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Autora: Profa. Monica Buratto Colaboradoras: Profa. Josefa Alexandrina da Silva Profa. Ivy Judensnaider Transformações Históricas Contemporâneas Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Professora conteudista: Monica Buratto Monica Buratto possui graduação em História (1985), mestrado em Turismo (2001) e em Comunicação Social (2005), especialização em Tecnologia Educacional (2001) e pós‑graduação lato sensu em Educação Ambiental e Desenvolvimento Sustentável (2011). É professora‑adjunta na disciplina de História e Patrimônio Cultural no curso de Turismo da Universidade Paulista (UNIP). Ministrou aulas nas disciplinas de Museologia, Folclore, Evolução da Arte, Aspectos Históricos do Brasil, Patrimônio Cultural, Gestão dos Recursos Naturais e Culturais, Cultura Brasileira, História da Arte, História do Brasil, História Geral, Repertório das Artes Visuais, Teoria e Técnica da Comunicação, Cultura, Arte e Folclore, Homem e Sociedade, Antropologia e Cultura Brasileira nos cursos de Turismo, Publicidade e Propaganda, Secretariado Executivo Bilíngue, Letras e Ciências Biológicas e Biomédicas. Foi professora da disciplina História na rede pública, na Prefeitura Municipal de São Paulo, e na rede privada, no nível Médio e no Fundamental. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B945t Zacariotto, William Antonio Transformações Históricas Contemporâneas. / Monica Buratto. – São Paulo: Editora Sol, 2016. 204 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ano XXII, n. 2‑131/16, ISSN 1517‑9230. 1. Transformações históricas. 2. Contemporaneidade. 3. Relações internacionais. I. Título. CDU 93/99 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona‑Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Lucas Ricardi Juliana Mendes Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Sumário Transformações Históricas Contemporâneas APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................................ 10 Unidade I 1 A TEORIA DA HISTÓRIA: O OLHAR SOBRE O PASSADO ................................................................... 13 1.1 O que é Teoria da História? .............................................................................................................. 15 1.1.1 O positivismo ............................................................................................................................................ 16 1.1.2 Historicismo .............................................................................................................................................. 17 1.1.3 Materialismo histórico .......................................................................................................................... 18 1.2 Novos paradigmas da Teoria da História .................................................................................... 19 1.2.1 A Escola dos Annales ............................................................................................................................. 19 1.2.2 A Nova História ........................................................................................................................................ 20 1.2.3 A Micro‑história ...................................................................................................................................... 20 1.2.4 A História Cultural .................................................................................................................................. 21 1.3 O pensamento contemporâneo sobre a história ..................................................................... 22 1.3.1 A Escola Inglesa ....................................................................................................................................... 23 1.3.2 Quantitativismo ....................................................................................................................................... 24 2 O MUNDO MODERNO E SUAS TRANSFORMAÇÕES: UMA INTRODUÇÃO ................................ 24 2.1 A passagem do feudalismo para o capitalismo ....................................................................... 26 2.2 As cidades medievais como precursoras do pré‑capitalismo ............................................. 28 2.3 Crise econômica nos séculos XIV e XV ......................................................................................... 30 2.4 Do pré‑capitalismo ao capitalismo comercial .......................................................................... 32 3 O MERCANTILISMO E A EXPANSÃO MARÍTIMA EUROPEIA ............................................................ 34 3.1 A formação das monarquias nacionais ....................................................................................... 36 3.2 Mercantilismo: o acúmulo de capital .......................................................................................... 38 3.3 Relações internacionais do século XVI e a Revolução Comercial ..................................... 40 4 A COLONIZAÇÃO PORTUGUESA NO BRASIL ......................................................................................... 43 4.1 A colonização europeia na América e o Condado Portucalense ...................................... 43 4.1.1 O Brasil pré‑colonial (1500‑1530) ................................................................................................... 44 4.1.2 O Brasil colonial (1531‑1822) ............................................................................................................ 47 4.1.3 A descoberta do ouro no Brasil e a crise do mercantilismo .................................................. 50 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade II 5 O MUNDO CONTEMPORÂNEO E SEUS PARADOXOS ........................................................................ 58 5.1 A Era das Revoluções: a Revolução Inglesa do século XII ................................................... 59 5.1.1 A Revolução Industrial na Inglaterra .............................................................................................. 63 5.1.2 Como funcionava a exploração do trabalho no início da era industrial? .......................65 5.1.3 O iluminismo ............................................................................................................................................. 69 5.1.4 A influência iluminista: a independência dos Estados Unidos ............................................. 71 5.1.5 A Revolução Francesa ........................................................................................................................... 75 5.1.6 A Era Napoleônica .................................................................................................................................. 78 5.1.7 Os movimentos sociais na Europa: as revoluções liberais ...................................................... 82 5.1.8 Uma nova opção ao trabalhador: o socialismo .......................................................................... 84 5.2 A independência das colônias latino‑americanas .................................................................. 86 5.2.1 A vinda da família real portuguesa ao Brasil: o Estado português no Brasil ................. 88 5.2.2 Independência do Brasil e Império brasileiro .............................................................................. 91 5.2.3 O caos imperial e o período regencial ............................................................................................ 94 6 A EXPANSÃO INDUSTRIAL DO SÉCULO XIX E O IMPERIALISMO .................................................. 98 6.1 Primeira Guerra Mundial (1914‑1919) ......................................................................................103 6.1.1 Revolução Russa de 1917 ..................................................................................................................105 6.1.2 A primeira crise do capitalismo: a Crise de 1929, nos Estados Unidos ..........................107 6.1.3 A Segunda Guerra Mundial ..............................................................................................................109 6.2 O Segundo Império brasileiro: a última monarquia .............................................................113 6.2.1 O Brasil República: a inserção no mundo capitalista .............................................................116 6.2.2 Governo Vargas: quase uma democracia .................................................................................... 118 6.2.3 O papel do Brasil nas Guerras Mundiais ..................................................................................... 122 6.2.4 As relações internacionais entre o Brasil e a América Latina ............................................ 123 6.3 A Guerra Fria e a soberania do Estado‑nação ........................................................................129 Unidade III 7 O MUNDO PÓS‑CONTEMPORÂNEO E OS NOVOS DESAFIOS .......................................................137 7.1 Internacionalização do capital: a passagem da sociedade nacional para a global ................................................................................................................................................137 7.2 Globalização e mundialização.......................................................................................................139 7.3 Neoliberalismo: o velho no novo, Estados liberais, empresas transnacionais ...........144 7.4 O capitalismo liberal: Consenso de Washington ...................................................................146 7.4.1 Wall Street .............................................................................................................................................. 148 7.4.2 A Inglaterra de Margaret Thatcher ............................................................................................... 150 7.4.3 Os Tigres Asiáticos ................................................................................................................................151 8 RELAÇÕES INTERNACIONAIS E GEOPOLÍTICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO ................153 8.1 O mundo pós‑contemporâneo: anos dourados e anos difíceis no Brasil, da década de 1950 à de 1980 ...........................................................................157 8.1.1 A Ditadura Militar no Brasil ............................................................................................................. 159 8.1.2 Da década de 1980 à de 1990: quadro recessivo ................................................................... 162 8.1.3 O Estado liberal e o Estado social .................................................................................................. 164 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 8.1.4 A inserção da economia brasileira na globalização ............................................................... 165 8.1.5 A integração regional da América Latina: do desenvolvimentismo do Mercosul aos Brics ................................................................................................................................... 167 8.2 Reações à globalização: os fóruns mundiais e o pensamento crítico ..........................173 8.2.1 Ideologia, ação e política .................................................................................................................. 177 8.2.2 A crise econômica de 2008 e as relações econômicas do início do século XXI ......... 179 8.2.3 O surgimento de grupos e mídias independentes .................................................................. 182 8.2.4 Tensões contemporâneas ................................................................................................................. 185 9 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 APRESENTAÇÃO Caro aluno, Este livro‑texto traz a você os conteúdos da disciplina de Transformações Históricas Contemporâneas, que serão construídos respeitando as premissas básicas que orientam a missão da Universidade Paulista (UNIP) de atuar no progresso e no desenvolvimento da comunidade, fortalecendo os laços de solidariedade. O viés histórico dessa disciplina nos conduz a compreender o indivíduo enquanto sujeito histórico que constrói o seu tempo e como ele pode se tornar um agente transformador da realidade que o cerca, quando conhece os mecanismos e acontecimentos do passado. A compreensão do passado nos leva ao entendimento das sociedades contemporâneas e nos convida a agir, levando em conta as mudanças ocorridas no tempo. Assim, o conhecimento do passado, em uma perspectiva científica, nos leva ao entendimento da história não como aceitação ou comiseração, mas como um meio de apreender que as novas formas de dominação e o aparato ideológico que se apresentam nas sociedades atuais tiveram sua construção no passado. A história é um instrumento, antes de tudo, de construção de identidades sociais, através da memória, que são passadas de geração a geração e consequentemente consolidam vínculos. Nossa disciplina visa apresentar a conceituação de globalização, desde suas origens até suas atuais formas de manifestação. Para isso, iremos recorrer às origens do capitalismo como forma de entender o momento atual. A partir da instrumentação conceitual recebida, podemos desenvolver as seguintes competências gerais: • Senso crítico. • Temporalidade. • Contextualização. • Espacialidade. • Visão sistêmica. • Consciência ético‑social. • Desenvolvimento pessoal. 10 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Enquanto objetivos específicos da análise do assunto central da nossa disciplina (capitalismo/ globalização), podemos apontar: • Identificar as forças que levaram ao surgimento do capitalismo. • Analisar as características do capitalismo que se desdobraram ao longoda história. • Compreender a importância dos protagonistas que atuaram nesse processo. • Estabelecer relações entre o passado e a atualidade. • Comparar as diversas explicações para os fatos. • Trabalhar as dimensões do tempo, o que envolve duração, sucessão e simultaneidade. Partindo‑se da contextualização do nosso tema central (processo capitalista) abordado neste trabalho, busca‑se a compreensão do momento atual e das condições que nos levam a viver na nossa sociedade, identificando os conflitos e problemas. Ao refletir sobre as dimensões sociais, políticas e econômicas da globalização e as transformações no capital, emprego e trabalho na sociedade contemporânea, podemos vislumbrar saídas para uma sociedade melhor. INTRODUÇÃO Um dos temas mais controversos do nosso século é a revolução tecnológica. Ao traçar o desenvolvimento desse assunto, somos conduzidos ao tema fundamental que proporcionou o surgimento da revolução nas técnicas de produção: o capitalismo. O triunfo global do capitalismo, como nós vemos hoje, constitui‑se no tema mais importante da história, pois ele determina a forma pela qual a humanidade vive nas mais diversas sociedades. Para compreendermos o momento atual, recorreremos a origens históricas que nos levem a pistas do surgimento capitalista. Nessa procura, iremos nos deparar com o desenvolvimento de uma economia baseada na livre‑iniciativa privada, na competição, no mercado, no capital. Como consequência disso, descobriremos quais são as explicações que existem para tornar inteligível um mundo dividido entre pobres e ricos, entre desenvolvidos e subdesenvolvidos. Essa será uma tarefa árdua que irá nos fornecer elementos que nos levem a uma percepção mais aprofundada das transformações históricas contemporâneas. Assim, para se entender a contemporaneidade, investigaremos o capitalismo, pois acredita‑se que esse sistema econômico venha influenciando os acontecimentos do mundo ocidental e do oriental há mais de 200 anos. Veremos como a metáfora do progresso capitalista substancializa‑se no mundo dos opostos: os vencidos e os vencedores, exploradores e explorados. Assim, a interpretação das fases capitalistas não pode ser objetiva, nem imparcial. 11 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Para descobrirmos como caminhar pelo tema, iremos entrar em contato com a Teoria da História, ou seja, como os historiadores ou pensadores navegam pela história, quais são os olhares que os historiadores devem ter para entender o processo histórico. Começaremos com a Teoria da História e seus diversos paradigmas históricos apresentados nas várias visões existentes sobre a história. Também estudaremos as transformações fundamentais que ocorreram entre o feudalismo e o capitalismo; é o que os historiadores chamam de passagem do feudalismo para o capitalismo. Essa fase será chamada de mundo moderno, pois irá esclarecer como se originou o capitalismo na Baixa Idade Média. Iremos tratar de capitalismo comercial, mercantilismo, expansão comercial e marítima europeia e descoberta do Brasil e seus desdobramentos, abrangendo do século XII ao XVIII. Em nossa reflexão, recorreremos às origens históricas do mercantilismo e do liberalismo econômico para podermos entender como se deu o surgimento da Revolução Industrial na Inglaterra e sua expansão pelo mundo, bem como o início processo de globalização. Dando prosseguimento aos nossos estudos, veremos o chamado mundo contemporâneo, com a crise do capitalismo comercial e as revoluções burguesas que irão dar sustentáculo para o surgimento da Revolução Industrial. Vamos estudar o processo de libertação da América e o Brasil e suas monarquias. Iremos conhecer quais os movimentos sociais que surgiram para combater o abuso cometido no interior das fábricas e outros movimentos de contestação, bem como os movimentos liberais a favor da burguesia. Nesse período, veremos a expansão capitalista pelo mundo e o conflito mundial que dela resultou: a Primeira Guerra Mundial. Também aprenderemos sobre o neocolonialismo ou imperialismo europeu e sua influência na África e na Ásia, bem como a expansão do mercado industrial e as questões que influenciaram as duas grandes guerras mundiais e suas consequências na divisão do mundo em blocos econômicos e hegemônicos com a Guerra Fria. No plano nacional, estudaremos as influências da Revolução Industrial na América Latina e a inserção do Brasil no mundo globalizado, a partir da vinda da corte portuguesa ao Brasil, e os mecanismos políticos, econômicos e sociais que se formaram a partir desse evento e que mudaram os rumos do Brasil Colônia. Posteriormente, veremos a Revolução Russa, o antídoto para o capitalismo e a crise capitalista de 1929. Ainda estudaremos a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria e o Brasil nesse contexto, a República brasileira e as relações internacionais entre os países latino‑americanos. Esse período abrange do século XIX ao XX. Na sequência, serão apresentados o mundo pós-contemporâneo e os novos desafios, o que inclui temas como a internacionalização do capital, a passagem da sociedade nacional para a global, o que é globalização e mundialização, o neoliberalismo, os Estados nacionais, assim como as relações internacionais e geopolíticas. Veremos a história da República brasileira, a inserção da economia brasileira na globalização e como as crises capitalistas afetaram o mundo. Esse período refere‑se ao final do século XX até o século XXI. 12 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Esperamos que esse conteúdo, com o auxílio das dicas, livros, textos e filmes, sirva de instrumento para você desenvolver consciência e senso crítico, assim como para que você, aluno, possa distinguir as linguagens e a ideologia que estão por trás dos discursos, sejam eles impressos, visuais, auditivos etc. 13 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Unidade I 1 A TEORIA DA HISTÓRIA: O OLHAR SOBRE O PASSADO Quando entramos em contato com a história de uma nação ou de um povo, podemos conhecer a sua herança cultural substancializada nas culturas material (edifícios) e imaterial (sabedorias, conhecimentos) produzidas através do tempo. Dessa forma nos apropriarmos do simbolismo desses bens a fim de reconhecer as realizações e os acontecimentos que marcaram aquela sociedade. Muitas vezes nos identificamos com os símbolos e o conteúdo histórico de um povo, justamente porque nos remetem aos conteúdos simbólicos da nossa própria história: quando entramos em contato com determinados bens culturais tangíveis, isto é, bens materiais, tais como edifícios arquitetônicos e objetos, eles nos despertam imagens simbólicas relacionadas ao nosso próprio passado cultural e histórico e nos ligam ao nosso imaginário e repertório simbólico. Isso ocorre devido ao fato de que a história dos povos não está alijada ou desenvolveu‑se isoladamente da dos seus vizinhos, mas está vinculada parcialmente ou integralmente à construção histórica de outras sociedades e outros povos de acordo com cada época. Quando nos voltamos ao passado histórico de determinado povo, podemos perceber e compreender quais são as características essenciais daquela sociedade e quais são as características adquiridas pelo intermédio e contato com outras culturas e outras ideias, tais como modos de produzir, de administrar, de comandar, de comercializar, de agir, de se comportar etc. Se analisarmos a história da antiguidade dos povos, poderemos perceber que do intercâmbio comercial entre esses povos surgiram trocas culturais importantes que facilitaram o avanço tecnológicoe os processos de invenção e integração do homem com o meio ambiente. Até mesmo as guerras, a expansão comercial e a dominação de alguns povos sobre outros permitiram o desenrolar de novas mentalidades e mudanças de comportamento, tanto para os povos dominantes quanto para os dominados. A despeito de a história local estar vinculada à história mundial, o historiador tem a tarefa de capturar registros, de investigar acontecimentos e relatos do passado a fim de identificar, interpretar e reconhecer as características intrínsecas da sociedade estudada e estabelecer conexões com outras sociedades, já que elas muitas vezes se comunicam. Como exemplo, podemos citar a história do Brasil: não é possível compreender a história do povo brasileiro sem antes analisarmos a de Portugal, já que estes foram responsáveis pela colonização e pela transferência de grande parte da sua cultura para o Brasil. Por meio das variadas fontes históricas, tais como documentos, livros, manuscritos (fontes escritas), desenhos, pinturas, fotografias (fontes iconográficas), relatos, depoimentos (fontes orais), dentre outras, 14 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I o historiador sistematiza, analisa e interpreta os dados encontrados com o objetivo de chegar a respostas para as questões que o afligem, depois de uma investigação meticulosa do objeto histórico. Os vestígios históricos fornecem pistas do objeto de estudo: a tarefa do historiador é ir além daquilo que ele está vendo, com a finalidade de chegar a um significado, mesmo aqueles incorporados nos símbolos. A compreensão do passado humano ocorre a partir das pistas deixadas pelo ser humano e pelo grupo. Essas pistas podem ser escritas, materiais não escritas, imateriais, dentre outras que não estão registradas fisicamente, e quando investigadas minuciosamente, com o auxílio de técnicas e métodos, levam o pesquisador a uma fidedignidade dos fatos pesquisados e, por isso, a um melhor entendimento das mudanças ocorridas na humanidade. O estudo da história pode estimular a memória do grupo social e incentivar um sentimento de pertencimento àquele grupo, na medida em que o conhecimento histórico nos leva a certa emancipação e liberdade em reconhecer‑nos como sujeitos e agentes históricos, além de nos permitir maior envolvimento com o grupo social. Entretanto, é preciso distinguir a institucionalização da memória, a memória dita oficial, isto é, aqueles elementos que caracterizam a cultura nacional e forjam a identidade de um povo, como no caso brasileiro, a língua e a história dos vencedores, produzidas por uma elite dominante e, portanto, pertencente ao domínio da ideologia, como forma de dominação. Segundo Carr (1978, p. 55‑6), a história se distingue das outras ciências na medida em que lida com algo que é único, particular, ao contrário da ciência, que lida com o geral e o universal, além de não ter condições de prever algo. O historiador não vive de previsões, ele não pode semear profecias e não dá lições. O estudo da história é essencialmente subjetivo, na medida em que o homem se percebe. É a partir desse último argumento que a investigação histórica se depara com algumas interrogações que iremos abordar no próximo tema: a questão da subjetividade no conhecimento da história e as diferentes visões que os historiadores têm perante os fatos e acontecimentos que são colocados à sua frente e os perigos e armadilhas que podem surgir com isso. Outra questão diz respeito ao próprio caráter do estudo de história. As várias abordagens no modo de se pensar a história variam de acordo com a época em que o pensamento foi concebido e se refletem no modo de se abordar a história e outras questões, como a do sujeito/pesquisador, que também é um sujeito histórico, refletindo sobre os temas do presente e do passado. De qualquer forma, é possível que o estudo da história lide com certa dualidade: ele se relaciona tanto com o nível de acontecimentos como também com rupturas estruturais, tais como as revoluções, fundamentais para a compreensão do fluxo histórico. 15 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Saiba mais Para saber mais sobre o assunto, leia o livro indicado a seguir: CARR, E. H. Que é história? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. Sobre fontes históricas, pesquise na obra a seguir, especialmente entre as páginas 201 e 310: SCHAFF, A. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1978. 1.1 O que é Teoria da História? Não há uma concepção única de interpretar e entender o passado. No decorrer da própria história, os pesquisadores elaboraram teorias distintas e concepções para se estudar o passado, com diversas práxis (práticas) para apreender o objeto histórico. É o que podemos chamar de Teoria da História, a teoria produzida pelo conhecimento dos historiadores e pela prática historiográfica, ou seja, a escrita da história. As diferentes orientações cognitivas que acompanhavam os historiadores, de acordo com cada época, abordavam o objeto histórico de maneira distinta, desenvolvendo com isso uma epistemologia da história, ou seja, um conhecimento diverso da história. Cada período é marcado por paradigmas, isto é, modelos teóricos que acompanham a história, principalmente os modelos criados pelas Ciências Humanas. Dentre as várias correntes, destacam‑se: • Positivismo. • Historicismo. • Materialismo histórico. • Escola dos Annales. • Nova história. • Micro‑história. • História cultural. O século XIX foi muito importante para o estudo da história. Nele surgiram concepções fundamentais que iriam consagrar progressos na historiografia, além de ter desdobramentos consideráveis por todo o século XX. 16 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I A hermenêutica, corrente historiográfica que prega o método estritamente hermenêutico, ou seja, interpretativo, foi também uma das correntes dominantes, sobretudo no século XIX. Nesse século surgiram três abordagens e paradigmas (modelos) distintos para o estudo da história: o positivismo, o historicismo e o materialismo dialético. Vamos entrar em contato com esses paradigmas a seguir. Dentre as principais correntes, ressaltamos o positivismo, o historicismo e o materialismo histórico. 1.1.1 O positivismo Esta teoria foi desenvolvida por Augusto Comte por volta do século XIX. Surgiu como herança do Iluminismo. Essa concepção defendia o conhecimento científico como único e verdadeiro, e os fatos históricos deveriam ser comprovados por métodos científicos reconhecidos. Segundo essa ideia, os fatos deveriam ser comprovados cientificamente, e só assim estariam carregados de verdade, principalmente os documentos governamentais, que traziam uma verdade indiscutível. Os positivistas tinham grande fé na ciência e rejeitavam qualquer tipo de crença. Os positivistas afastaram‑se do teocentrismo e ligaram‑se ao humanismo. O estudo de história tornava‑se factual e narrativo. Amparavam‑se no Evolucionismo, ou seja, teoria da evolução das espécies (do ser mais primitivo ao mais complexo), na evolução da sociedade da barbárie até a civilização. Acreditavam que as sociedades europeias fossem mais evoluídas, pois eram mais civilizadas do que as outras, uma vez que eram mais desenvolvidos tecnologicamente. Características: • Legado do iluminismo. • Conhecimento objetivo, como nas Ciências Naturais; • Método de abordagem do objeto histórico próximo ao método das Ciências Naturais. • Imparcialidade do sujeito. • Neutralidade do historiador. • Universalidade da história. • Base no etnocentrismo,ou seja, o grupo étnico europeu era o centro de tudo. • Ideia de progresso, principalmente a das sociedades europeias. • Estudo principalmente da história dos grandes líderes políticos europeus. • História descritiva, factual e episódica. 17 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS 1.1.2 Historicismo Corrente surgida também no século XIX. Teve como expoentes Leopold Ranke, Johann Gustav Droysen, Wilhelm Dilthey, Hans Georg Gadamer, Paul Ricouer, Benedetto Croce e Karl Mannheim, sociólogo húngaro que seguia o historicismo. Características: • Atenção à subjetividade do sujeito que constrói a história. • Compreensão, e não apenas explicação da história. • Método de abordagem do objeto histórico próximo ao método das Ciências Sociais. • Corrente relacionada às Ciências Sociais e ao estudo do comportamento humano. • Opunha‑se à ideia de universalidade: a história da humanidade espelha a história de todas as outras sociedades. • A história deveria encontrar um método próprio. • O historiador estaria sujeito ao seu próprio tempo, e isso influenciava a abordagem da histórica. • Cada sociedade tem sua própria singularidade, e a sua história não está sujeita à história universal. • O historicismo relacionou‑se com a ideia proposta por Hegel: o sujeito da história é o espírito objetivo. • O historicismo estava ligado ao ideal romântico do século XIX. Saiba mais Para se aprofundar um pouco mais no historicismo, dê uma olhada no texto: REIS, J. C. O historicismo, a descoberta da História. Disponível em: <http://locus.ufjf.emnuvens.com.br/locus/article/download/2437/1734>. Acesso em: 3 maio 2016. Leia também a obra a seguir: BARROS, J. D. Teoria da História: os primeiros paradigmas – positivismo e historicismo. Petrópolis: Vozes, 2011. v. II. 18 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I 1.1.3 Materialismo histórico Abordagem teórico‑metodológica desenvolvida por Karl Marx e Friedrich Engels em meados do século XIX. Essa abordagem situa‑se na compreensão da história através de conceitos criados no decorrer dos estudos de Marx sobre o capitalismo e no desenvolvimento material humano. Essa abordagem metodológica vincula o estudo da História com o estudo da Economia já iniciado anteriormente, em 1843, por Jérôme Blanqui. Características: • Compreensão da história a partir do materialismo histórico e do materialismo dialético. • A dialética, proposta por Marx e Engels, refere‑se às contradições da sociedade surgidas a partir do modo de se produzir. • O método dialético compreende que qualquer fenômeno não pode ser explicado ou dissociado dos outros fenômenos que o circundam. • A natureza está sempre se transformando, está sempre em transição. A natureza material determina nosso pensamento. • A vida material determina a vida social e política do indivíduo: as forças de produção – isto é, o modo de se produzir em uma sociedade – determinam a vida do indivíduo nessa sociedade. • Compreensão da história a partir da luta de classes, ou seja, servos x senhores, proletários x burgueses etc. • A ideia de práxis une a teoria e a prática para o entendimento da história. • Olhar para as bases econômicas e sociais da sociedade e suas contradições. • Marx e Engels, ao formularem os pressupostos da dialética, alicerçaram‑se na dialética de Hegel (dialética idealista), ou seja, o diálogo, o debate, em que há uma contraposição de ideias que começam com uma tese, que gera uma antítese, resultando em uma síntese. Saiba mais Leia sobre a obra de Karl Marx: MARX, K.; ENGELS, F. Obras escolhidas. v. 1. São Paulo: Alfa‑Omega, 1980. 19 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS 1.2 Novos paradigmas da Teoria da História No princípio do século XX, a investigação histórica foi enriquecida por algumas releituras dos paradigmas do materialismo dialético, com o surgimento da Escola dos Annales e a nova história. Temos ainda a micro‑história e a história cultural como decorrentes do ideário da nova história. Grosso modo, o estudo de história foi polarizado entre a história enquanto investigação e ensaio filosófico e a história enquanto verificação científica. Porém, no final do século XX, os historiadores afastaram‑se um pouco da história/ciência, a história mais controlável pelos procedimentos metodológicos, e se aproximaram da história/ensaio, configurando novas perspectivas de abordar a história (CARDOSO; BRIGNOLI, 1981, p. 39‑49). A pós‑modernidade e suas novas compreensões de mundo conduziram o discurso e a pesquisa histórica à rejeição das explicações conservadoras da história, tornando‑os mais relativos e mais próximos da narrativa histórica, da criação literária, da análise semiótica e da microantropologia. 1.2.1 A Escola dos Annales Nasceu na França, em 1929, com o surgimento da revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, criada por Marc Bloch e Lucien Febvre. Fernand Braudel corresponde à segunda fase dos Annales, que surgiu por volta de 1950; Jacques Le Goff e Pierre Nora representam a terceira fase; e Georges Duby e Jacques Revel correspondem à quarta fase, de onde se desenvolveu a história cultural. Eles foram pioneiros na abordagem de uma nova história, na medida em que rejeitavam a forma como os positivistas tratavam o estudo da história, proclamando uma guerra contra a história tradicional, factual, e a história política, apesar de não apresentarem nenhuma proposta de revolução como os marxistas apresentaram. Esses historiadores foram responsáveis por incorporar à história métodos utilizados nas Ciências Sociais, tratando dessa forma o modo de investigação histórica de uma forma multidisciplinar, incorporando outras ciências, como Psicologia, Economia, Sociologia e Geografia para auxiliar nos estudos históricos. Outro nome dos Annales: François Dosse. Características: • Diálogo entre a História e as Ciências Sociais. • Estudo nos documentos arquivados. • Emprego de novos tipos de fontes históricas. • Nova abordagem: história social. • Prática da interdisciplinaridade. • Combina‑se a história de longa duração com o estudo da história social, econômica e das pessoas em seu meio. 20 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I • Incorpora outros conhecimentos, como demografia, estudo do meio etc. • Valoriza a história‑problema. Fernand Braudel, da segunda geração dos Annales, concebeu uma nova abordagem de investigação: a história das mentalidades e da organização social. Outras fontes, como as arqueológicas, eram utilizadas no estudo da história. A História poderia dialogar com a Geografia, surgindo a Geo‑história. O tempo histórico não é homogêneo. Ele identificou três níveis de acontecimentos históricos que apresentam ritmos distintos e, portanto, investigação diferenciada que variam segundo o tempo e a duração: a história episódica de curta duração, a história conjuntural e seus ritmos mais lentos e a história estrutural de maior duração (CARDOSO; BRIGNOLI, 1981, p. 27). No Brasil, temos os trabalhos da historiadora Mary Del Priore, que se aprofundou na história das mentalidades. Seus livros História da Criança no Brasil (1991), História das Mulheres no Brasil (1997) e História do Amor no Brasil (2005) apontam para as experiências nessa abordagem histórica. 1.2.2 A Nova História Foi outra corrente da historiografia surgida na década de 1970, a terceira geração da Escola dos Annales. Organizada peloshistoriógrafos Jacques Le Goff e Pierre Nora, herdeiros da Escola dos Annales, recebeu esse nome devido à publicação da obra Fazer a História. Essa concepção corresponde ao estudo da história das mentalidades, ou seja, o estudo das estruturas mentais das sociedades como forma de compreender as estruturas sociais. Características: • Contrapunham‑se à história dos grandes homens e dos fatos. • Todos os seres humanos são portadores de uma história, ou seja, fazia‑se o estudo do homem comum. • Estudo do mundo rural. • Estudo multidisciplinar. • Emprego dos mesmos métodos de abordagem utilizados por Fernand Braudel: a história dos acontecimentos (curto prazo), das conjunturas (médio prazo) e das estruturas (longo prazo). • Os historiadores utilizavam de fontes imateriais para a interpretação da história. 1.2.3 A Micro-história Foi concebida a partir da publicação da coleção intitulada Microstorie por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi entre os anos de 1981 e 1988. Essa abordagem trata de recortes temáticos da história favorecendo o sujeito individual. 21 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Características: • Privilegia fatos relevantes específicos dentro do contexto estudado que são desprezados em outras abordagens. • Utiliza‑se de fontes históricas que são desconsideradas e sem importância. • Análise do cotidiano das comunidades (história do cotidiano) e das pessoas anônimas que influenciam no fato estudado. • Microcontextos, história microscópica. • Utiliza‑se da narração e da descrição para apresentar o recorte histórico. Saiba mais Vale a pena ler: GINZBURG, C. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. O autor faz uma analogia entre o fio do relato e os rastros que a história nos deixa com o mito grego do labirinto de Dédalo, onde habitava o Minotauro, e o fio de Ariadne, que conduziu Teseu para fora do labirinto após ter matado o Minotauro: “o fio do relato, que ajuda a nos orientarmos no labirinto da realidade – e os rastros” (2007, p. 7) para narrar diversos recortes que vão desde a conversão de judeus de Minorca até feiticeiras e xamãs europeus. Leia também: VAINFAS, R. Os protagonistas anônimos da história: micro‑história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. 1.2.4 A História Cultural Surgida na década de 1970, conforme apontou Peter Burke, historiador inglês, procurou estabelecer vínculos entre a investigação histórica e as práticas e representações relacionadas à cultura. Burke definiu os historiadores culturais como indivíduos que estudavam o passado através das artes, da literatura, do simbólico, dos significados, das práticas religiosas etc. Para isso, tornou‑se evidente a conexão entre a História e a Antropologia, já que a história utilizava o referencial conceitual oriundo das Ciências Sociais sobre “cultura” e “sociedade”. Os temas da história cultural persistem até hoje nos meios acadêmicos. 22 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I Características: • História das classes baixas, pessoas comuns como objeto de estudo. • História do corpo. • História da música, da literatura e da arte. • Imaginário cultural. • Identidade individual. • Observação e estudo dos rituais. • História cultural da política. • Narrativa histórica. • Nova história cultural – formas linguísticas de apreensão da realidade. • O discurso e a linguagem. Saiba mais Leia a obra a seguir: BURKE, P. O que é história cultural? Tradução: Sergio Góes de Paula. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. 1.3 O pensamento contemporâneo sobre a história O pensador francês Michel Foucault (1926‑1984) indagou sobre a verdade produzida pela pesquisa histórica e seus efeitos e impactos na formação do presente do indivíduo. Foucault elaborou um estudo sobre os sistemas de exclusão gerados pelo Ocidente: a ciência médica e psiquiátrica que preconizava a loucura, os sistemas de vigilância, as prisões e a sexualidade. Segundo ele, determinadas problemáticas da história são verdades produzidas e passageiras. 23 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Saiba mais Leia a obra a seguir: FOUCAULT, M. Estruturalismo e pós‑estruturalismo 1983. Tradução: Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense, 2008. (Coleção Ditos e Escritos II: Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento). Se quiser entender mais sobre o pensamento de Michel Foucault, assista ao seguinte documentário: FOUCAULT por ele mesmo. Dir. Philippe Calderon. França: Arte, 2003. 62 minutos. 1.3.1 A Escola Inglesa A Escola Inglesa do Marxismo foi representada por Edward Thompson (História da Classe Operária Inglesa), Eric Hobsbawm (A Era do Capital e A Era das Revoluções) e Raymond Willians (História Social). Outro teórico que seguiu o materialismo histórico foi o húngaro Georg Lukács. Os teóricos, muitos deles ligados ao partido comunista britânico do Pós‑Guerra, renovaram a historiografia marxista e elaboraram uma investigação criteriosa sobre classes operárias inglesas, como fez Thompson. Eric Hobsbawm, historiador inglês, desde a década de 1970 apresentou uma nova abordagem marxista da história com os erros e acertos de Karl Marx: no caso, o conceito de modo de produção auxilia na identificação das forças sociais. Ele conduziu uma nova historiografia apresentando uma pesquisa com o estudo de movimentos populares, de identidades e sua influência nas transformações estruturais. Também fortaleceu a imparcialidade do historiador, na medida em que muitos tendem a legitimar sua ideologia através de seus livros. A história de Hobsbawm ocupou‑se do estudo das “Eras” da história – a Era dos Impérios, a Era das Revoluções, a Era do Capital – e das grandes transformações econômicas e políticas ocorridas que influenciaram a história moderna. Hobsbawn acreditava que a desconstrução dos mitos da história nas escolas fosse fundamental para se libertar do controle exercido pelos poderosos na sociedade. Saiba mais Leia a obra de Hobsbawn: HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 24 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I 1.3.2 Quantitativismo A década de 1960 também foi marcada pelo surgimento do Quantitativismo, modelo iniciado na história econômica que abrange também os estudos sócio‑históricos, mas que recorre à estatística e à quantificação – por exemplo, o crescimento da população, o aumento das cidades etc. – como recurso para o entendimento da história (CARDOSO; BRIGNOLI, 1981, p. 280). Desde as últimas décadas do século XX tem ocorrido certa crise de paradigmas. Alguns modelos antigos continuam sendo seguidos na interpretação da história, como o modelo marxista, mas surgem outros que aproximam a história da literatura e da narrativa. Essa crise de paradigmas causa angústia nos pesquisadores, como argumenta Elias Thomé Saliba (1992): a crise ocorre devido ao desencantamento e à dúvida em relação ao futuro, pois a história atual reproduz as particularidades e as exigências políticas de cada sociedade e nas exigências mundiais. O autor refere‑se à história como uma escrita sobre o presente e a crise de paradigmas advém da imprevisibilidade do futuro. Talvez, segundo ele, a história não precise mais de paradigmas para ser percebida, já que hoje o sentido de história é muito distinto do que outrora foi. Saiba mais Para saber mais sobre o assunto, leia a indicaçãoa seguir: SALIBA, E. T. Mentalidades ou história sociocultural: a busca de um eixo teórico para o conhecimento histórico. Revista Margem, São Paulo, n. 1, 1992. 2 O MUNDO MODERNO E SUAS TRANSFORMAÇÕES: UMA INTRODUÇÃO Para podermos compreender as transformações históricas contemporâneas, é indispensável que nos reportemos às origens históricas que contribuíram para que houvesse as mudanças que experimentamos hoje em dia. A nossa história começa na Europa, não porque europeus são considerados uma “raça superior” ou são os mais inteligentes do planeta, mas sim porque lá ocorreram transformações significativas que mudaram e vêm transformando o mundo até hoje. Essas transformações, como o mercantilismo, o liberalismo econômico, a Revolução Industrial, o neocolonialismo e o imperialismo, dentre outros acontecimentos, referem‑se a um conjunto de ações humanas que provocaram transformações profundas do ponto de vista social, político, econômico, ambiental e comportamental a nível mundial e impulsionaram importantes mudanças nas sociedades em vários cantos do planeta. 25 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Dessa forma, o contato com esses acontecimentos passados nos ajuda a elaborar interpretações que tragam significado para o mundo atual, inclusive daquelas regiões mais longínquas. Temas atuais, como globalização e mundialização, têm raízes nos primórdios do mercantilismo, na colonização e na expansão de mercados iniciados no século XV, como será demonstrado adiante. Além disso, questões contemporâneas semelhantes àquelas de que temos notícia hoje em dia, tais como a imigração e a expatriação de africanos e sírios para a Europa, têm vínculos com o imperialismo ou o neocolonialismo aplicado pelos europeus no final do século XIX e início do século XX e com os processos de descolonização principiados no Pós‑Guerra. Dessa forma, não é possível pensarmos nos acontecimentos do presente isolados dos fatos passados, nem pensarmos em episódios estanques separados de outros contextos históricos: o passado está vivo no presente, ele se torna o espaço de discussão para a compreensão do presente e pode ser reelaborado de acordo com as diversas teorias e os vários modelos de interpretação que existem no conhecimento histórico. Portanto, as experiências do presente são como ecos do passado, que é recuperado através da memória histórica como estratégia de compreensão e legitimação dos acontecimentos atuais. Ao analisarmos os discursos contemporâneos sobre a atividade humana, tanto nos contextos econômicos quanto nos sociais e políticos, devemos recorrer à coleta de informações do passado, transformando‑o em uma experiência da atualidade com o objetivo de entendimento do cotidiano na atualidade. Não se trata de recorrermos a uma linearidade cronológica dos fatos passados, mas sim de nos ocuparmos da compreensão e reflexão dos acontecimentos essenciais que modificaram a vida de boa parte da humanidade que experimenta semelhantes formas de viver. De fato, podemos identificar algumas diferenças culturais, tais como religiosas e comportamentais, entre os povos; entretanto, apesar dessas diferenças, a humanidade segue vinculada ao contexto mundial, principalmente no campo da economia, que é globalizada. Isso quer dizer que a economia é transnacional e o capital é reproduzido em escala mundial, e assim a economia local torna‑se província da economia mundial. Os processos e a organização sociais estão sob o domínio dos componentes ideológicos da cultura, representados pelo poder e pela superestrutura da sociedade local e vinculados aos modelos internacionais. Dessa forma, poderemos capturar as influências do passado nas transformações históricas da contemporaneidade destrinchando os aspectos essenciais que deram origem ao mundo pós‑contemporâneo. Esses aspectos essenciais dizem respeito às rupturas que ocorreram na estrutura da sociedade, como as revoluções que influenciaram significativamente muitas sociedades mundiais, conforme será tratado a seguir. Grosso modo, a separação serial das épocas históricas se dá da seguinte forma: • História antiga: por volta de 3000 a.C a 476 d.C. – fim do Império Romano. 26 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I • História medieval: por volta do século V ao século XV (1453 – tomada de Constantinopla). • História moderna: século XV até século XVIII (1789 – Revolução Francesa). • História contemporânea: século XVIII até nossos dias. Para que possamos compreender o período atual, isto é, o mundo da pós‑modernidade, como alguns autores intitulam (BAUMAN, 1999), ou pós‑contemporâneo, iremos iniciar nossa viagem a partir do final da história medieval para mostrar como se deu o início do capitalismo, ou o pré‑capitalismo. 2.1 A passagem do feudalismo para o capitalismo O feudalismo foi um sistema de produção ocorrido na Europa Ocidental por volta dos séculos V ao XV e caracterizado pela produção agrícola, cujas relações sociais eram predominantemente servis, de produção ou de prestações de serviços compulsórios do servo ao seu senhor, como definiu Maurice Dobb (1981, p. 43), um dos historiadores que mais se dedicaram ao estudo do feudalismo. As origens do feudalismo remontam ao declínio do Império Romano, quando os romanos passaram a migrar das cidades para o campo (êxodo urbano) devido aos ataques dos povos germânicos, chamados bárbaros pelos romanos, a fim de se protegerem. A formação do feudo, isto é, grandes extensões de terra ou latifúndios, deu‑se gradualmente. Ele pertencia a um único dono, o senhor feudal, originando um sistema de exploração consentida pelo servo (o trabalhador da terra), já que o dono, o seu senhor, cobrava tributos pelo uso de suas terras. O servo não era escravo, era um homem livre, porém estava preso à terra, já que dependia da sua própria produção para sobreviver e, além disso, deveria produzir para o senhor feudal como forma de pagar pelo usufruto do lugar. O feudo era autossuficiente, ou seja, produzia tudo para a subsistência dos habitantes do lugar e incluía espaços para a produção de pães, serralheria, olaria, produção artesanal, prados e pasto, além das áreas produtivas comuns (usufruto do servo) e particulares (a produção era exclusiva para o senhor) e também áreas de convivência: a aldeia onde moravam os servos e o castelo destinado ao senhor e a sua família e os cavaleiros (o exército do senhor) que protegiam o feudo de ataques de povos bárbaros (ARRUDA, 1990, p. 359‑60). A produção agrícola era pequena devido à tecnologia primitiva empregada no processo de produção, e, portanto, o excedente de produtos era baixo. Na economia feudal, as moedas, apesar de existirem, eram escassas, pois a população vivia de trocas. O sistema feudal era um sistema baseado em trocas – proteção e usufruto da terra por trabalho –, mas era um sistema desigual e ilusório no qual as pessoas eram manipuladas pela Igreja Católica a perpetuarem seus costumes e valores nessa condição. Apesar disso, esse sistema começou a apresentar sinais de enfraquecimento com a introdução de novos elementos que desmontaram a sua estrutura. 27 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Com o tempo, foram introduzidas melhorias no sistema produtivo com o aperfeiçoamento das técnicas agrícolas. Foram pequenas novidades, como o surgimento da charrua, tipo de arado de ferro que facilitava o cultivo, além da rotação dos campos de produção. Dessa forma, a produção aumentou, e houve um significativo aumento da população. Outras novidadesocorreram, como a introdução de moinhos de vento que substituíam a mão de obra humana no fabrico da farinha, produto fundamental para produção de pães, liberando os camponeses para produzirem outros alimentos. Alimentando‑se melhor, as pessoas passaram a viver mais, favorecendo o aumento demográfico. Apesar disso, houve também um aumento da população nobre; por isso, aumentou‑se a parcela da sociedade que não era produtiva e que dependia da produção do trabalho dos camponeses. Devido a isso, essa nobreza desejosa de ampliar seus rendimentos passou a aumentar as obrigações devidas pelo servo pelo uso de suas terras, facilitando a fuga de parte dos camponeses para as cidades, já que estas não apresentavam mais perigos de invasões. Ocorreu um verdadeiro êxodo rural. Muitas das camadas de camponeses marginalizados, bem como de nobres excluídos do direito de herdar bens de seus pais que não tinham terras para deixar aos seus filhos, foram convocados pela Igreja para as Cruzadas (do século XI ao XIII), isto é, exércitos europeus representados pela Igreja Católica que foram libertar a Terra Santa, região de Jerusalém que tinha sido tomada pelos muçulmanos como resultado da Guerra Santa. Ao entrarem em contato com o Oriente, por meio de uma guerra, os europeus conheceram um mundo distinto daquele em que viviam com muitos produtos e culturas diferentes. Com isso, muitas mercadorias foram entrando na Europa, o que provocou uma verdadeira transformação no sistema de trocas. As feiras medievais, locais onde os comerciantes, originários dos feudos, faziam seus negócios, se dinamizaram com a introdução de novos produtos, a recirculação das moedas e a reinvenção das trocas comerciais. Muitos locais onde existiam essas feiras se transformaram em cidades. É importante ressaltar que as terras do burgo (castelo fortificado para a defesa) eram pertencentes ao senhor feudal e posteriormente foram muradas, enquanto os habitantes do entorno, os comerciantes, chamados de burgueses (habitantes do burgo), originários da fuga dos feudos, dinamizavam o comércio local, transformando por completo o modo de produção feudal. Exemplo de aplicação Apesar da rudeza das cidades medievais de que se tem notícia, Pieter Bruegel, que nasceu por volta de 1525, perto de Antuérpia, hoje território da Bélgica, conseguiu retratar, na obra a seguir, brincadeiras infantis: neste cenário lúdico, os adultos parecem crianças e se divertem junto com elas. Todos interagem, o que contrasta com a rigidez e a dificuldade em que viviam. As cidades eram insalubres e barulhentas devido ao crescimento do comércio, e viver nelas era quase uma aventura. 28 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I Figura 1 – Jogos Infantis (1560), de Pieter Bruegel, o Velho Nessa obra, o artista apresenta uma possibilidade de diversão através de múltiplas brincadeiras, em um momento histórico que nega a brincadeira devido à seriedade do momento. Reflita a respeito da pintura, relacionando a rudeza vivida na época medieval e o sonho de criança retratado na tela. 2.2 As cidades medievais como precursoras do pré‑capitalismo A história do crescimento das cidades medievais está vinculada à produção de excedente agrícola e ao aumento demográfico assistido na Europa Ocidental. Essas cidades surgiram por volta do século XI. A população urbana era formada pela chamada burguesia, que se dedicava ao comércio e ao artesanato, ao passo que no campo viviam a nobreza e o clero e os servos remanescentes produziam alimentos e se dedicavam à criação de animais. O campo abastecia as cidades. Algumas cidades se formaram devido à existência de rios navegáveis, e, por isso, as relações comerciais já eram facilitadas, enquanto outras nasceram dos próprios núcleos feudais ou da iniciativa feudal em que predominavam as trocas comerciais. O surgimento das cidades é controverso, conforme retratou Maurice Dobb: Sem dúvida, um grande número de cidades foi do tipo intermediário e seria difícil de classificar em qualquer dos campos. Com o correr do tempo, a linha divisória mudaria; as cidades antes dependentes se firmaram e conseguiam certa medida de independência, ou a liberdade de outras era eliminada em favor de maior controle feudal. Outras, que apresentavam toda [a] aparência de independentes, parecem muitas vezes terem sido, de início, dominadas por algumas famílias aristocráticas que possuíam alguma terra dentro da 29 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS cidade (como se mostrou característica frequente e importante de cidades italianas) (DOBB, 1981, p. 86). Com o tempo, as cidades foram adquirindo autonomia e controlando as condições do mercado local (DOBB, 1981, p. 90), cujas mercadorias eram consumidas pelos nobres e por outras camadas da população endinheirada. A nobreza residiu nas cidades italianas de Gênova e Veneza e em algumas da França e da Espanha. A partir do século XIII, a burguesia começou a se diferenciar de acordo com o volume de negócios e com o tipo de ofício praticado: a alta burguesia (os mais ricos) e a pequena burguesia. A alta burguesia se dedicava aos negócios mais rentáveis, comercializando com os estrangeiros e dominando as maiores corporações de ofício. Ela muitas vezes monopolizava o governo das cidades. Já a baixa burguesia era caracterizada por pertencer às corporações menores e representava os comerciantes locais. Muitas cidades eram franqueadas, ou seja, seus habitantes tinham de pagar uma franquia ao senhor feudal local. Com o tempo, a população foi adquirindo certa autonomia e liberdade com o surgimento de ligas e confrarias, as corporações de ofício, para o artesão, e as guildas, para os comerciantes. Caso os habitantes do lugar conseguissem maior autonomia, como autogoverno, as cidades eram chamadas de comunas. As corporações de ofício determinavam o preço do produto de acordo com a oferta e a procura, regulamentando o controle do mercado exterior e do interior, a qualidade, os salários da época e os preços do produto. As corporações de ofício reuniam alfaiates, sapateiros, carpinteiros, ferreiros, padeiros, tanoeiros (fabrica tonéis), pedreiros, fabricantes de velas, açougueiros, dentre outros (ARRUDA, 1990, p. 395‑6). Toda a produção das cidades era organizada nas oficinas para cada tipo de trabalho. Cada oficina tinha um mestre de ofício, ou seja, o artesão dono da oficina, da matéria‑prima, de acordo com cada produção, e das ferramentas. O mestre era auxiliado por um oficial, que era um empregado artesão que recebia um salário. Os aprendizes de ofício eram, em geral, jovens que estavam na oficina para aprender um ofício, mas não recebiam salário. Havia ainda o jornaleiro, que ganhava por jornada de trabalho. Tanto os mestres quanto os oficiais e aprendizes se ocupavam do mesmo processo de produção, ou seja, a mercadoria era produzida por uma única pessoa em todas as suas etapas, não como é realizado hoje em dia, quando o indivíduo se ocupa de apenas uma parte da produção. As manufaturas produzidas nas oficinas eram vendidas pelos comerciantes, que distribuíam o produto tanto localmente quanto internacionalmente. Muitos desses comerciantes se transformaram em grandes mercadores. O comércio internacional era uma das molas mestras desse pré‑capitalismo: baseava‑se na compra e venda de produtos orientais que chegavam à Europa através dos árabes muçulmanos que controlavam a caravana de produtos da Ásia para a Europa. 30 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I Com o crescimento das cidades e o fluxo comercial, houve a necessidadede se desenvolver uma administração coletiva que regulasse as finanças públicas, na medida em que havia gastos com a defesa e com a construção de muralhas e de edifícios, dentre outros. Além disso, as cidades cresceram desordenadamente, sem nenhum planejamento, provocando vários problemas. Nesse período, a organização social se modifica e apresenta uma nova configuração na outrora sociedade estratificada dominada por senhores e camponeses. Apesar de os senhores feudais ainda terem seus privilégios, surge uma camada de ricos comerciantes que desfrutavam das benesses que só o dinheiro poderia proporcionar. Esses indivíduos e mais outros grupos, como os artesãos, coexistiam no ambiente urbano e disputavam vantagens, mas apenas a nobreza feudal e posteriormente os ricos mercadores tirariam mais proveitos políticos devido a suas posições. Politicamente, as cidades medievais eram dominadas pelos senhores feudais que detinham a maioria das terras. Porém, com o tempo, a nobreza e os senhores tiveram seu poder diminuído, dando espaço para a ação política dos reis que ressurgiram como articuladores entre a nobreza e os comerciantes. Observação Os produtos fabricados nas cidades eram realizados de forma manual e confeccionados, em geral, por um indivíduo, os artesãos, com a ajuda de aprendizes. As atividades mais comuns eram: padaria, metalurgia, ourivesaria, carpintaria, chapelaria, alfaiataria, tecelagem, tinturaria, entalhe de pedras, dentre outras atividades que abasteciam os moradores do campo e da cidade. Os alimentos que guarneciam as cidades provinham do campo, que continuava a produzir gêneros agrícolas, tais como cereais, vegetais, leite e carnes bovinas, de porco, de frango e de peixe. Também eram produzidos vinho e vinagre. Com o tempo, as especiarias vindas do Oriente, como cravo, canela e noz‑moscada, passaram a abastecer as cidades, mas apenas a nobreza tinha condições de consumir os produtos importados da China e da Índia. Havia ainda os ricos comerciantes ou mercadores, que abasteciam as feiras medievais dos produtos importados, e os banqueiros, que guardavam o dinheiro dos comerciantes mediante uma taxa, os juros de mora. Estes tinham um grande poder econômico nas cidades. 2.3 Crise econômica nos séculos XIV e XV Em meio a um período de grande prosperidade, ocorreu uma grande catástrofe na Europa que provocou uma crise de retração do desenvolvimento econômico e demográfico. 31 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Com a fuga dos servos do feudo, a produção feudal crescia pouco ou ficava estagnada, causando uma baixa produção e um abastecimento incipiente de alimentos para as cidades. Isso enfraqueceu o organismo dos indivíduos, que ficaram sujeitos às doenças. Como as cidades começaram a ficar superlotadas, era urgente solucionar o problema de saneamento básico, já que os hábitos de higiene eram incipientes, pois os habitantes da cidade jogavam excrementos a céu aberto. A pavimentação das ruas seria uma solução, mas não acabava totalmente com a sujeira, que atraía ratos para a cidade e, consequentemente, doenças. Além disso, muitos animais circulavam no interior das vielas e ruas, despejando suas fezes no caminho. Devido à higiene precária nas cidades, a peste negra, ou peste bubônica, isto é, doença propagada pela pulga do rato, alastrou‑se rapidamente, provocando muitas mortes e uma baixa demográfica, e, com isso, uma crise de retração, principalmente no que diz respeito ao crescimento econômico. Trazida pelos mercadores, provavelmente do Oriente, por volta do século XIV, a peste negra espalhou‑se rapidamente por toda a Europa, dizimando 25 milhões de pessoas, tanto do campo quanto da cidade. Outras doenças contagiosas se alastraram velozmente pela Europa, principalmente pelas cidades portuárias onde as moléstias eram trazidas pelos estrangeiros e navegantes que atracavam no porto suas embarcações vindas, sobretudo, do Oriente. As doenças provocaram uma retração da produção no campo, na medida em que aldeias inteiras foram dizimadas com a peste e, portanto, não havia quem produzisse alimentos para serem comercializados nas cidades. Sem alimentos, os citadinos ficavam mais vulneráveis ainda às doenças que se espalhavam rapidamente, ocasionando mortalidade fulminante. A crise de retração ocorrida no século XIV (ARRUDA, 1990, p. 424‑6) suspendeu temporariamente o desenvolvimento da economia, fazendo que houvesse uma baixa na produção e no consumo. Como consequência dessa crise, ocorreram várias dificuldades que resultaram em outra crise, a do crescimento econômico. Os fatores foram: • O conflito entre o sistema feudal no campo e o sistema capitalista das cidades: a produção de alimentos no campo era baixa devido às características do sistema feudal (autossubsistente) e não atendia à demanda das cidades, e a produção artesanal das cidades não conseguia vender seus produtos para a população do campo. • Os produtos orientais, transportados pelos muçulmanos do Oriente até a Europa, encareceram muito devido aos vários intermediários que participavam do processo comercial, ao mesmo tempo em que diminuía o poder de compra da nobreza. • Houve uma crise monetária, ou seja, havia uma escassez de moedas de ouro na Europa, e as já existentes eram escoadas para o Oriente. 32 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I A solução para esses problemas seria encontrar uma saída que colocasse os mercadores europeus em contato direto com os fornecedores e produtores orientais, sem intermediários, a fim de comercializarem o produto a um preço melhor e mais justo. Isso só poderia ocorrer se os mercadores encontrassem novas rotas de comércio, pois as já existentes eram terrestres e monopolizadas pelos muçulmanos, que impediam a passagem. Com a diminuição do poder aquisitivo dos senhores feudais, havia também a necessidade de encontrar mercados que consumissem os produtos europeus, manufaturados nas oficinas. Além disso, era necessário encontrar um lugar que fornecesse matéria‑prima para que fossem confeccionadas as moedas de ouro e prata como forma de injetar moedas no comércio europeu. A expansão do mercado europeu dependia de medidas inovadoras que facilitassem a abertura de novos mercados fornecedores de matérias‑primas e consumidores de produtos europeus manufaturados. Nesse período, o capitalismo deixa a primeira etapa (pré‑capitalismo) e passa para a segunda etapa, chamada de capitalismo comercial, que será o assunto do próximo tema. Saiba mais Se quiser saber mais sobre o período de uma forma bem didática e de fácil compreensão, leia o livro: ARRUDA, J. J. de A. História antiga e medieval. São Paulo: Ática, 1990. 2.4 Do pré‑capitalismo ao capitalismo comercial A primeira fase do capitalismo, o pré‑capitalismo, surgiu por volta do século XII. Caracterizou‑se pela produção de bens não apenas para consumo imediato, mas também para trocas, engendrando um quadro mercantil. Entretanto, a partir do século XVII, o capitalismo comercial se desenvolve como decorrência do acirramento das atividades mercantis, inaugurando uma nova etapa econômica não apenas para a Europa, mas também para o mundo, pois estavam envolvidos produtores e consumidores. Podemos reconhecer que a denominação comercial provém da preponderância do capital mercantil sobre a produção e não tem completa relação com o trabalho assalariado, já que as relações assalariadas de produção como características do capitalismo não estão definidas ainda nesse período. O fato é que o produtor independente vendia o produto de seu trabalho, mas não o seu trabalho. Quem tinha a maior parcela de lucro eraquem comprava e revendia a mercadoria, e não o produtor da mercadoria. Para que isso acontecesse, era necessário repensar novas rotas de comércio, pois as que existiam eram dominadas pelos povos muçulmanos, que dominavam o comércio europeu e impunham seu preço de revenda. 33 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS Nesse período, intensificou‑se a procura de novas rotas comerciais pelos europeus a fim de adquirir mercadorias estrangeiras e, com isso, ter a possibilidade de ampliação de mercados e de capital sem o intermediário. Essa é uma fase de acúmulo de capital nas mãos dos comerciantes, que controlavam o mercado, e esse capital será posteriormente investido na produção de mercadorias, dando origem ao capitalismo industrial do século XVIII. Veremos adiante como o capitalismo comercial se consolidou. Podemos então, classificar quatro fases do capitalismo: • Pré-capitalismo: século XII ao XV. • Capitalismo comercial: século XVII ao XVIII. • Capitalismo industrial: século XVIII. • Capitalismo financeiro: século XIX ao XX. Lembrete Nesse período, o capital se acumulava por meio do comércio e da circulação de mercadorias, e não da produção de mercadorias, como ocorre no capitalismo industrial, em que o lucro provém do produto industrial. Figura 2 – Casal Arnolfini (1434), de Jan van Eyck 34 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 Unidade I 3 O MERCANTILISMO E A EXPANSÃO MARÍTIMA EUROPEIA Esse período que estamos estudando corresponde ao início da Idade Moderna. Uma das características marcantes desse período é que a riqueza dos indivíduos era medida pelo capital adquirido com a atividade comercial e artesanal, diferentemente da Idade Média, quando a riqueza era determinada pela quantidade de terras. Para que ocorresse um desenvolvimento comercial intenso e acúmulo de riquezas, os mercadores precisavam da proteção de um governante forte que os representasse, que regulamentasse leis, que garantisse a ordem e a segurança e que organizasse as trocas comerciais com outras regiões. Essa ajuda veio através do fortalecimento do poder real. O rei se beneficiava com a movimentação da economia, pois os impostos pagos pelos mercadores para que governasse aumentavam seu poder e lhe conferiam maior prestígio perante o reino e outros reinos. Os impostos eram recolhidos em dinheiro pelos funcionários reais. Além disso, a burguesia mercantil também se fortalecia com a organização da expansão comercial promovida pelo rei, na medida em que enriquecia cada vez mais com o afluxo de produtos. Com o fortalecimento do poder real e a centralização política nas mãos de um governante poderoso, os reinos se transformaram em nações que concentravam recursos, pagos com os impostos, para a formação de um exército permanentemente equipado que assegurasse a ordem local. Além do mais, o fortalecimento da autoridade central possibilitou o surgimento de uma língua nacional que conferia identidade à jovem nação. As regulamentações e os monopólios locais foram postos de lado, pois a nação era governada como um todo, apesar de o rei privilegiar sempre os mais ricos. Apesar disso, tanto os camponeses quanto os artesãos e os mercadores aprovaram a formação de um governo central, pois se sentiam protegidos. Como na Idade Média os tributos eram direcionados aos senhores feudais e à Igreja, que conseguiu grande riqueza através das doações recebidas, reis e papas brigavam várias vezes, disputando o destino dos subsídios. O rei adotou, então, um conjunto de práticas para facilitar o desenvolvimento do comércio e para obter e preservar riquezas em suas nações. Isso se deveu aos descobrimentos e à colonização de terras capazes de oferecer produtos primários através da sua exploração. Observação Portugal e Espanha se tornaram os pioneiros nas descobertas de terras que fornecessem matérias‑primas; a Inglaterra se destacou no mercantilismo comercial; e a França se especializou no mercantilismo industrial com suas manufaturas de luxo. 35 Re vi sã o: L uc as - D ia gr am aç ão : J ef fe rs on - 1 0/ 05 /1 6 TRANSFORMAÇÕES HISTÓRICAS CONTEMPORÂNEAS O mercantilismo se baseou principalmente nas noções de balança de comércio favorável, monopólio comercial, protecionismo e sistema colonial. Essas práticas estavam interligadas e variavam de nação para nação. Constituem práticas mercantilistas: • Metalismo ou bulionismo: constitui‑se em uma das principais características do mercantilismo. Essa proposição se organizou na ideia de acúmulo de metais preciosos, principalmente ouro e prata. Quanto mais a nação tivesse esses metais, mais seria rica. Para isso, seria necessária a procura de um lugar que tivesse disponíveis os metais desejados. O elemento estratégico desse ponto foi a posse das colônias, o que provocou também uma disputa colonial entre as nações. Portugal e Espanha foram os pioneiros na corrida colonial. A Espanha dominava a exploração colonial na América, pois poderia importar tudo o que desejasse dos países estrangeiros, já que possuía muitas minas produtoras de prata no Peru e na Bolívia, e isso compensava a sua balança comercial. Com o tempo, Portugal também se apoderou da exploração do ouro em Minas Gerais, já que o Brasil era uma colônia portuguesa e, portanto, deveria fornecer matérias‑primas aos portugueses. Esse sistema se mostrou improdutivo e desastroso: a riqueza que as nações conquistaram desestimulou a produção agrícola e industrial em seu território, empobrecendo as pessoas que viviam no campo. No caso espanhol, os monarcas escoavam os metais preciosos para fora da Espanha para o pagamento das importações de mercadorias e manufaturas de luxo sem se incomodar com o desenvolvimento interno. Isso trouxe um futuro adverso para eles. • Balança de comércio favorável: diretrizes que previam que as nações deveriam exportar mais do que importar, pois dessa forma as moedas não sairíam do território de uma forma descontrolada. Os países europeus exportavam muitos produtos, principalmente as manufaturas de luxo, que compravam do estrangeiro para as colônias e outras nações e recebiam matérias‑primas enviadas pelas colônias quase de graça. O sistema colonial possibilitou a manutenção da balança comercial favorável. Muitos países que não conseguiam obter metais através da exploração colonial procuravam aumentar suas exportações e diminuir suas importações, como é o caso da França, que desenvolveu manufaturas de luxo para atender ao mercado sofisticado da Europa. Além disso, os franceses ampliaram suas companhias de comércio e a construção naval. Dessa forma, aumentando os ganhos e diminuindo os gastos, os monarcas conseguiam acumular riquezas, comprar armas, construir navios e financiar guerras. • Pacto colonial ou exclusivo colonial: estipulava que as colônias europeias na América deveriam fazer comércio apenas com suas metrópoles. A conquista e a exploração das colônias se constituem em uma das diretrizes mais importantes do mercantilismo. A premissa de vender caro e comprar barato deu muita notoriedade para os países europeus, que enriqueceram rapidamente. Esse sistema colonial transferiu lucros para a burguesia mercantil, aumentou o poder do rei e aumentou a riqueza nacional. O Brasil, colônia portuguesa, constituiu‑se em um dos exemplos que mais representaram o sistema e o pacto colonial. Não era permitido que a colônia fabricasse qualquer produto manufaturado, nem comprasse de produtores estrangeiros; ela deveria comprar tudo da metrópole, enquanto fornecia matérias‑primas para ela. A exploração do açúcar no Brasil afirmou o sistema colonial.
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