in a d i v e r s o s m é t o d o s c u ra t iv o s ,
“à e u r o p é ia " . c o n s c ie n t e s d o v a lo r t e ra p ê u t ic o 
a t r ib u íd o à s e r v a s in d íg e n a s .
B O T I C A S li B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L I 9
o cão negro, o morcego c o bode - na produção de remédios, impunha aos 
portadores de diploma a tarefa de distinguir o procedimento “ científico” das 
crenças populares “ supersticiosas” . Nessa tarefa encontravam o apoio da 
Igreja e das Ordenações do Reino. No imaginário popular, os santos, vistos 
mais como especialistas que como clínicos gerais, seriam responsáveis por 
um grande número de curas.
Fazendo restrições no que dizia respeito à intervenção dos santos e 
das palavras sagradas, a não ser quando praticados ou recomendados pelo 
clero, a Igreja e os médicos reforçavam a idéia de que Deus distribuíra com 
parcimônia o acesso ao domínio do sagrado, vetando-o aos indivíduos rústicos. 
Em processo semelhante ao que ocorreu com as confrarias, que iriam amolecer 
a rigidez da fé oficial da Igreja, quebrando a unidade da religião luso-brasileira 
e tornando-a mais humana e consoladora, para os distintos grupos sociais os 
curandeiros leigos seriam, até certo ponto, bem tolerados à margem da lei.
Durante todo o período colonial, os moradores de cidades e vilas 
solicitavam aos governantes a presença de médicos. Cartas eram escritas ao rei 
manifestando a preocupação constante com a saúde dos súditos, pela “ grande 
falta que têm de médico e botica para haverem de ser curados em suas 
enfermidades” . Mas o que imperava era a dificuldade de achar médicos 
dispostos a vir para a Colônia. A ausência de uma clientela com recursos que 
justificassem a saída da metrópole condicionava a permanência no Brasil à 
obtenção de alguma função ligada sobretudo à tropa ou à Câmara. As poucas 
vantagens profissionais que lhes eram oferecidas restringiram-se com a 
dificuldade em mostrar eficiência longe dos remédios europeus. A carência 
desses remédios, muitas vezes deteriorados, o desconhecimento da flora local 
c a concorrência com outras formas de cura, administradas por pajés, jesuitas, 
fazendeiros e curandeiros africanos, eram outros óbices.
À d ir e it a , a c im a : Ritual Tupinambá do À d ir e it a , a q a ix o Aiclcpias curassairca, 
sopro de espíritos malignos. Práticas vulgo Paina de Sapo. 
indígenas desprezadas pelos europeus 
como elementos bárbaros.
Regulamentação sanitária
N o tocante à legislação sanitária, é preciso registrar que desde 1430 o rei de 
Portugal exigia que todos os que praticavam medicina fossem examinados e 
aprovados pelo seu médico, também denominado físico. Em 1448, o 
regimento do cirurgião-mor, sancionado em lei do reino, explicitava dentre 
os encargos da função a regulamentação do exercício da medicina e cirurgia 
por meio de licença, legalização e inspeção de farmácias.
As Ordenações Filipinas, de 1595 (“ Ordenações do reino de Portugal 
recopiladas por mandado d’el rei d. Filipe, o Primeiro”), que tratavam de todos 
os assuntos de interesse da Coroa, ditavam também regras sobre padrões para os 
pesos e medidas. Podemos ver que, por essa legislação, o boticário era tido como 
um comerciante submetido às mesmas normas que o peixeiro, o carniceiro, o 
ourives e os fabricantes de velas, entre outros. O boticário - assim como diversos 
outros comerciantes - teria de, ao menos uma vez ao ano, no mês de janeiro, 
“ afilar” seus pesos e medidas, ou seja, verificar se eles se mantinham dentro do 
padrão estipulado. O responsável pelo controle e pela aplicação de penas a quem 
deixasse de afilar ou de seguir o padrão era o almotacé-mor, ajudado por 
oficiais. Os pesos e medidas do padrão, em Portugal, que tivessem mais de meia 
arroba ficavam nas Casas da Câmara, de onde não poderiam sair. Os padrões 
eram definidos e distribuídos entre os diversos ofícios, como podemos ver a 
partir de um extrato das Ordenações Filipinas:
42. Os ourives terão uma pilha de quatro marcos, convém, a saber, dois 
marcos na pilha, e dois outros nos pesos miúdos. (...)
46. Os que fizerem candeia de sebo terão dois arráteis, e um arrátel, e 
meio arrátel. (...)
49. Os Boticários terão dois arráteis, e meio arrátel, duas quartas de 
arrátel e 16 onças pelo miúdo, que são arrátel e oito oitavas pelo miúdo, 
que são tuna onça para passarem as mezinhas.
I
a c im a : Sem sistema de esgoto 
canalizado, no período colonial, vida com arte, obra "muito curiosa, 
necessária e proveitosa”, Manoel da 
Silva Leitão apresenta os princípios
p á g in a a o l a d o : Em Arte com vida ou
os escravos, conhecidos como tigres,
carregavam as fezes em barris 
até praias, rios ou lagos, onde 
eram lançadas.
higiênicos que deviam ser obedecidospara garantir uma vida saudável.
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I I . C O L O N I A L
ARTE COM VIDA,
VIDA COM ARTE,
M UY C U R IO S A , N E C E SS A R 1A , E P R O V E IT O S A 
naó íb a Medico», c Cirtirgiocn», ma» ainda a ioda a pdíbadc 
qualquer clbtlo , ou corultçiô , que feja , pnncipalmcnte ao» 
cafado», c mau que a todo*, 30» noivos de pouco tempo, 
cm a qual (c encontra hum
K E G l M E N T O DE P A R I D AS ,
O F F E R E C I D O '
A* IM M A C U L A D A , E SE M PR E V IR G EM
MADRE DE DEOS,
• C O M P O S T O
P O R S E U E S C R A V O 
O DOUTOR MESTRE EM ARTES
M A N O E L DA S Y L V A
L E 1 T A Õ .
C A l’A U . £ IRO PROFESSO DA ORDEM DF. CJJRISTO,
Familiar do Santo Ofício, Medico veda Corte, e Cidades de Lisboa, 
e do H0fpit.1l Real de Todos os Santos das mcjtuat Cidades, 
e delia natural.
L I S B O A O C C I D E N T A L.
Na QíSc-ra * A N T O N I O 1’ K D R O Z O G A L K A Ó .
Em 1521, já aparece a divisão das atribuições entre as duas maiores 
autoridades da saúde: o físico-mor e o cirurgião-mor. A Fisicatura era um 
tribunal. O físico-mor, um juiz. Desde então, já aparece a figura dos juízes 
comissários no reino e seus domínios. No momento em que se estabelece a 
administração portuguesa no Império luso-brasileiro, ainda no século xyt, 
tem-se notícia da designação de licenciados para o cargo de físico (médico) na 
çidade de Salvador. Onde não houvesse um físico examinador, delegado do 
físico-mor, os praticantes da arte de curar deviam requerer carta ao físico- 
mor, com atestado das câmaras locais que comprovassem sua experiência e 
saber. Se aprovados em exame, recebiam licença para exercer a medicina 
apenas na localidade em que praticavam, e por determinado tempo. Cartas de 
lei, alvarás e regimentos respondiam a situações particulares, como infrações à 
legislação sanitária e aos abusos contra os interesses dos súditos.
Foi em 1640, logo após a restauração de Portugal, que o fisco lançou 
suas vistas sobre as boticas. Fquiparou-as às casas de comércio. O Senado da 
Câmara, estrutura de poder municipal, recebia o imposto. Até a criação da Junta 
do Protomedicato, cm 1782, cabia ao físico-mor fiscalizar, com o auxílio dc 
boticários aprovados, as boticas, a qualidade c os preços dos medicamentos. A 
lei estabelecia que a separação entre físicos, cirurgiões c boticários era completa, 
cada qual com atribuições restritas ao seu domínio. Como veremos adiante, a 
definição de limites ao exercício de cada atividade obedecia ao estabelecimento 
gradual de uma hierarquia de importância entre elas. Já um alvará do século xvi 
- vedava aos físicos e boticários sociedade comercial nas boticas. I
A atuação dos comissários do físico-mor se dava de duas maneiras: 
pelas visitas e pelos exames. Competia-lhes fazer visitas a cada três anos às 
boticas da terra e às lojas de drogas, e inspecionar, também, as boticas dos
2 I
Boticário
O que tem botica, vende drogas medicinais e 
faz mezinhas. Os boticários são cozinheiros 
dos médicos; cozem e temperam quando 
nas receitas lhes ordenam. Nicolau Longio 
tem grande volume contra os boticários, que 
não conhecem perfeitamente as qualidades 
dos simples, vendem uma droga por outra, 
um medicamento velho e sem virtude por 
um fresco e que novamente veio do Levante. 
Por isso proibiu o Imperador Nero todos os 
medicamentos que vinham de remotos 
climas. Que necessário seria a visita nas 
boticas. O agárico se é macho, é mortífero; 
a coloquintina, se está madura é perigosa; 
o maná que passa de um ano não presta; 
a canafistula velha não tem substância; a 
casca do ruibarbo carcomida não purga.
O boticário quando faz mezinhas que o 
médico ordena se houvera de chamar 
propriamente medicamentarius.
BLUTEAU. Raphael. "Vocabulário português 
e latino", ed. 1712 apud MARQUES, Vera 
Regina. Natureza em boiões. Medicinas e 
boticários no Brasil setecentista. Campinas:
Ed. Unicamp, 1999, p .i55.
2 2 B O T I C A S & P H A R M A C I A S
navios que chegassem ao porto. Sua tarefa era averiguar, acompanhado de 
três boticários formados, as cartas de licença e os medicamentos, isto é, seu 
preço, o estoque de simples e compostos necessários para que se tivesse botica 
aberta, o bom estado deles, a preparação, incluindo a aferição dos 
instrumentos que deviam estar concordes com as prescrições de pesos e 
medidas ordenadas pela Câmara. Na verdade, o comissário, seus auxiliares 
boticários, o escrivão e o meirinho que os acompanhavam em suas diligências 
constituíam um tribunal itinerante cujos emolumentos e propinas regulares 
eram acrescidos das multas aos infratores. Os oficiais de botica deviam 
apresentar uma certidão que comprovasse a prática de quatro anos junto a 
mestre aprovado e um parecer deste sobre sua competência.
O regimento de 1744, elaborado pelo fisico-mor, a ser observado 
por seus representantes no Brasil, indica a crescente importância que Portugal 
emprestava aos estados da América. Todo o dispositivo legislativo, que 
procurava fazer a Fisicatura próxima c presente por intermédio de um pesado 
aparato burocrático, c as constantes queixas sobre o arbítrio dos comissários, 
revela que a preocupação central da coroa era com o fisco. A administração da 
justiça na área médica esmerava-se, então, tanto cm fiscalizar os fiscalizadores 
quanto em punir os infratores.
Dessa maneira, o regimento fixa os-emolumentos que deviam ser 
percebidos pelas diferentes autoridades em cada exame e em cada visita regular. 
Como exemplo, o pagamento do exame, parágrafo 20:
Terá o mesmo comissário do Físico-mor, (sic) de cada exame que fizer de 
boticário mil e seiscentos réis, ainda que o examinado não saia com 
aprovação, porque deve depositar antes do ato do exame, não só estes 
emolumentos, mas também os do Fisico-mor do Reino, e dos seus oficiais, 
que importam em nove mil cento e vinte réis, a saber, quatro mil e oitocentos 
réis para 0 Fisico-mor, quatrocentos e oitenta réis para cada um dos cinco 
examinadores da cone, quatrocentos e oitenta réis para o escrivão do juízo, 
e cargo do dito Físico-mor do Reino, quatrocentos e oitenta réis para 0 
meirinho do juízo, e quatrocentos e oitenta para 0 escrivão da vara do 
mesmo meirinho, e quatrocentos e oitenta de esmola para os santos Cosme e 
Damião, por ser este o estilo praticado sempre em semelhantes exames.
Entretanto, a não-observância do regimento da Fisicatura parece ter 
sido a norma nos tempos coloniais, tal como se infere pelo estabelecido na 
ordem régia de 3 de março de 1717 ao dr. João Nunes de Miranda, que servia, 
por comissão, de fisico-mor na Bahia:
Porquanto tenho notícias que geralmente costumam nessa cidade da 
Bahia curarem cirurgiões de medicina dando purgas e outros remédios de 
que só podem aplicar os médicos formados na Universidade de Coimbra
Ns 1
t
B O T I C A S H B O T I C Á R I O S NO B R A S I I . C O L O N I A L ? - 3
ou aprovados pelo Fisico-inor do Reino, o que è eni notório dano do 
comum e ter experiência mostrado suceder mil infortúnios e desgraças 
pela imprudência dos cirurgiões (...)•2
Não só lojas de barbeiro e boticas vendiam remédios no Brasil.
Os estabelecimentos dos ourives, padeiros e outras casas também 
comerciaram remédios específicos. Os próprios médicos, apesar de o alvará 
real proibir que preparassem e vendessem drogas, manipularam e venderam 
suas próprias receitas. Se os cirurgiões curavam de medicina e os médicos 
aviavam suas receitas, os boticários receitavam por conta própria.
Não se limitava ao controle das atividades mercantis a sanha 
legislativa da metrópole. Bem antes do período pombalino (1750-77) e do 
reinado de dona Maria 1 (1777-1808), quando o ministro da Marinha e 
Ultramar d. Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812) projetou uma política 
voltada á valorização dos produtos naturais da América portuguesa e às 
pesquisas em história natural, já era patente o interesse da Coroa pelas plantas 
que tivessem utilidade médica. O incentivo às obras que descrevessem o 
quadro dasdoenças e, em especial, a flora e a fauna de valor medicinal estava 
já expresso no édito de Filipe n, de 1570, no período da União Ibérica. Nesse 
documento, o rei nomeava emissários para se informar sobre a experiência 
dos nativos sobre o uso, a faculdade e a quantidade de medicamentos,
reconhecendo o quanto de beneficio será para este e aqueles reinos a 
noticia, comunicação e comércio de alguma planta (sic), ervas, sementes e 
outras cousas medicinais que possam conduzir à cura e saúde dos corpos 
humanos, temos resolvido enviar, algumas vezes, um ou muitos 
protomédicos gerais às provindas das índias c adjacentes.3
p á g in a a o l a d o : A imagem de 
Spix & Martius mostra negra com 
bócio, doença comum no período 
colonial, causada por carência de iodo.
a c im a : Segundo a tradição. Cosme 
e Damião. os santos padroeiros dos 
médicos e dos farmacêuticos, formam 
um exemplo da devoção cristã 
ao cuidado dos doentes.
M ACHADO, Roberto et alli. Danação 
da norma: medicina social e constituição da 
psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: 
Graal, 1978, p. 29.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. 
Gomes Ferreira e os simplices da terra: 
experiências dos cirurgiões no Brasil-Colónia. 
In: Erário mineral (org. Júnia Ferreira 
Furtado), Belo Horizonte: Fundação João 
Pinheiro; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo 
Cruz, 2002, pp. 1 12-3.
2 .)
A mata é a botica dos índios
4 VASCONCELOS, Simão de. 
Crônica da Companhia de Jesus, 
Petrópolis: Vozes, 1977, ( ia ed. 
1663), apttd Frédéric Mauro, 
Nova história da expansão 
portuguesa. O Império Luso- 
Brasileiro
(1620-1750). Lisboa: Ed. 
Estampa, 1991, P- 271.
Apesar de não termos documentos escritos pelos próprios índios, apenas os 
registros deixados pelos brancos, muitas vezes preconceituosos, o fato é que 
portugueses, holandeses e franceses salientaram os conhecimentos indígenas 
sobre as ervas medicinais, aos quais freqücntemente recorreram. Anotava o 
jesuíta Simão de Vasconcelos, no século xvii, que “ em suas curas ri-se esta 
gente de medicamentos compostos; só nos simples dos campos têm sua 
confiança; e estes lhes ensinou a natureza, e o uso, como a arte dos melhores 
médicos” .4 Naquelas sociedades sem escrita, com um nível rudimentar de 
divisão do trabalho c hierarquização social, o enfermo e o indivíduo 
responsável pela sua cura compartilhavam os mesmos pressupostos e crenças 
sobre a estrutura do corpo e suas funções na saúde ou na doença.
Em seus esforços para sobreviver em um ambiente natural 
potencialmente hostil, aquelas sociedades de caçadores-coletores 
representavam seu mundo como dividido cm um domínio físico e outro 
espiritual, e adotavam certo número de técnicas para fazer face aos problemas 
relativos ao sofrimento humano. Essa medicina reunia aspectos mágicos 
e receitas empíricas, tal como o uso de amuletos, encantamento, mudanças 
dietéticas e preparados botânicos nem sempre inócuos. Mudanças no 
comportamento, como repouso e reclusão, eram complementadas com 
rezas, rituais c confissões.
Doenças comuns eram tratadas de um modo puramente 
naturalístico. Doenças raras e de maior gravidade eram percebidas como 
grave ameaça à coesão social. Por isso, requeriam maiores e mais espetaculares 
esforços, envolvendo a manipulação de um domínio compreendido como 
sobrenatural, voltado à identificação da entidade ou espirito maligno que
O tratamento nativo
"A respeito das plantas oficinais, uma 
existe de nome petun, que apresenta a 
forma da azedeira, um pouco mais alta e 
de folhas parecidas com as da consolida. 
Erva de virtudes, os selvagens a colhem em 
pequenas porções, e a secam em casa. 
Depois tomam quatro ou cinco folhas 
que enrolam em forma de cartucho de 
especiaria; chegam fogo à ponta mais fina e 
pela outra sugam uma fumaça que, apesar
de solta de novo pelas ventas e opérculo 
dos lábios, os sustenta, de forma a lhes 
permitir passar sem alimentos três e quatro 
dias, coisa muito útil na guerra. Também o 
usam para fazer destilar os humores 
supérfluos do cérebro, e por isso não os 
vereis nunca sem o competentè cartucho 
de petun no pescoço." LÉRY, jean de.
História de uma viagem à terra do Brasil.
Rio de (ançiro: Companhia Editora Nacional, 
1926. pp.139-40.
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L
penetrara no corpo e devia ser expulso. Um reino geralmente invisível de 
forças e poderes era concebido para explicar certas enfermidades e aflições. 
Essas práticas ancestrais de cura eram sempre sagradas e holísticas, reunindo 
tratamentos que envolviam os indivíduos afetados c o grupo tribal ou 
parental ao qual pertenciam.
Quando uma doença era causada por divindades sobrenaturais, os 
pajés, líderes religiosos, desempenhavam papéis importantes no diagnóstico e 
tratamento de uma pessoa tida como sofrendo de um mal. Ao conhecimento 
das plantas somava-se, na medicina indígena, o uso da sangria, das fricções e 
massagens e o usó de substâncias quentes, secas ou úmidas. Embora 
empregassem remédios animais e minerais, os índios utilizavam amplamente 
asTplantas frescas. Como assinalou Von Martius, “ a mata é a sua farmácia” .5
VON MAR TIUS, Karl 
Eriedr. Naluresa, doenças, 
medicina e remédios dos índios 
brasileiros. Rio de Janeiro: 
Companhia Editora Nacional, 
1939 (1840), pp. 234-5.
dermatose. Entre ind
uramente naturalistico 
is consideradas mais 
am a manipulação de 1 
? ordem sobrenatural.
2 6 B O T I C A S & P H A R M A C I A S
6 HOLANDA, Sérgio Buarque 
de. Caminhos e /romeiras, São 
Paulo: Companhia das Leiras, 
I995> PP- 74-89-
Com os seus saberes sobre a natureza, os índios indiearam aos 
colonizadores as novas plantas que poderiam servir para alimento e remédio. 
Como afirmou Sérgio Buarque dc Holanda, o conhecimento de quase todos 
esses produtos foi apropriado pelos bandeirantes paulistas.6 Jesuítas e 
bandeirantes foram, assim, os primeiros grupos que aprenderam o valor 
terapêutico de ervas indígenas. Com o avanço da colonização, médicos, 
mezinheiros, jesuítas, barbeiros sahgradores, cirurgiões e boticários
incorporaram dos ameríndios o uso da “ botica da 
natureza” : Dava-se a fruta do cajá aos doentes com febre. 
O sumo do caju era usado nas febres e fazia bem ao _ 
estômago. Da imbaúba, o óleo era cicatrizante e as folhas 
agiam como purgante, tal como a noz do andá. Com o 
mesmo fim, porém mais popular, era empregado o óleo 
de copaíba. A parreira-brava e o malvisco eram 
antipeçonhentos. No caso de chagas ou doenças de pele, 
a língua de vaca e o camará eram indicados. A casca e 
b suco da maçaranduba, as folhas do camará e os “ olhos” 
da salsaparrilha, eram usados para as boubas, mas 
tinham bons resultados para os corrimentos, diarréias 
c doenças venéreas. O ananás dissolvia as pedras, o 
Ingá teria virtude para o ligado, o maracujá, por ser fruta 
fria, era boa para as febres. A erva santa ou tabaco 
servia para os doentes de cabeça, estômago e asmáticos.
O sumo matava os vermes tal como a erva de santa maria ou mastruço.
A fruta do jenipapo e a ipecacuanha ou poaia eram excelentes mezinhas 
para deter as câmaras (diarréias).
Esses remédios só lentamcnte foram se incorporando às boticas. 
Eram inicialmente remédios de pobres ou mesmo de desbravadores como os 
bandeirantes paulistas e os mineradores, no contexto do ciclo do ouro na 
região das Gerais, que aprendiam com os carijós a localizar ervas e improvisar 
mezinhas. Como relatou, em 1735, o cirurgião Luís Gomes Ferreira, autor do 
famoso Erário mineral,
7 Apud DIAS, Maria Odila 
da Silva Dias. “ Sertões do 
Rio das Velhas e das Gerais: 
vida social numa frente de 
povoamento - 1710-1733” . 
In: FERREIRA, Luis Gomes, 
Erário mineral (Org. Júnia 
Ferreira Furtado). Belo 
Horizonte: Fundação João 
Pinheiro; Rio de Janeiro: 
Fundação Oswaldo Cruz, 
2002. p. 53.
os homens bons preocupavam-se em conservar os matos próximos dos 
arraiais, onde muitos eram “vistos e experimentados cm raizes, ervas, 
plantas, árvores e frutos, por andarem pelos sertões anos e anos, não se 
curandode suas enfermidades, (sic) senão com as tais coisas e por terem 
muita comunicação com os carijós, de quem têm se alcançado coisas boas”.7
O naturalista Von Martius (1794-1868), que esteve no Brasil no 
período joanino e interessou-se vivamente pela medicina c terapêutica 
indígenas, comentou o efeito dc certas ervas frescas que um pajé empregou 
numa “ úlcera maligna” no pé de um escravo negro de sua comitiva, “ que se
a c im a : Na imagem de Chambcrlaín 
nota-se o método do emplastro 
aplicado à perna no negro que anda 
apoiado por um cajal. Trata-se de 
imagem rara que mostra um escravo 
machucado com curativo.
PÁCINA a o l a d o : A imagem de Hans 
Staden descreve a preparação e o uso 
do cauim. bebida feita a partir da 
fermentação de alimentos, de caráter 
entorpecente. Poucos métodos de cura 
dos indígenas foram incorporados 
às boticas da cidade.
B O T I C A S B B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 1 *7
achava inválido há meses, e havia resistido a muitos medicamentos” . 
Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), em sua Viagem filosófica, recolhia 
e descrevia tudo o que achasse interessante sobre a natureza do Brasil; 
desenhou e nomeou diversas plantas, e freiVeloso (1742—1811), com o 
mesmo propósito, escrevia:
Animais que curam
Nestas Minas há uns macacos a que chamam 
de barbados, outros lhe chamam bugios, e são 
uns que têm papo e são pretos pelo corpo, e 
pelo fio do lombo têm 0 seu cabelo a modo de 
ruivo e são conhecidos pelo nome de barbados, 
e pelo papo, de muita gente: destes, estando 
ainda vivos, se lhes tira aquela noz redonda a 
modo de bolazinha, que encaixa no quadril na 
cova onde joga a perna e há de ser 0 da perna 
esquerda: esta bolazinha, chamada por 
algumas pessoas "conta de macaco", (sic) se 
aperfeiçoa efura para trazer atada no braço 
esquerdo, de modo que toque na carne: è 
bastante para se acabarem as queixas de quem 
for perseguido de almorreimas; a mim me 
certificou um parente meu. amante da verdade, 
que só de trazer na algibeira uma conta das 
ditas acima que lhe deram por ele dizer que 
padecia suas queixas do tal achaque e a não 
atara no braço por não ter queixa naquela 
ocasião, mas que, correndo os tempos, nunca 
mais sentira moléstia alguma: c indo em 
uma ocasião à dita algibeira, dera nela com a 
tal conta efe a ra na certeza de que estava livre 
das graves moléstias (...)
Erário mineral.
FERREIRA. Lufs Comes (org. Júnia 
Ferreira Furtado). Erário mineral. Belo 
Horizonte: Fundação João Pinheiro: Rio de 
Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002
Não há vegetal algum que não mereça ocupar a atenção de um 
verdadeiro sábio; nenhum há, por mais desprezível que pareça, de que se 
não possa esperar alguma utilidade. Eles são estimáveis por suas virtudes 
medicinais e requerem um particular estudo de todos os que se destinem 
ao curativo dos enfermos; eles fazem que não haja terreno algum que se 
possa verdadeiramente chamar estéril, ou incapaz de se aproveitar; 
fornecem uma grande parte dos nossos alimentos, servem-nos em infinitos 
usos econômicos e merecem por conseguinte de ser estudados 
relativamente à agricultura e comércio.
Bernardino Antônio Gomes (1768-1823), notável médico 
português, residente na Bahia, aprovou o emprego de emplastros de mastruço ■ y Q N m a r t IUS, Karl 
no tratamento de hérnias.8 Friedr. Phil., op.cit. p. 234.
B O T I C A S & P H A R M A C I A S2 8
Calundus e curandeiros africanos
o o O
Apesar de todo o controle e submissão cultural impostos pelas leis c 
exercidos pelas autoridades civis e eclesiásticas contra suas crenças e ritos, 
era talvez na área das curas que as tradições das diversas etnias negras se 
mantinham com maior intensidade, sobretudo quando se tratava de curar 
outros negros. Entre os brancos das camadas populares, gozavam os 
curandeiros negros de grande prestígio, os quais eram procurados sem 
hesitação. Qsjxm édios das boticas disputavam com 
([benzeduras. relíquias e amuletos. A angolana Luzia PintE 
muito conhecida na freguesia de Sabará no início do 
século xviii, era bem-sucedida como “ calunduzeira, 
curandeira e adivinheira” . Isso significa que, além de 
oficiar cultos religiosos, ela sabia preparar tisanas, 
cataplasmas c ungüentos que aliviavam as dores e 
curavam doenças, usando como recursos ervas e 
encantamentos. No Maranhão, um escravo foi chamado 
para curar a mulher de um barqueiro que se encontrava 
muito doente. O Diabo foi vencido por meio de
' i. • •
invocações em língua natal e português, além do uso de 
poções com água, ervas e uma pedra que se achava na 
cabeça de um peixe. Na região mineradora, alguns 
escravos foram denunciados à Inquisição por praticar a 
feitiçaria. Um deles tirava ossos e outras drogas dos 
corpos daqueles a quem curava, chupando-os pela boca.
Os brancos atribuíam aos africanos grande 
conhecimento dos venenos c seus antidotos. Também 
sabiam curar distúrbios mentais e espirituais. No interior 
da Bahia, o Santo Oficio identificou um senhor que 
pagou caro por duas escravas curandeiras: com elas 
montou uma espécie de clínica, onde se praticavam vários tipos de cura.
Uma das formas de aculturar o escravo consistia em enquadrá-lo na religião 
vigente, por meio dos sacramentos do batismo, casamento e extrema-unção. 
Por intermédio das irmandades, como a de Nossa Senhora do Rosário, 
puderam os negros recriar suas crenças e tingir o culto aos santos católicos 
de significados profanos emprestados dos calundus.
Çqm a incorporação das culturas ioruba, nagô, daometana, jeje, 
mina, malê e banto no meio urbano e rural da Colônia, as práticas mágicas e 
certas noções de doença e cura encontraram fácil assimilação no repertório 
sobrenatural popular de origem lusitana. É preciso ter em mente que a 
população de origem africana que alcançara grande concentração em torno 
do Brasil açucareiro, no século xvn, atingiu o máximo de intensidade por voltr 
de 1750, com a expansão do Rio de Janeiro e o povoamento das Minas, graçaí
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 2 P
à mineração. Personagem fundamental na perpetuação de tradições 
terapêuticas africanas, o barbeiro, geralmente mulato ou negro, escravo ou 
livre, munia-se de uma trouxa ou pequeno baú onde acondicionava os 
apetrechos indispensáveis ao seu mister: navalha, pente, tesoura, lanceta, 
ventosa de chifre, sanguessugas, ungüentos, sabão e bacia de eobre.
A influência dos curandeiros perante a população se estendeu a ponto de 
o fisico-mor do Reino, numa provisão de 1744, ter proibido aos boticários 
aviar suas receitas, ordenando que seus delegados no Brasil fiscalizassem 
periodicamente essa prática. A relação dos boticários com os remédios da 
terra não era, porém, das melhores. Em 1796, o vice-rei, conde de Resende 
enviou às autoridades metropolitanas uma carta na qual reclamava dos 
boticários, afirmando que, embora
houvesse nesta terra infinidade de ervas e raizes conhecidas pelo mesmo 
nome e atributos das que mandam vir de fora, des são os primeiros em 
desacreditá-las, não porque assim seja, como todos persuadem, mas 
porque acham grande conta em fazer misteriosa a sua ocupação, c muito 
maior em reputar a vinda de ervas importadas, que ver-se-iam obrigados 
a vender por baixo preço, havendo outras do mesmo país, não deixando, 
porém, de as plantar, e comprar quase de graça, para as tornarem a 
vender na estimação das que de fora lhe são remetidas,9
MARQUES, Vera Regina Beltrão. 
Natureza em boiões; medicinas e boticários no 
Brasil setecentista. Campinas: Editora da 
Unicamp/ Centro de Memória-Unicamp, 
1999, P- 197-
PÁGINA AO LADO, ACIMA: Os africanos PÁGINA AO LADO, ABAIXO:
tinham grande conhecimento de Amuleto africano.
venenos e seus antídotos e exerciam na
colônia muitas vezes o papel de
curandeiro, lançando mão de suas
tradições, principalmente para curar
outros negros. Na imagem, um escravo
sofre de bouba.
a c im a : Na rara imagem do século 
xvn vê-se um ritual de calundu. 
Através da religião e também dosritos de cura, os negros mantinham 
vivas, do lado de cá do Atlântico, 
as crenças africanas.
3 .)
As ordens religiosas
A A S S I S T Ê N C I A M É D I C A C O M O C A R I D A D E
i^utra poderosa tradição que atuou na conformação da cultura médica 
heteróclita que marcou o período colonial proveio do catolicismo português, 
por intermédio do clero regular e das ordens e confrarias religiosas.
Como já observamos, não eram poucas as doenças e epidemias que 
atacavam os colonos e o restante da população indígena e negra. Varíola, 
disenteria, malária, febres tifóides e paratifóides, boubas, maculo (fístula anal), 
sífilis, lepra, elefantíase-dos-árabes (filariose) e opilação (ancilostomíase) eram 
as mais presentes. A imensa maioria dos doentes recebia tratamento em casa. 
Assim, os que caíam doentes e seus familiares mantinham o controle da 
situação, ao contrário do que aconteceria num hospital. Em suas casas, eles 
podiam decidir sobre o tipo de terapia que estariam dispostos a pagar e 
escolher livremente dentre os vários tipos de agentes terapêuticos. Não eram 
apenas os pobres que faziam tal opção; as pessoas de posse cuidavam de suas
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 3 1
doenças em casa, com médicos e cirurgiões, ou então com 
curiosos c curandeiros, ao passo que as ordens religiosas 
ou laicas tratavam de seus próprios irmãos. Os brancos 
pobres, a gente dc cor, escrava ou forra, soldados, 
marinheiros, forasteiros em geral, quando em estado dc 
indigência, recebiam assistência espiritual e médica nos 
hospitais da Ordem da Misericórdia.
A Igreja católica era o suporte da vida cultural 
da Colônia, e as ordens religiosas constituíam a ponta dc 
lança da Igreja na propagação da fé e da cultura cristãs, 
para as quais o bem-estar físico era secundário em face da 
salvação espiritual. Além do mais, a doença podia ser 
percebida alternadamente como uma expressão do 
pecado ou da graça divina. O corpo como o repositório 
da alma imortal permaneceu como um legítimo objeto de 
cuidado. Os ensinamentos bíblicos e o exemplo de Jesus apontavam a devoção 
aos doentes como uma bênção divina, não restrita apenas a praticantes 
treinados. A fé cristã enfatizava que o cuidado e a cura deveriam ser uma 
vocação popular, um ato de humildade consciente, portanto, um componente 
vital da caritas cristã. A evangelização e a catequese sistemáticas iniciaram-se 
em 1549 com a vinda do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa 
(4503-79),e de um pequeno grupo de jesuítas. Nos finais do século xvi, foi a
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tuast/SP* SvW-TtANO « N h í* IIEI.HEUAH VÍÜA i f f ÍE R m . Hüir 17 IV -
Botica de ordem religiosa
O boticário será um religioso sacerdote de 
muita caridade e curiosidade, e que tenha 
alguma ciência da botica ou experiência dela. 
ao qual se dará religiosos, ou seculares que o 
ajudem; procurando sempre haver pessoa que 
saiba bem da botica pelo que importa à saúde 
dos religiosos, credito e bom serviço da botica, e 
assim deve estar o boticário presente à visita 
pela manhã, e tarde, para notar bem as 
mezinhas que se mandem dar a cada um, não 
se fiando nunca na sua memória, pois é coisa 
de tanta importância a saúde dos enfermos, 
procurando sempre estar a botica muito provida 
dos simplices, e mais mezinhas necessárias às
necessidades c enfermidades que sobrevivem aos 
religiosos, fazendo e mandando fazer as águas 
destiladas, xaropes, pílulas e mais compostos de 
que se usa, pedindo para isso ao Prelado quem 
o saiba bem fazer, quando em casa o não 
houver para tudo ser perfeito; e pedirá ao 
Prelado todo o açúcar necessário, que terá por 
rol para dele dar conta por inteiro. Não dará 
para fora Mezinha alguma sem licença do 
Prelado, excepto pós comuns, unguentos, e 
outras coisas semelhantes, de pouco porte, mas 
nunca xaropes, nem purga, sem o Prelado 
assinar as receitas do médico constando ser de 
pobres. Não comprará drogas, nem outras 
mezinhas sem licença do Prelado, nem sem as
ver quem disso bem entenda, assim para a 
bondade delas, como para o preço. Dc todos os 
simplices. c compostos da botica terá muito 
cuidado, para que não se corrompam, e quando 
houver de fazer algumas coisas daquelas, que se 
costumam fazer de noite, dará conta sempre 
disso ao Prelado para que saiba a ocasião de 
sua falta e o que passa naquelas horas, e 
tempo, e procurará sempre assistir nessa oficina. 
Códice existente no Arquivo Nacional da 
Torre do Tombo, intitulado Uzos das 
Ceremonias e Louváveis costumes do Ordem de 
Christo reformados no anno de rjoz.
p á g in a a o l a d o : A força da influência 
do catolicismo português na cultura 
médica do período colonial fica 
expressa no uso dos ex-votos, em 
agradecimento è cura de enfermidade 
grave, como este dedicado à Nossa 
Senhora do Carmo.
a c im a : Ex-voto em nome de milagre 
do Bom Jesus do Matosinhos a 
Cipnano Ribeiro Dias. Em 1745, este 
doente sangrou pelo nariz durante 
horas seguidas c ficou curado 
milagrosamente com a fé.
3 2 B O T I C A S &■ 1’ H A K M A C I A S
vez de os beneditinos, carmelitas e franciscanos se 
estabelecerem no Brasil. Além dos seminários e das 
pastorais, o trabalho caritativo, em especial o 
tratamento dos doentes, era parte essencial de suas 
ações. Q culto dos santos servia também de escude 
contra os perigos da vida ou proteção contratos 
demônios. Muitos eram invocados pela sua 
.qualidade de'curar. Nas procissões organizadas 
pelas confrarias, nas igrejas ou no refúgio do lar, 
orações e preces solicitavam a intervenção dos santos. 
£ada qual segundo sua especialidade. São Sebastião era 
invocado para proteger das epidemias. Santa I aicia, contra as 
dores dêllénies. Contra a peste e quebradura, santo Adrião. Contra 
possessões, santo Alberto. Santa Agueda, contra dores dos peitos e Santo 
Amaro, contra os achaques das pernas e braços. Santa Ana, contra a 
esterilidade e santo Anastácio, contra qualquer doença. Uma procissão diária 
nas cidades coloniais era a do viático levado aos moribundos e doentes. Um 
-sem-número de devotos compunha o cortejo, entoando ladainhas. Todas as 
.igrejas repicavam sinos à sua passagem.
Perante as dificuldades e precariedade da vida, a Igreja incentivou
os fiéis brasileiros a agrupar-se em confrarias, formadas segundo categorias 
sociais, para encontrar soluções que abrissem as portas à salvação eterna. 
Refúgio na vida, segurança em face da morte, gosto da ostentação e exibição 
de uma posição social numa sociedade rigidamente estratificada, as 
confrarias foram também garantia de cuidados aos doentes e missas 
póstumas para o conforto da alma. A confraria mais antiga do Brasil era 
a da Misericórdia, que, inspirada nos compromissos corporais, realizava 
obras voltadas à alimentação dos presos e famintos, remia os cativos, curava 
os doentes, cobria os nus, dava repouso aos peregrinos e enterrava os 
mortos. Mantida por figurões de grande prestígio social, a ordem se 
beneficiava dos legados deixados por seus associados e de eventuais recursos 
diretos da Coroa. Os quatro hospitais abertos no século xviii pelas ordens 
terceiras de São Francisco e do Carmo voltavam-se ao acolhimento 
exclusivo dos confrades. Os hospitais da Santa Casa da Misericórdia, 
quase todos modestos e em permanente estado de penúria, assistiam 
a uma população de indigentes e moribundos, desde o século xvi, em 
quinze cidades brasileiras.
Como a Misericórdia gastava menos com seus hospitais do que corr 
as festividades religiosas, a instituição vivia na pobreza. Isso pode ser estimado 
pelo exemplo da mais importante dentre as Santas Casas do século xvn, a 
da Bahia, onde, durante uma epidemia ocorrida em 1694, 180 doentes foram 
internados nas seguintesenfermarias: enfermaria das febres, dispondo de 
16 catres com colchões rotos, 18 camas de esteira no chão, sem travesseiros,
À e s q u e r d a , a c im a : Santa Casa de 
Misericórdia do Rio de Janeiro, 
inaugurada em 1582 pela mais antiga 
confraria do Brasil, era mantida por 
figurões de grande prestígio social e 
eventuais recursos da Coroa.
À e s q u e r d a , a b a ix o : Pote de teriaga 01 
triaga. A triaga brasílica era um remédic 
composto de extratos, gomas, óleos 
e sais químicos extraídos de 78 tipos 
de plantas, e que se tornou objeto de 
cobiça no império português e 
a segunda maior fonte de renda da 
Companhia de Jesus no Brasil.
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 3 3
sem colchão c com lençol; enfermaria de a/ougue, com seis catres para os 
que estavam em tratamento com unturas; enfermaria das chagas, com vinte 
catres e 23 camas de esteira no chão, sem travesseiro e sem colchão, com um 
lençol; enfermaria dos convalescentes, com 18 catres c 24 camas de esteira 
no chão; enfermaria das mulheres, com 17 catres com colchões velhos; 
enfermaria dos incuráveis, com vinte catres sem colchões.10 A terapêutica 
se resumia a uma alimentação à base de canja de galinha, sangrias e purgas 
realizadas por barbeiros, sangradores e, quando em aperto financeiro, 
por escravos. Um médico e um cirurgião davam conta do trabalho, 
comparecendo pela manhã e à tarde.
i< RIBEIRO, Lourival. 
Medicina no lirasil colonial, 
Rio de Janeiro: Editora Sul- 
americana, 1971, pp. 40-1.
As boticas dos jesuítas c a triaga brasílica
A medicina em Portugal, nos séculos xn e xni, era exercida pelos eclesiásticos. 
Os jesuítas, ao chegarem no Brasil, mantiveram essa tradição de aliar a 
assistência espiritual e corporal ao trabalho de catequese. Além de receitar, 
sangrar, operar e partejar, criaram enfermarias e farmácias. Como as drogas 
de origem européia e asiática eram raras e tinham um preço exorbitante, 
valeram-se dos recursos medicinais dos indígenas. Foi assim que a Europa 
conheceu as virtudes da quina, proveniente do Peru e da ipecacuanha, que 
também encontrou enorme sucesso. As boticas dos jesuítas eram, quase 
sempre, as únicas existentes em cidades ou vilas.Treze boticários jesuítas se 
instalaram no Brasil nos anos 1600 e outros trinta no século xvin. As 
farmácias dos conventos teriam contribuído para a penúria dos boticários
• 1 a
laicos. A botica dos jesuítas do Rio de Janeiro, que funcionava no morro do 
Castelo, provia as boticas da cidade.
A triaga brasílica, produzida na botica que os inacianos mantinham 
em Salvador, alcançou enorme prestígio em todo o Império português e 
era a segunda fonte de renda da Companhia de Jesus no Brasil. Tal como a 
triaga optima do Colégio Romano, era um antídoto universal e uma panacéia 
para todos os males. Antes de entrar em decadência, no século xix, esse 
remédio, composto de extratos, gomas, óleos e sais químicos extraídos de 
78 tipos diferentes de plantas encontradas nas mais diferentes regiões 
do Império luso-brasileiro, foi objeto da cobiça das autoridades pombalinas. 
Durante o seqüestro dos bens dos jesuítas da Bahia, em 1760, o 
desembargador responsável afirmou que haveria na cidade quem desse três 
ou quatro mil cruzados por ela.
Se a história da medicina colonial, e da sua farmácia em particular, 
não pode ser contada sem referência às religiões indígenas e africanas e às 
instituições católicas, é na cultura médica européia, em especial na longa 
uadição legada pela medicina hipocrática c galênica, que devemos encontrar 
seu lastro principal.
Fórmulas secretas
No Arquivo da Companhia de Jesus, em 
Roma, há um documento que já no prólogo 
revela a consciência que os jesuítas possuíam 
do valor simbólico dos remédios secretos. 
Amigo e caríssimo leitor, não f iz esta Coleção de 
Receitas particulares de nossa Boticas, senão 
para que se não perdessem tão bons segredos, e 
estes não andassem espalhados por todas as 
mãos; pois bem sabes, que revelados estes, 
ainda que seja de uma Botica para outra, 
perdem toda a estimação: e que pelo contrário 
0 mesmo é estar em segredo qualquer Receita 
experimentada, que fazerem dela todos um 
grande apreço, e estima com fam a, e lucro 
considerável da Botica a que pertence. Pelo 
que peço-te, que sejas muito acautelado e 
escrupuloso em não revelar algum destes 
segredos: pois em consciência se não pode 
fazer, advertindo que são cousas estas da 
Religião, e não tuas.
Manuscrito Coleção de várias receitas 
particulares das principais boticas da nossa 
Companhia de Portugal, da India, de Macau, e 
do Brasil... de autor desconhecido, datado de 
1766, apud Lourival Ribeiro, op. cit., pp. 174-5.
Sob o império de Galeno
A S D O E N Ç A S E S E U S T R A T A M E N T O S
N A T R A D I Ç A O M E D I C A E U R O P E I A
‘ vO
Galeno (130-200 d.C.) foi, juntamente com Hipócrates (460-? a.C.), a m 
figura da medicina antiga. Sua imensa obra exerceu uma influência 
considerável até o século xvu, tanto no mundo árabe quando no Ocidente 
cristão. De acordo com a tradição hipocrático-galênica, transformada em 
dogma pelo ensino escolástico professado nas universidades medievais des 
o século xiii, o corpo humanoseria constituído por sangue, pituíta, bile 
amarela tTbile negra. Existiria saúde quando esses princípios estivessem en 
justa relação de equilibrio (crase), de força e de quantidade, em perfeita 
mistura. Existiria a doença quando um desses princípios estivesse, seja em 
menor quantidade, seja em excesso, ou, isolando-se no corpo por uma esp 
de obstrução, não se combinasse harmonicamente com o resto.
Eis o grande princípio hipócrático que os jovens doutores cm 
medicina, formados nas universidades européias, deviam ter em mente 
enquanto examinavam seus doentes. As doenças seriam causadas por falta
(caquexia), excesso (pletora) ou corrupção de um ou mais humores. 
'Tratava-se, então, de restaurar o déficit ou, ao contrário, suprimir o excedi
podiam taml
A febremão seria nem um sintoma nem uma doença em si, mas a 
expressão do esforço curativo da natureza (vix medicatnx miturae). Provenk 
do coração, o calor atuaria no cozimento dos humores corrompidos. A 
capacidade de discriminar entre os diferentes tipos de febre e atuar no mon 
certo em auxílio da natureza distinguiriam o talento dos médicos. Em caso 1 
febre maligna ou pestilencial, o que compreendia a varíola, a rubéola, a púrj 
c a peste - todas causadas por humores corrompidos que exalavam um fort 
odor - , impunha-se, além do recurso das ventosas e vesicatórios, o emprege 
principais drogas: a triaga, o mitridato ou a pedra de bezoar. A varíola, com 
peste, matava no estado endêmico. O médico nada podia contra esses ílagel 
O melhor era deixar a natureza fazer o seu trabalho. Suas sangrias, purgas t 
clisteres apenas faziam agravar o estado de saúde do enfermo. 1
O cérebro também tinha suas doenças. O resfriado, considerado 
afecção cerebral, devia-se ao excesso de frio ou de calor. O médico usava ci 
a coriza toda uma estratégia. Primeiramente era preciso retirar toda a pituít 
com a ajuda de poções e pílulas doces. Isso feito, usavam-se os purgativos.! 
igualmente recomendável o uso de purgantes, seguidos de ventosas, vesicat
Mas convinha, antes, evacuar os maus humores. Os humor
se desviar, sendo fundamental repô-los em seus caminhos.
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L
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I l U 1 I n n ’ n i f t i i i
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p á g in a a o l a d o : Muito valorizada 
como remédio contra infecções da 
pele e tida como excelente vomitório, 
a pedra de bezoar era encontrada 
no estômago de alguns animais, 
como a cabra.
a c im a : Em algumas cidades européias, 
drogas trazidas do Oriente ou da 
América eram acumuladas em lojas que 
armazenavam grandes provisões. Estasboticas abasteciam outras, menores
3 6 B O T I C A S & P I I A R M A C I A S
AÃ í '
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e cautérios sobre os ombros, atrás das orelhas e no pescoço 
Nada impedia que se empregasse, também, um 
esternutatório (remédio que provocava espirros). 
Aconselhava-se, outras vezes, tosar a cabeça para aplicação 
de opiato (medicamento composto por extrato de plantas, 
em que entrava o ópio) sob a forma de emplastro. Para 
dores de cabeça empregava-se esteva (planta comum em 
todo o território português) cozida em cinzas quentes.
A paralisia cedia friccionando-se o membro paralisado corr 
o famoso óleo de petits chiens.
_A jrtelancol ia, causada pelo excesso de bile 
negra, dividia-se em três tipos de acordo com Galeno, 
çlépendendo da região do corpo onde ocorresse 
concentração dé atrabile. Por toda parte se podia
encontrar a melancolia do amor, comum às jovens viúvas, que podia
ágrávar-sc até a mania uterina. Os vomitórios energéticos podiam ser 
empregados. Mas o melhor para essas infortunadas seria encontrar um novo 
marido: “TJm marido é um emplastro que cura todos os males das jovens” , 
dizia um provérbio da época.
A gota, reconhecida por quatro sinais - dor, calor, tumor, rubor -, 
devia-se sempre aos excessos, mas também à ociosidade. Purgas, sangrias e 
clisteres, sem dúvida. Aconselhavam-se também o leite ainda morno das 
mulheres e o excremento da vaca, igualmente quente. Algumas águas 
minerais. Para os males dos pulmões que não apresentassem muita gravidade, 
usava-se a julepa (preparação líquida ou engomada, açucarada e aromatizada) 
e xaropes - sobretudo nas bronquites. As pleurisias exigiam medicamentos 
ainda mais estranhos. Sangue de bode, por exemplo, ou fuligem de ervas e 
. sangria. Para a tísica, reconhecida pelo “ humor acre, aflitivo, corrompido e 
apodrecido dentro dos pulmões” , estava-se desarmado.
Quanto ao coração, essa víscera nobre, cabia-lhe o comando de tode 
o sistema humoral. Esse personagem não devia ser incomodado. Bastava, às 
vezes, um medo, uma alegria, um remorso e ele suspendia seus batimentos. 
Perdia seu espírito vital e eis a síncope! Era difícil saber o que esse 
desconhecido queria ou rejeitava. Que medicações lhe oferecer senão julepas 
calmantes ou tisanas estimulantes segundo o caso.
Conheciam-sc melhor o estômago e os intestinos. Nesse domínio 
triunfavam, evidentemente, as purgas e os clisteres, dosados e compostos de 
acordo com a necessidade de resfriar, aquecer, umedecer ou ressecar. Sendo a 
digestão assimilada como uma cocção, na tradição hipocrático-galênica, a açãc 
terapêutica consistia então em auxiliar ou melhorar esse cozimento por meio 
de uma verdadeira cozinha farmacêutica em que entrava toda sorte de 
condimentos. A arte consistia em variar os condimentos segundo o 
diagnóstico aferido por meio do tipo de indisposição estomacal e intestinal.
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L
Nos casos em que dores estomacais eram seguidas por vômitos com sangue, 
anunciados pelas “ cóleras úmidas” , acalmava-se a dor com extrato de opiatos, 
As “ cóleras secas” , assinaladas pelas flatulências, eram tratadas com a ajuda 
de extratos de cochonilha. O intestino era menos secreto. O exame das fezes, 
de visu et odoram, permitia um diagnóstico mais seguro, pois se determinava 
mais facilmente o humor em causa.
Teorias médicas
Iatroquimica Doutrina médica originada da alquimia 
Paracelso (1493-1541) foi contemporâneo de Copérnico, Martinho Lutero, 
Leonardo da Vinci e outras figuras associadas com a crítica ao pensamento 
medieval e o nascimento do mundo moderno. Seguindo a tradição hermética, 
ele propunha estudar o homem - o microcosmo - por meio do estudo do 
macrocosmo, já que o primeiro era a perfeita representação do segundo.
Alguns médicos entenderam que ali estava uma nova chave para o seu 
trabalho. O apelo a novas observações foi entendido como um ato dc devoção. 
0 cristão não deveria mais se limitar a estudar as Sagradas Escrituras, mas 
também 0 livro da natureza, repleto de revelações divinas. Na tradição 
alquímica, o trabalho de purificação dos metais era entendido como uma ajuda 
à natureza no seu processo natural de aperfeiçoamento. Transposto para o 
plano do microcosmo (o homem), o trabalho do médico seria o de recuperar a 
saúde, buscando substâncias medicinais existentes na natureza que agiriam por 
simpatia sobre os órgãos e humores afetados. Paracelso, que queimou em praça 
pública os livros de Galeno, rejeitava os humores e em seu lugar pôs três novos
p á g in a a o l a d o , a c im a : Farmacêutico p á g in a a o l a d o . ABAIXO: Pintura
da Basilea macera ervas. Esta era a a óleo representando a figura
etapa inicial do processo de produção de Hipocrates.
de muitos remédios. Aqui, o
desenvolvimento de artefatos
mecânicos se combinava muitas vezes
com métodos mais tradicionais.
n o a l t o : Paracelso propôs o estudo do 
macrocosmo como forma de entender 
o homem (microcosmo). Grande 
defensor dos remédios minerais 
e metálicos, sua nova leitura 
da medicina influenciou diversos 
médicos da época.
3 8 B O T I C A S & I ' HA R M A C I A S
elementos: o enxofre, o mercúrio e o sal. Cada doença teria uma terapêutica 
especifica. ParaVan Helmont (1577-1644), seu seguidor, os processos 
químicos seriam dirigidos por um espirito denominado blas, equivalente ao 
archeus de Paracelso. Para essa e outras vertentes da iatroquímica, os estados 
patológicos deveriam ser tratados quimicamente, valorizando os remédios 
químicos. Podemos citar: o tártaro sódico potássico (sal de Rochelle), com 
propriedades laxantes; o sulfato sódico e o sulfato de amónio; o sulfato de 
potássio (sal policrcsto); o sulfato de magnésio; o carbonato de magnésio (pós 
do conde de Palma). Os iatroquímicos encontraram rápida acolhida entre os 
práticos sem diplomas. Nos tempos em que o teatro de Molicre ridicularizava 
os médicos hipocráticos, cresceu fortemente seu prestígio nas cortes inglesa e 
francesa, entre reis, nobres e burgueses, a despeito da forte oposição da 
Faculdade de Medicina de Paris e do Real Colégio Médico de Londres.
Iatromecànica ou iatrofisica - O organismo equiparado a uma máquina 
A revolução científica do século xvn não se limitou a acrescentar novos 
fenômenos ainda não observados - mudou o quadro do pensamento. O 
Universo seria, então, concebido como o modelo do relógio, em que as partes 
que compõem o todo estão submetidas às mesmas leis do movimento. Tal 
noção pressupõe a concepção de uma matéria- puramente passiva c composta 
de corpúsculos submetidos apenas às leis do movimento. A física das 
qualidades cede lugar a uma visão puramente quantitativa da matéria, e a 
explicação dos fenômenos físicos fica restrita à causa eficiente. A natureza 
seria submetida às mesmas leis, uniformes. Na França, Descartes 
(1596-1650) denunciava a ineficácia da medicina contemporânea, propondo 
um conhecimento causal do corpo com base em princípios mecanicistas. 
Excluiu os princípios ou faculdades (vegetativa, sensitiva, motora) e passou a 
explicai- mecanicamente todas as funções do corpo. Ele acreditava na 
possibilidade de eliminar todas as doenças do corpo e da mente e até as 
enfermidades da idade, investigando-se suas causas mecânicas. Tal concepção 
favorecia as pesquisas anatômicas. Posto que tudo era feito de formas 
geométricas e movimentos, tornou-se essencial conhecer a forma dos órgãos, 
e os,anatomistas se maravilhavam de reconhecer a cada instante no corpo 
humano algumas dessas máquinas semelhantes às que os homens fabricavam. 
Para Boerhaave (1668-1738), o mais prestigioso dos iatromecânicos, o 
organismo seria formado por “ apoios, colunas, traves, vigas, bastões, 
-tegumentos, ângulos, alavancas, roldanas, cordas, lagares [tanques para 
espremer sucos], foles, peneiras, filtros, canais, reservatórios” .Tudo se faz 
mecanicamente nos corpos vivos, e a fisiologia, utilizando e ultrapassando as 
descobertas anatômicas, percebe na digestão um fenômeno de trituração,e na 
secreção glandular, a peneiração de partículas. Mesmo quando a fisiologia faz 
apelo à química, ela permanece mecânica, posto que interpreta os fenômenos 
químicos como conseqüência do mecanismo dos corpúsculos.
À e s q u e r d a , a c im a : Na segunda 
metade do século xvm, surgiu a 
homeopatia, um sistema terapêutico 
de inspiração vitalista criado por 
Samuel Hahnemann.
À e s q u e r d a , a b a ix o : O naturalista 
Alexandre Rodrigues Ferreira, cm sua 
“viajem Filosófica” à américa 
Portuguesa do século xvm, registra 
uma índia inalando paricá, num ritual.
P Á c i N A a o l a d o : Um laboratório 
moderno: nesta cena vemos o avanço 
da divisão de trabalho no processo de 
produção de remédios na Europa 
Moderna. Enquanto o mestre 
se atém à receita da farmacopéia, 
ajudantes e aprendizes utilizam 
diferentes técnicas.
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S S O B R A S H . C O L O N I A L > 9
A partir do século xvni, à exceção tios alquimistas, cada vez mais 
raros, dos sábios galênicos, ainda influentes, e de alguns precursores do 
vitalismo, a hegemonia era dos adeptos do mecanicismo.
Vitalismo — Principio vital distinto das forças fisico-quitnicas 
Georg Ernest Stahl ( 16 6 o -1734), químico e professor de medicina, propôs . 
que os fenômenos da vida seriam irredutíveis às leis da física. Para ele haveria 
lim princípio vital que explicaria os fenômenos orgânicos — o anima seria 
responsável por todas as funções vitais. Além de defender uma fisiologia 
vitalista, criou a influente teoria do flogísticq para explicar a combustão, 
combatida posteriormente por Lavoisier (1743-94).
Na segunda metade do século xvm, surgiu a homeopatia, um 
sistema terapêutico de inspiração vitalista, criado por Samuel Hahnemann . 
(1755-1843), que ainda goza de amplo prestígio em muitos países. Para 
"Hahnemann, toda substância que originasse no organismo sinais semelhantes 
aos sintomas de uma doença era suscetível de curá-la. Trata-se de antiga 
concepção hermética, já presente em Paracelso: a cura pelo semelhante - _ 
similia siinilibtts curantnr. A idéia de que o tratamento se alcançaria pela 
administração de doses ínfimas de substâncias que, de outro modo,
4 0 B O T I C A S & P I I A R M A C I A S
causariam os sintomas patológicos, tornou-sc a base de sua terapêutica. 
Assim, se a qüina (chinchona) - remédio usado contra algumas febres - 
provocava sintomas das doenças contra as quais.agia, ela teria, 
comprovadamente, propriedades terapêuticas. \
A superação da medicina humoral 
e as inovações terapêuticas
Durante o período da chamada revolução científica, em que se destacam os 
avanços na astronomia, na física e nas ciências naturais, a medicina também 
conheceu grandes inovações teóricas e práticas. André Vesálio (1514-64), em 
seu excelente livro De hmnani corporis fabrica, de 1543, deplorava a separação 
entre a cirurgia - na época uma tradição artesanal — e a medicina. Vesálio teria 
descoberto mais de duzentos erros nos escritos de Galeno. Em seu De moto 
cordis et sanguinis (1628), Willam Harvey (1578-1657) descreveu a circulação 
sanguínea. Seria de esperar que o sucesso dessa e outras descobertas 
associadas às novas correntes do pensamento médico, como a iatroquímica, a 
iatrofisica e o vitalismo, acarretassem um colapso no sistema galênico de 
terapêutica, que era intimamente ligado à'fisiologia humoral, mas isso não 
aconteceu. O sistema galênico de terapêutica, em razão de seu sucesso prático 
no tratamento das doenças (é preciso ter em mente que vinha proporcionando 
uma boa vida aos clínicos havia séculos), sofreu seu maior revés com a 
introdução dos remédios de origem química.
Numa época em que todos os remédios eram símplices, isto é, 
derivados de plantas, o rebelde Paracelso (1493-1541) foi um defensor dos 
remédios minerais e metálicos, pregando a doutrina dos remédios específicos 
para cada doença - o mercúrio tornou-se um específico para a sífilis ou mal 
gálico. Sydenham (1624-89), o chamado Hipócrates inglês, também defendia 
a idéia dc que toda doença teria seu medicamento específico. Com a 
descoberta do Novo Mundo, uma droga utilizada pelos indios, a cinchona - 
também conhecida como casca peruana ou casca dos jesuítas - foi 
incorporada à terapêutica médica como antídoto para as maleitas. No século 
x v i i i , o reverendo Edmund Stone anunciou a casca do salgueiro como um 
poderoso febrífugo (remédio contra a febre), o que foi um primeiro passo 
no caminho para a aspirina.
A exceção de algumas drogas, os medicamentos que os doutores de 
Coimbra usavam não se distinguiam muito da farmacopeia galênica, ainda 
que eles possuíssem um punhado de específicos e tópicos. Aos médicos não 
faltavam respostas para os diferentes casos que se apresentavam no curso de 
suas consultas. Convém lembrar que na medicina humoral não se esperava 
que as drogas desempenhassem um papel decisivo na cura. O que se esperava 
de uma boa droga não era tanto que curasse diretamente uma doença, mas
B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 4 *
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que, por meio de sua ação ou faculdade vomitiva, purgativa ou sudorífera, 
ajudasse a natureza a restaurar o equilíbrio entre os humores. Entretanto, com 
a fixação de químicos e destiladores provenientes do estrangeiro que 
comercializavam medicamentos químicos e, principalmente, com a publicação 
da farmacopeia elaborada pelo médico João Curvo Semedo (1635-1719), 
Polianteia medicinal (1695) - tornado uma espécie de evangelho dos médicos 
portugueses a comunidade médica incorporou a nova terapêutica. Outra 
obra influente, a Pharmacopeia ulyssiponense, escrita pelo francês Jean Vigier 
(1662-1723), comerciante de drogas estabelecido em Portugal, foi a primeira 
farmacopéia escrita em português a tratar organizadamente a preparação de 
medicamentos químicos."
Com a inclusão das obras de Paracelso no Index, a Inquisição 
portuguesa perseguiu os remédios alquimicos. Do ponto de vista doutrinal, 
a farmácia galênica se opunha às drogas secretas de ampla difusão, pois estas 
ignoravam as particularidades do paciente: sua constituição, seu 
temperamento, sua idade e seus hábitos alimentares e higiênicos. O físico 
galenista, tendo de escolher freqüentemente entre várias indicações 
terapêuticas, devia levar em conta não apenas a causa da doença, mas 
também todos os aspectos do paciente e de seu meio. Em Portugal, as 
medicinas (mezinhas) da farmácia galênica, caracterizada pela produção 
pelo boticário, mediante a receita do físico, e indicadas para determinado 
Uocnte, iam de encontro aos remédios secretos e às panacéias, vendidos 
em larga escala e consumidos como automedicação (água da Inglaterra, 
água celeste). Condenados pela Reforma pombalina do ensino médico, em 
1772, os remédios secretos foram mais perseguidos a partir da criação da 
Junta do Protomedicato, em 1782.
1 1 As principais referencias à 
história da farmácia em 
Portugal foram extraídas de 
PITA, João Rui. História da 
farmácia, Coimbra: Minerva 
Editora, 2“ ed., 2000.
p á g in a a o l a d o : André Vesálio 
apontou mais de duzentos erros 
contidos nos escritos de Galeno 
e deplorou em sua obra Dc humani 
corporisfabrica (1543) a separação 
entre cirurgia e medicina.
a c im a : Para a latroquímica. cada órgão 
humano mantinha uma correspondência 
com um signo zodiacal. Isto explicava a 
preponderância dc certas doenças em 
determinadas estações. Para realizar 
sangrias era preciso reconhecer, em 
cada ponto, sua relação zodiacal.
5 .)
As farmacopéias portuguesas
H O S T R A T A D O S D E N A T U R A L I S T A S , M É D I C O S 
E C I R U R G I Õ E S D O B R A S I L C O L O N I A L
12 SHAPIN, Steven.
/) revolução cientifica. Lisboa: 
Difel, 1999.
A medicina doméstica,

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