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'lavio Coelho Edler I • ' K »oticas & Pharmacias A HISTÓRIA ILUSTRADA DA FARMÁCIA NO BRASIL ^S A D A l É a P A L A V R A lavio Coelho Edler óticas & Pharmacias Flavio Coelho Edler Boticas & Pharmacias U M A H I S T Ó R I A I L U S T R A D A DA F A R M Á C I A N O B R A S I L Coordenação Editorial Ma r t h a Riba s e ju u o S il v e ir a Projeto Marketing Cultural Ma is A rte I Ja c q u e l in e M e n a e i Administração de projeto • G u s t a v o La c e r d a Coordenação de Pesquisa leonográfea A n a C e c íl ia Ma r t in s F e r n a n d a T ibau Pesquisa Iconográfico B e n t o M a r zo Ma ria Re g in a C o t r im Mo n iq u c G o n ç a l v e s C e r q u e ir a V e r ô n ic a P im e n t a V e l l o s o Preparação dc Original C r is t ia n e Pa c a n o w s k i Revisão L en y C o r d e ir o Versão em Inglês Ma r ia n a P erri Revisão da Versão em Inglês M ò n ic a G ig l io Reproduções Fotográficas Ja im e Ac io l i Ro b e r t o Jesu s O sca r V in íc iu s Pe q u e n o Design Gráfico V ic t o r Bu r to n Assistentes dc Design A na Pa u la Br a n d ã o A n g e l o Bo t t in o F e r n a n d a G a r c ia F e r n a n d a M ello Impressão cm CTP G r á fic a M in is t e r Produção Editorial N a ta lie A raú jo Lim a Produção Gráfica Isabel V alle Tratamento de Imagens e Pré-impressão Ó de ca sa Acompanhamento Gráfico M a r c e l o A lves Copyright © 2006 desta edição Casa da Palavra Copyright © 2006 do texto Flavio Coelho Edler Copyrights individuais de fotografias assegurados em conformidade com a Lei 9.610, dc 19.02.1988. E proibida a reprodução total ou parcial sem a expressa anuência da editora. C a sa da Pa la v r a Rua Joaquim Silva, 98, 4'- andar. Rio de Janeiro RJ 20241-110 21.2222*3167 21.2224-7461 www.casadapaiavra.com.br Cl P-BRASI L. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ E25,b Edler. Flavio Coelho, 1960- Boticas e pharmácias : uma história ilustrada da farmácia no Brasil / Flavio Coelho Edler - Rio de Janeiro : Casa da Palavra, 2006 i6 o p .: il. Inclui bibliografia ISBN 8 $-7734 -0 0 4 -X 1. Farmácia - Brasil História Obras ilustradas. 2. Farmacêuticos Brasil - História. 3. Industria farmacêutica Brasil História. 4. Medicamentos Brasil História. I. Título. 06-1292. CDD 613.0981 CDU 615.1(09) 13.04.06 18.04.06 014169 m Profarma II I Dli\o N mo A<111VRA http://www.casadapaiavra.com.br Este livro é dedicado ao médico que, antes de tornar-se psiquiatra e pai do autor, fora, por curto período, representante de um laboratório farmacêutico inglês. Nessa ocasião, em meados da década de 1950, ele formulou um remédio - descongestionante nasal - 0 qual, comercializado pelo mesmo laboratório, ganhou largo público país afora. Alas a maior façanha do doutor Nikodem Edler foi a de manter-se fiel aos seus ideais democráticos e igualitários, l i assim tem sido, como médico e cidadão, apesar de todos os pesares. Sumário 8 Apresentação PARTE 1 .) B O T IC A S E B O T IC Á R IO S N O B R A S IL C O L O N IA L 14 A sociedade luso-brasileira, suas doenças e condições sanitárias 24 A mata é a botica dos índios 30 As ordens religiosas: a assistência médica como caridade 34 Sob o império de Galeno: as doenças e seus tratamentos na tradição médica européia 42 As farmacopéias portuguesas e os tratados de naturalistas, médicos e cirurgiões do Brasil colonial 48 O cozinheiro do médico e sua botica F A R M Á C IA S E F A R M A C Ê U T IC O S N O O IT O C E N T O S 56 Panorama da medicina e da farmácia no século xix 62 A formação médica e farmacêutica 66 Boticários ou farmacêuticos? 68 Velhas boticas: comércio e segredos 72 Da fase heróica ao ceticismo terapêutico 76 Farmacopéias, medicamentos, remédios e plantas medicinais brasileiras 80 Remédios da moda e distinção social 82 Associações farmacêuticas na cidade imperial do Rio de Janeiro 86 Da matéria médica à farmacologia D E S E N V O L V IM E N T O S D A F A R M Á C IA C O N T E M P O R Â N E A 94 O crepúsculo da farmácia oficinal e da arte de formular too Os sucessos da nova terapêutica Origens e evolução dos medicamentos industrializados no Brasil 110 A formação do farmacêutico na República 114 Farmácias e práticas farmacêuticas 120 Órgãos de classe e sociedades farmacêuticas ] 2 1 Novas respostas aos antigos desafios: tendências atuais 122 Referências bibliográficas 12 ~ Referências iconográficos 12 s Englis/i Version • ' \ P A R T E Boticas e boticários no Brasil Colonial » A sociedade luso-brasileira, suas doenças e a legislação sanitária >) Medicamentos e terapêutica entre índios e escravos • • M j » As ordens religiosas e a assistência médica na Colônia )) Tratados médicos e farmacopéias portuguesas >) O boticário: suas origens e seu ofício; sua relação com os demais terapeutas; as diferentes formas de inserção social e sua atuação política antes da vinda da corte portuguesa >) A medicina jesuítica e a triaga brasílica )) As doenças e seus tratamentos na tradição medica européia e em Portugal 1.) A sociedade luso-brasileira S U A S d o e n ç a s e c o n d i ç õ e s s a n i t á r i a s i RIBEIRO, Lourival. Medicina , no Brasil colonial. Rio de Janeiro: < Ed. Sul-americana, 1971, p.187.' Quando os portugueses aqui chegaram, em 1500, encontraram uma população indígena pouco heterogênea cm termos culturais e lingüísticos. Tupis-guaranis, tapuias, goitacazes, aimorés e outras etnias se dispersavam pelo litoral e pelo interior. Não eram muitas as doenças de que sofriam os indígenas no início da colonização do Brasil. O historiador Lourival Ribeiro1 cita as “ febres” , as disenterias, as dermatoses, os pleürises e o bócio endêmico como as moléstias prevalentcs. Passado o período de exploração da costa, cuja principal atividade econômica era a extração do pau-brasil, a coroa portuguesa inicia, com a expedição de Martim Afonso de Souza (1530-33), o processo de colonização e ocupação territorial. Esse período é marcado pela exaltação da natureza brasílica. Parecia que a doença raramente afligia os habitantes da América. O certo é que, ao findar o período colonial, os poucos índios que viviam sob o domínio português eram pertencentes ao último escalão da sociedade. A escravização e a matança, iniciadas com a captura ou desocupação de terras, contribuíram menos que as doenças importadas para o que os historiadores chamam de catástrofe demográfica da população indígena. Os índios foram vítimas de doenças,' como sarampo, varíola, rubéola, escarlatina, tuberculose, febre tifoide, malária, disenteria, gripe, trazidas pelos ViiX colonizadores europeus, para as quais não tinham defesa i.b ! \--"------------------------------- --- ------ --- "--- _ ,---------.-- f - imunológica. Junto com os escravos africanos, aportou também um novo tipo de malária em solo americano. As condições de saúde da população negra eram igualmente deploráveis. Embora houvesse uma multiplicidade de situações e atividades exercidas pelo escravo africano, bem como formas de tratamento recebidas por parte dos senhores, os cronistas do período colonial sublinham que os negros que prestavam servjço na terra trabalhavam quase sem descanso, sempre mantidos com muito açoite e, em geral, mal alimentados. O regime de trabalho nas minas era totalmente diverso do observado nos engenhos de açúcar. A atividade a c im a : Na cena de Rugendas, escravos trabalham em uma mina de ouro. Assim como os indígenas, os negros trazidos da África viviam em péssimas condições de saúde. Mal alimentados, eram mantidos com muito açoite. pÁciNA-AO l a d o : Capa do livro de Guilherme Piso e George Marcgraf, “História natural e médica da índia Ocidental” expressa uma natureza idealizada onde se valoriza a diversidade da flora e fauna da América tropical. ) R l a N a t v r a i . i s A S I L I AE J *ic'io t-( Beneficio • Al a VIA I T I I CO.U .\ 'l SS. ' • ÿ . i J t . / s s iw / . i t . / « /lu. h’.j'cC.TJ . J nc.'iX-J In qu.i íJiLl* et AnimaJia.ied et Iw • ingciiia ci mores cldcrilMmtur etÂj ,a f n i g i ’ iilas illu álran tu r.í^ ^ jt-^ pj at'u,,î morl„ Ic°Hlbl,s il,,. ^ l S T E X o j j J Aid. E lzev l 6 B O T I C A S & P H A R M A C I A S Doenças dos escravos nas minas (...) os pretos, porque uns habitam dentro da água, como são os mineiros que mineram nas partes baixas da terra e veios dela, outros, feito toupeiras, meneirando por debaixo da terra (...); lá trabalham, lá comem e lá dormem muitas vezes, e como estes, quando trabalham andam banhados em suor, com os pés sempre em terra fria, pedras ou água, e, quando descansam ou comem, se lhes constipam os poros e se resfriam de tal modo que dai se lhes originam várias enfermidades perigosas, como são pleurises apertadíssimos, estupores, paralisias, convulsões, peripneumonias e outras muitas doenças, para as quais os melhores remédios que se lhes deve dar são sudoríficos, diaforéticos e vulnerários, para que abram os poros e se promova a circulação do sangue e mais líquidos com os remédios que em seu lugar se apontarão (...) FERREIRA, Luís Gomes (org. Júnia Ferreira Furtado). Erário mineral. Belo Horizonte: Fundação joâo Pinheiro; Rio de n\0 Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002 mineradora exigia uma mão-de-obra mais especializada, permitindo aos cativos uma relativa liberdade de ação e mais oportunidades que em outras regiões da América portuguesa. No auge da produção aurífera, em meados do século xvni, a população escrava correspondia a três quartos dos habitantes das Minas, e os riscos para a saúde dos escravos foram aumentando com a gradativa complexidade do trabalho, na busca do ouro que escasseava. No Erário mineral, Luís Gomes Ferreira registrou as “ crises reumáticas” , “ as febres com catarros” , as “ chagas nas pernas” que acometiam os escravos faiscadores obrigados a permanecer com metade do corpo submerso nos leitos pedregosos de rios gélidos durante horas, mergulhando, tirando cascalho e lavando. Hstima-se que p tempo médio de vida nessas condições fosse de sete anos. Nos principais centros urbanos, como Olinda, Recife, Salvador e Rio de janeiro, os negros exerciam atividades variadas, desde os serviços domésticos até o artesanato, passando pelo comércio ambulante e o carregamento de fardos c mercadorias. A ancilostomíase, conhecida como opilação, as doenças de carência, como o escorbuto, a tuberculose e o maculo, não chegavam a distinguir a população de escravos negros do restante da população de mulatos, brancos pobres, cafuzos que viviam na base da pirâmide social. Quanto às condições de saúde da população branca, é impossível uma generalização, tal era a variedade de situações de vida nesse período. Ser nobre ou plebeu, viver nos grandes centros urbanos ou refugiado em engenhos e fazendas; ser homem de negócios, médico, advogado, pertencer ao clero regular, morar em conventos ou aldeias no sertão, instalar-se em zona de mineração, conduzir tropas de gado, tudo isso afetava o ritmo de vida, o regime alimentar e o padrão de salubridade, a despeito da posição social. Está claro que barnabés, mascates, artesãos, oficiais mecânicos, carreiros, feitores, capangas, soldados de baixa patente, mendigos B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L I ? e pobres sitiantes não viviam em condições muito melhores do que algumas categorias de escravos e se distanciavam muito da elite branca, de fidalgos, clérigos e comerciantes. Durante os três primeiros séculos da colonização brasileira, a sociedade branca recorreu indiferentemente às formas de cura trazidas da Europa ou àquelas a que diversas etnias, com as quais se manteve em constante contato, utilizavam para lutar contra os males que as acometiam. Mesmo os portugueses opulentos, muito embora se tratassem com seus médicos, cirurgiões e barbeiros vindos de Portugal, não hesitavam, quando precisavam curar suas feridas, em se servir do óleo de copaíba utilizado pelos indígenas para esse fim. Depois, com a vinda dos escravos africanos, aderiram igualmente a certas curas relacionadas com a magia, como nos revelaram os documentos das visitas inquisitoriais do Santo Oficio. Os próprios franceses conheceram e fizeram uso de plantas medicinais indígenas, no período das invasões francesas comandadas por Villegaignon (1510 -71). Um naturalista francês, Jean de Léry (1534-1611), que esteve no Brasil entre 1555 e 1556, descreveu o tratamento e a gravidade do piã (doença semelhante à sífilis): “ O iurare tem a casca espessa de meio dedo e é muito agradável ao paladar, principalmente quando colhido fresco; os dois botânicos que vieram conosco afirmavam ser uma espécie de guaiaco. Os índios o empregam contra o piã, doença tão grave entre eles como entre nós a bexiga” . Nas correspondências avulsas encetadas entre metrópole e colônia enfatizava-se com freqüência a falta de médicos, remédios e hospitais. Mas, ao contrário da avaliação apressada realizada por alguns historiadores que afirmavam ser a falta de médicos o fator responsável pelo grande número de curandeiros e charlatães, é preciso que se pergunte: quais setores da população se ressentiam da escassez desses profissionais? Ora, o florescimento das demais artes de cura esteve intrinsecamente ligado às diferentes raízes culturais das populações aqui residentes. Além disso, os missionários jesuítas - principais suportes da educação colonial que tomaram para si o papel de curadores - aproveitaram muito da medicina indígena, tornando as plantas medicinais brasileiras famosas em todo o mundo. Pelas mãos dos jesuitas, a triaga brasílica, uma panacéia composta de elementos da flora nativa, que chegou a ser a segunda fonte de renda da ordem jesuítica na Bahia, ganhou fama internacional. Aos jesuítas deve-se imputar a iniciativa pioneira de intercâmbio entre esses universos da medicina, já que eles também absorviam o saber dos físicos, cirurgiões e boticários, aplicando-os nos precários hospitais da Santa Casa da Misericórdia. I Bons conselhos do Erário mineral Os medicamentos que se aplicarem às enfermidades das minas sejam sempre de qualidades quentes em sua natureza, ou que inclinem a quentes, porque as doenças do tal clima pela maior parte procedem de causas frias, e, por esta razão, os que são de sua natureza quentes obram excelentemente, como a aguardente do Reino, a água do chá, a água de capeba, de que hei de fa lar muitas vezes e queira Deus inclinar os ânimos a darem crédito ao que se disser (de que resultarão grandes proveitos), que tudo será com ajuda do mesmo Senhor, verdade lisa e sem dúvida: e outros muitos remedios. Os medicamento que se aplicarem aos olhos sempre hão de ser frios, isto é, sem se aquentarem, e pelo contrário, os que se aplicarem aos ouvidos sempre hão de ser mornos: isto. digo para os principiantes e tudo 0 mais para o comum. (Op. cit.) p á g in a a o l a d o , À e s q u e r d a : O s escravos africanos que trabalhavam nas minas de ouro sofriam comumente com "crises reumáticas’’, “febres com catarros” e “chagas nas pernas". Estima-se que o tempo médio de vida do negro que trabalhava na atividade aurífera era de sete anos. PÁGINA AO LADO, À DIREITA: Chegada de portugueses na Baia de Cuanabara: na costa brasileira, eles encontraram vários grupos indígenas. Organizados em tribos, formavam uma população heterogénea em termos lingüísticos e culturais a c im a : Hans Staden realiza uma sangria em índio adoecido. Europeus que chegavam ao Brasil conheceram c fizeram uso das diversas práticas medicinais de indígenas nativos. 1 8 B O T I C A S & P H A R M A C I A S .*y V Saber erudito e saber popular na medicina colonial Mas que relações mantinham físicos, cirurgiões e boticários portugueses com os demais agentes de cura? Embora geralmentcpreconceituosos com relação fy a outros elementos pagãos e “ selvagens” da cultura indígena, os colonizadores se interessaram em recolher informações sobre o procedimento de indígenas e seus pajés para combater as doenças que grassavam no lugar. Observavam, imitavam, experimentavam, descreviam as propriedades terapêuticas das novas espécies c seus usos, e divulgavam-nas na metrópole, ampliando os saberes sobre a matéria médica. Mais tarde, tal saber retornava à Colônia em compêndios de farmacopéia, orientando a atividade de boticários profissionais, religiosos ou leigos. Tal roteiro não foi tão linear, entretanto, como pode parecer. Bernardino Antônio Gomes (1768-1823), médico português e estudioso de nossa flora, em fins do século xvm observou o pouco uso feito pelos médicos portugueses das plantas medicinais do país, entendendo que isso ocorria porque, tendo aprendido medicina das universidades européias, eles curavam tudo “ à européia” , desprezando a medicina indígena. De todas as práticas terapêuticas, o uso das ervas medicinais brasileiras era a de mais legitimidade popular. Mezinheiros (vendedores de medicinas, ou mezinhas), curandeiros africanos e pajés utilizavam folhas, frutos, sementes, raizes, essências, bálsamos e resinas, partes lenhosas e brancas que esmagavam entre as pedras, pulverizavam, carbonizavam, dissolviam, maceravam. Cozinhavam, para ingerir, aspirar, friccionar ou aplicar em cataplasma numa série de extensas doenças. Não se pode esquecer que o emprego dessas plantas tinha um sentido mágico ou místico. Determinados minerais, bem como partes do corpo de animais, eram usados como medicamentos ou amuletos. Se a antropofagia ritual era encarada com horror pelos europeus, a utilização da saliva, da urina e das fezes, humanas ou animais, era compartilhada como recurso terapêutico, embora com significado distinto para as duas culturas. Enquanto a sucção ou sopro dos espíritos malignos, a fumigação pelo tabaco, os banhos, fricções com cinzas e ervas aromáticas e o jejum ritualístico eram desprezados como elementos bárbaros, a teoria das assinaturas, que supunha existir, radicado em cada região, o antídoto das doenças do lugar, autorizava a assimilação da farmacopéia empírica popular. Se em ampla variedade de aspectos o saber erudito e o popular eram indissociáveis na experiência dos distintos estratos sociais, os representantes da arte oficial lutavam ferrenhamente contra os que praticavam as curas na informalidade. Reivindicando para si o controle do corpo doente, a medicina oficial esvaziava o sentido dos conhecimentos terapêuticos populares e reinterpretava-os à luz do saber erudito. A fluidez entre os domínios da medicina e aquele da feitiçaria, com o emprego de cadáveres humanos e de animais associados ao universo demoníaco - como o sapo, WH f T - .Jí/* \ \ u / y ; m b ? •a c i m a : O m é d ic o p o r t u g u ê s PÁGINA AO LADO, NO ALTO! O COntatO 1 / / — ' B e r n a r d in o A n t ô n io G o m e s fo i p r ó x im o c o m o s ín d io s f iz e ra m d o s g r a n d e e s t u d io s o d a f lo ra m e d ic in a l j e s u ít a s p r o f u n d o s c o n h e c e d o r e s d e b ra s i le ira e c r ít ic o d a m e d ic in a d i v e r s o s m é t o d o s c u ra t iv o s , “à e u r o p é ia " . c o n s c ie n t e s d o v a lo r t e ra p ê u t ic o a t r ib u íd o à s e r v a s in d íg e n a s . B O T I C A S li B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L I 9 o cão negro, o morcego c o bode - na produção de remédios, impunha aos portadores de diploma a tarefa de distinguir o procedimento “ científico” das crenças populares “ supersticiosas” . Nessa tarefa encontravam o apoio da Igreja e das Ordenações do Reino. No imaginário popular, os santos, vistos mais como especialistas que como clínicos gerais, seriam responsáveis por um grande número de curas. Fazendo restrições no que dizia respeito à intervenção dos santos e das palavras sagradas, a não ser quando praticados ou recomendados pelo clero, a Igreja e os médicos reforçavam a idéia de que Deus distribuíra com parcimônia o acesso ao domínio do sagrado, vetando-o aos indivíduos rústicos. Em processo semelhante ao que ocorreu com as confrarias, que iriam amolecer a rigidez da fé oficial da Igreja, quebrando a unidade da religião luso-brasileira e tornando-a mais humana e consoladora, para os distintos grupos sociais os curandeiros leigos seriam, até certo ponto, bem tolerados à margem da lei. Durante todo o período colonial, os moradores de cidades e vilas solicitavam aos governantes a presença de médicos. Cartas eram escritas ao rei manifestando a preocupação constante com a saúde dos súditos, pela “ grande falta que têm de médico e botica para haverem de ser curados em suas enfermidades” . Mas o que imperava era a dificuldade de achar médicos dispostos a vir para a Colônia. A ausência de uma clientela com recursos que justificassem a saída da metrópole condicionava a permanência no Brasil à obtenção de alguma função ligada sobretudo à tropa ou à Câmara. As poucas vantagens profissionais que lhes eram oferecidas restringiram-se com a dificuldade em mostrar eficiência longe dos remédios europeus. A carência desses remédios, muitas vezes deteriorados, o desconhecimento da flora local c a concorrência com outras formas de cura, administradas por pajés, jesuitas, fazendeiros e curandeiros africanos, eram outros óbices. À d ir e it a , a c im a : Ritual Tupinambá do À d ir e it a , a q a ix o Aiclcpias curassairca, sopro de espíritos malignos. Práticas vulgo Paina de Sapo. indígenas desprezadas pelos europeus como elementos bárbaros. Regulamentação sanitária N o tocante à legislação sanitária, é preciso registrar que desde 1430 o rei de Portugal exigia que todos os que praticavam medicina fossem examinados e aprovados pelo seu médico, também denominado físico. Em 1448, o regimento do cirurgião-mor, sancionado em lei do reino, explicitava dentre os encargos da função a regulamentação do exercício da medicina e cirurgia por meio de licença, legalização e inspeção de farmácias. As Ordenações Filipinas, de 1595 (“ Ordenações do reino de Portugal recopiladas por mandado d’el rei d. Filipe, o Primeiro”), que tratavam de todos os assuntos de interesse da Coroa, ditavam também regras sobre padrões para os pesos e medidas. Podemos ver que, por essa legislação, o boticário era tido como um comerciante submetido às mesmas normas que o peixeiro, o carniceiro, o ourives e os fabricantes de velas, entre outros. O boticário - assim como diversos outros comerciantes - teria de, ao menos uma vez ao ano, no mês de janeiro, “ afilar” seus pesos e medidas, ou seja, verificar se eles se mantinham dentro do padrão estipulado. O responsável pelo controle e pela aplicação de penas a quem deixasse de afilar ou de seguir o padrão era o almotacé-mor, ajudado por oficiais. Os pesos e medidas do padrão, em Portugal, que tivessem mais de meia arroba ficavam nas Casas da Câmara, de onde não poderiam sair. Os padrões eram definidos e distribuídos entre os diversos ofícios, como podemos ver a partir de um extrato das Ordenações Filipinas: 42. Os ourives terão uma pilha de quatro marcos, convém, a saber, dois marcos na pilha, e dois outros nos pesos miúdos. (...) 46. Os que fizerem candeia de sebo terão dois arráteis, e um arrátel, e meio arrátel. (...) 49. Os Boticários terão dois arráteis, e meio arrátel, duas quartas de arrátel e 16 onças pelo miúdo, que são arrátel e oito oitavas pelo miúdo, que são tuna onça para passarem as mezinhas. I a c im a : Sem sistema de esgoto canalizado, no período colonial, vida com arte, obra "muito curiosa, necessária e proveitosa”, Manoel da Silva Leitão apresenta os princípios p á g in a a o l a d o : Em Arte com vida ou os escravos, conhecidos como tigres, carregavam as fezes em barris até praias, rios ou lagos, onde eram lançadas. higiênicos que deviam ser obedecidospara garantir uma vida saudável. B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I I . C O L O N I A L ARTE COM VIDA, VIDA COM ARTE, M UY C U R IO S A , N E C E SS A R 1A , E P R O V E IT O S A naó íb a Medico», c Cirtirgiocn», ma» ainda a ioda a pdíbadc qualquer clbtlo , ou corultçiô , que feja , pnncipalmcnte ao» cafado», c mau que a todo*, 30» noivos de pouco tempo, cm a qual (c encontra hum K E G l M E N T O DE P A R I D AS , O F F E R E C I D O ' A* IM M A C U L A D A , E SE M PR E V IR G EM MADRE DE DEOS, • C O M P O S T O P O R S E U E S C R A V O O DOUTOR MESTRE EM ARTES M A N O E L DA S Y L V A L E 1 T A Õ . C A l’A U . £ IRO PROFESSO DA ORDEM DF. CJJRISTO, Familiar do Santo Ofício, Medico veda Corte, e Cidades de Lisboa, e do H0fpit.1l Real de Todos os Santos das mcjtuat Cidades, e delia natural. L I S B O A O C C I D E N T A L. Na QíSc-ra * A N T O N I O 1’ K D R O Z O G A L K A Ó . Em 1521, já aparece a divisão das atribuições entre as duas maiores autoridades da saúde: o físico-mor e o cirurgião-mor. A Fisicatura era um tribunal. O físico-mor, um juiz. Desde então, já aparece a figura dos juízes comissários no reino e seus domínios. No momento em que se estabelece a administração portuguesa no Império luso-brasileiro, ainda no século xyt, tem-se notícia da designação de licenciados para o cargo de físico (médico) na çidade de Salvador. Onde não houvesse um físico examinador, delegado do físico-mor, os praticantes da arte de curar deviam requerer carta ao físico- mor, com atestado das câmaras locais que comprovassem sua experiência e saber. Se aprovados em exame, recebiam licença para exercer a medicina apenas na localidade em que praticavam, e por determinado tempo. Cartas de lei, alvarás e regimentos respondiam a situações particulares, como infrações à legislação sanitária e aos abusos contra os interesses dos súditos. Foi em 1640, logo após a restauração de Portugal, que o fisco lançou suas vistas sobre as boticas. Fquiparou-as às casas de comércio. O Senado da Câmara, estrutura de poder municipal, recebia o imposto. Até a criação da Junta do Protomedicato, cm 1782, cabia ao físico-mor fiscalizar, com o auxílio dc boticários aprovados, as boticas, a qualidade c os preços dos medicamentos. A lei estabelecia que a separação entre físicos, cirurgiões c boticários era completa, cada qual com atribuições restritas ao seu domínio. Como veremos adiante, a definição de limites ao exercício de cada atividade obedecia ao estabelecimento gradual de uma hierarquia de importância entre elas. Já um alvará do século xvi - vedava aos físicos e boticários sociedade comercial nas boticas. I A atuação dos comissários do físico-mor se dava de duas maneiras: pelas visitas e pelos exames. Competia-lhes fazer visitas a cada três anos às boticas da terra e às lojas de drogas, e inspecionar, também, as boticas dos 2 I Boticário O que tem botica, vende drogas medicinais e faz mezinhas. Os boticários são cozinheiros dos médicos; cozem e temperam quando nas receitas lhes ordenam. Nicolau Longio tem grande volume contra os boticários, que não conhecem perfeitamente as qualidades dos simples, vendem uma droga por outra, um medicamento velho e sem virtude por um fresco e que novamente veio do Levante. Por isso proibiu o Imperador Nero todos os medicamentos que vinham de remotos climas. Que necessário seria a visita nas boticas. O agárico se é macho, é mortífero; a coloquintina, se está madura é perigosa; o maná que passa de um ano não presta; a canafistula velha não tem substância; a casca do ruibarbo carcomida não purga. O boticário quando faz mezinhas que o médico ordena se houvera de chamar propriamente medicamentarius. BLUTEAU. Raphael. "Vocabulário português e latino", ed. 1712 apud MARQUES, Vera Regina. Natureza em boiões. Medicinas e boticários no Brasil setecentista. Campinas: Ed. Unicamp, 1999, p .i55. 2 2 B O T I C A S & P H A R M A C I A S navios que chegassem ao porto. Sua tarefa era averiguar, acompanhado de três boticários formados, as cartas de licença e os medicamentos, isto é, seu preço, o estoque de simples e compostos necessários para que se tivesse botica aberta, o bom estado deles, a preparação, incluindo a aferição dos instrumentos que deviam estar concordes com as prescrições de pesos e medidas ordenadas pela Câmara. Na verdade, o comissário, seus auxiliares boticários, o escrivão e o meirinho que os acompanhavam em suas diligências constituíam um tribunal itinerante cujos emolumentos e propinas regulares eram acrescidos das multas aos infratores. Os oficiais de botica deviam apresentar uma certidão que comprovasse a prática de quatro anos junto a mestre aprovado e um parecer deste sobre sua competência. O regimento de 1744, elaborado pelo fisico-mor, a ser observado por seus representantes no Brasil, indica a crescente importância que Portugal emprestava aos estados da América. Todo o dispositivo legislativo, que procurava fazer a Fisicatura próxima c presente por intermédio de um pesado aparato burocrático, c as constantes queixas sobre o arbítrio dos comissários, revela que a preocupação central da coroa era com o fisco. A administração da justiça na área médica esmerava-se, então, tanto cm fiscalizar os fiscalizadores quanto em punir os infratores. Dessa maneira, o regimento fixa os-emolumentos que deviam ser percebidos pelas diferentes autoridades em cada exame e em cada visita regular. Como exemplo, o pagamento do exame, parágrafo 20: Terá o mesmo comissário do Físico-mor, (sic) de cada exame que fizer de boticário mil e seiscentos réis, ainda que o examinado não saia com aprovação, porque deve depositar antes do ato do exame, não só estes emolumentos, mas também os do Fisico-mor do Reino, e dos seus oficiais, que importam em nove mil cento e vinte réis, a saber, quatro mil e oitocentos réis para 0 Fisico-mor, quatrocentos e oitenta réis para cada um dos cinco examinadores da cone, quatrocentos e oitenta réis para o escrivão do juízo, e cargo do dito Físico-mor do Reino, quatrocentos e oitenta réis para 0 meirinho do juízo, e quatrocentos e oitenta para 0 escrivão da vara do mesmo meirinho, e quatrocentos e oitenta de esmola para os santos Cosme e Damião, por ser este o estilo praticado sempre em semelhantes exames. Entretanto, a não-observância do regimento da Fisicatura parece ter sido a norma nos tempos coloniais, tal como se infere pelo estabelecido na ordem régia de 3 de março de 1717 ao dr. João Nunes de Miranda, que servia, por comissão, de fisico-mor na Bahia: Porquanto tenho notícias que geralmente costumam nessa cidade da Bahia curarem cirurgiões de medicina dando purgas e outros remédios de que só podem aplicar os médicos formados na Universidade de Coimbra Ns 1 t B O T I C A S H B O T I C Á R I O S NO B R A S I I . C O L O N I A L ? - 3 ou aprovados pelo Fisico-inor do Reino, o que è eni notório dano do comum e ter experiência mostrado suceder mil infortúnios e desgraças pela imprudência dos cirurgiões (...)•2 Não só lojas de barbeiro e boticas vendiam remédios no Brasil. Os estabelecimentos dos ourives, padeiros e outras casas também comerciaram remédios específicos. Os próprios médicos, apesar de o alvará real proibir que preparassem e vendessem drogas, manipularam e venderam suas próprias receitas. Se os cirurgiões curavam de medicina e os médicos aviavam suas receitas, os boticários receitavam por conta própria. Não se limitava ao controle das atividades mercantis a sanha legislativa da metrópole. Bem antes do período pombalino (1750-77) e do reinado de dona Maria 1 (1777-1808), quando o ministro da Marinha e Ultramar d. Rodrigo de Souza Coutinho (1755-1812) projetou uma política voltada á valorização dos produtos naturais da América portuguesa e às pesquisas em história natural, já era patente o interesse da Coroa pelas plantas que tivessem utilidade médica. O incentivo às obras que descrevessem o quadro dasdoenças e, em especial, a flora e a fauna de valor medicinal estava já expresso no édito de Filipe n, de 1570, no período da União Ibérica. Nesse documento, o rei nomeava emissários para se informar sobre a experiência dos nativos sobre o uso, a faculdade e a quantidade de medicamentos, reconhecendo o quanto de beneficio será para este e aqueles reinos a noticia, comunicação e comércio de alguma planta (sic), ervas, sementes e outras cousas medicinais que possam conduzir à cura e saúde dos corpos humanos, temos resolvido enviar, algumas vezes, um ou muitos protomédicos gerais às provindas das índias c adjacentes.3 p á g in a a o l a d o : A imagem de Spix & Martius mostra negra com bócio, doença comum no período colonial, causada por carência de iodo. a c im a : Segundo a tradição. Cosme e Damião. os santos padroeiros dos médicos e dos farmacêuticos, formam um exemplo da devoção cristã ao cuidado dos doentes. M ACHADO, Roberto et alli. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 29. WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Gomes Ferreira e os simplices da terra: experiências dos cirurgiões no Brasil-Colónia. In: Erário mineral (org. Júnia Ferreira Furtado), Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002, pp. 1 12-3. 2 .) A mata é a botica dos índios 4 VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus, Petrópolis: Vozes, 1977, ( ia ed. 1663), apttd Frédéric Mauro, Nova história da expansão portuguesa. O Império Luso- Brasileiro (1620-1750). Lisboa: Ed. Estampa, 1991, P- 271. Apesar de não termos documentos escritos pelos próprios índios, apenas os registros deixados pelos brancos, muitas vezes preconceituosos, o fato é que portugueses, holandeses e franceses salientaram os conhecimentos indígenas sobre as ervas medicinais, aos quais freqücntemente recorreram. Anotava o jesuíta Simão de Vasconcelos, no século xvii, que “ em suas curas ri-se esta gente de medicamentos compostos; só nos simples dos campos têm sua confiança; e estes lhes ensinou a natureza, e o uso, como a arte dos melhores médicos” .4 Naquelas sociedades sem escrita, com um nível rudimentar de divisão do trabalho c hierarquização social, o enfermo e o indivíduo responsável pela sua cura compartilhavam os mesmos pressupostos e crenças sobre a estrutura do corpo e suas funções na saúde ou na doença. Em seus esforços para sobreviver em um ambiente natural potencialmente hostil, aquelas sociedades de caçadores-coletores representavam seu mundo como dividido cm um domínio físico e outro espiritual, e adotavam certo número de técnicas para fazer face aos problemas relativos ao sofrimento humano. Essa medicina reunia aspectos mágicos e receitas empíricas, tal como o uso de amuletos, encantamento, mudanças dietéticas e preparados botânicos nem sempre inócuos. Mudanças no comportamento, como repouso e reclusão, eram complementadas com rezas, rituais c confissões. Doenças comuns eram tratadas de um modo puramente naturalístico. Doenças raras e de maior gravidade eram percebidas como grave ameaça à coesão social. Por isso, requeriam maiores e mais espetaculares esforços, envolvendo a manipulação de um domínio compreendido como sobrenatural, voltado à identificação da entidade ou espirito maligno que O tratamento nativo "A respeito das plantas oficinais, uma existe de nome petun, que apresenta a forma da azedeira, um pouco mais alta e de folhas parecidas com as da consolida. Erva de virtudes, os selvagens a colhem em pequenas porções, e a secam em casa. Depois tomam quatro ou cinco folhas que enrolam em forma de cartucho de especiaria; chegam fogo à ponta mais fina e pela outra sugam uma fumaça que, apesar de solta de novo pelas ventas e opérculo dos lábios, os sustenta, de forma a lhes permitir passar sem alimentos três e quatro dias, coisa muito útil na guerra. Também o usam para fazer destilar os humores supérfluos do cérebro, e por isso não os vereis nunca sem o competentè cartucho de petun no pescoço." LÉRY, jean de. História de uma viagem à terra do Brasil. Rio de (ançiro: Companhia Editora Nacional, 1926. pp.139-40. B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L penetrara no corpo e devia ser expulso. Um reino geralmente invisível de forças e poderes era concebido para explicar certas enfermidades e aflições. Essas práticas ancestrais de cura eram sempre sagradas e holísticas, reunindo tratamentos que envolviam os indivíduos afetados c o grupo tribal ou parental ao qual pertenciam. Quando uma doença era causada por divindades sobrenaturais, os pajés, líderes religiosos, desempenhavam papéis importantes no diagnóstico e tratamento de uma pessoa tida como sofrendo de um mal. Ao conhecimento das plantas somava-se, na medicina indígena, o uso da sangria, das fricções e massagens e o usó de substâncias quentes, secas ou úmidas. Embora empregassem remédios animais e minerais, os índios utilizavam amplamente asTplantas frescas. Como assinalou Von Martius, “ a mata é a sua farmácia” .5 VON MAR TIUS, Karl Eriedr. Naluresa, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1939 (1840), pp. 234-5. dermatose. Entre ind uramente naturalistico is consideradas mais am a manipulação de 1 ? ordem sobrenatural. 2 6 B O T I C A S & P H A R M A C I A S 6 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e /romeiras, São Paulo: Companhia das Leiras, I995> PP- 74-89- Com os seus saberes sobre a natureza, os índios indiearam aos colonizadores as novas plantas que poderiam servir para alimento e remédio. Como afirmou Sérgio Buarque dc Holanda, o conhecimento de quase todos esses produtos foi apropriado pelos bandeirantes paulistas.6 Jesuítas e bandeirantes foram, assim, os primeiros grupos que aprenderam o valor terapêutico de ervas indígenas. Com o avanço da colonização, médicos, mezinheiros, jesuítas, barbeiros sahgradores, cirurgiões e boticários incorporaram dos ameríndios o uso da “ botica da natureza” : Dava-se a fruta do cajá aos doentes com febre. O sumo do caju era usado nas febres e fazia bem ao _ estômago. Da imbaúba, o óleo era cicatrizante e as folhas agiam como purgante, tal como a noz do andá. Com o mesmo fim, porém mais popular, era empregado o óleo de copaíba. A parreira-brava e o malvisco eram antipeçonhentos. No caso de chagas ou doenças de pele, a língua de vaca e o camará eram indicados. A casca e b suco da maçaranduba, as folhas do camará e os “ olhos” da salsaparrilha, eram usados para as boubas, mas tinham bons resultados para os corrimentos, diarréias c doenças venéreas. O ananás dissolvia as pedras, o Ingá teria virtude para o ligado, o maracujá, por ser fruta fria, era boa para as febres. A erva santa ou tabaco servia para os doentes de cabeça, estômago e asmáticos. O sumo matava os vermes tal como a erva de santa maria ou mastruço. A fruta do jenipapo e a ipecacuanha ou poaia eram excelentes mezinhas para deter as câmaras (diarréias). Esses remédios só lentamcnte foram se incorporando às boticas. Eram inicialmente remédios de pobres ou mesmo de desbravadores como os bandeirantes paulistas e os mineradores, no contexto do ciclo do ouro na região das Gerais, que aprendiam com os carijós a localizar ervas e improvisar mezinhas. Como relatou, em 1735, o cirurgião Luís Gomes Ferreira, autor do famoso Erário mineral, 7 Apud DIAS, Maria Odila da Silva Dias. “ Sertões do Rio das Velhas e das Gerais: vida social numa frente de povoamento - 1710-1733” . In: FERREIRA, Luis Gomes, Erário mineral (Org. Júnia Ferreira Furtado). Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro; Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002. p. 53. os homens bons preocupavam-se em conservar os matos próximos dos arraiais, onde muitos eram “vistos e experimentados cm raizes, ervas, plantas, árvores e frutos, por andarem pelos sertões anos e anos, não se curandode suas enfermidades, (sic) senão com as tais coisas e por terem muita comunicação com os carijós, de quem têm se alcançado coisas boas”.7 O naturalista Von Martius (1794-1868), que esteve no Brasil no período joanino e interessou-se vivamente pela medicina c terapêutica indígenas, comentou o efeito dc certas ervas frescas que um pajé empregou numa “ úlcera maligna” no pé de um escravo negro de sua comitiva, “ que se a c im a : Na imagem de Chambcrlaín nota-se o método do emplastro aplicado à perna no negro que anda apoiado por um cajal. Trata-se de imagem rara que mostra um escravo machucado com curativo. PÁCINA a o l a d o : A imagem de Hans Staden descreve a preparação e o uso do cauim. bebida feita a partir da fermentação de alimentos, de caráter entorpecente. Poucos métodos de cura dos indígenas foram incorporados às boticas da cidade. B O T I C A S B B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 1 *7 achava inválido há meses, e havia resistido a muitos medicamentos” . Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), em sua Viagem filosófica, recolhia e descrevia tudo o que achasse interessante sobre a natureza do Brasil; desenhou e nomeou diversas plantas, e freiVeloso (1742—1811), com o mesmo propósito, escrevia: Animais que curam Nestas Minas há uns macacos a que chamam de barbados, outros lhe chamam bugios, e são uns que têm papo e são pretos pelo corpo, e pelo fio do lombo têm 0 seu cabelo a modo de ruivo e são conhecidos pelo nome de barbados, e pelo papo, de muita gente: destes, estando ainda vivos, se lhes tira aquela noz redonda a modo de bolazinha, que encaixa no quadril na cova onde joga a perna e há de ser 0 da perna esquerda: esta bolazinha, chamada por algumas pessoas "conta de macaco", (sic) se aperfeiçoa efura para trazer atada no braço esquerdo, de modo que toque na carne: è bastante para se acabarem as queixas de quem for perseguido de almorreimas; a mim me certificou um parente meu. amante da verdade, que só de trazer na algibeira uma conta das ditas acima que lhe deram por ele dizer que padecia suas queixas do tal achaque e a não atara no braço por não ter queixa naquela ocasião, mas que, correndo os tempos, nunca mais sentira moléstia alguma: c indo em uma ocasião à dita algibeira, dera nela com a tal conta efe a ra na certeza de que estava livre das graves moléstias (...) Erário mineral. FERREIRA. Lufs Comes (org. Júnia Ferreira Furtado). Erário mineral. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro: Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz, 2002 Não há vegetal algum que não mereça ocupar a atenção de um verdadeiro sábio; nenhum há, por mais desprezível que pareça, de que se não possa esperar alguma utilidade. Eles são estimáveis por suas virtudes medicinais e requerem um particular estudo de todos os que se destinem ao curativo dos enfermos; eles fazem que não haja terreno algum que se possa verdadeiramente chamar estéril, ou incapaz de se aproveitar; fornecem uma grande parte dos nossos alimentos, servem-nos em infinitos usos econômicos e merecem por conseguinte de ser estudados relativamente à agricultura e comércio. Bernardino Antônio Gomes (1768-1823), notável médico português, residente na Bahia, aprovou o emprego de emplastros de mastruço ■ y Q N m a r t IUS, Karl no tratamento de hérnias.8 Friedr. Phil., op.cit. p. 234. B O T I C A S & P H A R M A C I A S2 8 Calundus e curandeiros africanos o o O Apesar de todo o controle e submissão cultural impostos pelas leis c exercidos pelas autoridades civis e eclesiásticas contra suas crenças e ritos, era talvez na área das curas que as tradições das diversas etnias negras se mantinham com maior intensidade, sobretudo quando se tratava de curar outros negros. Entre os brancos das camadas populares, gozavam os curandeiros negros de grande prestígio, os quais eram procurados sem hesitação. Qsjxm édios das boticas disputavam com ([benzeduras. relíquias e amuletos. A angolana Luzia PintE muito conhecida na freguesia de Sabará no início do século xviii, era bem-sucedida como “ calunduzeira, curandeira e adivinheira” . Isso significa que, além de oficiar cultos religiosos, ela sabia preparar tisanas, cataplasmas c ungüentos que aliviavam as dores e curavam doenças, usando como recursos ervas e encantamentos. No Maranhão, um escravo foi chamado para curar a mulher de um barqueiro que se encontrava muito doente. O Diabo foi vencido por meio de ' i. • • invocações em língua natal e português, além do uso de poções com água, ervas e uma pedra que se achava na cabeça de um peixe. Na região mineradora, alguns escravos foram denunciados à Inquisição por praticar a feitiçaria. Um deles tirava ossos e outras drogas dos corpos daqueles a quem curava, chupando-os pela boca. Os brancos atribuíam aos africanos grande conhecimento dos venenos c seus antidotos. Também sabiam curar distúrbios mentais e espirituais. No interior da Bahia, o Santo Oficio identificou um senhor que pagou caro por duas escravas curandeiras: com elas montou uma espécie de clínica, onde se praticavam vários tipos de cura. Uma das formas de aculturar o escravo consistia em enquadrá-lo na religião vigente, por meio dos sacramentos do batismo, casamento e extrema-unção. Por intermédio das irmandades, como a de Nossa Senhora do Rosário, puderam os negros recriar suas crenças e tingir o culto aos santos católicos de significados profanos emprestados dos calundus. Çqm a incorporação das culturas ioruba, nagô, daometana, jeje, mina, malê e banto no meio urbano e rural da Colônia, as práticas mágicas e certas noções de doença e cura encontraram fácil assimilação no repertório sobrenatural popular de origem lusitana. É preciso ter em mente que a população de origem africana que alcançara grande concentração em torno do Brasil açucareiro, no século xvn, atingiu o máximo de intensidade por voltr de 1750, com a expansão do Rio de Janeiro e o povoamento das Minas, graçaí B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 2 P à mineração. Personagem fundamental na perpetuação de tradições terapêuticas africanas, o barbeiro, geralmente mulato ou negro, escravo ou livre, munia-se de uma trouxa ou pequeno baú onde acondicionava os apetrechos indispensáveis ao seu mister: navalha, pente, tesoura, lanceta, ventosa de chifre, sanguessugas, ungüentos, sabão e bacia de eobre. A influência dos curandeiros perante a população se estendeu a ponto de o fisico-mor do Reino, numa provisão de 1744, ter proibido aos boticários aviar suas receitas, ordenando que seus delegados no Brasil fiscalizassem periodicamente essa prática. A relação dos boticários com os remédios da terra não era, porém, das melhores. Em 1796, o vice-rei, conde de Resende enviou às autoridades metropolitanas uma carta na qual reclamava dos boticários, afirmando que, embora houvesse nesta terra infinidade de ervas e raizes conhecidas pelo mesmo nome e atributos das que mandam vir de fora, des são os primeiros em desacreditá-las, não porque assim seja, como todos persuadem, mas porque acham grande conta em fazer misteriosa a sua ocupação, c muito maior em reputar a vinda de ervas importadas, que ver-se-iam obrigados a vender por baixo preço, havendo outras do mesmo país, não deixando, porém, de as plantar, e comprar quase de graça, para as tornarem a vender na estimação das que de fora lhe são remetidas,9 MARQUES, Vera Regina Beltrão. Natureza em boiões; medicinas e boticários no Brasil setecentista. Campinas: Editora da Unicamp/ Centro de Memória-Unicamp, 1999, P- 197- PÁGINA AO LADO, ACIMA: Os africanos PÁGINA AO LADO, ABAIXO: tinham grande conhecimento de Amuleto africano. venenos e seus antídotos e exerciam na colônia muitas vezes o papel de curandeiro, lançando mão de suas tradições, principalmente para curar outros negros. Na imagem, um escravo sofre de bouba. a c im a : Na rara imagem do século xvn vê-se um ritual de calundu. Através da religião e também dosritos de cura, os negros mantinham vivas, do lado de cá do Atlântico, as crenças africanas. 3 .) As ordens religiosas A A S S I S T Ê N C I A M É D I C A C O M O C A R I D A D E i^utra poderosa tradição que atuou na conformação da cultura médica heteróclita que marcou o período colonial proveio do catolicismo português, por intermédio do clero regular e das ordens e confrarias religiosas. Como já observamos, não eram poucas as doenças e epidemias que atacavam os colonos e o restante da população indígena e negra. Varíola, disenteria, malária, febres tifóides e paratifóides, boubas, maculo (fístula anal), sífilis, lepra, elefantíase-dos-árabes (filariose) e opilação (ancilostomíase) eram as mais presentes. A imensa maioria dos doentes recebia tratamento em casa. Assim, os que caíam doentes e seus familiares mantinham o controle da situação, ao contrário do que aconteceria num hospital. Em suas casas, eles podiam decidir sobre o tipo de terapia que estariam dispostos a pagar e escolher livremente dentre os vários tipos de agentes terapêuticos. Não eram apenas os pobres que faziam tal opção; as pessoas de posse cuidavam de suas B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 3 1 doenças em casa, com médicos e cirurgiões, ou então com curiosos c curandeiros, ao passo que as ordens religiosas ou laicas tratavam de seus próprios irmãos. Os brancos pobres, a gente dc cor, escrava ou forra, soldados, marinheiros, forasteiros em geral, quando em estado dc indigência, recebiam assistência espiritual e médica nos hospitais da Ordem da Misericórdia. A Igreja católica era o suporte da vida cultural da Colônia, e as ordens religiosas constituíam a ponta dc lança da Igreja na propagação da fé e da cultura cristãs, para as quais o bem-estar físico era secundário em face da salvação espiritual. Além do mais, a doença podia ser percebida alternadamente como uma expressão do pecado ou da graça divina. O corpo como o repositório da alma imortal permaneceu como um legítimo objeto de cuidado. Os ensinamentos bíblicos e o exemplo de Jesus apontavam a devoção aos doentes como uma bênção divina, não restrita apenas a praticantes treinados. A fé cristã enfatizava que o cuidado e a cura deveriam ser uma vocação popular, um ato de humildade consciente, portanto, um componente vital da caritas cristã. A evangelização e a catequese sistemáticas iniciaram-se em 1549 com a vinda do primeiro governador-geral, Tomé de Sousa (4503-79),e de um pequeno grupo de jesuítas. Nos finais do século xvi, foi a IMlho -ItflE I D E A S NCI.V !>KIJ> IIENIA l»NAMÍ‘ Omni/ E 1(00 K ?60TADll IA DE"; vr líh rSiTKÍNW.' DEVIDA roM ACiíILM EA DEMEMCOÍ F. ÍVTUÍ.Klii / e l e u it - FJMV HVM/> MF-IV* l)t'Dn'„CEK)v! ALANIA r/.,«HX/NlVv \T(OA IW\í lio"' t 5TAKlCC 05/KC.l L K MlUlGRO?/- M*1 K5CAPOV O/MORTE P H tuast/SP* SvW-TtANO « N h í* IIEI.HEUAH VÍÜA i f f ÍE R m . Hüir 17 IV - Botica de ordem religiosa O boticário será um religioso sacerdote de muita caridade e curiosidade, e que tenha alguma ciência da botica ou experiência dela. ao qual se dará religiosos, ou seculares que o ajudem; procurando sempre haver pessoa que saiba bem da botica pelo que importa à saúde dos religiosos, credito e bom serviço da botica, e assim deve estar o boticário presente à visita pela manhã, e tarde, para notar bem as mezinhas que se mandem dar a cada um, não se fiando nunca na sua memória, pois é coisa de tanta importância a saúde dos enfermos, procurando sempre estar a botica muito provida dos simplices, e mais mezinhas necessárias às necessidades c enfermidades que sobrevivem aos religiosos, fazendo e mandando fazer as águas destiladas, xaropes, pílulas e mais compostos de que se usa, pedindo para isso ao Prelado quem o saiba bem fazer, quando em casa o não houver para tudo ser perfeito; e pedirá ao Prelado todo o açúcar necessário, que terá por rol para dele dar conta por inteiro. Não dará para fora Mezinha alguma sem licença do Prelado, excepto pós comuns, unguentos, e outras coisas semelhantes, de pouco porte, mas nunca xaropes, nem purga, sem o Prelado assinar as receitas do médico constando ser de pobres. Não comprará drogas, nem outras mezinhas sem licença do Prelado, nem sem as ver quem disso bem entenda, assim para a bondade delas, como para o preço. Dc todos os simplices. c compostos da botica terá muito cuidado, para que não se corrompam, e quando houver de fazer algumas coisas daquelas, que se costumam fazer de noite, dará conta sempre disso ao Prelado para que saiba a ocasião de sua falta e o que passa naquelas horas, e tempo, e procurará sempre assistir nessa oficina. Códice existente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, intitulado Uzos das Ceremonias e Louváveis costumes do Ordem de Christo reformados no anno de rjoz. p á g in a a o l a d o : A força da influência do catolicismo português na cultura médica do período colonial fica expressa no uso dos ex-votos, em agradecimento è cura de enfermidade grave, como este dedicado à Nossa Senhora do Carmo. a c im a : Ex-voto em nome de milagre do Bom Jesus do Matosinhos a Cipnano Ribeiro Dias. Em 1745, este doente sangrou pelo nariz durante horas seguidas c ficou curado milagrosamente com a fé. 3 2 B O T I C A S &■ 1’ H A K M A C I A S vez de os beneditinos, carmelitas e franciscanos se estabelecerem no Brasil. Além dos seminários e das pastorais, o trabalho caritativo, em especial o tratamento dos doentes, era parte essencial de suas ações. Q culto dos santos servia também de escude contra os perigos da vida ou proteção contratos demônios. Muitos eram invocados pela sua .qualidade de'curar. Nas procissões organizadas pelas confrarias, nas igrejas ou no refúgio do lar, orações e preces solicitavam a intervenção dos santos. £ada qual segundo sua especialidade. São Sebastião era invocado para proteger das epidemias. Santa I aicia, contra as dores dêllénies. Contra a peste e quebradura, santo Adrião. Contra possessões, santo Alberto. Santa Agueda, contra dores dos peitos e Santo Amaro, contra os achaques das pernas e braços. Santa Ana, contra a esterilidade e santo Anastácio, contra qualquer doença. Uma procissão diária nas cidades coloniais era a do viático levado aos moribundos e doentes. Um -sem-número de devotos compunha o cortejo, entoando ladainhas. Todas as .igrejas repicavam sinos à sua passagem. Perante as dificuldades e precariedade da vida, a Igreja incentivou os fiéis brasileiros a agrupar-se em confrarias, formadas segundo categorias sociais, para encontrar soluções que abrissem as portas à salvação eterna. Refúgio na vida, segurança em face da morte, gosto da ostentação e exibição de uma posição social numa sociedade rigidamente estratificada, as confrarias foram também garantia de cuidados aos doentes e missas póstumas para o conforto da alma. A confraria mais antiga do Brasil era a da Misericórdia, que, inspirada nos compromissos corporais, realizava obras voltadas à alimentação dos presos e famintos, remia os cativos, curava os doentes, cobria os nus, dava repouso aos peregrinos e enterrava os mortos. Mantida por figurões de grande prestígio social, a ordem se beneficiava dos legados deixados por seus associados e de eventuais recursos diretos da Coroa. Os quatro hospitais abertos no século xviii pelas ordens terceiras de São Francisco e do Carmo voltavam-se ao acolhimento exclusivo dos confrades. Os hospitais da Santa Casa da Misericórdia, quase todos modestos e em permanente estado de penúria, assistiam a uma população de indigentes e moribundos, desde o século xvi, em quinze cidades brasileiras. Como a Misericórdia gastava menos com seus hospitais do que corr as festividades religiosas, a instituição vivia na pobreza. Isso pode ser estimado pelo exemplo da mais importante dentre as Santas Casas do século xvn, a da Bahia, onde, durante uma epidemia ocorrida em 1694, 180 doentes foram internados nas seguintesenfermarias: enfermaria das febres, dispondo de 16 catres com colchões rotos, 18 camas de esteira no chão, sem travesseiros, À e s q u e r d a , a c im a : Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, inaugurada em 1582 pela mais antiga confraria do Brasil, era mantida por figurões de grande prestígio social e eventuais recursos da Coroa. À e s q u e r d a , a b a ix o : Pote de teriaga 01 triaga. A triaga brasílica era um remédic composto de extratos, gomas, óleos e sais químicos extraídos de 78 tipos de plantas, e que se tornou objeto de cobiça no império português e a segunda maior fonte de renda da Companhia de Jesus no Brasil. B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 3 3 sem colchão c com lençol; enfermaria de a/ougue, com seis catres para os que estavam em tratamento com unturas; enfermaria das chagas, com vinte catres e 23 camas de esteira no chão, sem travesseiro e sem colchão, com um lençol; enfermaria dos convalescentes, com 18 catres c 24 camas de esteira no chão; enfermaria das mulheres, com 17 catres com colchões velhos; enfermaria dos incuráveis, com vinte catres sem colchões.10 A terapêutica se resumia a uma alimentação à base de canja de galinha, sangrias e purgas realizadas por barbeiros, sangradores e, quando em aperto financeiro, por escravos. Um médico e um cirurgião davam conta do trabalho, comparecendo pela manhã e à tarde. i< RIBEIRO, Lourival. Medicina no lirasil colonial, Rio de Janeiro: Editora Sul- americana, 1971, pp. 40-1. As boticas dos jesuítas c a triaga brasílica A medicina em Portugal, nos séculos xn e xni, era exercida pelos eclesiásticos. Os jesuítas, ao chegarem no Brasil, mantiveram essa tradição de aliar a assistência espiritual e corporal ao trabalho de catequese. Além de receitar, sangrar, operar e partejar, criaram enfermarias e farmácias. Como as drogas de origem européia e asiática eram raras e tinham um preço exorbitante, valeram-se dos recursos medicinais dos indígenas. Foi assim que a Europa conheceu as virtudes da quina, proveniente do Peru e da ipecacuanha, que também encontrou enorme sucesso. As boticas dos jesuítas eram, quase sempre, as únicas existentes em cidades ou vilas.Treze boticários jesuítas se instalaram no Brasil nos anos 1600 e outros trinta no século xvin. As farmácias dos conventos teriam contribuído para a penúria dos boticários • 1 a laicos. A botica dos jesuítas do Rio de Janeiro, que funcionava no morro do Castelo, provia as boticas da cidade. A triaga brasílica, produzida na botica que os inacianos mantinham em Salvador, alcançou enorme prestígio em todo o Império português e era a segunda fonte de renda da Companhia de Jesus no Brasil. Tal como a triaga optima do Colégio Romano, era um antídoto universal e uma panacéia para todos os males. Antes de entrar em decadência, no século xix, esse remédio, composto de extratos, gomas, óleos e sais químicos extraídos de 78 tipos diferentes de plantas encontradas nas mais diferentes regiões do Império luso-brasileiro, foi objeto da cobiça das autoridades pombalinas. Durante o seqüestro dos bens dos jesuítas da Bahia, em 1760, o desembargador responsável afirmou que haveria na cidade quem desse três ou quatro mil cruzados por ela. Se a história da medicina colonial, e da sua farmácia em particular, não pode ser contada sem referência às religiões indígenas e africanas e às instituições católicas, é na cultura médica européia, em especial na longa uadição legada pela medicina hipocrática c galênica, que devemos encontrar seu lastro principal. Fórmulas secretas No Arquivo da Companhia de Jesus, em Roma, há um documento que já no prólogo revela a consciência que os jesuítas possuíam do valor simbólico dos remédios secretos. Amigo e caríssimo leitor, não f iz esta Coleção de Receitas particulares de nossa Boticas, senão para que se não perdessem tão bons segredos, e estes não andassem espalhados por todas as mãos; pois bem sabes, que revelados estes, ainda que seja de uma Botica para outra, perdem toda a estimação: e que pelo contrário 0 mesmo é estar em segredo qualquer Receita experimentada, que fazerem dela todos um grande apreço, e estima com fam a, e lucro considerável da Botica a que pertence. Pelo que peço-te, que sejas muito acautelado e escrupuloso em não revelar algum destes segredos: pois em consciência se não pode fazer, advertindo que são cousas estas da Religião, e não tuas. Manuscrito Coleção de várias receitas particulares das principais boticas da nossa Companhia de Portugal, da India, de Macau, e do Brasil... de autor desconhecido, datado de 1766, apud Lourival Ribeiro, op. cit., pp. 174-5. Sob o império de Galeno A S D O E N Ç A S E S E U S T R A T A M E N T O S N A T R A D I Ç A O M E D I C A E U R O P E I A ‘ vO Galeno (130-200 d.C.) foi, juntamente com Hipócrates (460-? a.C.), a m figura da medicina antiga. Sua imensa obra exerceu uma influência considerável até o século xvu, tanto no mundo árabe quando no Ocidente cristão. De acordo com a tradição hipocrático-galênica, transformada em dogma pelo ensino escolástico professado nas universidades medievais des o século xiii, o corpo humanoseria constituído por sangue, pituíta, bile amarela tTbile negra. Existiria saúde quando esses princípios estivessem en justa relação de equilibrio (crase), de força e de quantidade, em perfeita mistura. Existiria a doença quando um desses princípios estivesse, seja em menor quantidade, seja em excesso, ou, isolando-se no corpo por uma esp de obstrução, não se combinasse harmonicamente com o resto. Eis o grande princípio hipócrático que os jovens doutores cm medicina, formados nas universidades européias, deviam ter em mente enquanto examinavam seus doentes. As doenças seriam causadas por falta (caquexia), excesso (pletora) ou corrupção de um ou mais humores. 'Tratava-se, então, de restaurar o déficit ou, ao contrário, suprimir o excedi podiam taml A febremão seria nem um sintoma nem uma doença em si, mas a expressão do esforço curativo da natureza (vix medicatnx miturae). Provenk do coração, o calor atuaria no cozimento dos humores corrompidos. A capacidade de discriminar entre os diferentes tipos de febre e atuar no mon certo em auxílio da natureza distinguiriam o talento dos médicos. Em caso 1 febre maligna ou pestilencial, o que compreendia a varíola, a rubéola, a púrj c a peste - todas causadas por humores corrompidos que exalavam um fort odor - , impunha-se, além do recurso das ventosas e vesicatórios, o emprege principais drogas: a triaga, o mitridato ou a pedra de bezoar. A varíola, com peste, matava no estado endêmico. O médico nada podia contra esses ílagel O melhor era deixar a natureza fazer o seu trabalho. Suas sangrias, purgas t clisteres apenas faziam agravar o estado de saúde do enfermo. 1 O cérebro também tinha suas doenças. O resfriado, considerado afecção cerebral, devia-se ao excesso de frio ou de calor. O médico usava ci a coriza toda uma estratégia. Primeiramente era preciso retirar toda a pituít com a ajuda de poções e pílulas doces. Isso feito, usavam-se os purgativos.! igualmente recomendável o uso de purgantes, seguidos de ventosas, vesicat Mas convinha, antes, evacuar os maus humores. Os humor se desviar, sendo fundamental repô-los em seus caminhos. B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L f ' lu I. f / 'II rl(it]\ Hier- JU< n|y<' ii'iïrm iin Jll(t(f('u l irfl 11 (I ou ()f'H iUbwan I ■ th noth V ’ fi f f l d w l Ml 1 r > n ( ’ If 1 In ) í < 1 i (/If nl > I l U 1 I n n ’ n i f t i i i U i ( I f ' f î l<< i n p á g in a a o l a d o : Muito valorizada como remédio contra infecções da pele e tida como excelente vomitório, a pedra de bezoar era encontrada no estômago de alguns animais, como a cabra. a c im a : Em algumas cidades européias, drogas trazidas do Oriente ou da América eram acumuladas em lojas que armazenavam grandes provisões. Estasboticas abasteciam outras, menores 3 6 B O T I C A S & P I I A R M A C I A S AÃ í ' $ ■0/ i <L e cautérios sobre os ombros, atrás das orelhas e no pescoço Nada impedia que se empregasse, também, um esternutatório (remédio que provocava espirros). Aconselhava-se, outras vezes, tosar a cabeça para aplicação de opiato (medicamento composto por extrato de plantas, em que entrava o ópio) sob a forma de emplastro. Para dores de cabeça empregava-se esteva (planta comum em todo o território português) cozida em cinzas quentes. A paralisia cedia friccionando-se o membro paralisado corr o famoso óleo de petits chiens. _A jrtelancol ia, causada pelo excesso de bile negra, dividia-se em três tipos de acordo com Galeno, çlépendendo da região do corpo onde ocorresse concentração dé atrabile. Por toda parte se podia encontrar a melancolia do amor, comum às jovens viúvas, que podia ágrávar-sc até a mania uterina. Os vomitórios energéticos podiam ser empregados. Mas o melhor para essas infortunadas seria encontrar um novo marido: “TJm marido é um emplastro que cura todos os males das jovens” , dizia um provérbio da época. A gota, reconhecida por quatro sinais - dor, calor, tumor, rubor -, devia-se sempre aos excessos, mas também à ociosidade. Purgas, sangrias e clisteres, sem dúvida. Aconselhavam-se também o leite ainda morno das mulheres e o excremento da vaca, igualmente quente. Algumas águas minerais. Para os males dos pulmões que não apresentassem muita gravidade, usava-se a julepa (preparação líquida ou engomada, açucarada e aromatizada) e xaropes - sobretudo nas bronquites. As pleurisias exigiam medicamentos ainda mais estranhos. Sangue de bode, por exemplo, ou fuligem de ervas e . sangria. Para a tísica, reconhecida pelo “ humor acre, aflitivo, corrompido e apodrecido dentro dos pulmões” , estava-se desarmado. Quanto ao coração, essa víscera nobre, cabia-lhe o comando de tode o sistema humoral. Esse personagem não devia ser incomodado. Bastava, às vezes, um medo, uma alegria, um remorso e ele suspendia seus batimentos. Perdia seu espírito vital e eis a síncope! Era difícil saber o que esse desconhecido queria ou rejeitava. Que medicações lhe oferecer senão julepas calmantes ou tisanas estimulantes segundo o caso. Conheciam-sc melhor o estômago e os intestinos. Nesse domínio triunfavam, evidentemente, as purgas e os clisteres, dosados e compostos de acordo com a necessidade de resfriar, aquecer, umedecer ou ressecar. Sendo a digestão assimilada como uma cocção, na tradição hipocrático-galênica, a açãc terapêutica consistia então em auxiliar ou melhorar esse cozimento por meio de uma verdadeira cozinha farmacêutica em que entrava toda sorte de condimentos. A arte consistia em variar os condimentos segundo o diagnóstico aferido por meio do tipo de indisposição estomacal e intestinal. B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L Nos casos em que dores estomacais eram seguidas por vômitos com sangue, anunciados pelas “ cóleras úmidas” , acalmava-se a dor com extrato de opiatos, As “ cóleras secas” , assinaladas pelas flatulências, eram tratadas com a ajuda de extratos de cochonilha. O intestino era menos secreto. O exame das fezes, de visu et odoram, permitia um diagnóstico mais seguro, pois se determinava mais facilmente o humor em causa. Teorias médicas Iatroquimica Doutrina médica originada da alquimia Paracelso (1493-1541) foi contemporâneo de Copérnico, Martinho Lutero, Leonardo da Vinci e outras figuras associadas com a crítica ao pensamento medieval e o nascimento do mundo moderno. Seguindo a tradição hermética, ele propunha estudar o homem - o microcosmo - por meio do estudo do macrocosmo, já que o primeiro era a perfeita representação do segundo. Alguns médicos entenderam que ali estava uma nova chave para o seu trabalho. O apelo a novas observações foi entendido como um ato dc devoção. 0 cristão não deveria mais se limitar a estudar as Sagradas Escrituras, mas também 0 livro da natureza, repleto de revelações divinas. Na tradição alquímica, o trabalho de purificação dos metais era entendido como uma ajuda à natureza no seu processo natural de aperfeiçoamento. Transposto para o plano do microcosmo (o homem), o trabalho do médico seria o de recuperar a saúde, buscando substâncias medicinais existentes na natureza que agiriam por simpatia sobre os órgãos e humores afetados. Paracelso, que queimou em praça pública os livros de Galeno, rejeitava os humores e em seu lugar pôs três novos p á g in a a o l a d o , a c im a : Farmacêutico p á g in a a o l a d o . ABAIXO: Pintura da Basilea macera ervas. Esta era a a óleo representando a figura etapa inicial do processo de produção de Hipocrates. de muitos remédios. Aqui, o desenvolvimento de artefatos mecânicos se combinava muitas vezes com métodos mais tradicionais. n o a l t o : Paracelso propôs o estudo do macrocosmo como forma de entender o homem (microcosmo). Grande defensor dos remédios minerais e metálicos, sua nova leitura da medicina influenciou diversos médicos da época. 3 8 B O T I C A S & I ' HA R M A C I A S elementos: o enxofre, o mercúrio e o sal. Cada doença teria uma terapêutica especifica. ParaVan Helmont (1577-1644), seu seguidor, os processos químicos seriam dirigidos por um espirito denominado blas, equivalente ao archeus de Paracelso. Para essa e outras vertentes da iatroquímica, os estados patológicos deveriam ser tratados quimicamente, valorizando os remédios químicos. Podemos citar: o tártaro sódico potássico (sal de Rochelle), com propriedades laxantes; o sulfato sódico e o sulfato de amónio; o sulfato de potássio (sal policrcsto); o sulfato de magnésio; o carbonato de magnésio (pós do conde de Palma). Os iatroquímicos encontraram rápida acolhida entre os práticos sem diplomas. Nos tempos em que o teatro de Molicre ridicularizava os médicos hipocráticos, cresceu fortemente seu prestígio nas cortes inglesa e francesa, entre reis, nobres e burgueses, a despeito da forte oposição da Faculdade de Medicina de Paris e do Real Colégio Médico de Londres. Iatromecànica ou iatrofisica - O organismo equiparado a uma máquina A revolução científica do século xvn não se limitou a acrescentar novos fenômenos ainda não observados - mudou o quadro do pensamento. O Universo seria, então, concebido como o modelo do relógio, em que as partes que compõem o todo estão submetidas às mesmas leis do movimento. Tal noção pressupõe a concepção de uma matéria- puramente passiva c composta de corpúsculos submetidos apenas às leis do movimento. A física das qualidades cede lugar a uma visão puramente quantitativa da matéria, e a explicação dos fenômenos físicos fica restrita à causa eficiente. A natureza seria submetida às mesmas leis, uniformes. Na França, Descartes (1596-1650) denunciava a ineficácia da medicina contemporânea, propondo um conhecimento causal do corpo com base em princípios mecanicistas. Excluiu os princípios ou faculdades (vegetativa, sensitiva, motora) e passou a explicai- mecanicamente todas as funções do corpo. Ele acreditava na possibilidade de eliminar todas as doenças do corpo e da mente e até as enfermidades da idade, investigando-se suas causas mecânicas. Tal concepção favorecia as pesquisas anatômicas. Posto que tudo era feito de formas geométricas e movimentos, tornou-se essencial conhecer a forma dos órgãos, e os,anatomistas se maravilhavam de reconhecer a cada instante no corpo humano algumas dessas máquinas semelhantes às que os homens fabricavam. Para Boerhaave (1668-1738), o mais prestigioso dos iatromecânicos, o organismo seria formado por “ apoios, colunas, traves, vigas, bastões, -tegumentos, ângulos, alavancas, roldanas, cordas, lagares [tanques para espremer sucos], foles, peneiras, filtros, canais, reservatórios” .Tudo se faz mecanicamente nos corpos vivos, e a fisiologia, utilizando e ultrapassando as descobertas anatômicas, percebe na digestão um fenômeno de trituração,e na secreção glandular, a peneiração de partículas. Mesmo quando a fisiologia faz apelo à química, ela permanece mecânica, posto que interpreta os fenômenos químicos como conseqüência do mecanismo dos corpúsculos. À e s q u e r d a , a c im a : Na segunda metade do século xvm, surgiu a homeopatia, um sistema terapêutico de inspiração vitalista criado por Samuel Hahnemann. À e s q u e r d a , a b a ix o : O naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira, cm sua “viajem Filosófica” à américa Portuguesa do século xvm, registra uma índia inalando paricá, num ritual. P Á c i N A a o l a d o : Um laboratório moderno: nesta cena vemos o avanço da divisão de trabalho no processo de produção de remédios na Europa Moderna. Enquanto o mestre se atém à receita da farmacopéia, ajudantes e aprendizes utilizam diferentes técnicas. B O T I C A S E B O T I C Á R I O S S O B R A S H . C O L O N I A L > 9 A partir do século xvni, à exceção tios alquimistas, cada vez mais raros, dos sábios galênicos, ainda influentes, e de alguns precursores do vitalismo, a hegemonia era dos adeptos do mecanicismo. Vitalismo — Principio vital distinto das forças fisico-quitnicas Georg Ernest Stahl ( 16 6 o -1734), químico e professor de medicina, propôs . que os fenômenos da vida seriam irredutíveis às leis da física. Para ele haveria lim princípio vital que explicaria os fenômenos orgânicos — o anima seria responsável por todas as funções vitais. Além de defender uma fisiologia vitalista, criou a influente teoria do flogísticq para explicar a combustão, combatida posteriormente por Lavoisier (1743-94). Na segunda metade do século xvm, surgiu a homeopatia, um sistema terapêutico de inspiração vitalista, criado por Samuel Hahnemann . (1755-1843), que ainda goza de amplo prestígio em muitos países. Para "Hahnemann, toda substância que originasse no organismo sinais semelhantes aos sintomas de uma doença era suscetível de curá-la. Trata-se de antiga concepção hermética, já presente em Paracelso: a cura pelo semelhante - _ similia siinilibtts curantnr. A idéia de que o tratamento se alcançaria pela administração de doses ínfimas de substâncias que, de outro modo, 4 0 B O T I C A S & P I I A R M A C I A S causariam os sintomas patológicos, tornou-sc a base de sua terapêutica. Assim, se a qüina (chinchona) - remédio usado contra algumas febres - provocava sintomas das doenças contra as quais.agia, ela teria, comprovadamente, propriedades terapêuticas. \ A superação da medicina humoral e as inovações terapêuticas Durante o período da chamada revolução científica, em que se destacam os avanços na astronomia, na física e nas ciências naturais, a medicina também conheceu grandes inovações teóricas e práticas. André Vesálio (1514-64), em seu excelente livro De hmnani corporis fabrica, de 1543, deplorava a separação entre a cirurgia - na época uma tradição artesanal — e a medicina. Vesálio teria descoberto mais de duzentos erros nos escritos de Galeno. Em seu De moto cordis et sanguinis (1628), Willam Harvey (1578-1657) descreveu a circulação sanguínea. Seria de esperar que o sucesso dessa e outras descobertas associadas às novas correntes do pensamento médico, como a iatroquímica, a iatrofisica e o vitalismo, acarretassem um colapso no sistema galênico de terapêutica, que era intimamente ligado à'fisiologia humoral, mas isso não aconteceu. O sistema galênico de terapêutica, em razão de seu sucesso prático no tratamento das doenças (é preciso ter em mente que vinha proporcionando uma boa vida aos clínicos havia séculos), sofreu seu maior revés com a introdução dos remédios de origem química. Numa época em que todos os remédios eram símplices, isto é, derivados de plantas, o rebelde Paracelso (1493-1541) foi um defensor dos remédios minerais e metálicos, pregando a doutrina dos remédios específicos para cada doença - o mercúrio tornou-se um específico para a sífilis ou mal gálico. Sydenham (1624-89), o chamado Hipócrates inglês, também defendia a idéia dc que toda doença teria seu medicamento específico. Com a descoberta do Novo Mundo, uma droga utilizada pelos indios, a cinchona - também conhecida como casca peruana ou casca dos jesuítas - foi incorporada à terapêutica médica como antídoto para as maleitas. No século x v i i i , o reverendo Edmund Stone anunciou a casca do salgueiro como um poderoso febrífugo (remédio contra a febre), o que foi um primeiro passo no caminho para a aspirina. A exceção de algumas drogas, os medicamentos que os doutores de Coimbra usavam não se distinguiam muito da farmacopeia galênica, ainda que eles possuíssem um punhado de específicos e tópicos. Aos médicos não faltavam respostas para os diferentes casos que se apresentavam no curso de suas consultas. Convém lembrar que na medicina humoral não se esperava que as drogas desempenhassem um papel decisivo na cura. O que se esperava de uma boa droga não era tanto que curasse diretamente uma doença, mas B O T I C A S E B O T I C Á R I O S NO B R A S I L C O L O N I A L 4 * r2ftu *» & gad/ni mt cí/ni rjar soimr ourij inàrrfífT çpc 'úrcrflKfrn yOtg âcUuKtbituli iiitItíiíi (Tfiiomm $ nr ím nu Ufttt $aijfa! wimuni Dcmtofe-meulHunimgp lr>aotrmn Gíxnti aucrni qôtürt trípr auqim mrnrm ítiif ííifinhnim mcDMft lünttttlö que, por meio de sua ação ou faculdade vomitiva, purgativa ou sudorífera, ajudasse a natureza a restaurar o equilíbrio entre os humores. Entretanto, com a fixação de químicos e destiladores provenientes do estrangeiro que comercializavam medicamentos químicos e, principalmente, com a publicação da farmacopeia elaborada pelo médico João Curvo Semedo (1635-1719), Polianteia medicinal (1695) - tornado uma espécie de evangelho dos médicos portugueses a comunidade médica incorporou a nova terapêutica. Outra obra influente, a Pharmacopeia ulyssiponense, escrita pelo francês Jean Vigier (1662-1723), comerciante de drogas estabelecido em Portugal, foi a primeira farmacopéia escrita em português a tratar organizadamente a preparação de medicamentos químicos." Com a inclusão das obras de Paracelso no Index, a Inquisição portuguesa perseguiu os remédios alquimicos. Do ponto de vista doutrinal, a farmácia galênica se opunha às drogas secretas de ampla difusão, pois estas ignoravam as particularidades do paciente: sua constituição, seu temperamento, sua idade e seus hábitos alimentares e higiênicos. O físico galenista, tendo de escolher freqüentemente entre várias indicações terapêuticas, devia levar em conta não apenas a causa da doença, mas também todos os aspectos do paciente e de seu meio. Em Portugal, as medicinas (mezinhas) da farmácia galênica, caracterizada pela produção pelo boticário, mediante a receita do físico, e indicadas para determinado Uocnte, iam de encontro aos remédios secretos e às panacéias, vendidos em larga escala e consumidos como automedicação (água da Inglaterra, água celeste). Condenados pela Reforma pombalina do ensino médico, em 1772, os remédios secretos foram mais perseguidos a partir da criação da Junta do Protomedicato, em 1782. 1 1 As principais referencias à história da farmácia em Portugal foram extraídas de PITA, João Rui. História da farmácia, Coimbra: Minerva Editora, 2“ ed., 2000. p á g in a a o l a d o : André Vesálio apontou mais de duzentos erros contidos nos escritos de Galeno e deplorou em sua obra Dc humani corporisfabrica (1543) a separação entre cirurgia e medicina. a c im a : Para a latroquímica. cada órgão humano mantinha uma correspondência com um signo zodiacal. Isto explicava a preponderância dc certas doenças em determinadas estações. Para realizar sangrias era preciso reconhecer, em cada ponto, sua relação zodiacal. 5 .) As farmacopéias portuguesas H O S T R A T A D O S D E N A T U R A L I S T A S , M É D I C O S E C I R U R G I Õ E S D O B R A S I L C O L O N I A L 12 SHAPIN, Steven. /) revolução cientifica. Lisboa: Difel, 1999. A medicina doméstica,
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