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92 Unidade II Unidade II 5 DIETOTERAPIA NAS DOENÇAS HEPÁTICAS (HEPATITE, ESTEATOSE, ESTEATO‑HEPATITE, CIRROSE, ENCEFALOPATIA HEPÁTICA E TRANSPLANTE) O fígado tem funções importantes no nosso organismo e é o principal órgão metabólico devido às suas múltiplas funções. Regula o metabolismo de vários nutrientes (carboidratos, proteínas e lipídios), controla a homeostase da glicose pela regulação da síntese de glicogênio, glicogenólise e gliconeogênese, síntese de ureia, metabolismo do colesterol, armazenamento de ferro, vitaminas lipossolúveis e B12 e síntese de proteínas plasmáticas, atuando no metabolismo de alguns polipeptídios hormonais e na detoxificação de diversas drogas e xenobióticos (STORCK; IMOBERDORF; BALLMER, 2019). As doenças hepáticas crônicas (DHC) prejudicam o funcionamento hepático, ocasionando prejuízo ao metabolismo e armazenamento de nutrientes, que levam ao comprometimento nutricional desses pacientes. A progressão da DHC impacta o estado nutricional por estar relacionada à diminuição do consumo energético e proteico, afetado pelas restrições alimentares e dietas de baixa palatabilidade, que interfere diretamente no consumo alimentar. A presença de doenças crônicas do fígado pode reduzir o apetite e, assim, influenciar a ingestão de nutrientes (PURNAK; YILMAZ, 2013). As doenças hepáticas podem apresentar diferentes formas de evolução, variando desde doença aguda à cirrose hepática em suas formas mais graves. As doenças hepáticas crônicas compreendem hepatite, cirrose e insuficiência hepática. 5.1 Doença hepática alcoólica A doença hepática alcoólica (DHA) é uma das principais causas de doença hepática crônica em todo o mundo. Quanto maior a quantidade e o tempo de consumo, maior o risco para desenvolver lesão hepatocelular. A esteatose é a primeira e a mais frequente das lesões hepáticas, induzidas pelo etanol, podendo ser a única ou estar associada com outras lesões, como hepatite alcoólica e cirrose. A hepatite alcoólica comumente só se desenvolve em pacientes que consomem pelo menos 80 g de álcool etílico ao dia durante cinco anos; já a cirrose hepática, 80 g de álcool etílico ao dia durante dez anos. A cirrose hepática é a fase da DHA considerada irreversível (SINGAL et al., 2018). Observe a seguir os fatores de risco para doença hepática alcoólica: • quantidade diária de álcool ingerida; • duração (tempo) da ingestão; • ingestão de bebidas alcoólicas sem alimentação; • sexo feminino; 93 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA • ingestão de bebidas com alta concentração de etanol; • fatores genéticos; • substâncias hepatotóxicas em bebidas alcoólicas; • outras condições patológicas (obesidade). 5.1.1 Fisiopatologia da DHA A cirrose hepática é a forma mais grave do dano hepático por abuso de álcool. A figura a seguir mostra o mecanismo fisiopatológico da doença hepática alcoólica provocada pelo abuso do álcool. Citosol ADH AIDH acetaldeído REL CYP2E1 hidroxietil radical Ácidos graxos insaturados Alteração da barreira intestinal Lesão mitocondrial Sensibilização do hepatócito a outras agressões ↑ Volume do hepatócito Esteatose Corpos de Mallory Necrose e inflamação Apoptose Fibrose Tubulina Citoqueratinas Ligações transversais Acúmulo de proteínas ↓ Inibidores do complemento Ativação do complemento Acúmulo de triglicerídeos Precipitação no citosol ↓ Transporte de vesículas Neoantígenos Autoagressão Células de Kuppfer TNFa IL‑1 TGFb quimiocinas Células estreladas Etanol Radicais livres Malodialdeído 4‑hidroxinonenal Proteínas adicionadas com metabólicos Endotoxemia Aciletanol ésteres Figura 18 – Principais mecanismos de agressão do fígado pelo etanol Fonte: SBH (2010, p. 5). 94 Unidade II Saiba mais Para entender mais sobre a fisiopatologia da doença hepática alcóolica, consulte a referência a seguir: SOCIEDADE BRASILEIRA DE HEPATOLOGIA (SBH). Hepatologia alcoólica: patogênese e tratamento. São Paulo: Atha Comunicação e Editora, 2010. p. 5. Disponível em: https://bit.ly/3j7tMCR. Acesso em: 19 ago. 2021. Fibrose Fígado normal Esteatose Esteatohepatite Carcinoma hepatocelular Cirrose Figura 19 O consumo de etanol produz lesões hepáticas. Fígado gorduroso (ou seja, esteatose) é a primeira lesão hepática. Com o consumo de álcool diário e prolongado, a doença hepática alcoólica pode levar à inflamação do fígado (ou seja, esteatohepatite), fibrose, cirrose e até mesmo câncer de fígado (ou seja, carcinoma hepatocelular) (OSNA et al., 2017, p. 150). • Quantidade de álcool em uma dose padrão: 14 g de álcool puro. • 45 ml de destilado (vodca, gim, cachaça, tequila, rum): 40% de álcool. • 150 ml de vinho: 12% de álcool. • 350 ml de cerveja: 5% de álcool. 95 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA 5.1.2 Dietoterapia Tratar a síndrome de abstinência do álcool é essencial e requer administração de fluidos, calorias, vitaminas e minerais. No que se refere ao suporte nutricional, a maioria dos pacientes são desnutridos, e a gravidade da doença frequentemente se correlaciona com o grau de desnutrição. A maioria das complicações estão associadas à desnutrição proteica calórica, assim, o suporte nutricional é uma etapa crucial no tratamento. Vitaminas (como folato, vitamina B6, vitamina B12, vitamina A e minerais, como selênio, zinco, cobre e magnésio) estão alterados na DHA, e essas alterações desempenham papel importante no início e na progressão da lesão hepática. Os níveis de zinco são reduzidos nesses pacientes e sua suplementação é eficiente para a melhora do quadro (OSNA et al., 2017). A Associação Americana para o Estudo de Doenças Hepáticas e o American College of Gastroenterology (Colégio Americano de Gastroenterologia) recomendam as seguintes diretrizes: 1,2 a 1,5 g/kg por dia de proteína e 35 a 40 kcal/kg por dia de peso corporal para ingestão de energia (PLAUTH et al., 2006). O álcool induz mudança na microflora intestinal, levando à disbiose. Igualmente importante na progressão da doença hepática é o aumento da permeabilidade intestinal induzida por álcool, que permite os antígenos luminais intestinais, incluindo endotoxina/LPS (lipopolissacarídeo), um componente da parede celular das bactérias gram‑negativas, atingir o fígado e promover a síntese e secreção de vários processos inflamatórios. Vários estudos propõem uso de probióticos na restauração da flora intestinal com DHA. Em um estudo realizado e pacientes com DHA, foi demonstrado que o uso de probióticos (Bifidobacterium ou Lactobacillus) por 4 semanas aumentou e normalizou a capacidade fagocítica dos neutrófilos e auxiliou a reduzir a elevação induzida por endotoxinas nos níveis de citocina, reduzindo a infecção (SARIN; PANDE; SCHNABL, 2019). Assim, os probióticos podem ser uma opção terapêutica para pacientes com DHA. Alterações em ácidos biliares Inflamação intestinal Alterações metabólicas microbianas Translocação de bactérias viáveis Translocação de patógenos associada a padrões moleculares Disbiose Figura 20 5.2 Doença hepática gordurosa A esteatose hepática é definida como o acúmulo excessivo de gordura nos hepatócitos (células do fígado). É a doença de fígado mais comum, e sua prevalência é estimada em 20‑30% da população geral de países ocidentais. Existem duas principais condições associadas à esteatose hepática: doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) e doença hepática gordurosa alcoólica (DHGA). As causas 96 Unidade II podem ser metabólicas, nutricionais, medicamentosas (quimioterapia e esteroides) e vírus da hepatite C. O curso natural da esteatose hepática varia de acordo com a etiologia e condições associadas, tais como inflamação e fibrose, que têm potencial para progredir para cirrose e insuficiência hepática. Portanto, é importante diagnosticar e quantificar a esteatose hepática (IDILMAN; OZDENIZ; KARCAALTINCABA, 2016). 5.2.1 Doença hepática gordurosa não alcoólica Para definir a DHGNA, deve haver evidências de esteatose hepática por imagemou histologia. Também é preciso constatar e falta de causas secundárias de acúmulo de gordura hepática, como consumo significativo de álcool a longo prazo, o uso de medicação esteatogênica ou monogênica e doenças hereditárias. Na maioria dos pacientes, a DHGNA está comumente associada a doenças metabólicas comorbidades, como obesidade, diabetes melito e dislipidemia. O estresse oxidativo e subsequente peroxidação lipídica, citocinas pró‑inflamatórias, adipocinas e disfunção mitocondrial também estão associados no desenvolvimento e na progressão da DHGNA. Histologicamente, a DHGNA pode ser categorizada em esteatohepatite não alcoólica (NASH). A NASH é caracterizada por infiltração gordurosa difusa no fígado e inflamação dos hepatócitos. As causas e os mecanismos são multifatoriais e complexos (CHALASANI et al., 2018). Tecido adiposo magro Tecido adiposo obeso Infiltração de macrófogos tipo M1 ↓ Gasto energético ↑ Ingestão alimentar ↑ Produção de glicose hepática ↓ Captação de glicose ↓ Oxidação de AGL ↑ Glicogenólise ↑ Gliconeogênese ↑ Glicemia Músculo Fígado Inflamação Macrófogos tipo M2 M2 M2 M1 M1 M1 M1 M1 M1 Liberação alterada de adipocinas Resistência insulínica sistêmica ↓ Adiponectina ↑ AGL ↑ RBP4 ↑ Leptina ↑ TNF‑alfa ↓ IL‑10 ↑ Resistina ↑ IL‑6 Excesso alimentar Inflamação Acúmulo ectópico de lipídeos Resistência à insulina Inflamação Acúmulo ectópico de lipídeos Resistência à insulina Figura 21 Fonte: Silva et al. (2015, p. 111). 97 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA 5.2.2 Prevalência da esteatose hepática não alcoólica Tem sido demonstrado que a NASH está fortemente associada com as características da síndrome metabólica. Os fatores de risco da síndrome metabólica, como obesidade abdominal, dislipidemia aterogênica, hipertensão arterial, glicose plasmática elevada, um estado pró‑trombótico e um estado pró‑inflamatório também aumentam o risco de desenvolver NASH (YOUNOSSI et al., 2016). Quadro 11 – Mecanismos fisiopatológicos da esteatose hepática não alcoólica Obesidade Aumento da captação hepática de ácidos graxos livres associada à resistência à insulina e à hiperinsulinemia Aumento da expressão de TNF‑alfa (fator de necrose tumoral) nos adipócitos Diabetes melito tipo 2 e resistência à insulina Aumento da captação hepática de ácidos graxos livres associada à resistência à insulina e à hiperinsulinemia Dismotilidade intestinal associada ao supercrescimento bacteriano Aumento da expressão de TNF‑alfa (fator de necrose tumoral) induzindo estresse oxidativo Hiperlipidemia Aumento da capacitação hepática de ácidos graxos livres Cirurgia para obesidade Esteatose pré‑existente Causas de rápida perda de peso (ressecções intestinais) Desnutrição e deficiência de micronutrientes e de proteína Redução da glutationa peroxidase Nutrição parenteral prolongada Deficiências de micronutrientes Sobrecarga de glicose Uso de drogas, principalmente corticosteroides, perexilina e amiodarona Dano mitocondrial Fonte: Cuppari (2014, p. 421). 5.2.3 Dietoterapia para esteatose hepática As abordagens terapêuticas devem focar na mudança do estilo de vida e no controle dos fatores de risco (obesidade, diabetes, hiperlipidemia e medicamentos hepatotóxicos, que podem piorar a esteatose). Vários estudos confirmaram o papel de macronutrientes específicos no início e na progressão da DHGNA. No entanto, é muito difícil saber o papel de cada macronutriente separado em relação à quantidade de energia fornecida e à sua proporção na alimentação. Macronutrientes, tais como ácidos graxos saturados (SFA), gorduras trans, açúcares simples (sacarose e frutose) e proteínas animais danificam o fígado. Estes modulam o acúmulo de triglicerídeos e a atividade antioxidante no fígado, que afeta a sensibilidade à insulina e o metabolismo pós‑prandial dos triglicerídeos. Ácidos graxos monoinsaturados (Mufa), ácidos graxos poli‑insaturados (Pufa), ω3, proteínas de base vegetal e fibras dietéticas parecem ser benéficos para o fígado. A TN é recomendada por 6 meses e tem como objetivo a perda de peso gradativa de aproximadamente 7% a 10% do peso corporal com dieta hipocalórica (25 kcal/kg/dia) e atividade física aeróbica. A perda de peso deve ser gradual. A distribuição dos macronutrientes é de 65% de carboidratos (deve‑se preferir os complexos), 12% de proteína e 23% de lipídios (BERNÁ; ROMERO‑GOMEZ, 2020). 98 Unidade II A soja é um alimento funcional que contém alto teor proteico, carboidratos complexos, fibras, minerais e vitaminas do complexo B. As propriedades da soja estão associadas às isoflavonas, que podem afetar o metabolismo corporal e a homeostase energética por meio de suas interações com receptores de estrogênio e exibem atividade estrogênica. As isoflavonas de soja diminuem o depósito de gordura no fígado através da redução da adipogênese e lipogênese, modulando o metabolismo hepático de lipídios sem aumentar o risco de desenvolvimento de complicações. As isoflavonas de soja também têm propriedades antioxidantes por meio de radicais livres e promovem a atividade de enzimas antioxidantes e, assim, protegem contra os danos do estresse oxidativo. A administração de 25 g de proteína de soja nos pacientes com DHGNA pode controlar a dislipidemia, reduzir a glicemia em jejum e aumentar a tolerância à glicose (ZAREI et al., 2020). Quadro 12 – Estratégias nutricionais Estimular — Ingestão de 3 a 5 porções de frutas, verduras e legumes por dia — Nas preparações, adicionar temperos naturais como alho e cebola — Ingestão de carnes magras, aves e peixes. Preferir assados, grelhados e cozidos e carnes magras como fraldinha, alcatra, filé mignon, peixes e carne de cordeiro — Ingestão de um tipo de grão (milho, soja, ervilha, grão‑de‑bico) em uma das refeições — Consumo de oleaginosas como castanhas e nozes, brócolis, cebola, cereais integrais, peixes e frutos do mar ricos em minerais como zinco e selênio estimulam o sistema imunológico e são antioxidantes — Se a alimentação não for suficiente para controlar a esteatose, recomenda‑se o uso de suplementos como lecitina, colina, inositol e L metionina Evitar — Produtos industrializados (ricos em frutose, hipercalóricos, gorduras saturadas, glutamato monossódico, corantes e excesso de aditivos) — Utilização nas preparações de molhos industrializados, banha, manteiga e maionese — Alimentos gordurosos como queijos, carnes com gordura e frituras de imersão — Consumo alcoólico de 4 doses ou mais (40 g) pode aumentar o dano hepático — Jejum prolongado pode propiciar o acúmulo de gordura no fígado — Ovos > 4 unidades por semana — Evitar preparações que contenham ovos (bolos, biscoitos, suflês) — Doces, adição de açúcar e refrigerantes Alguns suplementos alimentares podem trazer benefícios junto com a mudança alimentar e no estilo de vida e quando a intervenção nutricional isolada não apresentar efeitos positivos. Alguns pacientes podem apresentar dificuldades em seguir as recomendações e, consequentemente, perder peso e manter a dieta por longos períodos. Ácidos graxos ômega‑3 (suplementação com EPA e DHA) modulam a composição lipídica do fígado. Assim, promovem melhora do perfil lipídico, aumentam os mediadores anti‑inflamatórios e diminuem a resistência à insulina (CASTRO et al., 2018). Os micronutrientes são importantes para o desenvolvimento da DHGNA. Os micronutrientes envolvidos são zinco, cobre, ferro, selênio, magnésio, vitaminas A, C, D e E e carotenoides. O mecanismos de ação são antioxidantes, antifibróticos, imunomoduladores e lipoprotetores. Pacientes com DHGNA demonstraram a diminuição dos níveis séricos de zinco, cobre, vitaminas A, C, D e E e carotenoides (PICKETT‑BLAKELY; YOUNG; CARR, 2018). O tratamento com vitamina E mostrou uma diminuição nos níveis de transaminase e inflamação lobular do fígado, melhora 99 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA na fibrose hepática e esteatose reduzida. A suplementação de vitamina E via oral (400 a 1200 UI) no período de 4 a 10meses melhorou as provas de função hepática quando comparada ao grupo controle (sem suplementação de vitamina E) (HOOFNAGLE et al., 2013). 5.3 Cirrose hepática A cirrose é uma forma de doença hepática crônica (DHC) resultante de lesão hepática devido a várias causas, incluindo infecção viral, doenças autoimunes, doença colestática e metabólica (DHGNA) ou uso excessivo de álcool (MUIR, 2015). A lesão hepática crônica causa inflamação e fibrose hepática. Independentemente da causa, isso pode levar à formação de septos e nódulos fibrosos, colapso das estruturas do fígado e distorção do parênquima hepático e arquitetura vascular. Subsequentemente, pode causar fibrose progressiva e cirrose na diminuição da função hepática metabólica e sintética, causando um aumento na bilirrubina e a diminuição da produção de fatores de coagulação e trombopoietina, bem como sequestro esplênico de plaquetas, aumento da pressão portal e desenvolvimento de ascite e varizes esofágicas (SMITH et al., 2019). Conforme Smith et al. (2019), a etiologia da cirrose hepática compreende os seguintes aspectos: • hepatite viral (hepatite B e hepatite C); • doença hepática alcoólica; • doença hepática gordurosa não alcoólica; • hemocromatose; • doença de Wilson; • deficiência de alfa‑1 antitripsina (DAAT); • hepatite autoimune; • colangite biliar primária; • colangite esclerosante primária; • insuficiência cardíaca congestiva; • síndrome de Budd‑Chiari; • colangite bacteriana recorrente; • estenose do ducto biliar; • medicamentos; • esquistossomose. 100 Unidade II A cirrose pode ser dividida clinicamente segundo classificação de Child‑Pugh modificada, com um sistema de escore. Esse sistema atualmente é utilizado para avaliar o prognóstico da cirrose e orienta o critério padrão para inscrição no cadastro de transplante hepático (classe B de Child‑Pulgh). É um fator preditivo de sobrevida de várias doenças hepáticas e antecipa a probabilidade de complicações importantes da cirrose, como sangramento por varizes e peritonite bacteriana espontânea. O sistema de pontuação é para cada critério com base no aumento da gravidade. 5.3.1 A gravidade da cirrose Observe a tabela a seguir, que destaca o escore de Child‑Pugh. Tabela 41 Fator 1 ponto 2 pontos 3 pontos Bilirrubina sérica μmol/l (mg/dl ) < 34 (< 2,0) 34‑51 (2,0‑3,0) > 51 (> 3,0) Albumina sérica, g/l (g/dl) > 35 (> 3,5) 30‑35 (3,0‑3,5) < 30 (< 3,0) Ascite Nenhuma Facilmente controlada Mal controlada Distúrbio neurológico Nenhum Mínimo Coma avançado Tempo de protrombina (segundos de prolongamento) INR 0‑4 <1,7 4‑6 1,7‑2,3 >6 >2,3 Nota: o escore de Child‑Pugh é calculado somando os pontos dos cinco fatores e varia de 5 a 15. A classe de Child‑Pugh é A (escore de 5 a 6), B (7 a 9) ou C (acima de 10). Em geral, a “descompensação” indica cirrose com um escore de Child‑Pugh > 7 (classe B de Child‑Pugh) e esse nível é um critério aceito para inclusão no cadastro do transplante hepático Fonte: SBH (2004, p. 3). 5.3.2 Dietoterapia, desnutrição e cirrose hepática A desnutrição afeta de 20% a 95% dos pacientes com cirrose. A prevalência e gravidade correlacionam‑se com o grau da doença hepática e os mecanismos são multifatoriais. A diminuição da ingestão alimentar é comum nos pacientes com cirrose e ocorre devido à ativação de citocinas por elevado níveis de TNF‑alfa, interleucina‑1 e interleucina‑6. A ativação de citocinas influencia a desnutrição de várias maneiras: os níveis de citocinas estão inversamente relacionados à ingestão de nutrientes; as citocinas têm o potencial de diminuir o apetite e níveis aumentados podem contribuir para o hipermetabolismo. Pacientes com cirrose geralmente têm anorexia de doença crônica e diminuição do olfato e/ou disgeusia, e esta última pode ser causada ou exacerbada por deficiências de micronutrientes, como zinco e magnésio. Náuseas e vômitos podem estar presentes devido a ascite, edema intestinal, dismotilidade gastrointestinal (GI), crescimento excessivo de bactérias no intestino delgado ou medicamentos como lactulose, que também aumenta o gás intestinal. Complicações da cirrose descompensada, como encafalopatia hepática, podem contribuir para falta de apetite, dificuldade em engolir e mastigar e falta de vontade de comer. A ascite de grande volume pode causar saciedade precoce devido à compressão extrínseca do trato gastrointestinal. Também é comum que fatores externos contribuam para problemas de ingestão oral. Pacientes com cirrose têm reservas de 101 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA glicogênio diminuídas, assim, o jejum por até 2h pode induzir um estado de fome, levando à oxidação de gordura e gliconeogênese, resultando em aumento da proteólise. Além disso, os pacientes com cirrose recebem frequentemente restrições dietéticas, podendo levar a dietas menos palatáveis. A diarreia, o supercrescimento de bactérias no intestino delgado e a má absorção de vitaminas lipossolúveis também são fatores que causam a desnutrição. A motilidade trato gastrointestinal (TGI) prejudicada pode afetar várias partes do trato TGI e afeta adversamente o estado nutricional dos pacientes. Aumento do óxido nítrico, neuropatia autonômica e alterações hormonais intestinais foram apontados como possíveis fatores contribuintes. O esvaziamento gástrico retardado e a acomodação prejudicada podem ser vistos na cirrose e podem resultar na saciedade precoce. Pacientes com cirrose também apresentam estados hipermetabólicos. O hipermetabolismo está associado à desnutrição e pode ser mediado pela ativação de citocinas e episódios intermitentes de endotoxemia, que são todos fatores que contribuem para anorexia (PALMER et al., 2019). Por outro lado, houve aumento da prevalência de obesidade em pacientes com cirrose. A obesidade não exclui a desnutrição. A combinação de perda de músculo esquelético e ganho de tecido adiposo é denominada obesidade sarcopênica e é observada em um número significativo de pacientes com cirrose. Além disso, a obesidade pós‑transplante e a síndrome metabólica são comuns, e o ganho de peso após o transplante é considerado, principalmente, devido a um aumento no tecido adiposo, com perda concomitante no músculo esquelético. Portanto, a desnutrição precisa ser estimada rotineiramente e tratada no paciente cirrótico obeso. Na prática clínica, o IMC é adequado para reconhecer a obesidade (definida como IMC igual ou superior a 30 kg/m2) em pacientes cirróticos na ausência de retenção de líquidos. No caso de retenção de fluidos, o peso corporal precisa ser corrigido avaliando‑se o peso seco do paciente, comumente estimado por peso corporal ou peso registrado antes da retenção de fluidos. O aconselhamento nutricional por equipe multidisciplinar deve ser fornecido aos pacientes cirróticos com desnutrição, auxiliando‑os a alcançar a ingestão calórica e proteica adequada. A ingestão energética diária ideal não deve ser inferior aos 35 kcal/kg/dia (em pacientes não obesos). A ingestão diária ideal de proteínas não deve ser inferior à recomendada de 1,2‑1,5 g/kg de peso corporal/dia. É necessário incluir suplementação nutricional oral na alimentação de pacientes cirróticos desnutridos descompensados. Suplementos de BCAA e de aminoácidos enriquecidos com leucina devem ser usados em pacientes cirróticos descompensados para atingir a ingestão adequada de nitrogênio. Em pacientes com desnutrição e cirrose que não conseguem atingir a ingestão alimentar adequada com a dieta oral (mesmo com suplementos orais), um período de nutrição enteral é recomendado. Pacientes com cirrose, sempre que possível, devem ser encorajados a evitar a hipomobilidade e aumentar progressivamente a atividade física. Implementar um programa nutricional e de estilo de vida para alcançar perda de peso progressiva (> 5‑10%) em pacientes cirróticos obesos (IMC > 30 kg/m2 corrigido para retenção de água). Uma dieta sob medida, moderadamente hipocalórica (500‑800 kcal/dia), incluindo ingestãoadequada de proteínas (> 1,5 g de proteínas/kg de peso corporal/dia), pode ser adotada para atingir a perda de peso sem comprometer os estoques de proteínas em pacientes cirróticos obesos (ASSOCIAÇÃO EUROPEIA PARA O ESTUDO DO FÍGADO, 2019). 102 Unidade II Quadro 13 – Recomendações de nutrientes e estratégias terapêuticas Intervenção Recomendação Mecanismo Resultados Energia e proteína da dieta Energia 35 40 kcal/dia Proteínas 1,2‑1,5 g/kg/dia Melhora o equilíbrio do nitrogênio Diminui a proteólise do músculo esquelético Melhora a massa muscular Melhora a qualidade de vida Reduz complicações das doenças relacionadas ao fígado Melhora a sobrevida Lanche da noite (ceia) ≥ 50 g de carboidratos complexos Lanche/refeição com proteína, de preferência alto AACR* Diminui a oxidação lipídica e balanço de nitrogênio Diminui a proteólise do músculo esquelético durante jejum à noite Melhora a massa muscular Melhora a qualidade de vida Melhora as funções do fígado Suplementação de AACR* 0,25 g/kg/dia de suplementação Ativa a síntese de proteína muscular através de via de sinalização mTOR Diminui a autofagia muscular Ajuda a desintoxicar a amônia Melhora a massa muscular Melhora a qualidade de vida Melhora a esteatose hepática Melhora as funções do fígado Melhora a sobrevida Suplementação com zinco 150‐200 mg de zinco elementar Melhora os sintomas de deficiência de zinco, por exemplo, paladar alterado, perda de apetite e encefalopatia Melhora o paladar Pode melhorar as funções hepáticas e o estado mental Suplemento com vitamina D Vitamina D 600‑1.000 IU/dia (de preferência com cálcio 1.000‑1.500 mg/dia) Corrigir deficiência de vitamina D em níveis < 20 ng/mL para alcançar > 30 ng/mL Previne os efeitos negativos da deficiência de vitamina D A deficiência de vitamina D está associada ao aumento da mortalidade na cirrose Reduz a perda óssea Pode melhorar a densidade mineral óssea Pode melhorar as funções musculoesqueléticas (por exemplo, aumentar a força muscular e reduzir a queda) *AACR – aminoácidos de cadeia ramificada Fonte: Bunchorntavakul e Reddy (2020, p. 7). 5.4 Encefalopatia hepática A encefalopatia hepática (EH) é uma complicação frequente e uma das manifestações clínicas da doença hepática. É considerada grave e progressiva, com um abrangente espectro de anormalidades neuropsiquiátricas e alterações motoras que podem envolver desde uma alteração mínima da cognição e função motora até coma e morte. É um distúrbio metabólico, portanto potencialmente reversível. A amônia está relacionada à sua gênese, ao lado de várias neurotoxinas e fatores diversos, como o edema cerebral, o tônus GABAérgico e microelementos como zinco e manganês. A EH é classificada de acordo com o grau de comprometimento da função hepática, sendo dividida em três tipos: A, B e C. O tipo A refere‑se à EH associado com a insuficiência hepática aguda. O tipo B tem como principal etiologia a presença de um shunt portossistêmico sem doença hepática intrínseca associada. O tipo C ocorre em pacientes com cirrose e hipertensão portal ou shunt portossistêmico. A EH pode ser precipitada por administração de drogas, inflamação, infecções, intervenção anestésica e cirúrgica, hiponatremia, obstipação e distúrbios hidroeletrolíticos. O transplante hepático está indicado quando não for possível controlar a insuficiência hepática com tratamentos convencionais. 103 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA Amônia CitocinasSedativos Sintomas de EH Hiponatremia Astrócito Expressão gênica Sinalização Modificação em proteínas / RNA Disfunção astrocítica e neuronal Plasticidade sináptica Distúrbios em redes oscilatórias Edema ROS/RNS NMDA‑R → Ca++ Figura 22 – Patogênese da EH Fonte: Strauss e Silva (2015, p. 2). O Gaba (ácido gama‑aminobutírico) está aumentado na EH. Receptores periféricos mitocondriais de benzodiazepínicos (PTBR) são ativados pela presença de amônia ou manganês, assim como de ligandinas, e provocam a síntese de neuroesteroides nos astrócitos. A alopregnanolona, potente neuroesteroide inibitório, está aumentada cerca de dez vezes no cérebro de pacientes autopsiados após morte por cirrose e EH, e seria ela a responsável pelo aumento do tônus Gabaérgico encontrado (AHBOUCHA et al., 2005). A carência de zinco, cofator necessário às enzimas do ciclo da ureia, responsável pela metabolização da amônia, tem sido também descrita na cirrose, em especial em casos de EH. Por outro lado, o acúmulo de manganês nos gânglios da base do cérebro ocorre comumente na EH de diversos graus. O manganês é tóxico para os astrócitos, estando também associado à inibição dos neurotransmissores. Assim, no modelo atual de patogênese da EH, a amônia e outros fatores desencadeantes promovem aumento do edema cerebral, estresse oxidativo e nitrosativo, alterando expressões gênicas, de proteínas e RNA, com sinalizações que levam à disfunção astrocítica e neuronal. O distúrbio da rede oscilatória sináptica produz os sintomas e sinais da EH. 104 Unidade II Quadro 14 – Alterações no metabolismo glicídico, lipídico e proteico encontradas nas doenças hepáticas crônicas Macronutriente Hepatopatia Alterações Consequências Glicídios Crônicas e cirrose Degradação de insulina Resistencia à insulina Hiperinsulinemia Intolerância à glicose Hiperglicemia Lipídios Crônicas e agudas ↑ Lipogênese hepática ↓ Oxidação hepática de ácidos graxos ↓ Síntese de LDL ↓ Gliconeogênese hepática ↑ Lipólise periférica ↑ Oxidação periférica de ácidos graxos Esteatose hepática Hiperlipidemia Cetose Proteínas Crônicas ↓ Captação e metabolização de aminoácidos de cadeia aromática (tirosina e fenilalanina) ↓ Função hepática ↓ Ciclo de ureia ↑ Síntese de colágeno e de autoanticorpos ↑ Concentração plasmática de aminoácidos amoniogênicos ↑ Síntese de falsos neurotransmissores Encafalopatia hepática ↑ Fibrose hepática 5.4.1 Dietoterapia A TN na EH tem como objetivo evitar ou controlar a perda ponderal, regular a produção entérica de amônia e controlar o catabolismo proteico muscular. Desnutrição e sarcopenia são cada vez mais frequentes nos pacientes com cirrose e particularmente naqueles com doença hepática descompensada. Esses pacientes têm um impacto negativo na qualidade de vida e sobrevida, aumentando as complicações cirróticas e infecções, e têm resultados piores após cirurgia e transplante de fígado (LT). A patogênese dessas condições é complexa e multifatorial. O diagnóstico rápido e correto de desnutrição/sarcopenia é muito importante. Assim, o manejo nutricional e os cuidados desses pacientes devem ser realizados por uma equipe multidisciplinar para que tenham a capacidade de atingir a ingestão calórica/proteica adequada e para evitar a hipomobilidade (BUNCHORNTAVAKUL; REDDY, 2020). Os aminoácidos de cadeia ramificada (AACR) e suplementações de vitaminas são usados para corrigir as deficiências. Os AACR em pacientes que apresentam cirrose e são desnutridos podem ser utilizados como fonte de energia para prevenir o catabolismo endógeno sem sobrecarregar a função hepática, e suplementos de AACR também podem ser utilizados para atingir a necessidade proteica diária nos pacientes com intolerância da proteína padrão. A ingestão de proteínas deve ser adequada com a recomendação de proteínas de fácil digestibilidade e com perfil de aminoácido e lipídico contendo maior porcentagem de aminoácido ramificado e ácidos graxos mono ou poli‑insaturados de origem vegetal (FALLAHZADEH; RAHIMI, 2020). Alimentos permitidos na dieta rica em aminoácidos ramificados: soja em grãos, óleos vegetais, azeite, tofu, leite e laticínios, bebida láctea à base de soja, limão, tomate, chuchu, cebola, legumes em geral, abacate, uva‑passa, ameixa, farinha de trigo integral, farinha de tapioca, abobrinha, cenoura, vagem, espinafre, berinjela, maçã, mamão, banana, couve‑flor, milho, lentilha, feijão, cúrcuma, gengibre, louro, coentro, alho e canela. Os alimentoscontraindicados são: queijos amarelos, carne bovina, carne suína, frango e derivados e gema de ovo. 105 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA A recomendação de probióticos na EH não está bem estabelecida. A microflora intestinal leva à produção de amônia e endotoxinas que desempenham papel importante na patogênese da EH. Existe relação entre o EH e a absorção de substâncias nitrogenadas do intestino. Os probióticos desempenham um papel no tratamento da EH, causando alterações na flora intestinal e diminuindo a contagem de bactérias patógenas, acidificação da mucosa intestinal, diminuição na produção e absorção de amônia, alterações na permeabilidade do intestino, diminuição dos níveis de endotoxina e mudanças na produção de ácidos graxos de cadeia curta. O papel da microbiota intestinal usando prebióticos, probióticos e simbióticos foi avaliado no tratamento e na prevenção de EH. Muitos estudos demonstraram a eficácia dos probióticos na redução dos níveis de amônia no sangue, tratamento de EH e prevenção de EH. Não há um consenso quanto a dose ideal, tempo de tratamento e combinação dos microrganismos. Essas questões devem ser esclarecidas para saber os benefícios a longo prazo (SHARMA; SINGH, 2016). Recomendações para o tratamento nutricional na EH: o estado nutricional deve ser avaliado e a sarcopenia investigada; deve‑se evitar a restrição de proteínas; a ingestão diária ideal de proteína e energia não deve ser inferior às recomendações gerais para pacientes cirróticos; é necessário o consumo de vegetais e proteínas lácteas; a suplementação de AACR pode ser considerada para melhorar o desempenho neuropsiquiátrico e atingir a ingestão de nitrogênio recomendada; em pacientes que podem tolerar a ingestão oral, prefira a ingestão por via oral; em pacientes com encefalopatia grau 3‑4, que não conseguem comer, forneça nutrição por sonda nasogástrica (em pacientes com vias aéreas protegidas) ou por via parenteral. A via escolhida dependerá se o trato gastrointestinal está funcionante ou não (ASSOCIAÇÃO EUROPEIA PARA O ESTUDO DO FÍGADO, 2019). Tabela 42 – Recomendações de nutrientes nas doenças hepáticas crônicas Hepatopatia Proteína Energia VET(% CHO) VET (% LIP) Objetivos Hepatite aguda ou crônica 1 a 1,5 30 a 40 67 a 80 20 a 33 Prevenir desnutrição Favorecer regeneração Cirrose 1,2 a 1,5 35 a 40 67 a 80 20 a 33 Prevenir desnutrição Favorecer regeneração Desnutrição 1 a 1,8 30 a 50 72 28 Tratar denutrição Encefalopatia grau 1 ou 2 1 a 1,2 25 a 40 75 25 Suprir necessidades nutricionais Encefalopatia grau 3 ou 4 0,5* 25 a 40 75 25 Suprir necessidades nutricionais Pré‑transplante 1,2 a 1,75 30 a 50 70 a 80 20 a 30 Restaurar ou manter estado nutricional Pós‑transplante 1 30 a 35 >70 < 30 Restaurar ou manter estado nutricional *Adicionar 0,25 g/kg/dia de AACR 5.5 Transplante hepático O transplante de fígado é o tratamento necessário para pacientes em estágio final da doença hepática como cirrose, doença descompensada, insuficiência hepática e câncer hepatocelular (MEIRELLES JÚNIOR et al., 2015). A maioria dos pacientes está desnutrida antes do transplante de fígado, assim, o ganho de peso após a cirurgia é esperado e essencial. Ferreira et al. (2013) verificaram desnutrição em 74,7% dos pacientes cirróticos, com 28% de desnutrição grave, mostrando a importância da TN pré‑transplante 106 Unidade II hepático. Os objetivos da TN pré‑transplante é a oferta adequada de energia, macro e micronutrientes e a melhora do estado nutricional. A avaliação e a intervenção nutricional no pré‑transplante podem garantir melhor sobrevida no paciente desnutrido pós‑transplante. Na fase pós‑transplante, as necessidades de nutrientes aumentam, e o objetivo da TN é promover cicatrização, deter a infecção, fornecer energia para a recuperação, reabastecer as reservas corporais esgotadas, manter níveis bioquímicos dentro da normalidade e manter o estado nutricional, contribuindo para controle de anorexia, diarreia, hipertensão arterial, hiperglicemia e hipercalciúria. O acompanhamento da evolução é essencial também (PEREIRA et al., 2012). Um aumento do ganho de peso ocorre nos 6 primeiros meses pós‑transplante. Ferreira et al. (2013) avaliaram o gasto de energia e a ingestão alimentar em 17 pacientes antes e durante o primeiro ano após o transplante de fígado. Eles encontraram um balanço energético positivo em todos os momentos avaliados após o transplante de fígado e aumento no peso corporal e na gordura corporal; esse aumento foi atribuído ao aumento da ingestão de lipídios, que aumentou de 48,2 a 70,5 g/dia. Registrou‑se aumento da ingestão calórica de 1.670 kcal para 1.957 kcal em média 12 meses após o transplante de fígado em relação ao pré‑transplante de fígado. Também foi observada uma redução na ingestão de carboidratos e um aumento no consumo de gordura em outro estudo (LUNATI et al., 2013). Complicações a longo prazo, como doenças cardiovasculares associadas a dislipidemia, obesidade e diabetes, estão surgindo como fatores de risco para a morbidade e mortalidade tardia dos pacientes transplantados de fígado. A monitorização dos pacientes pós‑transplante, juntamente com a educação nutricional, contribui para a prevenção dessas comorbidades. 5.5.1 Dietoterapia e TN no transplante hepático A tabela a seguir apresenta dados sobre a terapia nutricional no transplante hepático. Tabela 43 – TN no transplante hepático Necessidades energéticas Proteínas Carboidratos Lipídios Pré‑transplante Estado nutricional adequado 30 a 35 kcal/kg/dia Desnutridos 35 a 45 kcal/kg/dia Hepatopatia compensada 0,8 a 1 g/kg/dia Hepatopatia descompensada 1,5 a 2 g/kg/dia Sem restrição Restrição CH simples na intolerância ou diabetes 20% a 40% das calorias Pós‑transplante imediato Estado nutricional adequado 25 a 35 kcal /kg/dia Desnutridos 35 a 45 kcal/kg/dia 1,5 a 2 g/kg/dia Se insuficiência renal e diálise 1,2 g/kg/dia 70% das calorias não proteicas Restrição CH simples na intolerância ou diabetes 20 a 30% de calorias não proteicas Se pancreatite Jejum ou oferta mínima de lipídios (dependendo do grau de inflamação) Adaptada de: Hammad et al. (2017, p. 17). 107 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA Saiba mais Para entender melhor a TN no transplante hepático, leia o artigo indicado a seguir: HAMMAD, A. et al. Nutritional therapy in liver transplantation. Nutrients, Toronto, v. 9, n. 10, 1126 p., 2017. Exemplo de aplicação Estude as hepatopatias e responda as questões a seguir. 1. De que forma se apresenta a doença hepática alcoólica? 2. Qual consumo diário de etanol pode levar à esteatose? 3. Defina esteatose hepática. 4. Das hepatopatias, quais as que apresentam maior número de deficiências nutricionais? 5. Quais os sinais clássicos e clínicos para classificar um paciente em grau A de acordo com a tabela de PUGH? 6. Justifique por que utilizamos os AA de cadeia ramificada em pacientes hepatopatas. 5.6 Dietoterapia no pâncreas e vesícula biliar (pancreatite aguda e crônica/ colecistite, colelitíase) 5.6.1 Pancreatites (aguda e crônica) A pancreatite é uma inflamação do pâncreas. Há dois tipos: pancreatite aguda (PA) e pancreatite crônica (PC). A primeira é um distúrbio inflamatório do pâncreas, sendo caracterizada pela ativação de enzimas digestivas na célula acinar, provocando lesão. Assim, devido ao desenvolvimento do processo inflamatório, ocorre a liberação de mediadores inflamatórios (citocinas) e elevação das enzimas pancreáticas. As causas da pancreatite aguda em geral estão relacionadas com obstrução pancreática secundária a cálculos biliares e álcool (LEE; PAPACHRISTOU, 2019). Os sintomas na forma leve são edema discreto, elevações no nível sérico de amilase (enzimas), dor abdominal e vômitos. O tratamento consiste no jejum de 2 a 5 dias com analgésicos para o alívio dos sintomas e hidratação. Após os dias de jejum, iniciam‑se dieta liquida hipolipídica e evolução progressiva da consistência da alimentação.Por sua vez, a pancreatite crônica é caracterizada por inflamação pancreática progressiva crônica e cicatrizes com calcificações do parênquima pancreático, dilatações dos ductos pancreáticos, cálculos e pseudocisto, 108 Unidade II danificando irreversivelmente a função do pâncreas por vários fatores etiológicos, causando com dor crônica (a dor é agravada pela ingestão de álcool e alimentos gordurosos), insuficiência pancreática exócrina (IPE) e endócrina, causando má absorção de gorduras, esteatorreia, desnutrição, náuseas, vômitos e, às vezes, o desenvolvimento de diabetes por insuficiência na produção de insulina. O tratamento é com medicação, suplementação de enzimas pancreáticas para insuficiência pancreática e alimentação via oral (BEYER et al., 2020). As enzimas são consumidas imediatamente antes das refeições e de acordo com a quantidade de alimentos consumidos. 5.6.2 Fisiopatologia da pancreatite aguda As figuras a seguir descrevem a fisiopatologia da pancreatite aguda. Et io lo gi a Fi sio pa to lo gi a Pancreatite Condições genéricas Alcoolismo crônico Doença do sistema biliar Hipertrigliceridemia Hipercalcemia Diagnóstico Achados clínicos I: Aplicar os critérios de Ranson II: Provas de função pancreática ‑ Teste de estimulação da secretina ‑ Teste de tolerância à glicose ‑ Teste de gordura nas fezes de 24 horas ‑ Elastase fecal Sintomas: ‑ Dor e distensão abdominais ‑ Náuseas ‑ Vômitos ‑ Esteatorreia Na forma grave: ‑ Hipotensão ‑ Oligúria ‑ Dispneia Determinados fármacos Algumas infecções virais Cálculos biliares Traumatismo Figura 23 – Etiologia e fisiopatologia da pancreatite aguda Fonte: Mahan, Escott‑Stump e Raymond (2020, p. 2167). 109 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA Consumo de álcool Radicais livres Inflamação Autoanticorpos Isquemia Formação de plugs proteicos Obstrução dos ductos pancreáticos Aumento da pressão intraductal Suco pancreático: rico em proteínas e pobre em litostatina Desnutrição: diminuição de agentes antioxidantes Deposição de cálcio e formação de cálculos Pancreatite crônica Figura 24 – Fatores envolvidos na patogênese da pancreatite crônica Adaptada de: Fochesatto Filho e Barros (2013). Saiba mais Para saber sobre pancreatite em crianças, leia o artigo a seguir: SEPÚLVEDA, E. V. F.; GUERRERO‑LOZANO, R. Acute pancreatitis and recurrent acute pancreatitis: an exploration of clinical and etiologic factors and outcomes. Jornal de Pediatria, Porto Alegre, v. 95, n. 6, p. 713‑719, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3ke2s51. Acesso em: 19 ago. 2021. 5.6.3 TN na pancreatite aguda Veja o quadro a seguir. Quadro 15 – Classificação do grau de severidade da pancreatite aguda Leve Sem falência de órgãos Sem complicações locais ou sistêmicas Moderada Falência de órgãos que se resolve dentro de 48h (falência transitória de órgãos) e/ou Complicações locais ou sistêmicas sem falência persistente de órgãos Grave Insuficiência orgânica persistente (> 48h) Falência de um único órgão Falência de múltiplos órgãos Pacientes com pancreatite aguda devem ser considerados de risco nutricional moderado a alto devido à natureza catabólica da doença e por causa do impacto do estado nutricional. Muitos 110 Unidade II fatores contribuem para a desnutrição na pancreatite aguda, como o metabolismo e o catabolismo relacionados à inflamação. Muitos estudos recomendam a utilização de nutrição oral ou enteral para melhorar a nutrição e para reduzir a inflamação local e sistêmica, complicações e morte. Na doença leve, os pacientes geralmente são capazes de iniciar dieta oral sólida e não requerem cuidados nutricionais especializados, como nutrição enteral ou parenteral. A intervenção nutricional ajuda a prevenir a desnutrição e é a chave para reduzir inflamação, complicações e morte na pancreatite aguda. Evidências atuais mostram os benefícios da nutrição enteral precoce na pancreatite grave. A nutrição parenteral deve ser considerada em pacientes que não toleram a nutrição enteral (RAMANATHAN; AADAM, 2019). 5.6.4 Manejo nutricional na pancreatite moderada e grave Os benefícios do suporte nutricional têm sido bem documentados em casos moderados e graves de pancreatite. É preciso considerar nesses pacientes as necessidades de nutrientes. A necessidade de energia deve ser estimada em 25 a 35 kcal/kg/dia. Muitos fatores afetam o gasto de energia em pacientes com pancreatite grave, como temperatura corporal, volume e medicamentos. As necessidades estimadas de proteína são maiores do que em indivíduos saudáveis (1,2‑1,5 g/kg/dia). Isso pode melhorar o equilíbrio de nitrogênio e está relacionado a uma diminuição em 28 dias de mortalidade em pacientes criticamente enfermos (ALLINGSTRUP et al., 2012). É preciso fornecer fonte de energia de carboidratos, gorduras e proteína. Uma dose diária de multivitaminas e oligoelementos é recomendada especialmente em pacientes recebendo NP total. Os micronutrientes devem ser suplementados em pacientes com deficiências confirmadas ou suspeitas. A via enteral deve ser considerada como uma via preferencial de suporte nutricional para pacientes com pancreatite moderada à grave com fórmula oligomérica, iniciando com uma velocidade baixa, com progressão do volume e do tipo de fórmula (polimérica) de acordo com a tolerância digestiva de cada paciente. A fórmula polimérica pode ser recomendada desde o início da nutrição enteral, mas a fonte de lipídio deve ser TCM (triglicérides de cadeia media) com um quantidade mínima de TCL (triglicérides de cadeia longa) (LAKANANURAK; GRAMLICH, 2020). Quadro 16 – Recomendação dietética e tipo de TN na pancreatite grave Recomendação Indicação Energia 25 a 35 kcal/kg/peso/dia Proteínas 1,2 a 1,5 g/kg de peso ideal/dia (a suplementação de glutamina pode ser indicada por causa do hipermetabolismo) Enteral Indicar sempre que tolerada Posição da sonda pode ser jejunal ou gástrica (se tolerada) A fórmula oligomérica pode ser mais bem tolerada devido à menor estimulação pancreática Parenteral Indicar quando a via enteral não for tolerada Acompanhar os triglicerídeos, pois pode haver hipertrigliceridemia 111 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA 5.7 Pancreatite crônica Pacientes com pancreatite crônica apresentam a IPE, causada pela destruição do parênquima pancreático com uma perda suficientemente grande de células acinares e/ou obstrução dos ductos pancreáticos. Consequentemente, não é possível manter os níveis mínimos de produção de enzimas digestivas e secreção ductal de bicarbonato necessário para digerir os alimentos de forma adequada. Pancreatite crônica (PC) é a causa mais frequente de IPE em adultos. O desenvolvimento de IPE compromete a digestão e a absorção de macro e micronutrientes, como gordura, proteínas e vitaminas lipossolúveis. Pacientes com IPE precisam de suplementação com enzimas pancreáticas para absorção desses nutrientes e para melhorar a esteatorreia. A glicemia deve ser observada e, em caso de hiperglicemia, as recomendações para diabetes devem ser feitas. Pode ser necessária a suplementação com vitaminas lipossolúveis (vitaminas A, D e K). Também pode haver deficiência de alguns minerais (nos casos dos pacientes de etilismo crônico) como cálcio, zinco e magnésio, sendo necessária sua reposição. Quadro 17 – Recomendações nutricionais na pancreatite crônica Nutrientes Recomendação Energia 30 a 35 kcal/kg peso/dia Carboidratos Normoglicídica (monitorar a glicemia) Proteínas 1 a 1,5 g/kg/dia Lipídios 30% do VET Se não houver ganho de peso e a esteatorreia persistir, restringir para 20% de lipídios com utilização de TCM Bebidas alcoólicas Excluir Micronutrientes Sinais clínicos devem ser avaliados Reposição, se houver deficiência 5.8 Colecistite e colelítiase As doenças da vesícula biliar incluem vários distúrbios da vesícula biliar e dutos biliares como colelitíase e colecistite. A colelitíase refere‑se à formação de cálculosbiliares na vesícula biliar e podem estar presentes com ou sem sintomas. A colecistite é causada por inflamação da vesícula biliar devido ao bloqueio do ducto cístico por um cálculo biliar. O termo coledocolitíase é aplicado quando um cálculo biliar entra no ducto biliar. Isso pode resultar em colangite, que é a inflamação do ducto biliar. A doença assintomática da doença da vesícula biliar se refere a cálculos biliares que estão presentes, permanecem na vesícula biliar, não são obstrutivas e não causam desconforto (GURUSAMY; DAVIDSON, 2014). As causas da doença da vesícula biliar são multifatoriais. Fatores que afetam a produção hepática de colesterol, a função da vesícula biliar (inflamação), a produção de ácido biliar ou a absorção de colesterol e ácidos biliares são possíveis contribuintes para a formação de cálculos biliares. Os fatores de risco incluem variáveis modificáveis e não modificáveis (LITTLEFIELD; LENAHAN, 2019). 112 Unidade II Quadro 18 – Fatores de risco modificáveis e não modificáveis para doença da vesícula biliar Fatores modificáveis Fatores não modificáveis Outros fatores de risco Dislipidemia Dieta hipercalórica Dieta pobre em fibras Medicamentos: Ceftriaxona (Rocephin), estrogênios (contraceptivos orais, terapia hormonal), diuréticos tiazídicos Síndrome metabólica Obesidade Perda de peso rápida Estilo de vida sedentário Tabagismo Diabetes tipo 2 Idade > 40 anos Etnia História familiar Sexo feminino Predisposição genética Anemias hemolíticas (anemia falciforme) Gravidez Lesão da medula espinal Cirrose Doença de Crohn Hiperbilirrubinemia A vesícula biliar está localizada sob o fígado, no lado direito do abdômen, e os cálculos biliares são formados a partir da bile que se concentrou na vesícula biliar. Essas pedras são formadas quando os constituintes da bile não estão em equilíbrio (VÍTEK; CAREY, 2011). Os cálculos biliares são, em sua maioria, cálculos de colesterol não pigmentados, compostos principalmente de colesterol, bilirrubina e sais de cálcio. Figura 25 – Formação de cálculos biliares da vesícula biliar Disponível em: https://bit.ly/3kssPpa. Acesso em: 19 ago. 2021. 113 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA 5.9 Dietoterapia e obesidade A obesidade está associada a um risco aumentado de cálculos biliares, mas a perda de peso pode reduzir o risco da formação de cálculos biliares em indivíduos com sobrepeso e obesidade. O aumento do risco está associado à rápida perda de peso, o que pode ocorrer em virtude de um aumento na proporção de colesterol e sais biliares na vesícula biliar e também por causa da estase biliar, resultante de uma diminuição nas contrações da vesícula biliar (GABY et al., 2009). 5.9.1 Açúcar refinado Em estudos observacionais em humanos, pesquisadores relacionaram que a maior ingestão de açúcares refinados (sacarose e a frutose) com uma maior frequência do aparecimento de cálculos biliares. A associação entre a ingestão de açúcar refinado e os cálculos biliares também pode ser justificada pelo consumo de grandes quantidades de açúcar, o que pode levar à obesidade. Entretanto, há evidências de que os açúcares refinados são litogênicos. Recomenda‑se que indivíduos que têm fatores de risco para o desenvolvimento de cálculos biliares devem evitar ingestão excessiva de açúcar refinado (TSAI et al., 2005). 5.9.2 Fibra alimentar Em estudos observacionais, a maior ingestão de fibra foi associada a uma menor prevalência de cálculos biliares. Acredita‑se que a fibra trabalhe principalmente no cólon, diminuindo a formação de ácido desoxicólico por bactérias intestinais e aumentando a síntese de ácido quenodeoxicólico. O ácido desoxicólico parece aumentar a litogenicidade da bile, enquanto o ácido deoxicólico diminui a litogenicidade, e este tem sido usado terapeuticamente para promover a dissolução de cálculos biliares. Assim, recomenda‑se uma dieta rica em alimentos que contêm fibra para a prevenção de cálculos biliares (DI CIAULA et al., 2019). Observação O aumento da ingestão de energia com açúcares altamente refinados e alimentos doces, alta ingestão de frutose, baixo teor de fibra, alto teor de gordura e o consumo de fast‑food aumentam o risco de formação de cálculos biliares. Na colecistite, a dietoterapia na colecistite inclui uma dieta rica em fibras, com baixo teor de lipídios e à base de vegetais para prevenir as contrações da vesícula biliar. Na crise aguda de colecistite, suspende‑se a alimentação oral. Quando houver reintrodução da alimentação, recomenda‑se uma dieta com baixo teor de lipídios para reduzir a estimulação da vesícula biliar. Pode‑se administrar uma fórmula com baixo teor de lipídios hidrolisados ou uma dieta oral com baixo teor de lipídios, consistindo em 30 a 45 g de lipídios por dia. Se o paciente apresentar condição crônica de colecistite, poderá ser necessária uma dieta com baixo teor de lipídios a longo prazo, contendo 25% a 30% da energia total sob a forma de lipídios. Uma limitação mais rigorosa não é desejável, visto que a presença de lipídios no intestino é importante para a estimulação e drenagem do sistema biliar. O quadro a seguir ilustra um exemplo de uma dieta restrita em gordura (40 g/dia). 114 Unidade II Observação A alta ingestão de gordura monoinsaturadas e fibras, o consumo de azeite e peixe (ácidos graxos ω‑3), a ingestão de proteínas vegetais e frutas e o consumo moderado de álcool exercem papel protetor. Quadro 19 – Dieta restrita em lipídios Alimentos permitidos Alimentos excluídos Bebidas Leite desnatado ou leitelho (leite de manteiga) feito com leite desnatado, café, chá, postum (bebida de grãos torrados), suco de frutas, refrigerantes, chocolate feito com cacau em pó e leite desnatado Leite integral, leitelho feito com leite integral, leite com chocolate, creme em quantidades acima daquelas permitidas para lipídios Pão e produtos à base de cereais Cereais sem lipídios naturais, espaguete, talharim, arroz, macarrão, pães integrais naturais ou pães enriquecidos, pipoca, bagels, muffins ingleses Biscoitos, pães, pão com ovos ou queijo, pães doces feitos com gordura, panquecas, doughnuts, waffles, bolinhos fritos, pipoca preparada com gordura e muffins, cereais e pães naturais aos quais se adiciona farinha extra Queijos Queijo cottage sem gordura ou com baixo teor de gordura, 1/4 usado como substituto para 30 g de queijo, ou queijos magros contendo menos de 5% de gordura do leite Queijos feitos com leite integral Sobremesas Sherbet feito com leite desnatado; iogurte desnatado congelado; sobremesas não lácteas congeladas sem gordura; sorvete de fruta; gelado de fruta; gelatina; arroz; pão, amido de milho, tapioca ou pudim feito com leite desnatado; tiras de frutas com gelatina, açúcar e clara de ovo; frutas; bolo com fios de anjo; bolachas graham; wafers de baunilha, merengues Bolo, torta, pastéis, sorvete ou qualquer sobremesa contendo gordura, chocolate ou gorduras de qualquer tipo, a não ser que especialmente preparada utilizando parte da gordura permitida Ovos Três por semana e preparados apenas com a quantidade permitida de gordura; ovos brancos, quando desejado; substitutos de ovos com baixo teor de lipídios Mais do que um por dia, a não ser que substitua parte da carne permitida Gorduras Escolher até o limite permitido entre os seguintes (1 porção na quantidade listada equivale a 1 gordura de escolha): 1 colher de chá de manteiga ou margarina 1 colher de chá de margarina light 1 colher de chá de gordura ou óleo 1 colher de chá de maionese 2 colheres de chá de molho italiano ou francês 1 colher de chá de molho de salada light 1 fatia de bacon crocante 1/8 de abacate (10 cm de diâmetro) 2 colheres de chá de creme light 1 colher de chá de creme integral 6 castanhas pequenas 5 azeitonas pequenas Qualquer um acima da quantidade prescrita na dieta; todos os outros 115 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA Alimentos permitidos Alimentos excluídos Frutas À vontade Abacatealém da quantidade permitida na lista de gordura Carne magra, peixe, aves e substitutos da carne Escolher até o limite permitido entre os seguintes: aves sem pele, peixe, carne de vitela (todos os cortes), fígado, carne magra, carne de porco e de cordeiro, todas com a gordura visível retirada – 30 g de carne cozida igual a 1 equivalente; 1/4 de atum ou salmão embalado com água é igual a 1 equivalente; tofu ou tempeh – 90 g iguais a 1 equivalente Carnes fritas ou gordurosas, linguiça, scrapple, salsichas alemãs, peles de aves, galinha ensopada, costelas de porco, carne de porco salgada, carne de vaca, a não ser que seja magra, pato, ganso, jarrete de presunto, pé de porco, carnes em lanches (a não ser que sejam sem gordura), molhos, a não ser que sejam sem gordura, atum e salmão embalados em óleo, manteiga de amendoim Leite Leite desnatado, leitelho ou iogurte feito com leite desnatado Leite integral, 2%, 1%, chocolate, leitelho feito com leite integral Temperos À vontade Nenhum Sopas Bouillon, caldo claro, sopa de vegetais sem gordura, sopa de creme feita com leite desnatado, sopas desidratadas em pacotes Todas as outras Doces Gelatina, geleia, marmelada, mel, xarope, melado, açúcar, balas duras de açúcar, fondant, balas com goma de mascar, jujubas, marshmallows, cacau em pó, calda de chocolate sem gordura, alcaçuz vermelho e preto Qualquer bombom feito com chocolate, nozes, manteiga, creme ou gordura de qualquer tipo Vegetais Todos os vegetais preparados de modo simples Batatas chips; batatas na manteiga, gratinadas, com creme ou fritas e outros vegetais, a não ser que preparados com a quantidade de gordura permitida; caçarolas ou vegetais congelados em molho de manteiga Fonte: Mahan, Escott‑Stump e Raymond (2018, p. 2157‑2158). Exemplo de aplicação Caso 1 Um homem de 55 anos relatou dor epigástrica aguda severa, acompanhada por alteração de consciência, vômitos e febre. Ele tinha histórico de álcool crônico (beber 100 g/dia por mais de 20 anos). Seu peso corporal era estável, com índice de massa corporal de 22 kg/m2. Os resultados laboratoriais iniciais demonstraram lipase 720 U/L (0‑60 U/L) e creatinina 180 μmol/L (50‑120 μmol/L). Ele foi intubado para proteger via aérea e foi internado em UTI. Inicialmente, foi incluída uma solução cristaloide intravenosa e tratamento sintomático. No segundo dia de admissão, sua creatinina estava subindo para 190 μmol/L. Pancreatite alcoólica aguda grave foi diagnosticada. Qual é o tratamento nutricional mais adequado para este paciente? Este paciente foi diagnosticado com pancreatite alcoólica aguda com falência persistente de órgãos. Ele foi intubado e internado em UTI. Portanto, NE precoce deve ser iniciada. Sonda nasogástrica pode ser usada para atingir EN precoce. Uma fórmula polimérica padrão pode ser iniciada em taxa de 20 ml 116 Unidade II por hora e deve ser titulada para suprir a quantidade de proteína e energia necessária (1,2‑1,5 g/kg/dia e 25 kcal/kg/dia, respectivamente). Dada a história de alcoolismo crônico, níveis de micronutrientes, incluindo vitamina B1, B2, B3, B12, C, A, ácido fólico e zinco podem ser avaliados, e o tratamento deve ser iniciado se houver indícios de deficiência de micronutrientes. Caso 2 Uma mulher de 48 anos apresentou início agudo de dor epigástrica intensa com náusea e vômito Ela não tinha histórico médico significativo e negava consumo de álcool. Seu peso corporal era estável e seu índice de massa corporal era de 24. Os resultados laboratoriais mostraram lipase 560 U/L (0‑60 U/L). Ultrassom abdominal demonstrou vários cálculos biliares com ducto biliar normal. Foi diagnosticada pancreatite aguda leve de cálculos biliares. A dor abdominal e náusea melhoraram após receber analgesia e antiemético. Qual é o manejo nutricional mais adequado para esta paciente? Comentário: a paciente apresentou pancreatite biliar aguda clássica. Dado que a gravidade da doença foi leve e a dor abdominal e as náuseas melhoraram, deve ser iniciada dieta oral sólida. 6 TN EM DOENÇA PULMONAR OBSTRUTIVA CRÔNICA E INSUFICIÊNCIA RESPIRATÓRIA AGUDA – FIBROSE CÍSTICA 6.1 Doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e insuficiência respiratória (IR) A DPOC é caracterizada pela limitação do fluxo de ar que não é totalmente reversível. A limitação do fluxo de ar é geralmente progressiva e está associada com uma inflamação do pulmão a partículas nocivas ou gases, causados principalmente pelo cigarro (HANSON et al., 2020). Embora a DPOC afete os pulmões, também tem consequências sistêmicas, exacerbações e comorbidades que contribuem para a gravidade (BARNES et al., 2015). É cada vez mais reconhecido que os pacientes com DPOC também apresentam uma alta carga de comorbidades que podem ser independentes do tabagismo. Além disso, está se tornando claro que essas comorbidades contribuem para resultados negativos no paciente e maior utilização de serviços de saúde e mortalidade. As comorbidades e associações com impactos negativos são: doença alérgicas (tosse, catarro, maior utilização de cuidados da saúde); anemia (mortalidade, hospitalização, maior tempo de internação, dispneia); doença cardiovascular (mortalidade, impacto na qualidade de vida, dispneia, capacidade de exercício reduzida, hospitalização); deficiência cognitiva (qualidade de vida, estado de saúde, duração da internação); depressão (mortalidade, dispneia, capacidade de exercício, qualidade de vida, estado de saúde, risco de hospitalização, risco de exacerbação incapacidade de realizar atividades do dia a dia); diabetes (mortalidade, hospitalização, capacidade de exercício); doença do refluxo gastresofágico (qualidade de vida, sintomas de bronquite crônica, gastos com cuidados de saúde, risco de exacerbação); HIV/aids (qualidade de vida); câncer de pulmão (mortalidade, recorrência de malignidade); síndrome metabólica (outras comorbidades, hospitalização, risco de exacerbação); obesidade (qualidade de vida, estado de saúde dispneia, capacidade de exercício, utilização de cuidados de saúde); osteoporose; 117 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA apneia do sono (risco de exacerbação de mortalidade, gastos com cuidados de saúde, desfechos cardiovasculares) (PUTCHA et al., 2015). 6.1.1 Fisiopatologia A fisiopatologia da DPOC é complexa e caracterizada pela inflamação pulmonar e sistêmica, que influencia a progressão da doença e o desenvolvimento dessas comorbidades. A DPOC envolve infiltração de células inflamatórias e superiores concentrações circulantes e pulmonares de citocinas pró‑inflamatórias e o desequilíbrio entre a formação de radicais livres e a capacidade antioxidante, resultando em sobrecarga oxidativa. O grau de inflamação na DPOC é associado a um declínio mais rápido na função pulmonar (YOUNG; HOPKINS; MARSLAND, 2016; DOURADO et al., 2006). DPOC Manifestações locais Limitação nas AVDs Anorexia/desnutrição Disfunção muscular periférica ↓ Tolerância ao exercício ↓ Qualidade de vida Descondicionamento Limitação ventilatória Dispneia 1L‑6 1L‑8 1L‑1b TNFa Manifestações sistêmicas Redução do VEF1 Hiperinsuflação ↑ Processo inflamatório ↑ Estresse oxidativo ↑ Citocinas Figura 26 – Fisiopatologia das manifestações sistêmicas e locais da doença pulmonar obstrutiva crônica Fonte: Dourado et al. (2006, p. 163). O tabagismo é o fator de risco mais bem estabelecido para o desenvolvimento de DPOC. No entanto, não fumantes ao longo da vida podem desenvolver DPOC. Outros fatores de riscos são: poeira, agentes químicos, fumaça, poluição do ar interno, fogão a lenha, asma e genética (DUFFY; CRINER, 2019). 118 Unidade II 6.1.2 Dietoterapia A dieta e a nutrição estão associados com o declínio na função pulmonar. Os objetivos da TN na DPOC são: fornecer uma alimentação que promova a manutenção da força, massa e função muscular respiratória, a fim de otimizar o estado de desempenho global do paciente e satisfazer as demandas de atividades diárias, manter uma reserva adequada de massacorporal magra e tecido adiposo, tendo em vista que pacientes com DPOC apresentam mudanças na composição corporal manifestada pela perda de peso, e, principalmente, perda de massa muscular, corrigir o desequilíbrio hídrico, comum em pacientes com DPOC, controlar as interações entre drogas e nutrientes que interferem negativamente tanto no consumo de alimentos quanto na absorção dos nutrientes, promovendo uma melhoria na qualidade de vida do paciente. A maioria dos pacientes com DPOC estão em um estado de desnutrição acentuada, conhecido como caquexia pulmonar, e 25% a 40% dos pacientes são desnutridos. O valor do índice de massa corpórea (IMC) e a perda de peso são fatores de risco para a hospitalização devido à exacerbação da doença, indicam pior prognóstico na evolução da exacerbação e podem determinar a necessidade de ventilação mecânica. A depleção nutricional também está associada ao aumento de mortalidade e da frequência de hospitalizações em pacientes com DPOC em oxigenoterapia domiciliar prolongada. As causas de desnutrição em pacientes com DPOC são: insuficiência energética devido à diminuição da ingestão alimentar causada pela perda de apetite associada à diminuição da atividade física geral; tendência depressiva ou dispneia ao comer; aumento do gasto de energia em razão do aumento do trabalho respiratório (o gasto energético de repouso – GER está elevado em pacientes com DPOC e o GER aumentado foi demonstrado em pacientes magros com DPOC); efeitos de fatores humorais, como citocinas inflamatórias, adipocinas e hormônios (ITOH et al., 2013). A DPOC também é caracterizada pela produção aumentada de citocinas inflamatórias, como interleucina (IL) ‑6, IL‑8 e fator de necrose tumoral (TNF) ‑a e de quimiocinas. Uma correlação significativa também foi mostrada entre a produção de IL‑6 e a diminuição do apetite (GAN et al., 2004). Desnutrição Ingestão energética Alteração do metabolismo proteico Mediadores Inflamatórios Hipoxemia DPOC Medicações Hipermetabolismo Exacerbações ↓ SpO2 Dispneia Anorexia ↑ Leptina ↑ Trabalho ventilatório ? Figura 27 – Mecanismos da perda de peso em pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica Fonte: Dourado et al. (2006, p. 163). 119 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA Conforme Evans et al. (2008), o diagnóstico de caquexia apresenta os seguintes aspectos: • Perda de peso 5% em 12 meses ou menos ou IMC < 20kg/m2 + presença de 3 fatores: — Fadiga. — Diminuição da força muscular. — Anorexia (consumo energético < 20 kcal/kg/dia). • Anormalidades bioquímicas – aumento de marcadores inflamatórios: — IL‑6 > 4 pg/mL — PCR > 5 mg/dL — Hb < 12 g/d/L — Albumina sérica < 3,2 g/dL — Índice de massa magra baixo. 6.1.3 Recomendações nutricionais Segundo Hanson et al. (2020), para pacientes com DPOC, a prescrição da quantidade de calorias deve ser individualizada com base na ingestão de energia, peso corporal e necessidades energéticas estimadas para alcançar e manter o peso ideal. Fortes evidências indicam que os grupos de paciente que têm IMC mais baixo têm maior taxa de mortalidade quando comparada com pacientes com IMC mais elevado. Um IMC entre 25,0 e 29,9 parece diminuir o risco de mortalidade em comparação com as classificações de IMC acima ou abaixo desse valor. A ingestão de energia mais elevada parece melhorar os escores de dispneia e também mostrou uma relação positiva com o estado funcional, a utilização de cuidados de saúde e a duração da doença. A quantidade recomendada da distribuição de macronutrientes também deve ser individualizada com base na avalição nutricional e ingestão alimentar do paciente. A suplementação de vitamina D para níveis séricos de 10 ng/mL (25 nmol/L) deve ser recomendada para otimizar o status da vitamina D. Estudos indicam que a suplementação de vitamina D pode reduzir as exacerbações pulmonares (HANSON et al., 2020). Segundo Collins et al. (2019), as recomendações nutricionais para pacientes com DPOC devem ser baseadas na população saudável, porém devem ser avaliadas individualmente, considerando‑se o estado clínico do paciente (estável ou exacerbação), a gravidade da doença (leve, moderada, grave, muito grave), bem como o nível de atividade. As recomendações sugeridas são: 1,0‑1,2 g de proteína/kg de peso corporal/dia. Todavia, para pacientes desnutridos ou portadores de doenças crônicas, a ingestão 120 Unidade II recomendada é de 1,2‑1,5 g de proteína/kg de peso corporal/dia. A energia necessária para a manutenção de peso é de 30 kcal/kg de peso corporal/dia, para ganho de peso > maior 45 kcal/kg de peso corporal/ dia (COLLINS et al., 2019). Tabela 44 – Recomendações nutricionais para pacientes com DPOC Nutrientes Recomendação Calorias Eutróficos (manutenção de peso) 30 kcal/kg de peso/dia Desnutrição (ganho de peso) > 45 kcal/kg de peso/dia Necessidade de carboidratos 50% a 60% Necessidade de proteínas 15% a 20% Pacientes eutróficos: 1,0‑1,2 g de proteína/kg de peso corporal/dia Pacientes desnutridos: 1,2‑1,5 g de proteína/kg de peso corporal/dia Necessidade de lipídios 25% a 30% Observe a seguir as orientações gerais: • Anorexia: ingerir alimentos com quantidade elevada de calorias, oferecer alimentos preferidos pelos pacientes, fracionar as refeições de 5 a 6x/dia. • Saciedade precoce: ingerir primeiro alimentos com alta quantidade energética, evitar líquidos durante as refeições, dar preferência aos alimentos frios. • Dispneia: comer devagar, descansar entre as refeições, usar os broncodilatadores, ter a refeição preparada. • Fadiga: escolher alimentos de fácil preparo, descansar antes das refeições, ter alimentos preparados para os períodos de fadiga. • Constipação: se possível, fazer exercícios, aumentar a quantidade de fibras e água, mas ter cuidado com a retenção hídrica. • Dificuldade para mastigar: modificar a consistência dos alimentos para facilitar a mastigação, preferir alimentos mais cozidos e macios. Se necessário, encaminhar para fonoaudiólogo ou dentista. 6.2 Insuficiência respiratória O curso da DPOC é pontuado por recorrência de exacerbações e um declínio progressivo na função pulmonar dos pacientes. Pacientes graves podem desenvolver insuficiência respiratória aguda, exigindo ventilação mecânica invasiva. Um número significativo de pacientes com DPOC precisam da 121 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA ventilação mecânica por causa de outras doenças, como pneumonia, síndrome respiratória aguda ou embolia pulmonar. A ventilação não invasiva (VNI) é uma abordagem eficaz amplamente utilizada para o tratamento de hipercapnia (é o aumento da concentração de dióxido de carbono – CO2 no sangue) aguda em estágio inicial e intermediário de insuficiência respiratória na DPOC. No entanto, devido à falha no tratamento da VNI, alguns pacientes precisam ser submetidos à intubação endotraqueal ou à traqueostomia. A falha no tratamento de VNI mostrou estar associada ao pH < 7,3 em admissão, hipercapnia, hiperglicemia e inconsciência (GADRE et al., 2018). 6.2.1 Dietoterapia A desnutrição é comum em pacientes que precisam de ventilação mecânica. Os pacientes com doença respiratória avançada têm aumento das necessidades metabólicas e exigem início imediato de nutrição suplementar. É importante considerar as questões relacionadas com o uso de proteínas que são necessárias para o processo de reparação do parênquima pulmonar e o excesso de produção de dióxido de carbono nesses pacientes (BELLINI, 2013). A TN enteral (se trato gastrointestinal funcionante) ou parenteral é necessária para prevenir déficits de energia, perda de massa muscular e comprometimento da função respiratória. Em nível celular, a função dos músculos pode estar comprometida devido aos baixos níveis de cálcio, magnésio, fósforo e potássio. A oferta diminuída de proteínas e fosfolipídios também compromete a função do surfactante, contribuindo para o colapso alveolar e o consequente aumento do trabalho respiratório. Os pacientes com síndrome dodesconforto respiratório agudo (SDRA) têm alto risco de complicações em decorrência de subalimentação ou superalimentação. A redução de força dos músculos respiratórios é efeito prejudicial da subalimentação, o que leva a problemas de desmame da ventilação mecânica. Além disso, má cicatrização de feridas, imunossupressão e risco de infecções hospitalares aumentam de modo similar a energia e as proteínas inadequadas. A superalimentação gera consequências indesejáveis, como hiperglicemia do estresse, retardo no desmame da ventilação mecânica e retardo na cicatrização de feridas. 6.2.2 Imunonutrição A síndrome do desconforto respiratório agudo é caracterizada pelo recrutamento de neutrófilos, liberação significativa de citocinas pró‑inflamatórios, quimiocinas, ativação de cascata pró‑coagulante e vias da prostaglandina com aumento do estresse oxidativo, causando danos a lipídios e proteínas. Em pacientes com síndrome do desconforto respiratório, desequilíbrio significativo no sistema antioxidante com um aumento relativo no estresse oxidativo leva a aumento da lesão alveolar. Entre os pacientes gravemente enfermos em geral, a suplementação de antioxidantes está associada a um resultado favorável. Macronutrientes como glutamina e arginina também têm propriedades imunomoduladoras e têm sido utilizadas em vários ensaios clínicos de pacientes gravemente enfermos e cirúrgicos. Glutamina melhora a função de barreira intestinal e pode ser uma fonte de energia para linfócitos, neutrófilos e macrófagos, enquanto a deficiência de arginina, que é comumente encontrada após uma doença crítica, pode prejudicar a função das células T. Os ácidos graxos ômega‑3, ácidos graxos poli‑insaturados, como eicosapentaenoico ácido (EPA), ácido alfa‑linolênico (ALA) e docosahexaenoico ácido (DHA) são lipídios essenciais. Suplementação terapêutica desses nutrientes, que têm propriedades imunomoduladoras, foi demonstrada para moderar a resposta inflamatória por meio da supressão da biossíntese pró‑inflamatória de eicosanoides, atenuação do acúmulo de neutrófilos pulmonares, redução 122 Unidade II na permeabilidade pulmonar e atenuação de disfunção cardiopulmonar (DUSHIANTHAN et al., 2019). Dessa forma, a inclusão dos imunonutrientes na TN faz‑se necessária devido ao estado hipermetabólico e à desnutrição preexistente, que produzem uma imunossupressão no paciente portador de DPOC. A utilização desses imunonutrientes visa ao aumento da produção dos mediadores inflamatórios menos potentes, à redução daqueles altamente inflamatórios, bem como à minimização da produção de radicais livres e a modulação da resposta inflamatória generalizada. Assim, deve‑se oferecer ao paciente uma dieta enriquecida com: lipídios, como os ácidos graxos de cadeia curta, o ômega‑3 e os ácidos gamalinolênico e eicosapentanoico; aminoácidos, como glutamina, glicina, cisteína e arginina; nucleotídeos e oligoelementos, como cobre, zinco e selênio (FERNANDES; BEZERRA, 2006). 6.3 Fibrose cística A fibrose cística (FC) – mucoviscidose – é uma doença genética de caráter autossômico recessivo, crônica e progressiva, com manifestações sistêmicas. Suas principais complicações são as alterações gastrointestinais, a insuficiência pancreática e a infecção pulmonar grave, que afeta mais de 95% dos pacientes. As complicações pulmonares normalmente determinam o prognóstico final da doença. O paciente com esta doença apresenta secreções mucosas espessas e viscosas, obstruindo os ductos das glândulas exócrinas, que contribuem para o aparecimento de três características básicas: doença pulmonar obstrutiva crônica, concentrações elevadas de eletrólitos no suor e insuficiência pancreática com comprometimento da digestão e da absorção e consequente desnutrição (BROWN; WHITE; TOBIN, 2017). O gene da FC localiza‑se no braço longo do cromossomo 7, no lócus q31, tendo função de codificar um RNAm de 6,5 quilobases, que transcreve uma proteína transmembrana, reguladora de transporte iônico, composta por 1.480 aminoácidos, conhecida como regulador da condutância da transmembrana da FC (CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator). A FC é causada por uma mutação da CFTR. A proteína CFTR produzida por esse gene regula o movimento do cloreto e íons de sódio através das membranas das células epiteliais. Quando mutações ocorrem em uma ou ambas as cópias do gene, ocorre um defeito no transporte de íons na membrana das células e resulta em um acúmulo de muco espesso por todo o corpo, levando ao comprometimento de vários órgãos, o qual afeta pulmões, pâncreas, fígado, intestino, glândulas sudoríparas e trato reprodutivo (TSUI; DORFMAN, 2013). O muco e o transporte de íons alterados permitem colonização bacteriana do trato respiratório, a maioria comumente envolve Pseudomonas, Haemophilus influenza e Staphylococcus aureus. Esses patógenos causam inflamação e infecção. A infecção crônica e resposta inflamatória repetitiva podem levar à destruição das vias aéreas (BELL; DE BOECK; AMARAL, 2015). Até o momento, mais de 2 mil mutações diferentes foram relatadas, e a mais comum é F508del (GUILLOT et al., 2014). O diagnóstico inicial de FC em crianças é feito pelo teste de triagem neonatal, mas o teste do suor é considerado padrão‑ouro e pode confirmar ou excluir o diagnóstico na FC. O diagnóstico precoce pode melhorar o estado nutricional, diminuir as exacerbações pulmonares e reduzir dias de hospitalização, contribuindo para a melhor qualidade de vida dos pacientes (SONTAG et al., 2016). 123 NUTRIÇÃO CLÍNICA AVANÇADA Fibrose cística (Proteína CFTR não funcional) Sinusite crônica Sinusite crônica Infecção bacteriana crônica grave das vias respiratórias Intestino hiper‑ecogênico fetal (15‑20% dos casos) Insuficiência exótica pancreática Doença hepática (5‑10% dos casos) Infecção bacteriana crônica das vias respiratórias (sintoma tardio) Suficiência pancreática; pancreatites em 5‑20% dos casos Concentração de sal no suor borderline ou normal (<60 mmol/L) Concentração de sal no suor > 60 mmol/L Azoospermia obstrutivaAzoospermia obstrutiva Distúrbios relacionados a CFTR (Alguma proteína funcional) Figura 28 – Efeito multissistêmico da CFTR Adaptada de: Knowles e Durie (2002, p. 440). Os principais sintomas são: tosse crônica, chiado no peito frequente, pneumonias e bronquites frequentes, suor excessivo e muito salgado, desnutrição, sinusite crônica, fezes volumosas – gordurosas e de cheiro muito forte – e pólipos nasais. O comprometimento pulmonar é a principal causa de morbidade e mortalidade dos pacientes com FC. A produção de muco espesso e infectado aumenta a suscetibilidade à colonização bacteriana por determinados germes, particularmente Staphilococcus aureus (SA) e Pseudomonas aeruginosa (PA) (ATHANAZIO et al., 2017). A manifestação digestiva mais frequente é a insuficiência pancreática e está presente em 70‑85% dos pacientes com FC. Se não for corrigida de forma adequada, resultará em má absorção de gorduras, causando uma deficiência de vitaminas lipossolúveis, proteínas e gorduras. O tratamento com a reposição com enzimas pancreáticas deve ser iniciado assim que for identificada a insuficiência pancreática. A reposição com as enzimas pancreáticas tem como objetivo controlar a má absorção dos nutrientes e manter e recuperar o estado nutricional, possibilitando a diminuição dos sintomas gastrointestinais. A reposição enzimática é individualizada e baseada na quantidade de lípase. Deve ser ingerida imediatamente antes das refeições (SINGH; SCHWARZENBERG, 2017). 124 Unidade II Lembrete Todos os pacientes com FC e insuficiência pancreática precisam de reposição com enzimas pancreáticas e suplementação vitamínica. 6.3.1 Dietoterapia A desnutrição é uma característica frequente e uma comorbidade da FC. As causas da desnutrição são multifatoriais e estão relacionadas ao aumento nas necessidades de energia (ingestão reduzida de energia, anorexia, citocinas elevadas,
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