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DESCRIÇÃO Os aspectos simbólicos da alimentação e sua importância para o profissional da área da Nutrição. PROPÓSITO A compreensão dos aspectos simbólicos da alimentação e do significado dos alimentos nas diferentes culturas é importante para sua formação, pois facilitará sua atuação na clínica e sua compreensão em relação ao seu público-alvo em outros contextos no exercício da profissão. OBJETIVOS MÓDULO 1 Identificar os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação MÓDULO 2 Relacionar a identidade cultural e a comensalidade às dimensões simbólicas da alimentação MÓDULO 3 Reconhecer os significados simbólicos nas práticas de alimentação INTRODUÇÃO Neste tema, você vai aprender a identificar os aspectos simbólicos, reais e imaginários da alimentação. Esta carreira que você escolheu se situa no âmbito das ciências da natureza. Nossas crenças, nossos valores e conceitos sobre alimentação se constroem desde a mais tenra idade e fazem parte da nossa vida. Por esse motivo, para mudar comportamentos, o profissional da área da nutrição não pode ignorar os múltiplos significados que os indivíduos atribuem aos alimentos e às suas práticas alimentares. No módulo 1, após uma introdução à disciplina e à importância na sua formação acadêmica, vamos discutir os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação. O corpo-máquina construído pelo modelo mecanicista da ciência biomédica será pensado no âmbito do real da alimentação. Depois, na vertente simbólica da alimentação, através dos múltiplos aspectos simbólicos. Em seguida, o imaginário da alimentação será explorado através das angústias dos comedores contemporâneos em relação à comida. No módulo 2, falaremos da construção da identidade cultural a partir da alimentação e sobre a comensalidade e seus múltiplos significados socioculturais. No módulo 3, vamos discutir os significados das práticas de alimentação em diferentes momentos. Começamos falando sobre a importância das comidas afetivas e das memórias gustativas, depois sobre a construção do gosto e como questões de gênero estão associadas à alimentação, assim como as relações existentes entre comida e sexo, estes dois polos da sensibilidade e do prazer humano. MÓDULO 1 Identificar os aspectos reais, simbólicos e imaginários da alimentação POR QUE ESTUDAR HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO? Você, como aluno(a) do curso de Nutrição, deve estar se perguntando que disciplina é esta e por que ela é importante para você. Então, antes de mais nada, vamos refletir juntos sobre isto? Para entendermos primeiramente o que é a Antropologia da Alimentação, vamos começar falando sobre Antropologia: o que vem a ser Antropologia? RESPOSTA A Antropologia é uma ciência social que surge no século XIX e que é fruto do Neocolonialismo. O Neocolonialismo, isto é, o novo colonialismo, está diretamente relacionado à Revolução Industrial e foi a expansão imperialista das potências europeias no século XIX em direção à África e à Ásia. Diante da crise de superprodução na Europa em função da descoberta da utilização da eletricidade e do petróleo, estes países saíram em busca de novos mercados, matérias primas e mão de obra. Segundo Laplantine (2000), os colonos e viajantes começaram assim a acumular informações sobre os povos considerados exóticos destes países e assim se organiza a disciplina que se propõe a estudar estes povos, a Antropologia. A Antropologia significa literalmente o estudo do homem (a palavra vem do grego anthropos, que significa homem e logos, que significa razão, pensamento). A Antropologia surge assim, com o intuito de compreender este homem exótico de forma global, ou seja, sua arte, economia, religião, pensamento, parentesco, alimentação, cultura material etc. A Antropologia Cultural pode ser definida como a ciência que está interessada nos aspectos culturais dos grupos e sociedades e em suas consequências no comportamento individual e coletivo. Sendo assim, ela reflete sobre o homem, principalmente, a partir do conceito de cultura. Fonte: Joa Souza/Shutterstock Índios Pataxó, Porto Seguro, Brasil. Já a Antropologia da Alimentação, o que ela estuda? RESPOSTA Ela se ocupa justamente das dimensões culturais da alimentação. Para melhor compreender este ponto, vamos refletir primeiramente sobre a centralidade da alimentação em nossas vidas a partir de algumas questões. Por que comemos? O que comemos? Como comemos e como preparamos os alimentos? Esta última ideia de modalidade inclui também questões como: a que horas comemos? Com quem comemos? Onde comemos? A primeira coisa que nos vem à cabeça quando pensamos sobre o porquê de nos alimentarmos, é que o ato de se nutrir é uma necessidade fisiológica primordial. Não é surpreendente que a metáfora bíblica para a sobrevivência seja “o pão nosso de cada dia”. A alimentação também está diretamente ligada à saúde humana, como nos diz a ciência nutricional. Comer é uma necessidade, mas, diferentemente de respirar, o homem precisa buscar seus alimentos. No entanto, este não é o único motivo que nos leva a comer. Podemos refletir também sobre a questão do gosto. Conforme Carneiro (2003), a alimentação está diretamente ligada ao prazer; às associações que encontramos entre a comida e o sexo nas mais variadas culturas, pensando somente no vocabulário, confirmam esta relação entre comida, desejo e prazer. É interessante observarmos que, se o homem em algum momento de sua história precisou lutar para encontrar alimentos, atualmente, ele enfrenta a balança: ele luta para não comer. A obesidade já é um problema de saúde pública maior que a desnutrição. Se hoje produzimos tantos alimentos quanto jamais o fizemos, também convivemos, muitas vezes, com o desperdício e o consumo pletórico de alimentos, a fome e a desnutrição. Toda a arte da Gastronomia é desenvolvida a partir do prazer e do desejo. Por outro lado, a alimentação está ligada de outras formas à dimensão psicológica dos homens. Muitas vezes comemos, por exemplo, por estarmos ansiosos ou tristes. Quem nunca “assaltou” a geladeira exageradamente depois de um mau dia? Esta conexão entre alimentação e a psicologia humana também pode ser percebida nos transtornos do comportamento alimentar, tais como a anorexia, a bulimia e a alimentação compulsiva. Ainda temos outros motivos para comer. Se não vemos algum amigo há muito tempo, o que fazemos? Se queremos comemorar, festejar, o que fazemos? Fonte: Drazen Zigic/Shutterstock Partilhamos a mesa com outros comensais em refeições que podem ser mais ou menos festivas, a dita comensalidade, ou o ato de comermos juntos. Na Antropologia da Alimentação, falamos em função social da refeição. Se pensamos no que comemos, alguns podem responder: comida! Mas será que todos consideram aquilo que é potencialmente ingerível como comida? Um bife suculento é um horror para um hinduísta e para um budista, já que, para os hinduístas, a vaca é um animal sagrado e para os budistas não devemos comer nenhum animal. Um punhado de larvas fritas pode parecer repugnante para alguns, mas é uma iguaria para orientais, muitos indígenas brasileiros, peruanos e mexicanos, entre outros. Os insetos são muito apreciados por alguns, inclusive aqui no Brasil, com as farofas de tronco da formiga saúva tanajura, também conhecida como içá, mas são considerados nojentos para outros. Os americanos nunca se decidiram a comer os fofinhos coelhos, enquanto os franceses adoram esses animais e ainda comem carne de cavalo crua no Steak Tartare, assim como em alguns lugares da Itália, onde não se dispensa um bom ragout de cavalo. Todos estes exemplos demonstram que aquilo que é considerado comida varia enormemente de acordo com o grupo dos indivíduos. ATENÇÃO Os indivíduos se distinguem através daquilo que comem. Nós nos diferenciamos de outros povos neste quesito; em sociedades divididas em classes como a nossa, as diferenças entre estas classes são criadas e mantidasatravés do que se come, de como se come. A alimentação funciona a favor deste mecanismo de distinção, deste modo de distinguir pessoas de classes sociais distintas. Resumindo: o que comemos depende de muitos fatores. Em relação à última questão, como comemos e como preparamos os alimentos? Comemos todos do mesmo jeito? Evidentemente, não. Comemos certas coisas com garfos, facas ou colheres e outras com as mãos. Comemos sentados em uma mesa com amigos ou familiares em nossa casa, ou em um restaurante, mas também comemos solitários andando pela rua ou de frente para a TV ou para o computador. Muitos orientais usam o hachi para comer e, em alguns lugares da África, todos comem com a mão no mesmo prato. Em algumas sociedades, come-se no chão; em outras, homens, mulheres e crianças não comem juntos, nem ao mesmo tempo. Já em alguns momentos e situações na Antiguidade, comia-se recostado. Come-se também de forma diferente nos diferentes estratos sociais. Podemos ter uma mesa simples onde todos comem com colheres somente, ou com a mão e uma outra com inúmeros talheres, pratos e copos de todo os tipos somente para uma refeição. Toda esta parte relacionada à alimentação na Antropologia da Alimentação é chamada de modos à mesa, que variam enormemente entre os povos e sociedades. Fonte: Santhosh Varghese/Shutterstock Menina indiana comendo com a mão. Podemos ver então que a alimentação é um ótimo caminho para pensarmos sobre o ser humano, uma vez que ela engloba dimensões fisiológicas, psicológicas, socioculturais e econômicas. Por este motivo, é que falamos em Antropologia da Alimentação. A nutrição refere-se aos aspectos fisiológicos da alimentação, mas a alimentação vai além destes aspectos. Os fenômenos ligados à alimentação vão além dos nutrientes, mesmo que sempre seja estabelecido um diálogo entre as dimensões culturais e a nutrição. E a História da Alimentação? Não é necessário falar tão longamente sobre a disciplina de história, pois você já a conhece bem, desde os seus primeiros anos de estudo. Por que estudar tudo isso? RESPOSTA Quando você estiver diante de seu paciente, ou quando você for planejar o menu semanal de uma escola, empresa ou hospital, você não estará diante de um aparelho digestivo, e sim diante de uma pessoa que possui uma história de vida, além do seu histórico médico, que possui crenças e valores acerca dos alimentos e da sua saúde, ou seja, uma pessoa que é um universo único. Para que você seja eficiente como um profissional da área da saúde, você deve compreender que quem está no centro deste processo é o seu paciente ou seu público-alvo. As ações devem se adaptar aos pacientes para que haja uma efetiva mudança de comportamento no sentido da promoção da saúde. A postura do nutricionista deve ser sempre de orientar, respeitando as particularidades culturais e pessoais dos indivíduos. O olhar sobre as diferenças deve ser generoso e ético. Por exemplo, uma paciente vegetariana foi a um nutricionista procurando auxílio na fase de transição, porém a nutricionista a desaconselhou a se tornar vegetariana. Ela foi embora bem chateada e procurou um outro profissional. Cabe a um nutricionista aconselhar seu paciente a não seguir uma determinada filosofia alimentar pela qual ele já havia decidido? De modo algum! Nesse caso, ele também deveria aconselhar sobre qual religião ou namorado a pessoa deveria escolher. O paciente vegetariano pode ser um desafio para o nutricionista, mas cabe a ele orientá-lo dentro da sua escolha de maneira ética e comprometida. O REAL, O SIMBÓLICO E O IMAGINÁRIO NA PSICANÁLISE DE LACAN Quando falamos em real, simbólico e imaginário da alimentação, estamos na realidade fazendo referência a uma classificação que é oriunda da psicanálise de Lacan. Vamos explorar de forma bem suscinta e simplificada o significado destes termos no pensamento do ilustre doutor. Grosso modo, de acordo com Macarini (s.d.), que trata o assunto de modo compreensível, o real seria aquilo que descrevemos com palavras, aquilo que existe antes de nós e que não depende de nós. O simbólico será resultado da maneira como construímos e como isto vai moldar a forma com que nos relacionamos com os demais. Interpretamos o mundo, as palavras, os sons, o que vemos, transformando-os em símbolos que lhes atribuem significados. Estes termos são amplamente discutidos pela filosofia e por outras ciências, como a Antropologia e a História, além da Psicanálise. O REAL DA ALIMENTAÇÃO O real da alimentação refere-se a todos os aspectos relacionados à ciência da nutrição, ou seja, qual é a composição nutricional deste alimento, como é obtido no processo de produção e suas consequências na saúde da população e dos indivíduos. Mas o real também se refere às características ditas organolépticas do item alimentar ou da preparação, ou seja, tudo aquilo que diz respeito aos nossos sentidos, aparência, odor, textura e sabor. Preparação Quando falo em preparação, refiro-me a um prato preparado, que pode tanto ser uma salada com um coelho à caçadora. Item alimentar Já quando falo de item alimentar, pode ser uma fruta, um chocolate ou um legume. Há quem vá se manifestar e dizer que comida real ou comida de verdade são alimentos in natura ou levemente processados, como os que são adeptos do Real Food (Real, s.d.), uma tendência alimentar que preza por uma alimentação saudável e pela sustentabilidade ambiental. Mas, de acordo com o significado que estamos discutindo aqui, uma lata de sardinha ou um pacote de batatas fritas é tão real quanto uma fruta. Fonte: Elenadesign/Shutterstock Vamos dar alguns exemplos sobre o real da alimentação. Uma salada é uma preparação que pode variar nos seus ingredientes, mas a nossa salada é feita de folhas verdes como alface e rúcula, pepino sem casca e pimentão verde cru e um molho caseiro de iogurte natural comum. É uma comida com poucas calorias, as verduras e legumes têm algumas proteínas, fibras, sais minerais e vitaminas e poucas calorias. O iogurte pode ser integral ou desnatado e contém várias vitaminas e nutrientes. Outro exemplo é o de algumas sardinhas de uma lata em molho de tomate. A sardinha não é muito calórica e possui vários nutrientes entre vitaminas e minerais. O SIMBÓLICO DA ALIMENTAÇÃO A ALIMENTAÇÃO E OS SEUS ASPECTOS SIMBÓLICOS: A EXPERIÊNCIA DE UMA HISTORIADORA ESPECIALISTA NA ÁREA DE ALIMENTOS Segundo Lenclud (1992), o simbólico é uma característica de todas as culturas, que é atribuir significado ao mundo. Já o simbólico da alimentação refere-se justamente a todos os significados que atribuímos aos alimentos. É importante sinalizar que esses significados variam de cultura para cultura. Vamos aos nossos exemplos anteriores. Para alguém que quer ficar em forma e que vive em um grande centro urbano, dependo da pessoa, vai pensar que a salada é um ótimo alimento, pois é leve e saudável e não engorda. Além disso, faz bem para o intestino, pois o iogurte contém probióticos. Neste caso, ela já atribui vários significados a esta preparação. Vimos que o significado real fica no registro da ciência da Nutrição. Por outro lado, o pepino, ainda mais sem casca, assim como o pimentão verde cru, dependendo da sensibilidade da pessoa, não são leves e podem dificultar a digestão e provocar azia. E somente alguns iogurtes contém probióticos, pois possuem os organismos que sobrevivem aos ácidos do estômago e chegam vivos aos intestinos. A maioria não tem essa caraterística. Outros já dispensariam a salada. Em algumas ocasiões, nos churrascos, podemos ver pessoas questionando o fato de que se tem tanta carne disponível, por que alguém comeria uma salada em uma situação destas? RESPOSTA Nesse caso, o significado atribuído à salada é que ela é algo menos importante que a carne. E, efetivamente, alguns trabalhadores do campo, ou mesmo pessoas nos centros urbanos, consideram as saladas como uma comida que não tem sustância e não dá força para o trabalho (ZALUARapud ALVES; BOOG, 2008) e são desvalorizadas (ALVES; BOOG, 2008). Portanto, observamos diferentes valores simbólicos que foram dados a uma mesma preparação. E quanto às sardinhas em lata? Elas tanto podem significar um alimento saudável como também podem ser descartadas por ser um produto enlatado, não considerado um alimentado natural ou de verdade. Você pode observar então que os valores simbólicos que conferimos aos alimentos são culturalmente determinados e um alimento pode nem significar comida, ou seja, não fazer parte da categoria comida, como comentamos acima. Aqui, é preciso sua atenção para uma diferença estabelecida pelo antropólogo Roberto DaMatta (1986) entre alimento e comida. Alimento É toda e qualquer coisa que pode ser ingerida pelos seres humanos. Comida É aquilo que comemos dentro de casa, a comida de mãe, comida caseira, que comemos na rua, mas é como se fosse a comida de casa. Com a comida, temos proximidade. O alimento está na prateleira do supermercado; a comida está no prato, quentinha, gostosa, aconchegante. Em uma viagem, se ficamos comendo só lanches, depois de algum tempo, nos dá vontade de comer uma “comida de verdade”. Isso porque a comida é aquele prato que comemos sentados, que está quente, que nos é familiar. O IMAGINÁRIO DA ALIMENTAÇÃO Vamos agora refletir sobre o imaginário na alimentação. Para Baczko (apud ESPIG 2003/2004), o imaginário refere-se a ideias e imagens que são coletivamente construídas. Quando pensamos em termos de alimentação, o imaginário comporta construções simbólicas sobre os alimentos que são amplamente difundidas entre os membros de uma população ou entre os membros de um grupo específico. O que isto significa? Significa que, em grupos ou populações, os significados que fazem parte do imaginário são comuns e frequentes. A partir de Perez (1996), falemos de alguns exemplos relativos a um grupo indígena amazônico que pertence ao tronco linguístico Tupi, os quais são conhecidos como Cinta-Larga. Esses índios eram originariamente guerreiros e antropófagos, como costumam ser os Tupi. VOCÊ SABIA O nome Cinta-Larga refere-se a uma armadura feita com a casca de uma árvore que os homens usavam nas guerras para proteger seus órgãos vitais de flechadas dos inimigos. A pesquisa em questão trata do tema da Antropologia da Saúde e da Doença, ou seja, como estes indivíduos enxergam, do ponto de vista tradicional, a doença, o mal, o infortúnio, como eles diagnosticam as enfermidades e como as curam. Neste trabalho, também pretendia-se compreender como os profissionais não índios da área da saúde que trabalhavam com saúde indígena viam os hábitos e costumes dos Cinta-Larga. Pois bem, esses colaboradores tinham um imaginário preconceituoso em relação aos hábitos alimentares e de higiene tradicionais deste povo. Eles acreditavam que a comida dos indígenas era estranha e preparada sem nenhuma limpeza. Também pensavam que eles eram sujos, que não cuidavam nem limpava bem suas crianças etc. Fonte: ESB Professional/Shutterstock Para estes agentes, o problema da saúde indígena era a falta de higiene e seus hábitos bizarros. Enquanto o que ocorre efetivamente é que a saúde desta população se deteriorou, sobretudo por conta das doenças trazidas pelos não índios e pelos hábitos que eles adquiririam com o contato: consumo de açúcar e carboidratos simples, como o arroz. Você pode observar desta forma que o imaginário das populações que estão próximas a estes indígenas é extremamente preconceituoso. ATENÇÃO Os indígenas também têm um imaginário específico em relação aos não índios e seus hábitos. No que concerne à alimentação, antes mesmo do contato, os agentes da Funai jogavam dos aviões sacos de arroz, farinha e açúcar para os Cinta-Larga. Esta era uma prática comum na época. No início do contato e até antes mesmo de ocorrer, houve grande mortalidade desta população devido à rubéola, uma doença que, para os não índios, é praticamente incipiente. Os relatos assemelham-se ao Apocalipse, pois eram aldeias inteiras mortas pela doença e crianças chorando no colo de suas mães mortas deitadas na rede. Aos que sobreviviam, cabia enterrar a enorme quantidade de mortos. SAIBA MAIS Sabemos que estes povos isolados não possuem anticorpos para uma séria de doenças comuns entre os não índios. Este é um dos motivos que a política da Funai em relação aos índios isolados era de não entrar em contato com eles. Difundiu-se entre os Cinta-Larga a ideia de que os sacos de comida que lhes eram lançados pelos aviões da Funai estavam com comida envenenada, que tinha como objetivo espalhar a doença entre os índios. Esta teria sido a causa da grande mortandade. Isso vai ao encontro de um imaginário entre os indígenas de que os “brancos” só querem destruí-los e se apossar de suas terras. Infelizmente, isto não está longe da realidade, mas, no caso, não era absolutamente a intenção da Funai. Ao mesmo tempo em que os não índios os enxergam como sujos, os Cinta-Larga também têm um imaginário de sujeira e coisas nojentas que estão relacionadas às práticas sexuais dos “brancos”. Por exemplo, beijo de língua e sexo oral são considerados atos nojentos e incompreensíveis. Para que você possa ver como este assunto é importante para eles, temos um mito destes indígenas que remete ao porquê de os “brancos” terem metal, armas de fogo e avião, e os índios terem arco e flecha, canoa e machados de pedra. Na origem de todos os povos, um deus perguntou aos homens qual deles estaria disposto a fazer sexo oral nele. Os que aceitaram tornaram-se os brancos e ganharam presentes como armas e avião. E os indígenas que se recusaram ganharam arcos, flechas e canoas. Este mito demonstra a aversão a estes hábitos e como são constitutivos do que significa ser “branco”. Um exemplo mais próximo é em relação aos hábitos higiênicos de franceses e brasileiros. O imaginário sobre limpeza é bastante diferente entre estes povos. Enquanto no Brasil o pão é colocado em um saco de papel, lá os franceses levam sua baguette debaixo do braço, algo que, para nós, entende-se que vai sujar o pão e contaminá-lo com a sujeira do corpo. Fonte: Stockfour/Shutterstock Franceses têm o costume de colocar o pão embaixo do braço e pegá-los com as mãos. A quantidade de banhos que tomamos também é vista como um exagero, pois eles afirmam que esse hábito destrói a camada de gordura necessária à saúde da pele. Existem os pressupostos científicos de higiene e contaminação, mas a limpeza e a sujeira são, antes de tudo, imaginários culturalmente construídos. Os franceses não deixam de ter um pouco de razão em relação à pele. Os pediatras brasileiros insistem com as mães de recém-nascidos que o banho com sabão só deve ser dado uma vez ao dia. Caso contrário, a mãe poderia prejudicar a saúde da pele do bebê por excesso de lavagens. No artigo de Espig (2004), o que a autora nos traz é que a oposição entre real e imaginário é questionável. A ideia é que, mesmo o que chamamos de real, é de certa maneira construído pelo imaginário. As fronteiras entre estes não são rígidas, e sim flexíveis. O real da alimentação é como ela se baseia também na ciência da nutrição, em que a ciência também é uma construção. Os carboidratos e as calorias são construções abstratas a partir de dados e observações. Não se está dizendo que eles não existem, nem invalidando a ciência, mas, sim, que eles somente existem na cabeça de homens que inventaram uma ciência. Além disso, as verdades científicas são provisórias, e não definitivas. Você pode ver isso claramente na ciência da Nutrição, onde os itens alimentares passam de vilões a heróis e vice-versa constantemente. O REAL: O CORPO-MÁQUINA Antes de falarmos sobre a forma como o corpo e a doença têm sido caracterizados pela medicina na contemporaneidade, vamos compreender uma oposição clássica da Antropologia, aquela entre natureza e cultura. Isto porque o corpo e as doenças são vistos por essa medicinacomo algo que faz parte da natureza. E o que se está defendendo aqui é que ele é também uma construção cultural. Sobre esta oposição, os antropólogos preocuparam-se primeiramente com tentar compreender em que momento o homem teria deixado de ser um ser natural e teria “inventado” a cultura. Para Lévi-Straus (2002), um renomado antropólogo francês, o homem teria se separado do mundo natural quando ele inventou uma regra que é exclusivamente humana. E que regra seria essa? Pois bem, Lévi-Strauss diz que é a proibição do incesto. Todos vocês que têm algum animal de estimação sabem muito bem que este tipo de proibição não existe entre eles. Para ser um parceiro sexual, a única coisa necessária é que o indivíduo tenha maturidade sexual e que, no geral, a fêmea esteja disponível. O que você pode ver neste caso é que, em um domínio extremamente natural, que é aquele da sexualidade, o homem diz que existem regras. Quais parentes são considerados incestuosos? Isto varia de sociedade para sociedade, mas na esmagadora maioria das vezes, pais, irmãos e filhos são vetados à relação sexual. E outros membros da família podem entrar nessa proibição também. Mas por que com a proibição do incesto o homem “inventa” a cultura? RESPOSTA Porque ele diz que as relações incestuosas são erradas, são sujas, levam ao caos e, eventualmente, à morte. A partir daí, inventa-se um juízo de valor sobre os mais variados eventos. Ao contrário dos animais, os homens criam um ordenamento onde existem coisas que são certas e erradas, puras e impuras, sujas e limpas, justas e injustas etc. Estes valores são uma invenção exclusivamente humana. Os animais, até onde se sabe, não têm esta visão da existência. Podemos dizer que o tubarão é mau porque comeu o peixe ou que o coelho é bonzinho porque só come plantas, mas esses animais não se julgam bons nem maus, nem certos ou errados. Eles seguem os seus instintos. Entre algumas sociedades tradicionais (povos nativos que mantiveram formas tradicionais de organização social, de produção e de exploração da natureza), o consumo de carne crua também é proibido, podendo levar à loucura, como afirmam os Cinta-Larga (PEREZ, 1996). Nesta circunstância, também é questão de natureza e cultura. A carne da caça deve ser passada pelo filtro da cultura e ser transformada em comida através do cozimento. O consumo de carne crua é característico dos animais. E o corpo humano, ele faz parte da natureza ou da cultura? RESPOSTA De ambos, pois ele também é culturalmente construído. Você deve estar se perguntando, como assim? Nosso corpo passa por um processo de desenvolvimento que é natural, mas também é fabricado pela cultura. Aqui no Brasil, por exemplo, recentemente, foi proibido que as orelhas das meninas fossem furadas na maternidade, mas, em muitos casos, elas o são logo depois. As mulheres usam salto alto, os homens, terno. Isto também vai no sentido de fabricar um corpo feminino e masculino. A busca pelo corpo magro é uma forma cultural pela qual ele é manipulado baseado em certos padrões, que também são construções socioculturais. A forma com que nos higienizamos, aquilo com o que o alimentamos, tudo isso constrói o corpo. As dietas, as cirurgias plásticas, as tatuagens, os brincos, colares, pulseiras, anéis, igualmente. Vemos uma foto de uma mulher-girafa, um exemplo muito pertinente de como a cultura molda o corpo. Fonte: D-VISIONS/Shutterstock As chamadas mulheres-girafas da etnia Karen e da tribo Kayan usam anéis de bronze no pescoço. As argolas são parte da identidade cultural da tribo e são associadas à beleza das mulheres. Agora que vimos como o corpo é culturalmente construído, vamos continuar pensando no jeito como ele é visto e construído pela medicina contemporânea, e qual o papel da Nutrição neste processo. Já mencionamos que a ciência também é uma construção. Ela vem também se transformando com o decorrer do tempo e é importante enfatizar que não é produzida “do nada”, a partir de uma realidade natural que observa e descreve fielmente. Não existe percepção do mundo natural que não seja influenciada pela maneira como se dá uma sociedade e uma cultura determinada (QUEIROZ, 1986). Portanto, a ciência também atende a interesses diversos e não é tão neutra assim como você pode supor. ATENÇÃO Com o surgimento da ciência moderna no século XVII, formulou-se um modelo mecânico para a realidade. Este modelo tem a influência da vários pensadores, como Descartes, que formulou uma separação entre o corpo e a mente, e Galileu e Newton, este último tendo elaborado uma visão mecanicista do Universo. Como consequência disto, as ciências biomédicas, muito influenciadas por essas concepções científicas, adotam com toda força a visão do corpo- máquina (KRAEMER et al., 2014). Este modelo mecanicista que considera somente aquilo que pode ser medido objetivamente desconsidera as dimensões simbólicas, psicológicas, sociais, que são decisivas não somente na construção do corpo, como vimos acima, mas também na compreensão de como este corpo adoece e se cura. A medicina científica desenvolveu-se muito depois da Segunda Guerra, sobretudo do ponto de vista tecnológico. Se, por um lado, pensava-se que a cura de quase todas as doenças seria descoberta, por outro, a intervenção nos corpos os tornava mais aptos para a produção (QUEIROZ, 1986). COMENTÁRIO Conforme Morais (2011), entende-se que estes princípios mecanicistas e este grande desenvolvimento tecnológico, ao invés de promover a satisfação da população como um todo, pelo contrário, geraram uma crise na medicina moderna. Isto já era apontado por Queiroz, em 1986, e continua sendo um objeto de reflexão até hoje. As queixas vão no sentido do alto custo dos tratamentos, o atendimento frio dos médicos, do fato de se dedicarem muito mais tempo à saúde, e os males antigos não apenas continuarem, como ainda serem somados a outros novos. Há uma elitização da saúde e um distanciamento cada vez maior entre pacientes e terapeutas (ibid.). E no caso da Nutrição? A Nutrição, como uma ciência biomédica, repete este modelo mecanicista. Para Kraemer et al. (2014), quando se constituiu, a Nutrição teve necessidade de se colocar junto aos saberes biomédicos para poder se legitimar. Consequentemente, isto a levou a uma maneira de enxergar os alimentos de forma descontextualizada de imaginário social e de seus vários significados socioculturais. Fonte: RYGER/Shutterstock Para promover uma alimentação saudável, a ciência da Nutrição dita o que se deve comer, as quantidades e quando os itens alimentares devem ser ingeridos. Não levando em consideração os aspectos descritos anteriormente, tampouco as conjunturas políticas e econômicas nas quais se desenvolvem os comedores e a indústria alimentar, a ciência reduz seu alcance explicativo (ibid.). Somente os corpos jovens e magros são considerados saudáveis. Para manter estes atributos, a alimentação deve ser controlada, as calorias devem ser contadas e os indivíduos se tornam responsáveis pela sua própria saúde ou pela falta dela. Se você está acima do peso, ou obeso, é porque você não se cuidou o suficiente (ibid.), porque você é fraco, sem força de vontade. Esta forma de ver as coisas, que é comum entre os nutricionistas, não leva em conta elementos sociais, psicológicos entre outros. SAIBA MAIS Este modelo mecanicista acaba por se difundir em toda a população que tem acesso a alguma informação nutricional. Barbosa (2007) fez uma ótima enquete sobre alimentação no Brasil do ponto de vista dos comedores e que se dá em um contexto urbano. Ele constatou que, em todos os extratos sociais, os indivíduos sabem dizer exatamente os alimentos vistos como saudáveis e aqueles que são prejudiciais à saúde. Evidentemente que a ciência da Nutrição tem demonstrado a estreita relação entre doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e a alimentação. A busca pela saúde deve intervir sobre todo o nosso comportamento alimentarcomo se existisse um único modelo que é válido para todos as situações, como uma verdade absoluta e inquestionável (ibid.). Conforme Azevedo (2017), questiona-se a visão da comida considerando somente seus aspectos bioquímicos que determina uma dieta específica para uma pessoa, desdenhando os aspectos culturais e sociais. A comida e o comer têm múltiplos significados em todas as sociedades, é exatamente disto que trata este tema. E o que se pretende aqui é que você seja um profissional que vá além dos nutrientes, além do modelo mecanicista e além do corpo-máquina, de forma a enxergar seu paciente ou seu público-alvo como uma totalidade, e não como um aparelho digestivo ambulante. Existem outras formas de comer que, mesmo do ponto de nutricional, podem nos surpreender. Ribeiro (1995) afirma que a dieta dos indígenas amazônicos corresponde a, aproximadamente, 80 a 85% de mandioca, seja na forma de cerveja, na variedade “doce”, seja na forma de farinha e seus derivados, na variedade “brava”. Os 15% a 20% restantes equivalem ao consumo de proteína animal e a todos os outros produtos da agricultura e da coleta. Fonte: SL-Photography/Shutterstock Indígena Kichwa preparando a tradicional bebida chicha, feita de mandioca, típica da Bacia da Floresta Amazônica, no Parque Nacional Yasuni (Equador). Por outro lado, até as dietas e o peso ideal têm caráter ideológico. Belasco (2009 apud CULTURA, 2015) nos diz que o modelo nutricional ocidental que se tornou padrão considera a carne um alimento fundamental. Sendo que, dentro desta visão, os hindus e os chineses não se alimentariam de forma adequada. O Índice de Massa Corporal é bastante útil, mas ele tem como base o padrão da sociedade americana. Até que ponto isto é válido para todos (KRAEMER et al. 2014)? Uma dieta pobre em frutas, legumes e verduras (FLV) é o contrário do que determina a Organização Mundial da Saúde e os nutricionistas. Todavia, no geral, os indígenas amazônicos têm uma saúde muito boa, ficando doentes justamente quando mudam seus hábitos e regimes alimentares em decorrência do contato com não índios. Coimbra (1985), analisando quimicamente a cerveja feita de mandioca doce, atestou que devido à fermentação que é provocada pela saliva das mulheres, esta preparação contém açúcares mais complexos que aqueles presentes na mandioca in natura. ATENÇÃO Refletimos nesta seção sobre o aspecto real visto acima a partir da construção do corpo e da saúde no modelo mecanicista e como isto também influencia a ciência da Nutrição. O que vimos é que este corpo não é uma máquina onde a doença é um defeito. Este corpo, com seu estado de saúde ou doença, é construído no centro das relações sociais e do imaginário simbólico que envolve as práticas alimentares e as diferentes maneiras de adoecer e curar. O SIMBÓLICO: OS MÚLTIPLOS SIGNIFICADOS DOS ALIMENTOS Já foi comentado acima sobre alguns dos significados simbólicos dos alimentos. OS ALIMENTOS NÃO SÃO APENAS COMIDOS, MAS TAMBÉM PENSADOS. EM OUTRAS PALAVRAS, A COMIDA POSSUI UM SIGNIFICADO SIMBÓLICO – ELA FALA DE ALGO MAIS QUE NUTRIENTES (GRIFO DO AUTOR). (WOORTMANN, 2006). Fonte: LoulouVonGlup/Shutterstock Vamos pensar em alguns itens que são passíveis de serem ingeridos, qual é a diferença existente, do ponto de vista nutricional, entre um bife de carne de boi, um bife de carne de cachorro, um bife de carne de cavalo e um bife de carne humana? Só de falar nisto, talvez você já esteja sentido náuseas, mas a resposta à pergunta é: nenhuma. Talvez alguma diferença no percentual de gordura, ou de fibras. Mas todas elas irão nutri-lo quase da mesma maneira. Então, por que nós humanos desprezamos todas estas carnes que poderiam resolver uma porta do problema da fome no mundo? Pensando assim, não seria necessário tanto gado e tudo aquilo que eles precisam para viver: terra, água etc. Seria ótimo, não? O consumo de carne humana é um tabu enorme, sem falar no fato de que os cadáveres devem ser respeitados. Já os cães são como pessoas da família, impossível, para nós, pensarmos em comê-los. E os cavalos, que são comidos em vários lugares, para nós são como nossos empregados, que têm um nome, uma função; eles também não podem se transformar em comida. No entanto, não temos problema algum em comer carne de vaca, de porco, eventualmente, de carneiro, de coelho ou avestruz. Porém, em alguns casos, essas carnes são consideradas sagradas, sujas, ou impuras por questões relacionadas a aspectos religiosos, ou não. Uma anedota conta que perguntaram a um biólogo o que ele diria sobre Deus segundo suas observações da vida na Terra. Ele respondeu que Deus, certamente, tinha um grande amor por insetos, sobretudo por besouros. Isto porque eles representam o maior número de espécies e de indivíduos em todo Reino Animal. Surpreendente, não? Mas, por que falar de insetos? A entomofagia, ou seja, o consumo de insetos, é um assunto apaixonante. Afinal, os insetos são muito numerosos, como nos esclareceu o biólogo, extremamente fáceis de serem capturados, muito nutritivos e, segundo aqueles que os comem, muito saborosos. Por que, nesse caso, nós dispensamos toda uma quantidade de proteínas que tão generosamente a natureza nos oferece? RESPOSTA Precisamente, por conta do significado que atribuímos a esses potenciais alimentos. Mesmo se aqui no Brasil comemos farofa de içá, como foi dito anteriormente; se no Norte do país tem- se o costume de comer formigas aladas, e se restaurantes famosos e estrelados servem insetos em pratos gourmets em São Paulo, na maior parte das vezes, os insetos são considerados repugnantes. ESTRELADOS Um restaurante estrelado é aquele que recebeu Estrelas do Guide Michelin, um Guia Turístico e Gastronômico muito famoso na França e no mundo. javascript:void(0) Fonte: CK Bangkok Photography/Shutterstock Inseto frito comestível. Iguaria popular na Tailândia. Como vimos acima, aquilo que é considerado comida para uns não é para outros. Cada cultura determinará as diferentes possibilidades que lhe são ofertadas. A categoria comida é culturalmente construída: SE O HOMEM NÃO COME TUDO QUE É BIOLOGICAMENTE INGERÍVEL, É PORQUE NEM TUDO QUE É BIOLOGICAMENTE COMESTÍVEL É CULTURALMENTE COMESTÍVEL. (FISCHLER apud COELHO, 2015) Como salienta Flandrin (1998), desde a pré-história, os homens têm acesso aos mais variados itens alimentares nos lugares por onde passam, mas nem tudo o que estes ambientes lhes oferecem é escolhido para fazer parte da categoria comida. Essas escolhas são feitas de acordo com regras impossíveis de serem decifradas na maioria das vezes. Você pode perceber que essas escolhas não são baseadas em critérios pragmáticos nem racionais. Caso contrário, todos comeríamos insetos, pois eles existem em quase todos os lugares do mundo. SAIBA MAIS Na Europa, o ambiente oferece os mesmos recursos, mas somente os franceses comem caramujo, os famosos escargots, e rãs. Temos tartarugas também em muitos locais, mas a sopa feita dela é uma especialidade inglesa (Id.). Poderíamos multiplicar os exemplos, mas já ficou claro que não é o ambiente que determina as escolhas alimentares, mesmo se é partir dele que elas são feitas. É evidente que um esquimó não pode ser vegetariano, pois morreria de fome, mas, mesmo em uma região com recursos tão limitados, os homens fazem escolhas culturais diferentes. Laraia (2007) fala sobre os esquimós que constroem suas casas de gelo e usam trenós puxados por cães e os lapões, que vivem no mesmo ambiente, são pastores de rena, constroem suas casas com a pele delas e se locomoviam tradicionalmente com raquetes de neve. Fonte: Piotr Piatrouski/Shutterstock Outro ponto interessante sobre o significado dos alimentos é o simbolismo associado à carne. Carneiro (2003) comenta que a Europa sempre valorizou a alimentação carnívora. Desde a Antiguidade Grega, a caça e o consumo de carne são considerados importantes para preparar os homens para a guerra, tornando-osmais ferozes e cruéis. Sem falar no fato de que a propriedade de rebanhos confere prestígio e riqueza. Fonte: Mehmet Cetin/Shutterstock Os países ocidentais valorizam muito o consumo de carne. Aqui no Brasil, o churrasco é uma verdadeira instituição, sendo muito comum na Região Sul, mas também no Sudeste e no Centro-Oeste, onde, no geral, o único acompanhamento da carne é a mandioca cozida. Flandrin (1998) nos ensina que nas refeições festivas de todos os tempos sempre foi necessária a presença da carne fresca; e, é claro, das bebidas fermentadas. Se falamos em consumo de carne, não podemos deixar de lado a antropofagia. De acordo com Bueno (2012), este costume de muitos povos indígenas brasileiros foi o que mais espantou os europeus. Alguns rituais antropofágicos entre os Tupinambá foram descritos com precisão por alguns cronistas, sobretudo por Hans Staden (1998), que foi capturado por estes indígenas e viveu entre eles por alguns anos. ANTROPOFAGIA É a prática na qual um ser humano se alimenta de partes de outro ser humano. javascript:void(0) SAIBA MAIS A este propósito, veja o filme Hans Staden (Brasil/Portugal, 1999. Direção Luiz Albert Pereira). Mesmo se os homens já comeram carne humana para matar a fome, em momento de penúria extrema ou na pré-história, o canibalismo do qual se tem notícia tem sempre um significado ritual. Pode-se consumir os inimigos para se vingar deles, para recuperar sua força ou para aniquilá-la, mas, no caso, também pode ser uma obrigação consumir a carne de seus parentes mortos para desumanizá-los, uma vez que são comidos como presas e para que sua substância fique entre os membros da família. ATENÇÃO Para fecharmos esta seção, vamos falar sobre uma outra dimensão simbólica da comida: o fato de que ela constitui uma linguagem. Quando convidamos alguém para comer em nossa casa, a comida que vamos servir vai falar sobre nós, vai expressar nosso cuidado, nosso carinho, nossa consideração. Os diferentes tipos de ingredientes são as letras e as preparações das palavras. Com uma letra, você pode fazer inúmeras palavras se combiná-las com outras letras, assim como, podemos fazer um monte de receitas diferentes misturando os ingredientes-letras. E a fase é a refeição, onde tudo deve ser combinado de uma forma específica para ter sentido (MONTANARI, 2008). É claro que a forma como a frase-refeição é construída depende da cultura, da disponibilidade econômica do responsável, da ocasião. BRASIL Cotidianamente, não costumamos comer entrada, colocando a salada no prato principal. No final da refeição, sobremesa e café. Esta ordem é imutável. EUA Nas cafeterias, toma-se café durante toda a refeição. Este café é bem fraco para os nossos padrões: é o famoso “chafé”, de tão aguado. FRANÇA Os franceses comem salada verde e queijo no final das refeições, e só depois vem a sobremesa e o café. Eles consideram que a salada limpa o paladar. A frase é diferente e pode até se tornar um texto em uma refeição festiva, como um banquete de casamento. E mesmo a gramática da refeição é diferente nos dias da semana e no fim de semana. Através das palavras, damos sentido ao mundo, criamos categorias, e a comida faz a mesma coisa. Ela fala de nós, dos nossos hábitos, valores, crenças, origem, classe social. A comida fala! O IMAGINÁRIO: AS ANGÚSTIAS DO COMEDOR MODERNO Como diz Ferrières (2002), além do medo de que falte comida, existe o medo de comer uma comida que esteja contaminada ou apodrecida e possa afetar negativamente a saúde. A autora traz no livro A História dos medos alimentares um histórico desde a Idade Média das angústias relativas àquilo que vamos incorporar ao nosso corpo. Por conta disto, no Ocidente, desenvolveu-se pouco a pouco um controle sanitário sobre o processo de produção dos alimentos. Fischler (1990) afirma que o ato de comer é muito íntimo e mesmo se for fonte de prazer, ele também traz medo e ansiedade no tocante à ingestão dos mais variados itens. ATENÇÃO Na realidade, a ciência e todos os processos controlados da produção de alimentos nas granjas e fazendas, nos abatedouros e nas plantações, nas indústrias e na distribuição geraram uma sensação de segurança no consumidor. No entanto, essa confiança foi quebrada com a Doença da Vaca Louca (Encefalopatia Espongiforme Bovina), que surge na Inglaterra por volta de 1985 (POULAIN apud DÓRIA, 2015). Esta doença ataca o Sistema Nervoso Central e mata os animais. A origem da doença se deu por conta dos restos de carcaças de mamíferos que entravam na composição da ração que era dada aos animais, submetendo os herbívoros a uma espécie de canibalismo. Na França, essa suspeita recaiu sobre todos os tipos de carnes bovinas e seus derivados. Para conter a doença, milhares de animais foram sacrificados. Temia-se que a doença fosse transmitida aos humanos e a outros animais. A utopia da segurança em relação ao que comemos foi abalada e gerou ansiedade e medo em relação à qualidade dos alimentos (id.). Por outro lado, por conta da globalização que permite uma circulação sem precedentes de mercadorias e pessoas, os fatores de risco se multiplicam, como declara Proença (2010). Os riscos são de contaminação por microrganismos, problemas na manipulação e na conservação dos alimentos, introdução acidental ou voluntária de substâncias tóxicas, excesso de agrotóxicos etc. Fonte: Gavin Baker Photography/Shutterstock Avião pulverizando plantação com agrotóxicos. Aqui no Brasil, vimos leite contaminado com formol (ILHA, 2013), suco à base de soja com soda cáustica (VIGILÂNCIA, 2013) e um aumento no número de agrotóxicos liberados para utilização em 2020 (LEITE, 2020). Isso sem falar nos transgênicos que são uma grande ameaça à biodiversidade (OLIVEIRA, 2016). Também nos preocupamos com a quantidade de hormônios que os animais consomem e que efeitos isto pode ter na nossa saúde, e o assombroso consumo de antibióticos pelo gado bovino. Você viu que existem riscos reais à nossa saúde causados pelos alimentos nas mais variadas fases da produção, mas se somam a estas outras questões que só aumentam a ansiedade do comedor. Além desses riscos biológicos, questões de ordem ética nos preocupa. Nós nos preocupamos se a forma como os alimentos que comemos foram obtidos, isto é, se houve agressão ao meio ambiente, ou aos trabalhadores envolvidos no processo. Nos dizem respeito questões de sustentabilidade ambiental e econômica. Pelo surgimento de uma solidariedade entre espécies, não queremos que os animais que nos servem de comida sejam tratados com violência ou desprezo. Por conta disso, surgiram novas ideologias alimentares, como, por exemplo, o Slow Food. Este movimento fundado pelo italiano Carlos Petrini em 1986, acredita que o homem ao comer afeta seu meio ambiente e social e que é necessário se conscientizar disto e agir em consequência, para que estes impactos sejam benéficos. Para isso, ao contrário do Fast-Food, é necessário ter prazer ao comer degustando o alimento com consciência, consumir produtos artesanais, de preferência que sejam fruto do trabalho de produtores locais e que, nesse processo, se respeite o meio ambiente e os trabalhadores envolvidos na produção (MOVIMENTO, 2007). Fonte: Tinxi/Shutterstock Símbolo do movimento Slow Food. Não podemos esquecer do medo de engordar, de desenvolver doenças mesmo que os alimentos não estejam contaminados: somente sua composição já pode nos assustar. Tudo isto levou a uma medicalização da nutrição, como já comentamos acima. Diante disso, um outro dilema que o comedor enfrenta é aquele da escolha do que comer. A quantidade de opções de itens, de ideologias alimentares, de produtos light, diet, orgânicos, sem glúten, sem lactose, fat free, disponíveis hoje para o comedor são enormes (VERTHEIN; MEDINA, 2015). Em busca do corpo perfeito e, sendo agora o responsável pela saúde e pelas decisões sobre o que comer para atingir estes objetivos, o comedor tem cada vez maisangústias, medos, preocupações e culpas. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. NA ESPANHA, DESDE SEMPRE, O VINHO É CONSIDERADO UM ALIMENTO NUTRITIVO, TANTO QUE ELE É DADO ATÉ PARA AS CRIANÇAS NA FORMA DE UM REFRESCO DE VINHO FEITO COM ÁGUA E AÇÚCAR. VEJA UMA CONVERSA ENTRE ESPANHÓIS: - MAS ELA ESTÁ SEMPRE DOENTE. - CLARO, ELA COME POUCO, NÃO TOMA UM COPO DE VINHO, NORMAL QUE SUA SAÚDE SEJA FRACA. QUAIS DOS ASPECTOS DOS ALIMENTOS ESTUDADOS ACIMA FAZ REFERÊNCIA AO TEXTO? A) Reais, pois o vinho é considerado nutritivo por conta de polifenóis presentes na bebida que, segundo pesquisas na área comprovam, protegem a saúde do coração. B) Imaginário, pois o vinho é considerado nutritivo por este povo, já que nutre o organismo. C) Simbólicos, pois a Espanha é uma grande produtora de vinho. D) Psicológicos, pois o vinho altera o estado de consciência, causando embriaguez. 2. LEIA O TEXTO ABAIXO: “CHINCHULIN, TALVEZ O MAIS INTERESSANTE E MENOS CONHECIDO PRATO DA CULINÁRIA DOS NOSSOS PRIMITOS DO SUL (“HERMANITOS” É EXAGERO, TENHA DÓ!). SE VOCÊ FOR PROCURAR PELO GOOGLE, ENCONTRARÁ MUITAS REFERÊNCIAS AO QUITUTE, QUASE TODAS EM ESPANHOL, MAS NENHUMA EM BOM PORTUGUÊS. CHINCHULIN É O CHURRASCO PREPARADO COM O PRIMEIRO TERÇO DO INTESTINO DELGADO DE UMA VITELA. E VITELA, PARA QUEM NÃO SABE, É UMA VACA TEEN. (...) CHINCHULIN – COPROFAGIA À ARGENTINA.” (DISPONÍVEL EM MESAPRA1.) QUAIS OS ASPECTOS SIMBÓLICOS QUE LEVAM OS BRASILEIROS A REJEITAR ESTA PREPARAÇÃO? A) Os chinchulines são muito apreciados pelos argentinos, pois dentro deles o leite ingerido pelo vitelo é como um creme de queijo. B) Nós, brasileiros, consideramos intestino uma comida nojenta, independentemente de o recheio ser o início da digestão do leite. C) No intestino delgado, ocorre a maior parte da digestão e absorção dos nutrientes. Esse órgão divide-se em: duodeno, jejuno e íleo. D) Uma xícara de cubinhos de chinchulines tem 118 kcal, 16,76 g de proteínas e 587 gramas de sódio. GABARITO 1. Na Espanha, desde sempre, o vinho é considerado um alimento nutritivo, tanto que ele é dado até para as crianças na forma de um refresco de vinho feito com água e açúcar. Veja uma conversa entre espanhóis: - Mas ela está sempre doente. - Claro, ela come pouco, não toma um copo de vinho, normal que sua saúde seja fraca. Quais dos aspectos dos alimentos estudados acima faz referência ao texto? A alternativa "B " está correta. Os aspectos imaginários da alimentação atribuem significados aos alimentos que são amplamente compartilhados por um grupo cultural. 2. Leia o texto abaixo: “Chinchulin, talvez o mais interessante e menos conhecido prato da culinária dos nossos primitos do sul (“hermanitos” é exagero, tenha dó!). Se você for procurar pelo Google, encontrará muitas referências ao quitute, quase todas em espanhol, mas nenhuma em bom português. Chinchulin é o churrasco preparado com o primeiro terço do intestino delgado de uma vitela. E vitela, para quem não sabe, é uma vaca teen. (...) Chinchulin – coprofagia à Argentina.” (Disponível em Mesapra1.) Quais os aspectos simbólicos que levam os brasileiros a rejeitar esta preparação? A alternativa "B " está correta. Os aspectos simbólicos da alimentação são aqueles que se referem aos significados que os diferentes grupos culturais atribuem aos alimentos, além dos seus aspectos nutricionais. Aqui no Brasil somos muito céticos em relação a tudo que é produto da digestão. MÓDULO 2 Relacionar a identidade cultural e a comensalidade às dimensões simbólicas da alimentação ALIMENTAÇÃO E IDENTIDADE CULTURAL A CULTURA E SUA INFLUÊNCIA NA ESCOLHA DOS ALIMENTOS Diante de tantas mudanças em relação à forma de comer, ao que comer, quando, onde, sozinho ou acompanhado, se estabelecem questões relativas às identidades culturais individuais e coletivas. O que é a identidade cultural, como podemos definir este conceito? Cultura É algo que está dentro e fora de nós, pois, quando nascemos, já existe uma sociedade, mesmo se ela está em constante transformação. Identidade cultural É um sentimento de pertencimento que é construído pelo indivíduo com base nos aspectos culturais de dada sociedade. Se pensarmos, por exemplo, em um indivíduo que pertence a uma sociedade tradicional, a sua identificação afirma seu pertencimento àquela etnia, ao seu gênero e à sua posição na família: pai, mãe, filho, todas estas sendo identidades culturais que variam de acordo com a sociedade. As obrigações e funções de pais e filhos são culturalmente construídas. O gênero também é uma construção cultural, ser mulher ou homem não significa a mesma coisa para todas as culturas. Mesmo na nossa própria sociedade, a forma como uma mulher e um homem constroem seus pertencimentos de gênero varia no tempo. Logo, a identidade cultural é algo que se transforma. Fonte: Kinga/Shutterstock Como uma mulher se sentia mulher há 50 anos? Através da maternidade, das prendas domésticas e do cuidado com a família, a dita “mulher de cama e mesa”. E como as mulheres ocidentais se constroem hoje em dia? Através do estudo e da sua carreira profissional. Elas têm menos filhos, os têm mais tarde, e isso quando os têm, pois a maternidade não é mais necessária para a construção do feminino. Expressões machistas como “encalhada” e “ficou para titia” não fazem mais nenhum sentido atualmente. Fonte: Aleksandra Suzi/Shutterstock E quanto ao homem? Ele deixou de ser o provedor e o chefe de família e, consequentemente, perdeu seu poder sobre o destino de sua companheira. Hoje, temos inversões dos papéis tradicionais: mulheres que trabalham e sustentam a família, enquanto os seus maridos cuidam da casa e dos filhos. Essas mudanças identitárias não são fáceis de serem absorvidas e alguns homens e mulheres ainda se questionam e ficam incômodos com essas novas atribuições. Nas sociedades contemporâneas, a questão da identidade cultural tem novas dimensões. Já não criamos pertencimentos com os membros das sociedades tradicionais, em uma sociedade complexa e fragmentada como a nossa, pertencemos aos mais variados grupos cultuais e temos múltiplas identidades (HALL, 1999). Por exemplo, pertencemos a uma etnia, temos um gênero, uma religião, uma determinada ideologia política, um hobby, como dança de salão, pertencemos a um lugar, a uma classe social etc. Criamos uma identificação com cada um destes grupos culturais. A identidade atual, além de subjetiva e, consequentemente, construída, é também fragmentada, múltipla e, muitas vezes, até contraditória. Quem nunca foi à missa pela manhã e comungou, depois recebeu um passe em uma sessão de espiritismo à tarde e incorporou um Orixá em um terreiro de candomblé à noite? As identidades culturais também não são fixas, pois não só mudamos nossos pertencimentos, como também alegamos diferentes identidades em diferentes situações. Em alguns casos, é possível enfatizar mais o gênero, mais a classe social ou o pertencimento étnico. Em uma situação de violência contra a mulher, sua identidade de gênero vai prevalecer. Já em caso de injúria racial, será o pertencimento étnico e, diante de injustiças sociais, prevalecerá o pertencimento de classe e/ou sua ideologia política. Mas você deve estar se perguntando: e o que a alimentação tem a ver com tudo isso? RESPOSTA Pois bem, como você se sente brasileiro? Pelo fato de ter nascido no Brasil, pela nacionalidade? Com certeza, mas também porque fala português e tem um código corporal diferente dos europeus, por exemplo, nós nos tocamos o tempo todo. E à mesa, como você sente brasileiro? Comendo feijão com arroz, algo que se come no Brasil inteiro (BARBOSA, 2007), do Oiapoque ao Chuí. Aquilo que comemos é uma fonte de pertencimento muito importante. Como nos ensina DaMatta: COMIDA NÃO É APENAS UMA SUBSTÂNCIA ALIMENTAR, MAS É TAMBÉM UM MODO, UM ESTILO E UM JEITO DE ALIMENTAR-SE. E O JEITO DE COMER DEFINE NÃO SÓ AQUILO QUE É INGERIDO, COMO TAMBÉM AQUELE QUE O INGERE.(1986). E as comidas típicas? Se pensamos no Sul do Brasil, logo nos vem à mente um suculento churrasco e um chimarrão. Já o Norte nos remeta a comidas como pato no tucupi e tacacá. O Nordeste, tanto nos faz pensar em carne-de-sol com baião de dois, como todas aquelas comidas de origem africana e com uma conotação religiosa, as comidas de santo caraterísticas da Bahia: acarajé, vatapá, caruru, xinxim de galinha, bobó de camarão etc. Fonte: Jaboticaba images/Shutterstock Vatapá de camarão, prato típico da culinária baiana. Mas essas comidas são consumidas no dia a dia? RESPOSTA De maneira alguma, são no geral comidas que se come em ocasiões festivas ou especiais. São preparações que foram escolhidas, de uma certa forma, para representar a identidade cultural daquele lugar. Então, come-se feijão - das mais variadas cores, segundo o local - com arroz, porque se é brasileiro, mas o pato no tucupi representa o pertencimento da região Norte. Mais do que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar um determinado modo ou estilo de vida que se quer particular a um determinado grupo. Assim, o que é colocado no prato serve para nutrir o corpo, mas também sinaliza um pertencimento, servindo como um código de reconhecimento social (MACIEL, 2005). A identidade alimentar, assim como as demais, se constrói por oposição. Sou brasileiro por que como feijoada e não insetos fritos. Assim como falo português, e não chinês. Pensamos sobre nós mesmos e nos reconhecemos como diferentes a partir do outro, daquele que pertence à outra cultura (SILVA, 2015). Chamamos de alteridade esta percepção que temos de nós mesmos como diferentes a partir da visão que temos dos outros. Ou, como dizem os antropólogos, do outro, que representa aquela sociedade que não é a minha. A alteridade se opõe à identidade cultural, ao mesmo tempo em que é fundamental na sua construção. O discurso da identidade não se confunde com o discurso das origens ou uma suposta autenticidade. Vamos pensar na feijoada, um prato que é reivindicado como um dos maiores representante da nossa identidade cultural alimentar. O feijão preto e a mandioca da farofa são nativos das Américas, mas o porco, a couve, o arroz e a laranja são todos ingredientes exóticos no sentido literal da palavra, ou seja, aquilo que é estrangeiro, que não é nativo, mas isso não faz da feijoada um prato menos brasileiro. Assim como pimentões e os tomates são característicos da cozinha mediterrânea, mas são nativos das Américas e somente após as Grandes Navegações apareceram por lá (MACIEL, 2005). A este propósito, é curioso o papel da feijoada na construção da identidade nacional. Reza a lenda que a feijoada é uma invenção dos escravos a quem eram deixadas somente as partes menos nobres. Esse mito é difundido mesmo entre pesquisadores importantes sobre o tema. Câmara Cascudo (2004) já exalta a origem portuguesa da feijoada, comparando-a com pratos europeus feitos de carnes, legumes e favas, como os cozidos, o puchero e o cassoulet, este presente desde a Antiguidade. Ele também sinaliza na mesma obra que os escravos comiam de acordo com as posses do seu senhor, e que muitas das vezes nas fazendas eram um punhado de farinha de mandioca com o caldo e uma laranja espremida por cima. Entretanto, foi Dória (2009) quem trouxe o tema ao debate recentemente. Fonte: Page frederique/Shutterstock Cassoulet, especialidade culinária de origem francesa. Ele argumenta que os escravos, assim como os indígenas, eram povos subalternos, considerados coisas, como cabeças de gado, que, inclusive, viajavam de forma muito mais cômoda que os escravos nos navios negreiros, ou tumbeiros, como também eram chamados. Eles não escolhiam o que iam comer, e muito menos criavam pratos. Classificar as carnes da feijoada com menos nobres também pode ser um equívoco, já que elas são consideradas iguarias em muitas culturas. Na França, existe um restaurante chamado Au Pied de Cochon (aos pés de porco, em tradução livre) que só serve pés de porco das mais variadas maneiras. Esse mito é muito interessante e defende uma causa muito nobre, que é a importância dos negros na formação da identidade cultural do Brasil. Entretanto, ele é construído com esse propósito e nega, dessa forma, as verdadeiras origens da feijoada, que são europeias. Mas, como vimos acima, a identidade cultural, por ser construída, é manipulável, que é o caso aqui. Elas são mutáveis, como já vimos acima, bem como são produtos históricos, produzidos também no contato com culturas diferentes. COMENSALIDADE O que é a comensalidade? RESPOSTA Certamente, você tem pelo menos uma ideia do que isso significa. Segundo Maciel (2011), o fato de comermos juntos é o que faz com que o ato de se nutrir se torne um evento social. A palavra companheiro vem do latim cum panem, que significa compartilhar o pão. Já a comensal vem de cum mensa, que significa compartilhar a mesa. A comensalidade refere-se àqueles que comem juntos. No entanto, mesmo se não existe uma mesa, existe comensalidade. Câmara Cascudo (2004) nos conta que, assim como os indígenas, com esteiras no chão, os mais pobres também comiam no Brasil Colonial. Luccock (1997), um cronista inglês, chama a atenção para o fato de que, mesmo em famílias mais abastadas, mulheres e crianças comiam da mesma forma nas alcovas, a parte íntima da casa. Os orientais também comem em tapetes sentados no chão (LIMA; NETO; FARIAS, 2015). Desde a pré-história, os homens já se sentavam em torno de um fogo comum para comer e conversar. Desde então, sentar-se junto à mesa sempre foi sinal de boa paz. Durante a Idade Média, quando ainda não existiam estruturas políticas centralizadas, as refeições tomadas em conjunto e os banquetes que ocorriam, tanto entre os nobres, mas também entre os aldeões, eram a melhor forma de se comunicar decisões e mudanças (ALTHOFF, 1998). Também servia para fundar e reafirmar laços sociais, através das trocas de refeições festivas. Os grupos formavam alianças de comprometimento mútuo que regulavam suas vidas em vários aspectos (Id.). Estamos falando da função social da refeição. Até hoje, em torno de uma mesa ou em um coquetel, como os coffee breaks, se faz todo o tipo de acordo, de aliança e de celebração. São estabelecidas relações de amizade, amorosas, mas também se fecham negócios e acordos políticos, nem tão diferente do que acontecia na Europa na Idade Média. O clima mais descontraído das refeições festivas e banquetes, no geral, regados à bebida alcoólica, facilita a conversa mais sincera. Daniel e Cravo (2015) acreditam que os conchavos políticos se dão também nos banquetes ou nos coquetéis, e não só nas câmaras ou nos palácios dos governos. As tribos germânicas discutiam questões importantes durante os banquetes, mas somete tomavam as decisões no dia seguinte, quando estavam sóbrios (ALTHOFF, 1998). Fonte: Alexandros Michailidis/Shutterstock Bruxelas, Bélgica. 9 de dezembro de 2019. Ministros das Relações Exteriores no início de uma reunião com café da manhã. No entanto, existem exceções a essa regra de estreitar relações sociais em torno da comida. Os balineses, descritos por Geertz, associam o ato de se alimentar a algo próximo da animalidade e, para evitar constrangimentos, comem somente sozinhos. ATENÇÃO Sentar-se à mesa também pode ser uma forma de demonstrar poder e afirmar hierarquias. Os lugares à mesa demonstram isso. Quanto mais perto se está do anfitrião, maior a importância do convidado. Em muitas casas, cada membro da família tem um lugar específico e imutável, que também afirma a hierarquia dentro da família, com o pai e a mãe sentados nas cabeceiras da mesa. Mesmo se a generosidade e paz são pontos importantes quando comemos juntos, acontece de as festas e os banquetes darem errado por conta de rixas entre seus membros. Elas podem ser frutos de problemas que se pretendia justamente resolver com o banqueteou, como muitos de nós já vimos, brigas e desentendimentos que ocorrem nas comemorações familiares. Quem nunca teve o peru de Natal amargo por uma discussão entre aqueles primos que não se cruzam? O compartilhamento da comida é tão importante que, mesmo em ocasiões nada festivas, é preciso pensar no cardápio que será oferecido. Aqui no Brasil, onde ainda se velam os mortos em casa, café e guloseimas para os presentes são obrigatórios. Nos Estados Unidos, após a cerimônia de sepultamento, a família sempre oferece uma refeição aos que estavam presentes. Fonte: Makistock/Shutterstock Atualmente, a comensalidade vem se transformando. Você consegue fazer refeições com a sua família com frequência? Você consegue sentar-se à mesa para fazer suas refeições? Quantas vezes comemos na frente do computador ou da TV? Ou no transporte público e mesmo na rua? Nós, brasileiros, valorizamos o momento da refeição em família. Conforme Barbosa (2007), é a hora de pais e filhos conversarem e dos laços familiares se estreitarem. Mas será que conseguimos fazer refeições diariamente em família? Muitas vezes, aos domingos, sim. Outras somente no aniversário de alguém ou no Natal. Há também uma tendência da alimentação contemporânea, que é a individualização. Por conta das rotinas diferentes, do enfraquecimento da instituição familiar e de uma ideologia individualista, os membros de uma família, mesmo estando juntos em casa, comem de forma separada (BARBOSA, 2007). Haveria uma individualização do momento da refeição, mas também do seu conteúdo. Na realidade brasileira, mesmo se não se come junto, pois os horários de cada um são diferentes, a comida é a mesma para todos, no geral. Isso porque, como já vimos, no geral, os brasileiros gostam do momento da refeição em família. Já não almoçamos em casa com a família, mas a comensalidade pode ocorrer também de vez em quando em casa, com amigos e familiares, na casa dos outros, em restaurantes, nos churrascos etc (LIMA, 2015). Nosso estilo de vida, sobretudo nas grandes cidades, nos faz estar sempre correndo, mas a comensalidade toma novos formatos, mantendo sua função social. As formas de se comportar à mesa também são muito importantes. Mesmo se estas regras sociais não fazem parte das leis, não as respeitar, ou não as conhecer pode causar muitos problemas. Vamos supor que você vai sair com uma pessoa que está interessado(a). Vocês decidem jantar fora e percebe rapidamente que essa pessoa não só mastiga com a boca aberta, como também arrota na mesa. Bom, ela pode ser muito interessante e atraente, mas com certeza esse comportamento vai esfriar o seu interesse, ou mesmo acabar com ele. Resulta que, se alguém não sabe se comportar à mesa, certamente, será colocado em uma situação de isolamento social. ATENÇÃO Quando nos sentamos para comer em algum lugar fora de casa, estando ou não acompanhados, involuntariamente, observamos o comportamento dos outros durante a refeição e fazemos julgamentos de valor sobre sua educação, seu grau de instrução e seu pertencimento de classe. Vimos que as diferentes classes sociais criam e afirmam suas diferenças através do que se come e de como se come. A HISTÓRIA DAS REGRAS DE COMPORTAMENTO À MESA ESTÁ ESTREITAMENTE LIGADA À DAS BOAS MANEIRAS EM SOCIEDADE. (ROMAGNOLI, 1998). Se hoje, somente comemos com as mãos sanduíches, lanches, frutas e algumas preparações como frango à passarinha, comer com as mãos foi a única forma de comer até pelo menos o século XIV, quando os talheres eram usados em algumas cidades italianas. Somente no século XVIII, os talheres vão se popularizar na Europa (Id.) e aqui no Brasil quase só no século XX. VOCÊ SABIA No Brasil, era comum - ainda é em alguns locais - o capitão, um bolinho feito de feijão de corda amassado com farinha. Originário do Nordeste, era uma comida fácil de ser carregada em pequenas ou grandes viagens ou levada para a roça. Como foi dito acima, em muitos lugares do mundo, ainda se come com a mão (CÂMARA CASCUDO, 2004). Os modos à mesa na durante os meados da Idade Média na Europa seriam considerados por nós hoje apavorantes. Os convivas urinavam na sala de jantar, assoavam o nariz na toalha e não se constrangiam com suas flatulências, como diz O Livro do Homem Civilizado, de Daniel de Beccles, um dos primeiros livros sobre etiqueta que data de aproximadamente o final do século XII. Os pratos, que podiam ser uma fatia de pão, eram compartilhados, assim com os copos. Não existia sequer um local apropriado para a refeição nos castelos. Uma mesa sobre cavaletes era trazida para o local escolhido, o que deu origem ao que falamos hoje “botar a mesa” (Id.). A preocupação com as boas maneiras à mesa iniciará por volta do século XII, em um caminho que durará vários séculos. Estas formas de comer, a ordem dos pratos, aquilo que é considerado importante ou trivial para a refeição, variam de acordo com as diferentes culturas. No Japão, o que caracteriza a refeição é o arroz, enquanto no sul da Índia é o pão que cumpre este papel. Até a temperatura pode ser importante na definição de uma refeição. Quantas vezes comemos uma salada, que pode até ser feita de massa, e chegamos ao fim do dia sem a sensação de ter comido de verdade? O processo de consumo e até de preparo dos alimentos obedece a certas regras. Já comentamos acima como os pratos têm certa ordem durante a refeição segundo os significados que lhes atribuímos. Podemos dizer também que esse processo é altamente ritualizado. O ritual remete a um conjunto de ações que devem ser feitos de uma maneira específica para que se atinja um dado objetivo. O QUE, QUANDO, ONDE, PORQUE, A SEQUÊNCIA DOS PRATOS SERVIDOS, O TEMPO, O MODO DE PREPARO, QUEM PREPARA, OS ACOMPANHAMENTOS E OS COMENSAIS. ESTES SÃO ELEMENTOS QUE CONSTITUEM A RITUALIZAÇÃO À MESA E DÁ OS SIGNIFICADOS A ESSA PRÁTICA SOCIAL. (STEFANITTI et al., 2018). Os rituais religiosos, como, por exemplo, uma missa católica ou uma iniciação no candomblé, devem seguir um passo a passo minuciosamente para que na missa o indivíduo saia purificado, ou iniciado no candomblé. O mesmo ocorre à mesa. Para que o comensal esteja ao final da refeição bem alimentado e feliz, os gestos, a sequência dos pratos, sua combinação, devem ser colocados nos seus devidos lugares. Como falamos acima sobre a comida como linguagem, a frase e o texto serão incompreensíveis se as letras e palavras não estiverem no lugar certo. Fonte: Joa Souza/Shutterstock 15 de janeiro de 2015: Baianas lavam as escadas da Igreja do Bonfim, durante tradicional festa para católicos e candomblecistas. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. LEIO O TRECHO DA MÚSICA DE GONZAGUINHA O PRETO QUE SATISFAZ (FEIJÃO MARAVILHA) DEZ ENTRE DEZ BRASILEIROS PREFEREM FEIJÃO ESSE SABOR BEM BRASIL VERDADEIRO FATOR DE UNIÃO DA FAMÍLIA ESSE SABOR DE AVENTURA O FAMOSO PRETÃO MARAVILHA FAZ MAIS FELIZ A MAMÃE, O PAPAI O FILHINHO E A FILHA. ESTA ESTROFE FAZ ALUSÃO A QUAIS CONCEITOS RESPECTIVAMENTE? A) Comensalidade e modos à mesa B) Comensalidade e identidade cultural C) Identidade cultural e modos à mesa D) Identidade cultural e comensalidade 2. COMEM MUITO E COM GRANDE AVIDEZ E, APESAR DE EMBEBIDOS EM SUA TAREFA, AINDA ACHAM TEMPO PARA FAZER GRANDE BULHA. A ALTURA DA MESA FAZ COM QUE O PRATO CHEGUE AO NÍVEL DO QUEIXO; CADA QUAL ESPALHA SEUS COTOVELOS AO REDOR E, COLOCANDO O PULSO JUNTO À BEIRADA DO PRATO, FAZ COM QUE, POR MEIO DE UM MOVIMENTO HÁBIL, O CONTEÚDO TODO SE DESPEJE NA BOCA. POR OUTROS MOTIVOS ALÉM DESTE, NÃO HÁ GRANDE LIMPEZA NEM BOAS MANEIRAS, DURANTE A REFEIÇÃO; OS PRATOS NÃO SÃO TROCADOS, SENDO ENTREGUES AO COPEIRO SEGURANDO- SE O GARFO E A FACA EM UMA MESMA MÃO; POR OUTRO LADO, OS DEDOS SÃO USADOS COM TANTA FREQUÊNCIA COMO O PRÓPRIO GARFO. EXTRAÍDO DE LUCCOCK, J. AS REFEIÇÕES NO RIO DE JANEIRO, PRINCÍPIO DO SÉCULO XIX. IN CÂMARA CASCUDO, L. ANTOLOGIA DA ALIMENTAÇÃO NO BRASIL. RIO DE JANEIRO: LIVROS TÉCNICO E CIENTÍFICOS, 1977. O TRECHO CIMA REFERE-SE:A) À relação entre gênero e alimentação B) Aos modos à mesa C) À construção social do gosto D) Às comidas afetivas GABARITO 1. Leio o trecho da música de Gonzaguinha O Preto que Satisfaz (Feijão Maravilha) Dez entre dez brasileiros preferem feijão Esse sabor bem Brasil Verdadeiro fator de união da família Esse sabor de aventura O famoso Pretão Maravilha Faz mais feliz a mamãe, o papai O filhinho e a filha. Esta estrofe faz alusão a quais conceitos respectivamente? A alternativa "D " está correta. Os dois primeiros versos falam sobre a preferência dos brasileiros em relação ao feijão e como ele é “um sabor bem Brasil”, o que faz referência à importância do feijão na construção da identidade cultural do brasileiro. Já a terceira estrofe fala sobre a união da família ao comerem juntos o feijão, logo refere-se à comensalidade. 2. Comem muito e com grande avidez e, apesar de embebidos em sua tarefa, ainda acham tempo para fazer grande bulha. A altura da mesa faz com que o prato chegue ao nível do queixo; cada qual espalha seus cotovelos ao redor e, colocando o pulso junto à beirada do prato, faz com que, por meio de um movimento hábil, o conteúdo todo se despeje na boca. Por outros motivos além deste, não há grande limpeza nem boas maneiras, durante a refeição; os pratos não são trocados, sendo entregues ao copeiro segurando-se o garfo e a faca em uma mesma mão; por outro lado, os dedos são usados com tanta frequência como o próprio garfo. Extraído de LUCCOCK, J. As refeições no Rio de Janeiro, princípio do século XIX. In CÂMARA CASCUDO, L. Antologia da Alimentação no Brasil. Rio de Janeiro: Livros Técnico e Científicos, 1977. O trecho cima refere-se: A alternativa "B " está correta. O cronista está claramente falando da forma como os brasileiros se comportam à mesa. MÓDULO 3 Reconhecer os significados simbólicos nas práticas de alimentação COMIDA AFETIVA E MEMÓRIA GUSTATIVA OS SENTIMENTOS ATRELADOS AO ALIMENTO O que são as comidas afetivas? De acordo com Garcia (1997), sabemos que a comida, por ter como ponto de partida o universo doméstico de cada um, tem significados afetivos. Mesmo os mais desgarrados têm lembranças relacionadas a momentos de refeições em família e/ou de pratos para ocasiões especiais ou para o almoço de domingo que eram feitos por uma tia ou uma avó. A história pessoal ilustra bem a questão das comidas afetivas e da memória gustativa. Esta memória é aquela que surge muitas vezes involuntariamente quando sentimos um gosto ou um cheiro que nos remete ao passado (CORÇÃO, s.d.). Por um instante, aquela sensação nos faz voltar a um momento familiar e promove uma verdadeira viagem no tempo. Viagem para o acolhimento que proporciona uma refeição em família ou o carinho doce gostoso que foi feito só para agradar. Fonte: Formatoriginal/Shutterstock Na atualidade, podemos nos perguntar que memórias serão guardadas das comidas afetivas no futuro e quem vai saber fazer as receitas de família. Com a correria do dia a dia, a mãe ou a avó não têm mais tempo para cozinhar para a família. Então, elas lançam mão de todo os aparelhos eletrônicos, de comidas prontas e semiprontas, comidas delivery e tudo que possa facilitar suas vidas e alimentar as famílias. Ora, sabemos que, em um país como o Brasil que tem uma desigualdade enorme, muitas mulheres passam seu tempo de folga cozinhando o trivial para a família se alimentar quando ela está ausente. Nestes casos, aquela receita especial da família será talvez perdida. Se considerarmos que as tradições culinárias de um povo são fundamentais para a sua identidade cultural, esse saber fazer torna-se um patrimônio imaterial daquela sociedade. Já temos desde o ano de 2000 um livro de Registro de Patrimônios Imateriais do IPHAN, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Até então, somente se podia tombar patrimônios culturais materiais (Id.) O modo tradicional de fazer o acarajé baiano foi o primeiro inscrito neste livro em 2005. O esforço para cozinhar e transmitir receitas para os seus descendentes é uma maneira de preservar as tradições e a identidade cultural não somente de uma família, mas de um povo. Fiquem atentos às receitas da família e, se puderem, façam um livro de receitas. Um membro da família que vem a falecer sem ter transmitido esses saberes é como um livro de receitas afetivas que se queima. ATENÇÃO Por outro lado, essa perda de receitas vem se juntar a uma outra teoria sobre a alimentação contemporânea, a homogeneização do gosto (Id.). Esta teoria diz que, em um contexto de alto consumo de produtos industrializados e comidas prontas, há uma tendência à pasteurização ou à homogeneização do gosto. Todas as salsichas de uma lata têm o mesmo gosto, assim como todos os iogurtes daquele sabor e marca e todos os biscoitos de um pacote. As lasanhas e pizzas prontas, as latas de feijoada, igualmente. Esta realidade não se aplica ao caso brasileiro. Mesmo se há um aumento no consumo de produtos industrializados, ainda temos o hábito de comprar os ingredientes e fazer a comida em casa, na medida do possível (Id.). Nós, no sentido contrário da pressão que a indústria e suas publicidades fazem, ainda temos uma gramática tradicional da refeição: arroz, feijão, alguma proteína e algum legume ou verdura. Mesmo se comemos fora, vamos buscar na maior parte das vezes um PF – prato feito – em um botequim ou uma comida mais caseira em um restaurante a quilo. A CONSTRUÇÃO DO GOSTO O gosto é algo bastante complexo. Já houve diferentes teorias sobre como ele funciona fisiologicamente. A tese do mapa de língua durou do século XIX até o século XX. Segundo ela, diferentes regiões da língua sentiam diferentes gostos, mas ela já foi desacreditada. O gosto se dá em uma interação entre as substâncias do que estamos comendo e os botões gustativos que cobrem a língua e o palato mole. Além dos sabores que já conhecemos, doce, salgado, amargo e azedo, temos o umami e o alcaçuz. Fonte: Jeanne Emmel/Shutterstock Doces de alcaçuz. O umami, um sabor definido pelos japoneses, está presente no peixe, no tomate e no queijo parmesão, mas ele não tem uma equivalência na nossa cultura alimentar, o que faz com que ele seja muito difícil de descrever (MARQUES, 2015). Já o alcaçuz é uma raiz de sabor forte com a qual se faz um doce comum na Europa, que, na verdade, é um outro nome da planta, regaliz. SAIBA MAIS No Portal Umami, há um passo a passo que ensina como reconhecer o sabor do umami. Atualmente, já se sabe que o sabor envolve o gosto, mas também os estímulos do cheiro, a percepção das formas e a sensação tátil na boca (Id.). Comemos com os olhos também. Além de ser o principal determinante das escolhas alimentares, o gosto também tem uma determinação genética. Há estudos que falam que até 40% do paladar seria geneticamente determinado. Então, sim, a couve é mais amarga para uns do que para outros, e o gosto do alho e do café também mudam (DONAHUE, 2018). ATENÇÃO O gosto vai além do dado fisiológico. Ele é culturalmente construído. Aprendemos a comer determinadas coisas, certas misturas, desde pequenos, e vamos nos habituando a elas, mas o gosto também tem um componente que é totalmente pessoal. GÊNERO E ALIMENTAÇÃO As relações entre gênero e alimentação são velhas conhecidas de todos nós. A mulher sempre foi aquela, desde a pré-história, que cuida e prepara o alimento. Entre dois e quatro milhões de anos atrás os homens teriam inventado a divisão sexual do trabalho. Enquanto os homens caçavam, as mulheres coletavam, cozinhavam e cuidavam das crianças (CARNEIRO, 2003). Mesmo se muita coisa mudou desde então, as mulheres continuam sendo as detentoras dos saberes sobre as práticas culinárias. Já falamos sobre as receitas, um patrimônio imaterial, e como são transmitidas sobretudo entre mulheres. Durante muito tempo, a cozinha foi considerada, e continua sendo atualmente, um território feminino. As
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