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Debates Contemporâneos em Educação 0 Debates Contemporâneos em Educação 1 Daniel Skrsypcsak Jenerton Arlan Schütz Organizadores DEBATES CONTEMPORÂNEOS EM EDUCAÇÃO Dialogar São Paulo – SP 2018 Debates Contemporâneos em Educação 2 CONSELHO EDITORIAL Ivanio Dickmann - Editor Chefe - Brasil Aline Mendonça dos Santos - Brasil Fausto Franco Martinez - Espanha Jorge Alejandro Santos - Argentina Miguel Escobar Guerrero - México Carla Luciane Blum Vestena - Brasil Ivo Dickmann - Brasil José Eustáquio Romão - Brasil Enise Barth Teixeira – Brasil FICHA CATALOGRÁFICA D350 Debates contemporâneos em educação / Daniel Skrsypcsak, Jenerton Arlan Schütz (Orgs.). 1.ed. – São Paulo: Dialogar, 2018. ISBN - 9788593711244 1. Educação. 2. Teorias da educação. I. Skrsypcsak, Daniel. II. Schütz, Jenerton Arlan. III. Título. CDD 370.1 Ficha catalográfica elaborada por Karina Ramos – CRB 14/1056 EDITORA DIALOGAR dialogar.contato@gmail.com Debates Contemporâneos em Educação 3 SUMÁRIO PREFÁCIO ................................................................................................... 6 CAPÍTULO I - Currículo e Formação de Professores 1 - Formação de professores e educação inclusiva: Possibilidades de pensar para além da mesmidade Daniel Skrsypcsak, Jenerton Arlan Schütz...........................................................8 2 - Formação inicial de professores de inglês: Prática institucional do mistério e o caso dos diários de leitura Fernando Silvério de Lima..................................................................................24 3 - Formação de professores da educação infantil no Rio Grande do Sul nas estatísticas educacionais Rafaela da Silva Melo.........................................................................................51 4 - Formação de professores: O papel do ensino e da pesquisa da história da educação Simone Burioli Ivashita.......................................................................................68 CAPÍTULO II - Dimensões políticas da educação brasileira 5 - Princípios da gestão democrática para promover uma convivência democrática na escola Daniel Skrsypcsak..............................................................................................87 6 - A emenda constitucional 95/2016 e a vinculação constitucional de recursos: Involução das políticas de financiamento educacional Ivair Fernandes de Amorim, Eder Aparecido de Carvalho...............................102 Debates Contemporâneos em Educação 4 7 - Caminhos e descaminhos das políticas de currículo e escolarização do programa educacional “escola viva” Julio César da Silva de Alvarenga, Maria de Fátima Côgo, Marina de Oliveira Delmondes........................................................................................................123 8 - Avaliação escolar e políticas educacionais: Considerações e diálogos contemporâneos Cláudia Fuchs..................................................................................................138 CAPÍTULO III - Educação e Diversidade 9 - A multiplicidade cultural do outro Luiz Fernando Ferrari.....................................................................................162 10 - Educação, cultura e produção de sujeitos: o papel da diversidade cultural no relatório cuéllar e a identidade da educação do e no campo Camila Maria Bortot,Kethlen Leite de Moura..................................................179 11 - Contribuições da avaliação neuropsicopedagógica para a inclusão escolar de pessoas com necessidades educacionais especiais Eugênia Santana Pereira, Marta Bramuci de Freitas........................................201 12 - Ensino de línguas na contemporaneidade: Uma reflexão sobre linguagem e identidade Roma Souza-Dias, Eduardo Dias da Silva......................................................222 CAPÍTULO IV - Inter/transdisciplinaridade na Educação 13 - Pedagogia da interdisciplinaridade Leandro Renner de Moura...............................................................................239 Debates Contemporâneos em Educação 5 14 - Alfabetização midiática e informacional como elementos fundamentais na formação dos sujeitos contemporâneos Daniele Prates Pereira, Denise Rosana da Silva Moraes...................................251 15 - O cinema como produtor de conhecimento em sala de aula Geovanna Coelho dos Santos, Renato de Oliveira Dering..................................270 16 - Estilos de aprendizagem: Uma crítica as suas compreensões e usos Rosemary Barbosa da Silva Moura, Luiz Artur dos Santos Cestari.................291 17 - A ecopedagogia e a educação ambiental Ivan Luís Schwengber, Simone Ruppenthal.......................................................312 18 - Tecnologia e hibridismo no ensino superior: A contemporaneidade na educação e nos processos de ensino e aprendizagem Tarcisio Dorn de Oliveira, Felipe Cavalheiro Zaluski.......................................329 19 - O capitão américa: A arte como produto Célia Martins da Costa....................................................................................342 20 - Uma breve reflexão sobre as tecnologias educacionais e o papel da escola diante da cultura digital Douglas Orestes Franzen, Leandro Mayer, Mariane Jungblut Fiorentin….......360 Debates Contemporâneos em Educação 6 PREFÁCIO “O escrever é o princípio da pesquisa, tanto no sentido de por onde deve ela iniciar sem perda de tempos, quanto no sentido de que é o escrever que a desenvolve, conduz, disciplina e faz fecunda” Mario Osorio Marques A obra “Debates Contemporâneos em Educação”, organizada por Daniel Skrsypcsak e Jenerton Arlan Schütz, testemunha inúmeras experiências de escrever na educação, de educar na escrita. Experiências estas que nos tocam, nos transformam e nos acontecem, como nos lembra Jorge Larrosa. Movidos por essas experiências e inquietações, a obra, organizada em quatro sessões e vinte capítulos, aborda inúmeras questões contemporâneas, a saber, da formação de professores; educação inclusiva; educação ambiental; tecnologias; ensino e pesquisa; gestão; políticas educacionais; currículo; avaliação escolar; diversidade cultural; psicopedagogia; ensino de línguas; alfabetização; interdisciplinaridade, entre outras. É esse caráter interdisciplinar que testemunha as mais variadas experiências de escrever e fazer pesquisa. Por isso, esta coletânea não tem nenhum propósito revelador, doutrinário ou convertedor. O que ela propõe é convidar o leitor a um gesto simples e milenar: Dar a ler! Um gesto que possibilita a continuidade e durabilidade do mundo comum. Desejo aos leitores desta coletânea de textos afastamento, tempo e pensamento para que possam, na leitura, percorrer caminhos que ajudem a produzir novas formas de pensar e ser. Precisamos clamar para que a força do pensamento não nos abandone e que possamos sempre nos interrogar: Por quem queremos ser reconhecidos? O que queremos impactar com nossa atividade? Por fim, que sejamos capazes de nos manter firmes e dispostos a pensar outramente (Touraine) nestes tempos de ignorância militante, de hábeis polegares e escassa memória. Boa leitura! Jenerton Arlan Schütz Inverno de 2018 Debates Contemporâneos em Educação 7 CAPÍTULO I Currículo e Formação de Professores Debates Contemporâneos em Educação 8 1 - FORMAÇÃO DE PROFESSORES E EDUCAÇÃO INCLUSIVA: POSSIBILIDADES DE PENSAR PARA ALÉM DA MESMIDADE Daniel Skrsypcsak1 Jenerton Arlan Schütz2 INTRODUÇÃO Refletir sobre a inclusão na educaçãoescolar leva-nos inevitavelmente a (re)pensar e (re)significar a relação entre a formação do professor e as práticas pedagógicas atuais. A elaboração do presente texto objetiva analisar a formação de professores para atuar em um paradigma de educação que busca a igualdade de oportunidades e a qualidade nos serviços oferecidos a todos os alunos. A compreensão da educação como um direito de todos e do processo de inclusão educacional numa perspectiva coletiva da comunidade escolar, reforça a necessidade da construção de escolas inclusivas que contam com redes de apoio a inclusão. No contexto mundial, a educação caminha na direção de um modelo escolar que se fundamenta no paradigma da inclusão. Professores e escolas são chamados frequentemente para enfrentar o grande desafio de oferecer qualidade a toda a diversidade de alunos. Permitir que os alunos tenham acesso e permaneçam na escola não é o suficiente, é preciso tornar fundamental que todos eles, de fato, aprendam. Assim, várias são as exigências e desafios postos na organização e funcionamento da escola, nas práticas pedagógicas e, principalmente, na formação dos professores. 1 Doutorando em Educação nas Ciências (UNIJUI); Mestre em Educação (UNESC). Licenciado em Educação Física (UFSM). Professor da Rede Públic do Estado de Santa Catarina e do Centro Universitário Fai de Itapiranga-SC. E-mail: dskrsypcsak@hotmail.com 2 Doutorando em Educação nas Ciências (UNIJUI), Mestre em Educação nas Ciências (UNIJUI), Especialista em Metodologia de Ensino de História (UNIASSELVI), Licenciado em História e Sociologia (UNIASSELVI), Bolsista CAPES. E-mail: jenerton.xitz@hotmail.com Debates Contemporâneos em Educação 9 Nesse sentido, escolas, gestores e professores precisam estar preparados para enfrentar o desafio, que está para além de acolher os alunos, pois, estes merecem condições possíveis para aprender, além das mesmas oportunidades para acessar os conhecimentos historicamente constituídos (tradição). Contudo, será que os professores estão realmente preparados para “dar conta” dessa missão? Sabem eles reconhecer as necessidades educacionais especiais dos alunos? Sabem eles identificar estratégias pedagógicas e utilizar recursos diferenciados capazes de compensar ou superar as barreiras de aprendizagem existentes? Será que estão indo para além da mesmidade, para além de uma pedagogia do apagamento? Respostas para tais indagações exigem novas posturas frente à Educação Inclusiva, uma vez que estão diretamente relacionadas com a formação de professores, a práxis escolar e, principalmente, a aprendizagem de todos os alunos envolvidos no processo, destarte, consideramos fundamental abordar a formação inicial, isto é, lá onde se constituem os professores e demais profissionais da educação. Ademais, para dar conta das indagações e outros desafios lançados à Educação Inclusiva, busca-se, num primeiro movimento, apresentar reflexões acerca dos desafios e dilemas postos à Educação Inclusiva na contemporaneidade, a fim de argumentar a importância da formação inicial para uma educação que possibilite a inclusão de todos os alunos e, do mesmo modo, garanta a aprendizagem de todos; por conseguinte, o texto estabelece conexões e possibilidades de uma prática inclusiva para a diversidade, alteridade, para o Outro, enfim, para além da mesmidade. Debates Contemporâneos em Educação 10 Desafios e dilemas para a formação de professores e a educação inclusiva Um dos desafios fundamentais que emergem da proposta de escola inclusiva é a formação do professor, que para Fávero (2009) é, justamente, o de (re)pensar e (re)significar a própria concepção de educador. Isto porque o processo educativo consiste na criação e no desenvolvimento de contextos educativos que possibilitem a interação coletiva entre os sujeitos singulares, e não simplesmente na transmissão e na assimilação disciplinar de conceitos e comportamentos estereotipados. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394/1996 de 20 de dezembro de 1996, em seu Título I, que trata da educação estabelece que: Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. Nesse contexto, buscar a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola vem sendo um grande desafio para a educação brasileira, pois, conforme a LDB, a educação, dar-se-á através da interação com a comunidade e da vida em sociedade. Em seu capítulo V, que trata da educação especial, a referida Lei estabelece que: Art. 58 Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar, oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de necessidades especiais. Art. 59 Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais: [...] III – professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns; Em conformidade com a Lei, o professor do ensino regular deve ser capacitado, a fim de que se possam garantir os princípios de uma educação inclusiva. Cabe aqui analisar quais são as medidas tomadas pelas instituições de ensino superior para adequar-se a essa nova realidade, educação igual para Debates Contemporâneos em Educação 11 todos. Por isso, “[...] dentre os inúmeros problemas de educação brasileiras que precisam ser resolvidos nenhum sobreleva o da formação dos professores” (AZANHA, 1995, p. 193), e a razão é muito simples: a questão da qualidade educacional não será enfrentada de modo adequado sem que primeiramente se enfrente a questão da formação dos professores. Outra preocupação é para a formação continuada dos professores atuantes. A formação dos profissionais da educação é tarefa, sem dúvida, essencial para a melhoria do processo de ensino e para o enfrentamento das diferentes situações que implicam a tarefa de educar. A LDB, em seu Título VI, que trata dos profissionais da Educação, estabelece que: Art. 62 A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação, admitida, como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal. Fazendo uma reflexão sobre a situação atual da formação dos professores, percebe-se a necessidade de que ela se insira no movimento de profissionalização fundamentado na concepção de competência profissional. O desenvolvimento dessa competência exige a articulação da teoria com a prática, na resolução de situações-problema e na reflexão sobre a atuação profissional. Na Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE), que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, há referência à inclusão e à formação de professores: A Educação Básica deve ser inclusiva, no sentido de atender a uma política de integração dos alunos com necessidades educacionais especiais nas classes comuns dos sistemas de ensino. Isso exige que a formação dos professores das diferentes etapas da Educação Básica inclua conhecimentos relativos à educação desses alunos (BRASIL, 2001, pp. 25-26). Não obstante, Freitas (2006, p. 168) apresenta a seguinte análise quanto à formação dos professores, ela deve ser: Debates Contemporâneos em Educação 12 [...] uma análise crítica sobre as práticas pedagógicas desenvolvidasatualmente com alunos que possuem necessidades educacionais especiais nas salas de aula do ensino comum permite-nos concluir que a formação do professor para a educação geral muito pouco tem contribuído para a educação desses alunos. Realmente faz sentido, pois, hodiernamente, um professor está sendo muito sugado pelos alunos ditos “normais” quanto à questão comportamental, e será que na própria educação regular não tem alunos excluídos, não há uma pedagogia do apagamento para parafrasear Skliar (2003a, 2003b)? Com essa nova situação, faz-se necessário a presença de mais alguém em sala para atender as necessidades de alguém “especial”. Nesse sentido, “o especial e o comum são vistos como dois problemas distintos que vêm disputando o mesmo espaço, o mesmo lugar físico: a escola pública” (KASSAR, 1995, p. 27 apud FREITAS, 2006, p. 164). Não obstante, a formação do professor de modo geral deve incluir programas/conteúdos que desenvolvam competências de um profissional intelectual para atuar em situações singulares. Conforme Mittler (2003, p. 184): Criar oportunidades para a capacitação não significa, necessariamente, influenciar o modo como os professores sentem-se em relação à inclusão. Tais sentimentos são fundamentais e precisam ser levados a sério. Qualquer dúvida ou quaisquer reservas não devem ser consideradas como reacionárias ou simplesmente anuladas. Os professores precisam de oportunidades para refletir sobre as propostas de mudança que mexem com seus valores e com suas convicções, assim como aquelas que afetam sua prática profissional cotidiana. Nesse aspecto é de fundamental importância a formação continuada, pois, quem já está atuando há anos no ensino regular vai enfrentar certa dificuldade para se adequar a nova realidade. São situações completamente diferentes e que o professor deverá estar atento para não criar problemas em sala, por isso a necessidade de estar com formação correta/concreta/contínua para saber o que fazer em determinados momentos. Segundo Freitas (2006, p.167), Debates Contemporâneos em Educação 13 Há na educação inclusiva a introdução de outro olhar. Uma maneira nova de se ver, ver os outros e ver a educação. Para incluir todas as pessoas, a sociedade deve ser modificada com base no entendimento de que é ela que precisa ser capaz de atender às necessidades de seus membros. Assim sendo, inclusão significa a modificação da sociedade como pré-requisito para a pessoa com necessidades especiais buscar seu desenvolvimento e exercer sua cidadania. O paradigma inclusivo, ao exigir do professor do ensino regular uma especialização para a sua atuação em sala de aula, também mostra que o educador da diversidade amplie suas perspectivas, a fim de desempenhar bem o papel de professor nessa nova realidade, uma vez que a postura do professor precisa mudar. O futuro professor tem de estar preparado teoricamente, saber aplicar na prática a teoria conhecida e aprendida, analisando as situações e melhorando-as. Hoje, um dos grandes desafios dos cursos que formam professores é a elaboração de um currículo que venha desenvolver nos acadêmicos competências, habilidades e conhecimentos para que possam atuar em uma escola realmente das diferenças que apresentarem, dando-lhes as mesmas possibilidades de realização humana e social (FREITAS, 2006, p. 176). Para que a inclusão de alunos com necessidades especiais na rede regular de ensino seja efetivada, não basta à criação de leis que promulguem a criação de cursos de capacitação continuada de professores, nem obrigue os alunos a matricularem-se na rede pública de ensino. Estas são medidas essenciais, porém, não suficientes. Para Correia (2008, p. 28), convergindo com a perspectiva formativa, considera que “[...] os educadores, os professores e os auxiliares de acção educativa necessitam de formação específica que lhes permita perceber minimamente as problemáticas que seus alunos apresentam, que tipo de estratégia devem ser consideradas para lhes dar resposta [...]”. A política educacional para a inclusão, através da capacitação, deve ser de forma gradativa e contínua, na perspectiva de beneficiar, alunos, professores e comunidade escolar. Todavia, vale ressaltar que é de fundamental importância a interação da criança com necessidades especiais com o meio Debates Contemporâneos em Educação 14 social, desde que sejam respeitadas as suas possibilidades e limites. Caso contrário, este indivíduo poderá ter sérios problemas emocionais e sociais. O professor é um agente fundamental no processo da inclusão, nesse contexto Silva e Reis (2011, p. 11) afirmam que “os aspectos ligados à formação do professor devem ser especialmente considerados, uma vez que, este deve estar preparado e seguro para trabalhar com o aluno com necessidade educacional especial”, o profissional da educação deve estar em constante formação, para atender as diferentes necessidades educacionais da atualidade. Além de todos esses aspectos ligados a formação dos professores e sua importância em tal contexto, vale ressaltar que as escolas também devem estar preparadas para receber tais alunos. Nessa direção, conforme Mittler (2003, p. 34) “a inclusão implica uma reforma radical nas escolas em termos de currículo, avaliação, pedagogia e formas de agrupamento dos alunos nas atividades em sala de aula”. Desta forma, a inclusão implica também, que todos os professores têm o direito de receber preparação apropriada na formação inicial em educação e desenvolvimento profissional contínuo durante sua vida profissional. A aceitação generalizada da proposta de inclusão, e a reconhecida necessidade de ampliação do acesso à Educação àqueles que, tradicionalmente, têm sido excluídos do sistema de ensino, refletem uma tendência atual em se acreditar no potencial dos alunos com necessidades especiais. A educação inclusiva, apesar de encontrar, ainda, sérias resistências por parte de muitos educadores, constitui, sem dúvida, uma proposta que busca resgatar valores sociais fundamentais, condizentes com a igualdade de direitos e de oportunidades para todos. Conexões e possibilidades para pensar uma educação para além da mesmidade A partir das reflexões acerca de uma formação de professores que esteja comprometida com a diversidade presente na escola e em cada sala de Debates Contemporâneos em Educação 15 aula, precisamos considerar que uma formação inicial e continuada de professores que busca acumular certificados, horas, cursos, técnicas inovadoras, não dará conta de uma educação que se quer realmente inclusiva, pois, segundo Nóvoa (1995, p. 25): A formação não se constrói por acumulação (de cursos, de conhecimentos ou de técnicas), mas sim através de um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso é tão importante investir a pessoa e dar um estatuto ao saber da experiência [...]. Práticas de formação que tomem como referência as dimensões colectivas contribuem para a emancipação profissional e para a consolidação de uma profissão que é autônoma na produção dos seus saberes e dos seus valores. Desse modo, a formação de professores deve ter como foco a reflexividade das práticas e diferentes situações que constituem a prática pedagógicas, pois, a reflexão coletiva cria possibilidades de (re)pensar as soluções para as questões presentes. Não obstante, as constantes reflexões teórico-práticas possibilitam alicerçar projetos e novas possibilidades transformadoras para a Educação Inclusiva. Nesse sentido, Santos (2007) reitera a importância de buscar sinais, pistas, movimentos, ou seja, o “ainda-não”, aquilo que ainda não foi pensado ou instituído, mas que, a partir da ação/reflexão coletiva pode emergir e mostrar rumos,sinais e possibilidades antes não pensadas. Somente assim teremos uma escola aberta para todos, uma “[...] instituição que tem a preocupação de não descartar ninguém, de fazer com que se compartilhem os saberes que ela deve ensinar a todos. Sem nenhuma reserva” (MEIRIEU, 2005, p. 44). Em consonância, Mittler (2003, p. 20, grifo nosso), considera que a inclusão depende do trabalho [...] cotidiano dos professores na sala de aula e do seu sucesso em garantir que todas as crianças possam participar de cada aula e da vida da escola como um todo. Os professores, por sua vez, necessitam trabalhar em escolas que sejam planejadas e administradas de acordo com linhas inclusivas e que Debates Contemporâneos em Educação 16 sejam apoiadas pelos governantes, pela comunidade local, pelas autoridades educacionais e acima de tudo pelos pais. Não obstante, podemos considerar que a possibilidade de uma Educação Inclusiva está para além da sala de aula e não depende apenas do professor. A Educação Inclusiva deve ser construída diariamente com o auxílio de todas esferas políticas e sociais. Nesse contexto, a possibilidade de inclusão não diz respeito a colocar as crianças nas escolas, mas sim em mudar as escolas a fim de torná-las mais responsivas a todos aqueles que nela adentrarem, dito de outra forma, é ajudar todos os professores a serem responsáveis pela aprendizagem de todas as crianças que estão na e fora da escola por qualquer razão. Isto é, aquelas crianças que não são “beneficiadas” pela escolarização, e não apenas aquelas rotuladas, geralmente, com o termo de “necessidades especiais”, essas são possíveis conexões para sonharmos e estabelecermos uma Educação Inclusiva para todos. Nessa direção, a escola deve ter por finalidade instituir os cenários políticos e pedagógicos para possibilitar o acesso universal ao conhecimento, constituindo esforços contínuos de universalização da cultura (MEIRIEU, 2002). Assim, é preciso buscar a concretude escolar, onde os alunos, professores, gestores e demais profissionais da educação habitam e atuam sob o horizonte ético da inclusão escolar, em outras palavras, “todos devem estar comprometidos com o jogo”. Neste jogo em que todos jogam, constitui-se um espaço de diferenças, de qualquer natureza, e é lá onde tais diferenças podem existir, ou seja, é preciso construir possibilidades, ao invés de mantermos antigos e ultrapassados estigmas e práticas. Ademais, “[...] descobrir novos meios para que a educação seja um lugar de partilha e não de exclusão (MEIRIEU, 2002, p. 34), por isso, mesmo que a escola presentifique tensões e desafios, ela deve se constituir em um espaço de conhecimento capaz de criar possibilidades e alternativas para garantir uma proposta de aprendizagem para todos os alunos. Retomando a passagem de Nóvoa (1995) no início deste item, para efetivarmos uma proposta para a inclusão, faz-se necessário estabelecer vínculos de encontros; encontros de reflexões, saberes, fazeres, estratégias, Debates Contemporâneos em Educação 17 recursos, avaliações, metodologias, pois, assim estaremos tornando os sujeitos responsáveis pela aprendizagem em sujeitos coletivos, interativos agindo no contexto da diversidade. Para Santos (2007), estamos vivenciando o tempo da tradução, ou seja, o momento de criarmos diálogos entre os diferentes conhecimentos e experiências disponíveis neste mundo que é tão plural e heterogêneo. Por isso mesmo, a ação educativa deve buscar consolidar a diversidade, a pluralidade, o Eu, o Outro, os tantos Outros presente em cada sala de aula, de tal modo que, [...] deve se pautar no respeito e no convívio com as diferenças, preparando os educandos para uma sociedade mais justa e solidária, contrária a todos os tipos de discriminação. [...] os professores precisam tratar das relações entre os alunos. Formar crianças para o convívio com as diferenças (ZOÍA, 2006, p. 23). Desse modo, nas experiências escolares estamos constantemente nos deparando com o Outro, com as diferenças, com encontros, com a alteridade etc. A questão que levantamos é: quando falamos do Outro nas experiências da educação escolar, estamos falando, de fato, no/do Outro e na possibilidade de encontros (todos aqueles que já citamos), ou estamos nos referindo da redução do outro, assim, sem possibilidade nenhuma de encontro? É possível encontrar um meio, no qual o Outro não seja esvaziado, excluído e neutralizado na sua alteridade? Skliar (2003b, p. 39), nos mostra que tudo é possível com a mudança na educação escolar, até mesmo, a insistência em uma única espacialidade e em uma única temporalidade, mas com outros nomes; a infinita transposição do outro em temporalidades e espacialidades homogêneas; a aparente magia de alguma palavra que se instala pela enésima vez, ainda que não nos diga nada; a pedagogia das supostas diferenças em meio a um terrorismo indiferente; chamar ao outro para uma relação escolar sem considerar as relações do outro com outros; e a produção de uma diversidade e uma alteridade que é pura exterioridade de nós mesmos; uma diversidade que apenas se nota, apenas se entende, apenas se sente. Debates Contemporâneos em Educação 18 Assim, as mudanças educativas nos pensam agora como uma reforma do mesmo, como uma reforma para nós mesmos. Elas nos olham agora como esse rosto que vai despedaçando-se de tanta maquiagem sobre maquiagem. As mudanças têm sido, então, a burocratização do Outro, sua inclusão curricular, seu dia no calendário, seu folclore, seu exotismo. E [...] esquecemos do Outro, agora detestamos sua lembrança, maldizemos a hora de sua existência, corremos desesperados para aumentar o número de carteiras das salas de aula, mudamos as capas de livros que publicamos [...], reuniformizamos o Outro sob a sombra de novas terminologias sem sujeitos (SKLIAR, 2003a, p. 195). Cremos que o discurso da “pedagogia do apagamento” (SKLIAR, 2003a, 2003b) está muito presente e próximo de cada um de nós, uma vez que o “problema” é sempre o Outro, isto é, que seja o Outro que tenha que ficar nu, que seja o Outro que se distancie de si mesmo, que seja o Outro que negue sua alteridade, que seja o Outro que fale em nome da igualdade, do respeito, da aceitação, do reconhecimento, da tolerância, que seja sempre o Outro. Que relações escolares então queremos? Podemos pensar em uma experiência escolar para além da mesmidade? Do mesmo modo, no pensamento de Levinas (1980, 1997, 1998), pensar as diferenças é abrir-se para (re)pensar a educação escolar, a formação humana, o conhecimento, as nossas relações e o mundo comum. A contribuição desse autor para a educação incide na ressignificação de uma abordagem embasada no ensinamento que provém do Outro, pois seu esforço teórico abre-se para traçar caminhos que tentam reconstruir um horizonte alternativo. Tematizar a educação, na perspectiva de Levinas, é um modo de resgatar e garantir a humanização do ser humano respeitando-o na sua diferença. O Outro é deduzido, muitas vezes, a partir do eu, visto como ameaça, negação, que questiona e se confronta com o poderio do eu. Nesse sentido, é que emerge a grande virada à capacidade do ser humano de se fazer e refazer nesse movimento. Uma educação que não trabalha o ato de pensar, também a partir do Outro, mas que se relega à boa sorte do que encontra como constituído nas subjetividades totalizadoras dos processos Debates Contemporâneos em Educação 19 educacionais e na perda do sentido do humano, reduzindo a possibilidade de alteridade (DIEZ; COSTA, 2016, p. 190). Realizar a experiência educativa como um gesto de acolhimento e reconhecimento, significa manter uma relação de proximidade e abordar o Outro na relação face a face. Necessariamente, implica em construir no âmbito educacional uma relação de proximidade não alérgicaà alteridade. Assim, a relação pedagógica tecida na forma de acolhimento é como a carícia que toca a pele do Outro sem com isso violentar sua integridade ou ferir sua alteridade (MIRANDA, 2008). Portanto, numa educação anônima, isto é, numa educação que não é inclusiva, não compreende as diversidades, as diferenças, o Outro, a alteridade etc, não há pessoas que se revelam, nem experiências sobre as quais possamos pensar e nas quais possamos encontrar algum sentido para a educação e o Outro. Muitas vezes, há experiências e momentos significativos que surgem, de modo inesperado, em alguma escola, em alguma sala de aula - algumas luzes. Assim, quem pensa o Outro e nele sua educação, tem de tomar cuidado para não apagar essas luzes, pois elas nos lembram a tarefa da educação: cuidar de um mundo que não dispensa as pessoas (o Outro), mas depende delas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Discutir as questões relativas à função social da escola e à importância de seu trabalho, considerando a diversidade dos alunos e a complexidade da prática pedagógica, são dimensões essenciais a serem garantidas na formação do professor. No entanto, não basta que uma proposta se torne lei para que a mesma seja imediatamente aplicada. Inúmeras são as barreiras que impedem que a política de inclusão se torne realidade na prática cotidiana de nossas escolas. Entre estas, a principal, sem dúvida, é o despreparo dos professores do ensino regular para receber em suas salas de aula, geralmente repletas de alunos com problemas de disciplina e aprendizagem. Portanto, importa, neste momento histórico de educação para Debates Contemporâneos em Educação 20 todos, que a formação seja de um professor comprometido com sua função social de educar todos os alunos. Acolher a diversidade de indivíduos e contar com professores preparados para a escola inclusiva! Eis o grande desafio da educação na atualidade. A educação é, necessariamente, um empreendimento coletivo. Para educar – e para ser educado – é necessário que haja ao menos duas singularidades em contato. Educar é um encontro de singularidades. O direito à diferença está baseado na ideia de que todos são diferentes entre si; e, propriamente, isto é ser humano, em sua singularidade. Para Arendt (2010, p. 8), “Homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo”. O fato da pluralidade nos leva a agir e a nos relacionar com os Outros com os quais (con)vivemos. Viver na pluralidade, significa se basear na igualdade e na diferença3 ao mesmo tempo. O fato de todos sermos seres humanos é que possibilita nos comunicar. Porém, também somos singulares, o que significa que com cada novo ser que neste mundo chega, vem também algo totalmente novo ao mundo. Assim, a pluralidade é formada por singularidades, e o fato de estarmos entre-outros é o que nos impele a comunicarmos uns com os outros. Ademais, nas palavras de Hannah Arendt (2013, p. 247), “a educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos responsabilidade por ele [...] e [...] onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo”. Uma educação comprometida com o mundo comum (eu, o Outro, e tantos outros), dá as boas-vindas a todos na esperança de que possam amá-lo à sua maneira singular. Finalmente, gostaríamos de ressaltar que o objetivo de abordar a educação inclusiva e nela a formação de professores, permanece ainda um caminho aberto a ser percorrido, por mim, você, nós, o Outro e tantos outros. É um tema bastante fecundo, que incide na ampliação dos horizontes 3 Todos somos seres humanos, mas de um modo estranho: nenhum dos seres humanos se igualará (jamais) a Outro que já viveu, vive ou viverá. Debates Contemporâneos em Educação 21 compreensivos dos sujeitos no âmbito da educação. Temos ciência de que há muitos aspectos aqui abordados que merecem um maior aprofundamento. Todavia, o primeiro passo foi dado. Fica aqui o registro para que as preocupações assumidas neste estudo, e as inquietações e a ânsia por novos horizontes provocativos, possam levar a outros caminhos, novas pesquisas, novos problemas e possibilidades. Debates Contemporâneos em Educação 22 REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Revisão e apresentação de Adriano Correia. 11. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. _____. Entre o passado e o futuro. Tradução de Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. AZANHA, J. M. P. Educação: tema polêmicos. São Paulo: Martins Fontes, 1995. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394/96. 1996. _____. Resolução nº. 02/2001. Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Brasília: CNE, 2001. CORREIA, L. M. 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Paraeste artigo, tomamos como base diferentes estudos da escrita acadêmica sobre essas lacunas (LILLIS, 1999) bem como dimensões “escondidas” (STREET, 2010) para compreender em um curso de Letras, quais expectativas em torno da produção de diários de leitura em língua inglesa podem ser apreendidas como parte daquela prática institucional do mistério e como essas estudantes lidam com essas lacunas ao produzir esses diários. 4 Doutor em Estudos Linguísticos pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” UNESP – São José do Rio Preto. Professor colaborador da UNESPAR de Apucarana. limafsl@hotmail.com 5 Capacidades de leitura e produção textual no contexto acadêmico considerando suas especificidades (LEA; STREET, 2006; STREET, 2009, 2010). Numa perspectiva etnográfica, atenta ainda para a compreensão de professores e alunos sobre esse processo. Debates Contemporâneos em Educação 25 Nossa discussão é iniciada com a retomada desse conceito chave que foi cunhado por Lillis (1999), e a partir dele buscamos um diálogo com outros trabalhos sobre escrita acadêmica realizados em diferentes países (FISCHER, 2011, 2012; LEA; STREET, 2006; LILLIS, 1999; RAMIRES, 2007; STREET, 2009) e mais especificamente no contexto do curso de Letras do Brasil (FIAD, 2011; FIAD; SILVA, 2009; FIAD; MIRANDA, 2014). Em seguida, apresentamos o contexto investigado e os procedimentos de geração de dados. Posteriormente, analisamos as expectativas acerca da produção dos alunos com base nas orientações da prática institucional (orientação da atividade) e os conflitos que as alunas vivenciam ao buscar atender as expectativas da instituição (representada na figura da avaliadora) e como a atividade é organizada. Prática institucional do mistério e a escrita acadêmica Antes mesmo do despontar das pesquisas sobre letramento acadêmico no território nacional, os desafios relacionados ao processo de escrita de alunos universitários já faziam parte das inquietações de linguistas. Segundo Fiad (2011), nos anos 80 já encontramos discussões acerca dessa problemática e como podemos observar em trabalhos contemporâneos (CASTELLÓ et al, 2012; CORRÊA, 2011; FISCHER, 2011, 2012; FISCHER; DIONÍSIO, 2011; RAMIRES, 2007; KOMESU, 2013), apesar dos avanços conquistados, o desafio de compreender os problemas dos universitários persiste e requer novos estudos que se debrucem sobre as complexidades desse processo. Com a chegada ao ensino superior, a expectativa inicial é que após anos de escolarização formal, os universitários seriam capazes de produzir com confiança os gêneros tradicionais da academia (FIAD; SILVA, 2009) tais como relatórios, resenhas, relatos, apenas para citar alguns. O evidenciado, na realidade, foi um cenário oposto. Apesar de dominarem os processos de leitura e escrita em outras práticas letradas, encontraram nas produções acadêmicas Debates Contemporâneos em Educação 26 diversas lacunas6 que enfatizaram a não familiaridade com esses novos gêneros (RAMIRES, 2007). Apesar de algumas dessas lacunas serem mais claras para quem produzia os textos escritos (o aluno que sente a dificuldade ao produzir o texto), várias outras se encontravam em uma dimensão imperceptível, que por muito tempo era interpretada como senso comum por aqueles já familiarizados com o contexto acadêmico e suas práticas institucionais (LILLIS, 1999), como é o caso dos professores (CORRÊA, 2011), investidos de autoridade naquele contexto. Fazer parte desse senso comum significa dizer que havia um conjunto de expectativas permeando determinada produção escrita, e que para os professores essas expectativas seriam de conhecimento dos alunos, sendo facilmente atendidas ao produzir o texto escrito. No entanto, percebeu-se que o processo de escrita era prejudicado pelo fato de que essas expectativas não eram explícitas no conhecimento dos alunos durante o processo da escrita, como inicialmente suposto. Esse descompasso entre o que se espera de um determinado texto e como ele realmente se apresenta, foi denominado como prática institucional do mistério. Para Lillis (1999), uma prática institucional do mistério atinge ainda uma dimensão ideológica, concebendo que o professor/avaliador é investido com voz de autoridade e poder pela instituição. E como impacto significativo, ela “prejudica aqueles que não estão familiarizados com as convenções que cercam a escrita acadêmica, limitando a participação deles no ensino superior [...] (LILLIS, 1999, p.127)”. Nessa relação assimétrica, cabe ao aluno desvendar quais expectativas seu avaliador ou avaliadora tem sobre a produção escrita que é solicitada em sua disciplina. Um paliativo mais significativo para lidar inicialmente com esse problema veio de uma abordagem prescritiva, em que professores ofereciam aos seus alunos listas e diretrizes com orientações de como produzir um texto 6 Lacunas são entendidas, a partir de Lillis (1999), como a distância entre as convenções de professores e alunos que regem e organizam as práticas dentro de um contexto, considerando a maneira como elas são compreendidas e interpretadas por ambos. Quando essas convenções não são negociadas ou esclarecidas propriamente, ou seja, tratadas como pressupostos, as lacunas tendem a ser bastante acentuadas. Debates Contemporâneos em Educação 27 considerado bom. A crítica a esse paliativo, como bem salienta Lillis (1999) é que além das diretrizes ou moldes não serem suficientes, essa abordagem tratou das expectativas e convenções com autonomia em relação ao contexto e aos sujeitos, e não como parte constitutiva da produção textual na universidade. Nota-se também, que além das questões de lacunas e expectativas, outro aspecto importante ao abordarmos uma prática institucional do mistério é a clareza. Mesmo com a insuficiência da abordagem anterior (prescrição), percebemos nela a preocupação com a clareza como traço marcante das produções textuais. No entanto, entendemos ser necessário compreender que a escrita não envolve apenas uma simples relação sujeito e disciplina, mas também com gêneros e discursos institucionais mais amplos (LEA; STREET, 2006). Ser explícito vai além de apenas seguir orientações gerais de uma prescrição e implica “aprender como construir significados, através de uma gama de convenções inter-relacionadas, resultante do contexto sócio- discursivo particular da educação superior (LILLIS, 1999, p.131)”, que no caso deste artigo é o curso de Letras. Outros trabalhos, como o de Street (2009) contribuem para este diálogo acerca das convenções e expectativas que permeiam a escrita acadêmica. O autor propõe o estudo das dimensões “escondidas”7 que compreendem facetas da produção textual que permanecem desconhecidas por quem produz o texto e que fazem parte dos critérios elencados pelos professores no processo de avaliação. Assim como Lillis (1999), Street (2009, 2010) ressaltou o poder institucional investido ao professor, destacando principalmente como as noções de poder e de autoridade influenciam a escrita discente. Sua proposta de análise sinaliza seis aspectos da produção escrita para o estudo das dimensões “escondidas”: 1) enquadramento (considerando o contexto de produção, a disciplina e o público alvo); 2) contribuição (o texto produzido em relação aos outros textos e discursos, propósito); 3) voz do autor (o sujeito situado e as marcas de sua subjetividade, sua maneira de 7 Outros autores como Corrêa (2011) e Komesu (2013) têm traduzido o termo como aspectos “ocultos”. Debates Contemporâneos em Educação 28 interpretar o mundo); 4) ponto de vista (sua argumentação e credibilidade desenvolvida no texto, avaliação e tomada de posição); 5)marcas linguísticas (organização e construção textual) e 6) estrutura (forma e estrutura concreta do texto). Nos últimos anos, pesquisadores brasileiros têm dialogado com as dimensões “escondidas” e a prática institucional do mistério para o estudo de lacunas e problemas no processo da escrita em relação às convenções não explícitas. A seguir vamos retomar esses estudos. Em Fischer (2011, 2012) encontramos dois estudos sobre as dimensões “escondidas” em relatórios universitários. No primeiro trabalho (FISCHER, 2011), a autora examinou essas dimensões em relatórios escritos por alunos de um curso de engenharia têxtil e o posicionamento de professores e alunos a respeito desse gênero. Dos resultados apresentados, a autora salienta a presença de expectativas implícitas acerca do gênero relatório e que muitas vezes os alunos recorrem a modelos prontos como diretrizes de produção escrita, aspecto corroborado por Castelló et al (2012). Já em Fischer (2012) ao combinar o estudo das dimensões “escondidas” e da instrução explícita, a autora analisou os relatórios de alunos de um curso de mestrado em Engenharia. Dentre os resultados, cabe ressaltar que mesmo com a instrução explícita os alunos demonstraram dificuldades ao produzir textos condizentes com as expectativas institucionais, ao passo que assim algumas dimensões permaneceram ocultas mesmo com transformações. Komesu (2013), com base em Corrêa (2011), propôs um diálogo no estudo dos aspectos “ocultos” no ensino da escrita universitária com conceitos do filósofo da linguagem Mikhail Bakhtin para o estudo das concepções de texto de alunos de Pedagogia em curso semipresencial. Seus resultados mostraram o forte traço tradicional da instituição, tanto nas atividades e procedimento de realização das mesmas, quanto nos alunos que revelam nas produções escritas uma concepção tradicional de texto. Encontramos também trabalhos voltados para o processo da escrita cursos de formação inicial de professores de línguas. Fiad e Miranda (2014) analisaram as dimensões “escondidas” e a prática institucional do mistério nas vozes de alunos de Letras (questionários) acerca das disciplinas do curso. Os Debates Contemporâneos em Educação 29 resultados corroboraram outras pesquisas como a de Lillis (1999), Street (2010), Fischer (2011) e Castelló et al (2012), mostrando que poucos professores esclarecem ou fornecem instruções mais detalhadas dos gêneros que solicitam para produção escrita, o que favorece para que mais dimensões permaneçam ocultas (STREET, 2009). Esses trabalhos e seus resultados reiteram nossa discussão nesta seção. De maneira geral, atentam para as convenções e expectativas que por não serem problematizadas, sistematizadas ou esclarecidas aos alunos como parte necessária do processo, fazem parte de uma prática institucional do mistério (LILLIS, 1999). Na próxima seção, apresentamos os procedimentos metodológicos da pesquisa e em seguida nossa análise de dados. Procedimentos metodológicos Instrumentos de geração de dados Os dados que aqui apresentamos foram gerados a partir de narrativas orais (CZRARNIAWSKA, 2004) registradas em áudio e posteriormente transcritas para análise qualitativa8. Essas narrativas foram compartilhadas pelas participantes em duas sessões de grupos focais.9Cada grupo focal teve uma duração média de 90 a 120 minutos em que as participantes eram incentivadas a compartilhar diferentes experiências no curso de formação. O foco deste trabalho serão as narrativas das alunas de Letras sobre as experiências de produzirem e serem avaliadas na disciplina de língua inglesa a partir do gênero diário de leitura. Consideramos a perspectiva das participantes para compreender quais lacunas elas percebiam na prática institucional do 8Os critérios de transcrição das narrativas orais seguem algumas convenções metodológicas como a demarcação de ações no ato da geração de dados que complementam o contexto interacional. Isso inclui, por exemplo, demarcar nas transcrições momentos de riso e outras reações emocionais, pausas e interrupções no fluxo narrativo, dentre outras possibilidades. 9Estes dados fazem parte de um corpus longitudinal disponível em Lima (2017). Processo FAPESP – 2013/04431-6 com avaliação do comitê de ética CEP-UNESP/IBILCE parecer nº 392.085. Debates Contemporâneos em Educação 30 mistério desde a solicitação do trabalho escrito pela professora da disciplina até a divulgação da nota numérica obtida. Na análise das narrativas tomamos como referência as quatro categorias de Connely e Clandinin (1990) para eventos narrativos em contextos educacionais. Noções de tempo e espaço são consideradas enquanto cenário e roteiro, ou em outras palavras, o ambiente e a estrutura temporal dos eventos narrados (neste caso sendo retrospectivo). O outro par de categorias inclui os personagens e os eventos. Para este estudo, no entanto, optamos pelo uso do termo sujeitos ao invés de personagens, conservando o caráter biográfico (histórico) das narrativas. Essas categorias possibilitam a apreensão de diferentes eventos compartilhados em um contínuo narrativo. Ao demarcar dentro desse contínuo os eventos relacionados ao processo de produzir diários de leitura, a análise da narrativa busca nos estudos sobre escrita acadêmica os subsídios teóricos para compreensão dos relatos. Considerando que os diários de leitura ganham o foco dos relatos das alunas de Letras, torna-se necessário também definir sob qual perspectiva esse instrumento10 era trabalhado no curso de formação. A orientação teórica para o uso dos diários na disciplina de inglês era o ensino de línguas com base em gêneros textuais (MACHADO; LOUSADA; ABREU-TARDELLI, 2007; MACHADO, 2005; BUZZO, 2010). Nessa perspectiva, os diários são pensados para o ensino e a aprendizagem de línguas tendo em vista uma otimização do processo de leitura que professores e aprendizes se engajam, ou em outras palavras, se voltam para “o desenvolvimento de suas capacidades de leitura quanto para a instauração de novos papéis para o professor e para os alunos (MACHADO, 2005, p.62)”. 10Na perspectiva dos estudos de gêneros textuais, a noção de instrumento retoma o conceito vigotskiano de mediação, que explica o desenvolvimento da consciência humana a partir da relação mediatizada de instrumentos. No plano psicológico, Vygotsky considerou a linguagem e o uso de signos como transformadores das condições de existência do sujeito sócio-histórico. Os gêneros são considerados megainstrumentos, pois além de seu potencial de desenvolvimento das capacidades de leitura e escrita, são constituídos de outras ferramentas psicológicas como palavras e conceitos que operam em um todo significativo. Para mais detalhes retome Vygotsky (1999). Debates Contemporâneos em Educação 31 Outros autores definem esse gênero enquanto “um texto de cunho subjetivo ou íntimo, escrito em primeira pessoa do singular, na medida em que se lê um texto indicado ou exposto pelo professor ou pelo próprio aluno, a partir de instruções pré-estabelecidas” (BUZZO, 2010, p.16). De maneira geral, a ênfase recai no processo dialógico do leitor com o texto (MACHADO, 2005), que registra suas impressões, dúvidas, inquietações e opiniões, como faria semelhantemente se pudesse ter um encontro face a face com o autor. Com estes pressupostos teóricos, o trabalho com o gênero diário de leitura foi proposto em uma turma no segundo ano de Letras, conforme o perfil que será apresentado a seguir. As professoras em formação e o curso de letras O estudo contou com a participação de três estudantes, (Amanda, Júlia e Sarah11) matriculadas no segundo ano de um curso de Letras com habilitação dupla (Português e Inglês) de uma universidade estadualbrasileira localizada na região sul do Brasil. Com duração mínima de quatro anos, este curso atende alunos de mais de vinte municípios vizinhos do pólo universitário. As três estudantes cursaram a disciplina de Língua Inglesa ao longo de quatro bimestres, totalizando 144 horas. Nesse curso de licenciatura em Letras, as estudantes eram avaliadas na disciplina de inglês por meio de pelo menos quatro instrumentos em cada bimestre, tais como avaliação formal escrita, exercícios gramaticais, diários de leitura e apresentações orais (seminários e contação de histórias). Dentre esses instrumentos avaliativos bimestrais, os diários de leitura tinham o menor valor numérico, sendo a avaliação formal a de maior valor. Tendo em vista este breve perfil, a análise das narrativas será apresentada nas próximas seções. 11 Esses pseudônimos foram escolhidos para preservar a identidade das participantes, em acordo estabelecido no termo de consentimento assinado por elas. Debates Contemporâneos em Educação 32 Reconstituição narrativa Práticas institucionais do mistério: Expectativas institucionais e lacuna inicial A primeira vez que as participantes tiveram contato com um diário de leitura foi no primeiro ano da faculdade, no entanto, por não produzirem esse gênero frequentemente, poucos detalhes são recordados sobre aquele período. No ano seguinte é que as experiências com os diários surgem nas narrativas compartilhadas durante o grupo focal. Eles foram selecionados pela professora da disciplina como instrumento de avaliação, que exigia dos acadêmicos a capacidade de produzir textos em língua estrangeira ao discutir um texto-base. A orientação preambular sugeria que os alunos iriam realizar ao menos um diário de leitura por bimestre (totalizando quatro) e que os textos- base seriam artigos com temática sobre o ensino de línguas. Apenas um deles envolveria leitura e produção na língua materna. Os demais seriam exigidos em inglês. Cada diário receberia uma nota numérica12 e faria parte das avaliações formais bimestrais. Sem mais instruções detalhadas por parte da professora de língua inglesa, as três participantes tinham como diretriz o texto-base, um artigo de Machado (2005) em português que apresentava uma definição de diário de leitura e discutia em nível teórico sua relevância para a aprendizagem. Dessa forma, identificamos como primeira expectativa institucional (representada na figura da professora) que as alunas apreendessem do texto, enquanto liam, e por elas próprias, aspectos que os seus diários de leitura deveriam apresentar. Para ilustrar, podemos indicar as seguintes características: a) opinião pessoal acerca do texto, com exposição de ideias pessoais e apresentação de ponto de vista com justificativa; b) questionamentos sobre trechos ou informações que não foram compreendidas no processo de leitura do texto-base; c) o estabelecimento de relações do tema do texto com a experiência de vida do leitor e d) observância a respeito de novas informações que o texto traz na formação acadêmica. 12Cada diário equivalia uma média de dois pontos (sendo dez a nota máxima de cada bimestre). Debates Contemporâneos em Educação 33 Considerando que essas características não foram problematizadas na forma de instruções, ou apresentando um exemplo ou amostra (LILLIS, 1999) do tipo de texto a ser produzido, entendemos que essas configuram a primeira expectativa institucional do avaliador (não explicitada) sobre os diários a serem produzidos, e que caberia às alunas identificarem e seguirem esses passos no momento de escrita. O trecho a seguir mostra uma primeira reação de uma das participantes. Excerto 1 [As alunas comentam sobre o momento em que leram, pela primeira vez, a definição do conceito de diário de leitura em um texto teórico] JÚLIA: Mas foi o que... no segundo diário de leitura desse ano que a gente foi descobrir o que era um diário de leitura. Porque ela deu um diário de leitura sobre o que era o diário de leitura. Sabe? Neste excerto, Júlia explica na sessão de grupo focal que a partir da leitura de um texto que definia o gênero diário de leitura, ela acreditava ter entendido como seria o texto produzido (da perspectiva da expectativa do professor, representante da instituição). Contudo, ao receber as primeiras notas, ela e as demais colegas começaram a questionar se realmente haviam entendido a proposta, uma vez que não gostaram do resultado. Essa insatisfação fez surgir nas alunas a sensação de que o que produziam até então não condizia com o que a professora (voz da prática institucional) esperava, já que o primeiro parâmetro foi apenas a nota, a qual, na avaliação das alunas, não foi boa. A este respeito elas comentam: Excerto 2 [As alunas comentam sobre a experiência de fazer um diário de leitura a partir de um artigo Debates Contemporâneos em Educação 34 teórico cujo tema era introduzir o conceito de diário de leitura] JULIA: Era isso que faltava, sabe? [um texto sobre diário de leitura]. E antes não, antes a gente fazia um resumo com as nossas palavras de boa. Não tinha essa relação, sabe? AMANDA: Só que não alterou muito não, porque, chega na hora da avaliação era a mesma coisa [de quando elas não sabiam o que era um diário de leitura]. JULIA: É, era a mesma coisa. Mas tipo assim, pra gente saber o que era, [até que] ajudou. Mas não nos dava muita nota. AMANDA: Não dava pra saber se estava muito certo ou não. (...) JULIA: Aí esse ano ela passou um artigo sobre o que era o diário de leitura. Daí que a gente foi cair a ficha do que era um diário de leitura. PESQUISADOR: E era em Português esse diário que ela passou? JULIA: Era. AMANDA: Esse foi do começo do ano. SARAH: Ah, achei que tivesse falando do... JULIA: Aí eu ainda comentei com ela: “nossa, esse artigo deveria ser o primeiro lá do primeiro ano”, sabe? Porque já que é pra trabalhar o diário de leitura, a gente sabe pelo menos o que é né? PESQUISADOR: Aham. JULIA: Igual, por exemplo, diário de leitura... a gente pegava o texto e fazia um resumo com nossas palavras e tal. Isso era o nosso diário de leitura. AMANDA: [risos] JULIA: Aí [risos], com esse artigo a gente ficou sabendo que o diário de leitura era como se a gente pegasse lá um artigo e eu só escrevesse a minha opinião e Debates Contemporâneos em Educação 35 relacionasse a minha opinião com a minha realidade. Ao discutir com as colegas, Júlia reformula sua ideia anterior ao pensar o que foi apontado neste momento por Amanda, que apesar de acreditar ter compreendido o que seria um diário de leitura, viu a nota contrariar sua expectativa. A explicação de Júlia sugere que seu texto produzido se caracterizava muito mais como um simples resumo. Ainda assim, ela demonstra sua preocupação maior em mostrar ao avaliador sua capacidade de sintetizar os pontos centrais da obra mostrando domínio teórico, evitando assim comprometer sua nota com críticas ou comentários pessoais sobre a obra que marcassem sua voz, já que os principais gêneros produzidos nos cursos de Letras (resumos, resenhas, dentre outros), conforme afirmam Fiad e Silva (2009) focam outros aspectos voltados mais para a objetividade de sintetizar e reproduzir ideias. De maneira geral, as primeiras experiências com diários de leitura já sinalizavam uma lacuna entre o que as alunas efetivamente produziam e o que era esperado pela professora da disciplina. Apesar de acreditarem que a partir da leitura o conceito tenha ficado mais claro, como vemos na explicação dada por Júlia no excerto anterior, ao serem divulgadas as notas, sentiram uma surpresa. Esse desencontro de expectativas se revela também na maneira como elas caracterizam a experiência de elaborardiários de leitura, em dois momentos da discussão: Excerto 3 PESQUISADOR: Como era fazer esses diários de leitura? AMANDA: Ai, um trauma. JULIA: (gargalhadas). PESQUISADOR: Um trauma? Debates Contemporâneos em Educação 36 SARAH: Eu queria sair correndo Excerto 4 [Momentos depois da discussão feita no trecho apresentado acima, Amanda explica, em seu ponto de vista, porque usou a palavra “trauma”] AMANDA: E a gente sabia que não gerava nota, então acabou virando um trauma. A gente tinha que fazer sabendo que precisava. E foi um ano em que praticamente a sala toda pegou exame. Amanda preferiu definir sua experiência como trauma, que acabou gerando o riso de Júlia e em Sarah revelando o desejo de se manter cada vez mais distante da proposta de fazer os diários (a vontade de sair correndo). Apesar de outros trabalhos mostrarem que esse desencontro entre o texto produzido e o que foi solicitado é comum (FISCHER, 2011; CASTELLÓ et al, 2012), encontramos aqui os primeiros traços de uma prática institucional do mistério cada vez mais evidente ao longo daquele ano letivo. Esse será o foco da nossa próxima seção. Práticas institucionais do mistério: Expectativas e experiências sobre a própria produção escrita Após o diário de leitura em língua portuguesa, as participantes produziram ainda uma média de três diários para o resto do ano letivo,13 todos em inglês. A prescrição permaneceu a mesma, com a diferença que a turma questionou a professora sobre um possível feedback das produções individuais, uma vez que vários estudantes não estavam satisfeitos com as primeiras notas. Relatos nas narrativas apontam um momento em que uma lista geral foi 13 Sarah não fez um dos diários do terceiro bimestre. No quarto bimestre, fez um diário extra. Debates Contemporâneos em Educação 37 apresentada, com problemas mais recorrentes (inclusive linguísticos), ainda assim, a nota permanecia o principal indicativo de qualidade dos diários produzidos. No entanto, como salientado em outros trabalhos, a própria instrução explícita (FISCHER, 2012) ou análise de listas com dicas e problemas (LILLIS, 1999) acaba não sendo suficiente e não garante os verdadeiros benefícios que o feedback tem na escrita do aluno (LEA; STREET, 2006). Nesta seção, discutiremos outras expectativas no ponto de vista das alunas (avaliadas) e como elas se relacionavam ou não com as da professora (avaliadora) e das práticas institucionais daquele curso de Letras. Em primeiro lugar, as alunas esperavam que os textos-base fossem previamente discutidos em sala, ou que, apesar de serem tópicos teóricos sobre ensino e aprendizagem, estivessem relacionados com o que vinham desenvolvendo na disciplina de língua inglesa. Essa expectativa das alunas está relacionada a um dos momentos mais propícios do curso de formação do professor de línguas, a construção de seu saber docente ou seu pensamento conceitual (LIMA, 2017). A ausência do trabalho de conceitos teóricos integrados às atividades práticas de ensino permanece como um dos desafios contemporâneos dos cursos de Letras. Entender os saberes produzidos em áreas como a Linguística Aplicada pode ser um possível caminho alternativo para tratar a problemática da incompatibilidade de teoria e prática, argumento frequente entre alunos em cursos de formação inicial (veja LIMA 2017 para exemplos no Brasil e KORTHAGEN, 2010 para exemplos no exterior). Em diferentes momentos, as alunas em formação enfatizaram ainda que o “problema”14 dos diários era a compreensão do texto-base, pois caso houvesse uma discussão com o grupo a respeito dos temas desses textos (alguns dos quais eram novidades para as participantes), as produções escritas 14O uso de aspas se justifica pelo ponto de vista dos novos estudos de Letramentos, atentando para a diversidade e especificidade das diferentes práticas institucionais (LEA; STREET, 2006) e contextos. Problemas são entendidos não como falta de competência dos alunos para escrever, mas como o não engajamento em uma determinada prática de letramento acadêmico. Dessa forma, concordamos com Komesu (2013) ao argumentar que os “erros” podem ser entendidos a partir da noção dos aspectos “ocultos” da escrita (cf. STREET, 2009; CORRÊA, 2011) como caminhos a serem desvendados na prática. Debates Contemporâneos em Educação 38 se aproximariam mais da expectativa institucional, ou seja, do que a avaliadora desejava. O excerto a seguir exemplifica a crítica de Amanda: Excerto 5 [A participante explica ao pesquisador sobre a rotina estabelecida entre a solicitação do diário, a escrita e a entrega] AMANDA: Até porque um texto nunca foi... porque assim, se ela pegasse o texto e discutisse em sala pelo menos. PESQUISADOR: Não teve as discussões? AMANDA: Nunca teve isso. De acordo com Amanda não houve momentos em que o grupo chegava a discutir os textos que seriam o foco dos diários, nem antes nem depois de fazê-los. Como salienta Machado (2005), a problematização de temas é importante, pois permite ao aluno relacionar seus conhecimentos cotidianos com aqueles apresentados no contexto acadêmico. E neste momento, Júlia e Sarah não discordaram da colega. Amanda procura exemplificar mais adiante como a proposta avaliativa dos diários era feita ao seu grupo de alunos de Letras. O excerto a seguir mostra outros detalhes: Excerto 6 [O pesquisador pediu que a participante explicasse com suas palavras como eram as instruções dadas pela professora] AMANDA: Era uma coisa assim, ela falava que estava postando um trabalho diferenciado. Porque ela postava no e-mail, mandava a gente fazer o diário e entregar. Mas igual a gente falou, nunca foi questionado. Nunca ninguém leu aquele texto, nunca ninguém debateu aquele assunto, pra poder produzir um texto com a sua opinião. Ou até mesmo poderia aproveitar isso para os testes orais. Você falar sobre o que você está [estudando]... Mas não, ela Debates Contemporâneos em Educação 39 simplesmente mandava no e-mail e dava uma data para entregar. Os trabalhos eram enviados para um e-mail coletivo que o grupo mantinha, o qual todos os alunos tinham acesso, ou versões impressas eram deixadas na pasta de turma em uma fotocopiadora. Os e-mails, de acordo com as alunas, apresentavam breves orientações enfatizando principalmente prazos, valores e uso da língua-alvo (inglês). No entanto, as alunas sentiam falta de uma conexão entre as produções anteriores e o que poderia ser melhorado para as produções futuras do mesmo gênero. Mesmo assim, sem um estímulo para continuar produzindo esses textos – já que ao mesmo tempo suas expectativas não eram atendidas e não entendiam o que a professora esperava dos diários – as alunas relataram que tentavam ao máximo compreender o artigo teórico (texto-base), salientando informações mais importantes para retomá-las em seus diários, na tentativa de desvendar as expectativas de quem avalia e ao mesmo tempo cumprir a tarefa institucional. Os próximos excertos detalham essa questão. Excerto 7 PESQUISADOR: Vocês não recebiam os diários de vocês com uma opinião? SARAH: Não. AMANDA: Não. Excerto 8 JULIA: A gente via as notas e o máximo que ela dava era um comentário breve. Tinha [comentário] linguístico e textual, os dois [tipos]. Só que a parte textual era mais um comentário, não era tanto sobre o gênero, mas o assunto [do texto base]. Debates Contemporâneos em Educação 40 As três alunas explicam não terem recebido seus diários com comentários ou detalhes de onde a produção escrita deixou a desejar, ou o que precisariam atentar mais para a produção escrita seguinte. Sem o ponto de vista do avaliador, que poderia variar de uma observação escrita até um comentárioinformal, as alunas não percebiam o percurso do próprio desenvolvimento ao longo de suas produções. Esse fator está presente em outros trabalhos, mostrando que a ausência de feedback é constante. Em Street (2010), vemos nos relatos de participantes como alguns aspectos da escrita permanecem implícitos nas expectativas do avaliador e ocultos principalmente para os alunos. O autor sugere que o desencontro de expectativas entre avaliador e avaliado prejudica a produção dos alunos, uma vez que eles não compreendem se o que produzem corresponde ao tipo de texto considerado bom para o avaliador (maneira de posicionamento e raciocínio do texto, escolhas linguísticas e de estrutura do gênero, dentre outros exemplos de dimensões escondidas). Por fim, as alunas realizavam a tarefa com finalidade exclusiva de obter nota, relegando para segundo plano o objetivo principal dos diários, de ser um instrumento mediador e propulsor dos processos de leitura e escrita. Uma vez que a nota era a única referência que as alunas tinham sobre a produção escrita, a qualidade das discussões que elas promoviam, ou o quanto aquela atividade poderia ter contribuído para aquisição de vocabulário ou para sua formação docente, eram esquecidos. As experiências que prevaleciam eram voltadas para um instrumento de aprendizagem que não gerava tantos benefícios como elas esperavam. Elas já haviam lido teorias sobre esses benefícios, mas ainda esperavam vivenciá-los. Esse aspecto é abordado no próximo excerto. Excerto 9 [Sobre as decepções com o gênero, a disciplina e as instruções da professora na disciplina de língua inglesa] SARAH: E o que me decepciona com os diários de leitura principalmente (...) é que a gente nunca vai bem. E a gente nunca sabe onde a gente não foi bem. Debates Contemporâneos em Educação 41 AMANDA: Ela não mostra pra gente... SARAH: ...porque a gente nunca viu... as correções dela. JULIA: As correções dela... ela sempre falou que ia postar e ia postar. SARAH: ...ia postar e ia postar e a gente ia atrás. Tipo assim, porque igual em Português. A professora corrige e fica lá, né? “Olha, isso aqui você errou. Isso aqui você tem que melhorar”. Então não é... AMANDA: A gente não sabe... SARAH: ...a gente não sabe. Você vai assim meio que... JULIA: Essa é a diferença. PESQUISADOR: Vocês não sabiam se estavam conseguindo desenvolver o que era proposto? JULIA: E porque que a gente não conseguia saber... AMANDA: ...qual que era o objetivo. Apesar de não obter um retorno de como estava produzindo o seu diário em inglês, Sarah demonstra sua decepção e falta de estímulo com os seus diários de leitura, pois geravam a sensação de ser avaliada “às cegas”, ou seja, alguma nota era obtida, mas ela pouco sabia como tinha obtido aquilo. Apesar do desejo do diálogo através do feedback, percebemos nessa relação assimétrica que o avaliador concentra toda negociação para si, caracterizada no que Lillis (1999, p.143) chama de relação monológica. A autora explica que a falta de negociação implica essencialmente na negação dos alunos no processo de escrita do qual eles são sujeitos principais. Por mais que um diário de leitura favoreça um diálogo entre sujeito e interlocutor (MACHADO, 2005) a falta de um feedback e da possibilidade de recebê-lo resultava em frustração para as Debates Contemporâneos em Educação 42 participantes que tinham pela frente outros diários de leitura. Produzir textos nessas condições intensificava ainda mais as “lacunas” encontradas. A respeito da ausência de um retorno sobre os textos produzidos, Amanda e Sarah concordam com Júlia, reiterando que também não tiveram acesso aos diários corrigidos por fatores que também desconheciam. Quando questionadas se em algum momento elas sentiam que não estavam conseguindo melhorar a qualidade do gênero solicitado pelo fato de não terem acesso às correções, Júlia e Amanda complementam a resposta uma da outra, afirmando que mesmo elaborando os diferentes diários (visando complementar a nota bimestral), elas ainda não entendiam o real propósito de fazê-los, já que não os viam posteriormente, acreditando que eles eram usados pela professora apenas como mais uma alternativa de complementar as atividades avaliativas do bimestre e apenas isso. Até aqui, é possível visualizar que o principal motivo para continuar investindo na elaboração dos diários era a obtenção de uma nota (de preferência, a considerada “boa” da perspectiva delas). Ao serem questionadas acerca do motivo pelo qual faziam os diários, elas fazem uma breve pausa antes de deliberarem, como pode ser observado no excerto a seguir: Excerto 10 AMANDA: Boa pergunta! SARAH: Pra tentar ganhar nota. JULIA: (gargalhada). SARAH: um fracasso. JULIA: Tentava ajudar. PESQUISADOR: Mas pra que vocês acham que servia o diário de leitura? Assim, não só pra você e pela nota. O que vocês achavam que ela fazia com isso? Debates Contemporâneos em Educação 43 SARAH: Eu acho que ela pensava que a gente estava aprendendo muita coisa. Amanda nos lança a expressão “boa pergunta!” mostrando que ainda não iria definir um real motivo. Sarah, por sua vez, ressalta que o motivo de continuar produzindo seus diários reflete sua tentativa de ganhar nota e acredita que, da expectativa da avaliadora (representante da instituição), algo estaria sendo aprendido. Sua resposta gera o riso de Júlia, que complementa a ideia da colega de que o esforço visava a tentativa de complementar a nota bimestral (advinda dos outros instrumentos avaliativos), mas que segundo Sarah acabava sendo um fracasso, ou seja, jamais tiravam uma nota que mostrasse terem produzido o texto que a professora considerava “bom”. No entanto, ao serem questionadas mais uma vez, Amanda volta a pensar e chega a uma conclusão, partilhando com todos no grupo focal: Excerto 11 AMANDA: Pode falar a verdade? PESQUISADOR: Pode, claro. AMANDA: Eu li [o texto-base] só pra fazer o trabalho. Era assim mesmo, aquela coisa justamente para... igual eu estou falando... entregar... JULIA: Alguns artigos eram bem longos. Teve uns que tinham 50 páginas. Era um monte e era tudo em inglês.15 SARAH: Esse em inglês eu nem fiz. Sua resposta confirma mais uma vez a motivação para a elaboração dos diários visando a nota em detrimento da possibilidade de desenvolver 15 O artigo que Júlia menciona tinha, na verdade, trinta e duas páginas; Interpretamos esta estimativa como uma estratégia de enfatizar o esforço que envolvia a produção do gênero. Debates Contemporâneos em Educação 44 tanto sua capacidade de leitura quanto de escrita em inglês, propósito original pensado para esse gênero. No entanto, mesmo que as suas produções escritas não atendessem ao conjunto de expectativas da instituição e de seus avaliadores, Sarah, Amanda e Júlia conseguiam ver todo esse potencial na prática. No entanto, eram essas lacunas entre o que se esperava das produções e como elas efetivamente se apresentavam que causava a estranheza e o descontentamento nessa disciplina. Excerto 12 PESQUISADOR: E os temas discutidos nos diários? Como vocês viam isso? SARAH: Porque olha... o assunto era interessante, tipo metodologias do ensino de inglês. É uma coisa que a gente vai precisar. Então os conteúdos eram interessantes pra nós. Só que a forma como que ela trabalhava com a gente. JULIA: Não tinha relação. SARAH: Não tinha. JULIA: Por exemplo, a gente estava vendo, por exemplo, o gênero resumo e fazendo diário de leitura sobre como trabalhar uma metodologia de inglês na sala de aula, sabe? Ou a importância do diário na sala de aula. Então, não tinha assim muita relação. É isso que a gente está falando, não tem sequência. Sarah reconhecia os temas selecionados para o gênero a ser produzido como algo
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