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1 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Reumatologia ESCLEROSE SISTÊMICA Definição: A esclerose sistêmica, também denominada esclerodermia sistêmica, é uma doença inflamatória autoimune crônica do tecido conjuntivo, de acometimento multissistêmico, caracterizada por alterações estruturais e funcionais de vasos sanguíneos de pequeno e médio calibre, com isquemia progressiva que resulta em fibrose cutânea e visceral. Epidemiologia: A esclerose sistêmica é uma doença rara de causa desconhecida. A doença apresenta incidência de 30-45 casos a cada 100.000 habitantes por ano, sendo mais frequente em adultos entre 30 e 50 anos de idade. A esclerose sistêmica é mais comum em mulheres (4-5:1), entretanto, em homens, a doença apresenta curso clínico mais agressivo. Fisiopatologia: A fisiopatologia da esclerose sistêmica é complexa, resultando da interação entre fatores genéticos/hereditários, imunológicos e ambientais. Quantos aos fatores genéticos/hereditários, há várias alterações genéticas associadas à predisposição aumentada ao desenvolvimento da doença. Quanto aos fatores imunológicos, há vários autoanticorpos associados ao desenvolvimento da doença, principalmente anti-topoisomerase I e anti-centrômero, que, entretanto, têm papel ainda desconhecido na fisiopatologia da doença. A esclerose sistêmica caracteriza-se por ativação anormal do sistema imunológico por estímulo desconhecido, com ativação de linfócitos B e linfócitos T autorreativos, liberação de citocinas e quimiocinas e consequente recrutamento e ativação de células inflamatórias, como macrófagos. As células inflamatórias ativadas, assim como o endotélio e as plaquetas ativadas, secretam fatores de crescimento que recrutam e ativam fibroblastos, resultando em deposição excessiva de colágeno em pele e outros tecidos. Quanto às alterações estruturais e funcionais de vasos sanguíneos, há aumento da produção de agentes vasoconstritores (endotelina-1 e tromboxano A2), diminuição da produção de agentes vasodilatadores (óxido nítrico e prostaciclina) e ativação e agregação plaquetária, resultando em vasoconstrição persistente dos vasos sanguíneos. A vasoconstrição causa hipoperfusão e isquemia tecidual, o que resulta em fibrose. Portanto, a fibrose cutânea e visceral associada à esclerose sistêmica resulta de ativação anormal do sistema imunológico, com inflamação e aumento da deposição tecidual de colágeno, e de alteração vascular caracterizada por vasoconstrição, com isquemia e lesão tecidual crônica. Quanto aos fatores ambientais que podem atuar como desencadeantes da doença, ativando o sistema imunológico e resultando em fibrose tecidual, acredita-se que solventes orgânicos, sílica, metais e algumas drogas possam estar envolvidos. Diagnóstico: O diagnóstico de esclerose sistêmica baseia- se em pontuação ≥ 9 segundo os critérios diagnósticos do American College of Rheumatology/European League Against Rheumatism (ACR/EULAR). Diagnóstico de Esclerose Sistêmica (ACR/EULAR) Critério Pontuação Espessamento cutâneo dos dedos de ambas as mãos, estendendo-se até a região proximal das articulações metacarpofalangianas 9 pontos Espessamento cutâneo dos dedos → dedos edemaciados 2 pontos Espessamento cutâneo dos dedos → esclerodactilia 4 pontos Lesões das pontas dos dedos → úlceras digitais 2 pontos Lesões das pontas dos dedos → cicatrizes (pitting scars) 3 pontos Telangiectasias 2 pontos Alterações de capilares sanguíneos subungueais 2 pontos Hipertensão arterial pulmonar 2 pontos 2 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 Doença pulmonar intersticial 2 pontos Fenômeno de Raynaud 3 pontos Autoanticorpos positivos: → Anti-topoisomerase I → Anti-centrômero → Anti-RNA polimerase III Máximo 3 pontos Classificação: A esclerose sistêmica ou esclerodermia sistêmica classifica-se em: - Limitada: caracteriza-se por acometimento cutâneo limitado a cabeça, pescoço e extremidades distais de membros superiores e inferiores (até o cotovelo e até o joelho, respectivamente); apresenta curso clínico lento; presença de hipertensão arterial pulmonar; associação à síndrome CREST (calcinose, fenômeno de Raynaud, dismotilidade esofágica, esclerodactilia e telangiectasia); acometimento visceral tardio; presença do anticorpo anti- centrômero positivo. - Difusa: caracteriza-se por acometimento cutâneo difuso; apresenta curso clínico acelerado/rápido; acometimento visceral precoce; presença dos anticorpos anti- topoisomerase I e anti-RNA polimerase III positivos. Manifestações Clínicas: A esclerose sistêmica é uma doença multissistêmica crônica. As manifestações clínicas iniciais da doença são inespecíficas e incluem fenômeno de Raynaud, fadiga e sintomas musculoesqueléticos, que podem permanecer por semanas a meses antes do aparecimento de outras manifestações clínicas. O primeiro achado clínico que sugere o diagnóstico de esclerose sistêmica na pele é o edema de quirodáctilos ou de toda a mão. Fenômeno de Raynaud: O fenômeno de Raynaud é definido como o vasoespasmo reversível de artérias digitais das mãos e dos pés. O fenômeno é classicamente dividido em 3 fases: - Palidez (vasoespasmo). - Cianose (hipóxia). - Rubor (hiperemia reativa). O fenômeno de Raynaud classifica-se em primário e secundário. O fenômeno de Raynaud primário acomete pessoas saudáveis, principalmente mulheres jovens, podendo haver história familiar positiva. O fenômeno geralmente acomete as mãos e é simétrico. O diagnóstico de fenômeno de Raynaud primário baseia-se em exclusão de todas as possíveis causas de fenômeno de Raynaud secundário, tais como doenças vasculares, uso de drogas vasoconstritoras, tabagismo e doenças inflamatórias do tecido conjuntivo, principalmente esclerose sistêmica, LES, artrite reumatoide, Síndrome de Sjögren e doença mista do tecido conjuntivo, por meio de anamnese e exame físico, dosagem de provas de atividade inflamatória (PCR e VHS), que devem estar normais, dosagem de autoanticorpos (FAN e FR), que devem ser negativos, e capilaroscopia, que deve estar normal. O fenômeno de Raynaud secundário pode ser causado por doenças autoimunes reumatológicas, como esclerose sistêmica, LES, artrite reumatoide, Síndrome de Sjögren, doença mista do tecido conjuntivo, dermatomiosite e polimiosite, doenças vasculares, como aterosclerose, embolia ou obstrução vascular e vasculites, hipotireoidismo, síndrome paraneoplásica, crioglobulinemia, uso de drogas vasoconstritoras, como descongestionantes nasais, tabagismo, exposição ao frio e estresse emocional. Na esclerose sistêmica, o fenômeno de Raynaud (presente em aproximadamente 90% dos pacientes) geralmente apresenta- se com lesões isquêmicas crônicas dos dedos, alterações estruturais cutâneas e alterações estruturais vasculares. Os principais achados clínicos associados ao fenômeno de Raynaud na esclerose sistêmica são úlceras/ulcerações digitais associadas à isquemia/má perfusão denominadas pitting scars e reabsorção das falanges distais dos dedos. Na 3 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 capilaroscopia, observa-se lesões e dilatações de capilares sanguíneos ou ausência de capilares sanguíneos. Manifestações Cutâneas: - Espessamento da pele proximal às articulações metacarpofalangianas e metatarsofalangianas. - Esclerodactilia: espessamento cutâneo restrito aos dedos, podendo resultar em contratura em flexão das articulações interfalangianas proximais e interfalangianas distais. - Telangiectasias. - Edema das mãos, dos pés e/ou dos dedos. - Lesões em “sal e pimenta”. - Calcinose: acúmulo de cálcio no tecido celular subcutâneo da pele (hipoderme), principalmente em cotovelos e joelhos, podendo causar desconforto ou dor, além de úlceras e aumento do risco de infecções cutâneas. - Úlceras/ulcerações digitais associadas à isquemia/má perfusão(pitting scars) e reabsorção das falanges distais dos dedos. O processo de esclerose da pele associado à esclerose sistêmica é dividido em 3 fases: - Fase edematosa: caracteriza-se por edema das mãos, dos pés e/ou dos dedos, podendo estar associado a prurido. - Fase fibrótica: caracteriza-se por espessamento e perda de elasticidade da pele, que iniciam-se distalmente e evoluem proximalmente, podendo estar associados à limitação de movimentos e à contratura em flexão das articulações; além disso, devido à tração da pele pouco elástica, há isquemias e traumas, além do aparecimento de úlceras de tração. 4 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Fase atrófica: caracteriza-se por pele de aparência mais fina, que se desprende dos planos profundos, sugerindo aparente melhora do quadro; na face, observa-se estiramento da pele, com perda de rugas, afinamento dos lábios, afinamento do nariz e microstomia, dificultando a realização de procedimentos odontológicos e de intubação orotraqueal. Manifestações Pulmonares: As manifestações clínicas pulmonares representam a principal causa de mortalidade em pacientes com esclerose sistêmica. As principais manifestações são a doença pulmonar intersticial, mais comum em pacientes com esclerose sistêmica difusa, e a hipertensão pulmonar, mais comum em pacientes com esclerose sistêmica limitada. A doença pulmonar intersticial associada à esclerose sistêmica acomete aproximadamente 60-90% dos pacientes e inicialmente é assintomática. Inicialmente, a esclerose sistêmica causa alveolite que, ao longo dos anos, evolui para fibrose pulmonar intersticial. Os principais achados clínicos são dispneia e tosse seca e são tardios. Os principais achados em exames de imagem (TC de tórax de alta resolução) são presença de faveolamento e de opacidades em “vidro fosco”, que são bilaterais e predominam em bases pulmonares. A espirometria indica distúrbio ventilatório restritivo, com redução da capacidade vital forçada (CVF), dos volumes pulmonares e da capacidade de difusão do monóxido de carbono. A hipertensão pulmonar associada à esclerose sistêmica acomete aproximadamente 5-50% dos pacientes e inicialmente é assintomática. O diagnóstico definitivo baseia-se em presença de pressão arterial sistólica da artéria pulmonar ≥ 25 mmHg em cateterismo de câmaras cardíacas direitas. A hipertensão pulmonar pode causar insuficiência cardíaca direita (cor pulmonale), que está associada à alta morbimortalidade. Manifestações Cardíacas: As principais manifestações cardíacas associadas à esclerose sistêmica são pericardite, derrame pericárdico, miocardite, arritmias cardíacas e insuficiência cardíaca. O derrame pericárdico assintomático acomete 30-40% dos pacientes com esclerose sistêmica. Manifestações Gastrointestinais: O trato gastrointestinal representa o segundo sistema mais acometido na esclerose sistêmica após a pele. Na doença, o acometimento neurológico do plexo mioentérico causa atrofia e fibrose da musculatura lisa do trato gastrointestinal, resultando em dismotilidade gastrointestinal. O acometimento do esôfago, presente em aproximadamente 90% dos pacientes, caracteriza-se por lesão principalmente dos 2/3 distais do órgão e cursa com aperistalse ou hipoperistalse, disfagia, doença do refluxo gastroesofágico (DRGE), esofagite, esôfago de Barret e dilatação esofágica. O acometimento do estômago cursa com pirose, gastroparesia, saciedade precoce, náuseas e vômitos. Além de esôfago e estômago, a dismotilidade gastrointestinal associada à esclerose sistêmica também pode acometer 5 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 intestino delgado, causando constipação intestinal, distensão abdominal, supercrescimento bacteriano, diarreia e síndrome de má absorção intestinal, e intestino grosso, causando constipação intestinal, distensão abdominal e incontinência fecal. Os principais exames utilizados para avaliar a dismotilidade gastrointestinal associada à esclerose sistêmica são radiografia com contraste de esôfago-estômago-duodeno (EED), pH- metria e endoscopia digestiva alta (EDA). Manifestações Musculoesqueléticas: As principais manifestações clínicas musculoesqueléticas associadas à esclerose sistêmica são artralgias, mialgias, contraturas articulares em flexão devido ao espessamento cutâneo, tendinite associada a crepitações tendíneas, artrite simétrica e não erosiva de mãos e punhos, miosite e osteólise ou reabsorção óssea das falanges distais dos quirodáctilos devido à isquemia crônica dos dedos. Manifestações Renais: A principal manifestação renal associada à esclerose sistêmica é a crise renal esclerodérmica, caracterizada por HAS grave de início abrupto associada à perda de função renal, hematúria microscópica e proteinúria. Além disso, também pode haver anemia hemolítica e plaquetopenia. Os principais fatores de risco para o desenvolvimento de crise renal esclerodérmica são esclerose sistêmica difusa, doença precoce (primeiros 5 anos de doença), uso de altas doses de corticoides e presença de anticorpo anti-RNA polimerase III positivo. Antigamente, a crise renal esclerodérmica representava a manifestação clínica de esclerose sistêmica associada à maior mortalidade. Entretanto, após a introdução dos IECA, que devem ser rapidamente iniciados após o diagnóstico de HAS em pacientes com esclerose sistêmica, houve importante redução da morbimortalidade associada a essa complicação. Achados Laboratoriais: Os principais achados laboratoriais associados à esclerose sistêmica são: - Anemia normocítica e normocrômica (anemia da doença crônica). - Aumento de marcadores de atividade inflamatória (PCR e VHS), principalmente na esclerose sistêmica difusa. - FAN positivo em aproximadamente 95% dos casos, apresentando alta sensibilidade, mas baixa especificidade para o diagnóstico de esclerose sistêmica. - Anticorpo anti-topoisomerase I positivo em aproximadamente 20-40% dos casos, apresentando alta especificidade para o diagnóstico de esclerose sistêmica. Associa- se à esclerose sistêmica difusa e é marcador de mau prognóstico. - Anticorpo anti-centrômero positivo em aproximadamente 20-40% dos casos. Associa-se à esclerose sistêmica limitada, à síndrome CREST, às úlceras digitais e a aumento do risco de calcinose e telangiectasias. - Anticorpo anti-RNA polimerase III positivo em alguns casos, apresentando baixa sensibilidade e alta especificidade para o diagnóstico de esclerose sistêmica. Associa- se à esclerose sistêmica difusa e a aumento do risco de crise renal esclerodérmica. Prognóstico: O prognóstico da esclerose sistêmica está diretamente associado à extensão do acometimento cutâneo e visceral da doença. A sobrevida da esclerose sistêmica é de 60- 70% em 5 anos e de 40-50% em 10 anos. Os principais fatores associados a pior prognóstico da doença são: - Sexo masculino. - Raça negra. 6 Bruno Herberts Sehnem – ATM 2023/2 - Acometimento cutâneo difuso. - Acometimento visceral (doença pulmonar intersticial, hipertensão pulmonar, miocardite, pericardite e crise renal esclerodérmica). As manifestações clínicas viscerais graves da esclerose sistêmica geralmente aparecem nos primeiros 5 anos de doença. Tratamento: O tratamento da esclerose sistêmica deve ser individualizado, de acordo com as manifestações clínicas de cada paciente. Não há tratamento específico para a doença. Assim, recomenda-se o manejo terapêutico individualizado das manifestações clínicas associadas ao acometimento de cada sistema. Nos casos graves, em que há acometimento cutâneo difuso, doença pulmonar intersticial, miocardite, pericardite e artrite e/ou miosite graves, indica-se tratamento com imunossupressão. Manifestações Cutâneas: - Tratamento de primeira escolha: metotrexato ou micofenolato de mofetila. - Tratamento de segunda escolha: ciclofosfamida (indicada principalmentequando há acometimento visceral associado ao acometimento cutâneo). - Tratamento de terceira escolha: imunoglobulina humana ou rituximabe. - Tratamento do prurido: anti-histamínicos. - Tratamento da calcinose: metotrexato. Fenômeno de Raynaud: - Tratamento não farmacológico: manter membros superiores e inferiores sempre aquecidos (uso de luvas e meias), evitar exposição ao frio, cessação do tabagismo e evitar drogas simpaticomiméticas (ex. descongestionantes nasais). - Tratamento farmacológico: bloqueadores de canais de cálcio, como anlodipino e nifedipino; as principais alternativas são sildenafil, IECA, BRA, fluoxetina ou nitrato tópico. Manifestações Pulmonares: - Tratamento da doença pulmonar intersticial: ciclofosfamida ou micofenolato de mofetila. - Tratamento da hipertensão arterial pulmonar: sildenafil, bosentana, etc. Manifestações Cardíacas: - Tratamento de miocardite, pericardite e derrame pericárdico: AINES, corticoide sistêmico em baixas doses e imunossupressor (ex. metotrexato). Manifestações Renais: - Tratamento da crise renal esclerodérmica: IECA. Manifestações Gastrointestinais: - Tratamento da DRGE: mudanças de estilo de vida (ex. dieta), inibidores da bomba de prótons (IBP), anti-histamínicos H2 (ex. ranitidina) e, às vezes, procinéticos (ex. bromoprida, domperidona, metoclopramida). - Tratamento do supercrescimento bacteriano associado à dismotilidade de intestino delgado: antibioticoterapia rotativa, com ciprofloxacino, doxiciclina e metronidazol por 10 dias, com intervalo de 15 dias, em esquema de rodízio. Manifestações Musculoesqueléticas: - Tratamento de artralgia, mialgia e artrite: AINES. - Tratamento de artrite e miosite: corticoide sistêmico (ex. prednisona) e metotrexato.
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