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HISTÓRIA E PRINCÍPIOS DA
GASTRONOMIA
CAPÍTULO 1 - COMO OS MEIOS E A
SOCIEDADE DEFINEM O QUE COMEMOS?
Fabiana Lopes Nalon de Queiroz
 
INICIAR
Introdução
Desde que nascemos, somos orientados a comer de uma forma própria. Determinados
alimentos fazem parte do nosso cardápio cotidiano e, alguns deles, consumimos
regularmente mais de uma vez ao dia. Diferentemente, outros nem mesmo são
considerados alimentos para nós. Por exemplo, insetos como gafanhoto e escorpião são
naturalmente apreciados em vários países do Oriente, no entanto causam estranheza e
repugnância para a maioria dos brasileiros. O que faz um alimento ser considerado comida
para um indivíduo ou uma coletividade? Como novos alimentos podem ser incorporados na
dieta de pessoas ou grupos sociais? Você sabe como as pessoas se alimentam em outros
países? 
Comer é um instinto básico da vida animal. No entanto, aquilo que escolhemos para comer
não depende apenas da fome ou carência biológica de alimentos. Na maioria das culturas,
o ato de comer tem, desde a Antiguidade, um valor que ultrapassa o ato material de se
nutrir. A alimentação humana é uma experiência muito mais complexa, movida pelo prazer
e diretamente relacionada à forma como elaboramos as refeições e aos valores imateriais
atribuídos ao alimento. Você já se perguntou quando foi que o alimento deixou de ser uma
necessidade biológica e se transformou em prazer da mesa?
Conhecer a história da formação das práticas alimentares dos diferentes povos e refletir
acerca dos aspectos que influenciam a seleção e o preparo dos alimentos permitem uma
melhor compreensão das necessidades do ser humano no sentido de bem alimentar o
corpo e a alma.
Desejamos um excelente estudo.
1.1 Antropologia alimentar
Dentre as várias características que distinguem os seres humanos de outros animais,
destacamos o relacionamento com a comida (CARNEIRO, 2003; POULAIN, 2006): o homem
tem a capacidade de selecionar os alimentos, prepará-los de formas variadas, cozinhar e
adornar o ambiente da refeição. Planejamos antecipadamente o que vamos comer. Assim,
podemos afirmar a existência de uma forte relação entre o que comemos e os sentimentos
envolvidos na escolha dos alimentos, nos processos culinários e nas maneiras de servir e
comer.
Ao longo da história, o ato de se alimentar tem se modificado profundamente sob a
influência de diversos aspectos. Ao estudarmos a antropologia alimentar, é possível ter
uma visão mais ampla sobre os fatores que influenciam e justificam as escolhas alimentares
de um indivíduo ou de um grupo.
1.1.1 Cultura alimentar: somos o que comemos
As atribuições do quibe ao árabe, da pizza ao italiano, do courvin ao francês, do goulash ao
húngaro e da maniçoba ao índio brasileiro são exemplos do vínculo que os diversos povos
têm com os alimentos. Toda cozinha carrega marcas do passado e reflete a história do povo
a que pertence (LEAL, 1998; FRANCO, 2001; ARAÚJO et al., 2005). A tradição culinária de um
povo é entendida como manifestação cultural a partir do momento que reflete tradições
passadas por gerações, contribuindo para a formação de sua identidade. Considerando
seus vínculos, não podemos negar a importância do alimento como elemento cultural
artístico, religioso, geográfico, científico e econômico (CASTRO, 2002).
Segundo a tradição clássica grega, os bárbaros comiam carne crua ou pouco cozida e este
era um aspecto essencial que os identificavam. Já entre os gregos, que se intitulavam
“civilizados”, o consumo de carne era bem menor, pois o conhecimento de agricultura e o
cultivo de alimentos permitiam que eles tivessem uma dieta que não dependia tanto da
caça. Assim, podemos afirmar que a culinária revela a estrutura da sociedade e a vida
cotidiana de um povo em determinada época.
O paladar é uma construção cultural, gerada pela história e pelos ingredientes disponíveis.
As decisões alimentares não dependem somente da atração direta por certas comidas e a
rejeição clara por outras. Apesar de ser uma escolha automática, ela é decorrente de
critérios subjetivos ligados a preferências ditadas por diversos meios. A expressão “somos o
que comemos” significa, diretamente, o que comemos, o modo como comemos e a forma
como preparamos esses alimentos (CARNEIRO, 2003).
O livro “A fisiologia do gosto” (BRILLAT-SAVARIN, 1995) é referência obrigatória quando falamos a respeito da
história da alimentação. Jean-Anthelme Brillat-Savarin foi um gastrônomo francês que, ainda no século XVIII,
iniciou o conceito da gastronomia como ciência, definindo-a como “o conhecimento fundamentado de tudo o que
se refere ao homem, na medida em que ele se alimenta. Seu objetivo é zelar pela conservação dos homens, por
meio da melhor alimentação” (BRILLAT-SARAVIN, 1995, p. 58).
As práticas alimentares são socialmente construídas e repassadas de geração em geração e,
por isso, não refletem apenas as necessidades biológicas e nutricionais: a escolha de um
alimento, assim como o modo de prepará-lo e consumi-lo, identifica o grupo ao qual
pertencemos (QUEIROZ, 2008). Tais escolhas são influenciadas por diversos fatores. Dentre
eles, de acordo com Poulain (2006), citamos as questões:
VOCÊ QUER LER?
econômicas: limitam ou favorecem o acesso a determinados alimentos;
religiosas: atribuem valor espiritual e simbólico aos alimentos que devem ser
evitados ou reverenciados;
sociais: a preferência por determinado alimento distingue a classe social a qual o
indivíduo pertence;
científicas: o conhecimento acerca da saúde e da tecnologia de alimentos influencia
a escolha alimentar. 
Luís da Câmara Cascudo, historiador e antropólogo brasileiro, é considerado pioneiro nas pesquisas sobre a
formação da culinária brasileira. Estudioso de aspectos da cultura, escreveu o célebre livro “História da
alimentação no Brasil” (1983), no qual explica as raízes da gastronomia brasileira, detalhando suas três influências
básicas: dos índios nativos, do colonizador português e dos escravos de origem africana.
Um mesmo alimento pode assumir diferentes formas de uso e valor dependendo do grupo
que o prepara e consome. Por exemplo, um peixe pode ser consumido cru no Japão e
cozido no Brasil, sendo que essas formas de preparo representam um traço da cultura
alimentar desses dois povos. 
VOCÊ O CONHECE?
O aprendizado de regras e restrições alimentares se inicia na infância e ele é transmitido em
atos cotidianos, dando origem ao que chamamos de tradição alimentar (FRANCO, 2001).
Por exemplo, a maioria das famílias brasileiras consome pão, leite e café na primeira
refeição do dia e, idealmente, deveria comer arroz, feijão e alguma carne no almoço. Já na
sociedade norte-americana o desjejum costuma ser mais substancioso, com a presença de
ovos e bacon no cardápio, mas na hora do almoço é comum comer apenas um sanduíche.
Tais regras não precisam ser ensinadas formalmente, pois seu aprendizado está
naturalmente presente na repetição do dia a dia. 
 Figura 1 - Exemplos de sushi, comida
típica japonesa, cujo arroz é levemente doce e servido frio com peixe cru. Fonte: hlphoto, Shutterstock, 2018.
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Na mesa de refeição e na cozinha, as características e os valores culturais de um grupo
ficam evidentes. A comida é um reflexo do clima, da vegetação, dos hábitos, das tradições,
das preferências e da mistura de influências que cada sociedade sofreu ao longo de sua
formação e evolução.
A arte culinária não é estática: ela se adapta ao longo da história, condicionada por fatores
geográficos, econômicos e religiosos, bem como a evolução da ciência e do comércio.
Inclusive, as interpretações relacionadas à comida mudam com o passar do tempo. Este é o
tema que acompanharemos e discutiremos no próximo item.
1.1.2 Cultura e evolução das práticas alimentares
Apesar da variabilidade e capacidade de adaptação às diversas formas de se alimentar,
algumas noções de qualidade são duradouras e parecem permanecer por séculos. Por
exemplo, vinhos clássicos que hoje são muito valorizados (como os da região de Bordeaux,na França, e do norte da Itália) já eram reconhecidos desde a Idade Média como de
Figura 2 - O arroz da maneira como é consumido usualmente na alimentação brasileira: quente e temperado,
normalmente acompanhado de feijão e carne. Fonte: Paul Cowan, Shutterstock, 2018.
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categoria superior. Por outro lado, determinados sabores e algumas formas de consumo
podem cair em desuso. É o caso do consumo de vinho adoçado com açúcar e especiarias,
que era prática consagrada na antiga Grécia e na Europa Medieval (FRANCO, 2001).
Em tempos mais atuais, podemos ver isso acontecer com alguns pratos e formas de serviço.
O estrogonofe, por exemplo, no passado recente era um prato considerado sofisticado e
servido em ocasiões festivas, mas hoje em dia é visto como uma preparação culinária
popular, consumido no cotidiano da alimentação doméstica.
Assim, podemos afirmar que o gosto muda conforme os valores atribuídos aos alimentos.
Produtos antes consagrados para uso corrente podem parecer ao paladar atual uma
escolha exótica, de apreciação duvidosa ou sem valor.
CASO
Uma jovem visita um destacado buffet, acompanhada do pai e da mãe, em busca de
sugestões de cardápios para sua festa de casamento. Das opções sugeridas, ela
adorou a ilha de sushi e o serviço volante com miniempratados. Mas seu pai, um rico
fazendeiro, não aprovou os cardápios. Ele afirmou que não convidará amigos e
familiares para comer peixe cru e nem “comidinha pouca”, se referindo aos
miniempratados. Também achou um absurdo uma festa de casamento sem jantar e
sem carne e disse: “as pessoas vão pensar que estou quebrado”. Como ajudar a
resolver esse tipo de impasse?
O valor atribuído ao alimento está atrelado a questões individuais – neste caso, a
idade e o capital cultural: de um lado, a filha atualizada com os modismos
gastronômicos; de outro, o pai que não considera o peixe cru como opção alimentar e
atribui o valor de um cardápio à fartura e presença de carne. Cabe ao buffet sugerir
algo que agrade aos dois, garantindo, assim, a contratação do serviço e a completa
satisfação do cliente.
Uma sugestão válida seria: eliminar o sushi, mas manter o coquetel com empratados
nos sabores que a filha preferir; incluir uma mesa de frios, o que daria aparência de
fartura, já que cada um se serve a hora que quiser; fazer uma ilha de prato quente, que
poderia ser de risotos ou massas, incluindo o uso de ingredientes nobres, como
camarão e filé bovino. Assim, a jovem terá uma recepção com serviço jovial e
atualizado, e o pai será atendido na sua necessidade de mostrar fartura e riqueza por
meio do cardápio oferecido.
De modo geral, as práticas alimentares que caracterizam um povo estão profundamente
enraizadas e, por isso, não mudam com acordos ou legislações. No entanto, "o homem
possui capacidade de alterar as cadeias alimentares das quais depende, fazendo uso de
tecnologias para cultivo da terra, o preparo e a conservação de alimentos" (QUEIROZ, 2008,
p. 59). Ao longo da história, essas habilidades e as novas tecnologias resultaram em
abundância e variedade. O que poderia ser visto como algo bom tem também seu lado
negativo, pois, com o enfraquecimento das tradições alimentares, os seres humanos ficam
mais vulneráveis diante da variedade de alimentos disponíveis, tornando mais complicada
a escolha de alimentos para compor sua dieta (POLLAN, 2007).
A globalização e a industrialização representam ameaça para a preservação da
diversidade de alimentos no mundo. Tais acontecimentos modificam o modo de
cultivar, produzir e conservar os alimentos. [...] Nas sociedades mais urbanizadas, os
alimentos típicos perdem espaço para comidas industrializadas, que podem ser
encontradas igualmente em qualquer lugar do planeta, fragilizando a tradição
culinária (QUEIROZ, 2008, p. 13). 
A preservação de bens imateriais tem sido objeto constante de debates e reflexões. No
âmbito das práticas alimentares, podemos observar alguns movimentos no sentido de
resgatar e conservar as tradições culinárias. O regionalismo é uma tendência em
gastronomia na qual chefs conceituados trabalham para que a cozinha local ganhe mais
espaço e fama. Por meio do incentivo ao consumo desses pratos, é possível recuperar
ingredientes locais, técnicas culinárias e receitas típicas. 
“O dilema do onívoro” (POLLAN, 2007) é um livro que tem como referencial básico a afirmação de que as
prateleiras do supermercado representam o estágio final da cadeia alimentar dos seres humanos e revela os
caminhos que o alimento percorreu até chegar ao prato do consumidor. Uma leitura que desvenda a origem dos
alimentos ultraprocessados e mostra por que para nós, seres onívoros, está cada dia mais difícil escolher o que
comer.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) tem
destacado a importância da preservação de bens ligados à cultura alimentar, dado o
reconhecimento de que a comida regional, representada por suas receitas e técnicas
culinárias, é parte do patrimônio cultural de um povo. No Brasil, o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por exemplo, já fez o registro de alguns itens da
culinária regional como bem imaterial da cultura brasileira (QUEIROZ, 2008). 
VOCÊ QUER LER?
Assim, podemos afirmar que a alimentação será sempre ponto para discutirmos e isso exige
competência, pois “além da necessidade de ingerir alimentos para manter a vida, existe
enorme variedade de opções que envolvem esse processo” (QUEIROZ, 2006, p. 62). Opções
alimentares talvez sejam exclusivas, mas geralmente aparecem nos limites estabelecidos
pelos meios sociais (SLOAN, 2005). O comportamento do consumidor muda com o tempo,
condicionado aos conhecimentos adquiridos acerca da relação entre dieta e saúde. Na
atualidade, o brasileiro, assim como vários povos do mundo, vive o dilema entre comer o
que é apreciado na cultura e aquilo que é entendido como saudável (POLLAN, 2007).
Vimos que o consumo de diferentes alimentos e as formas de prepará-los se modificou ao
longo do tempo de acordo com a própria história do homem. A alimentação é uma
linguagem social. Assim, comemos para saciar a fome e para nos relacionar com o mundo
de modo geral. Comer não é apenas um ato biológico, pois envolve vários sentidos: a
alimentação é, portanto, a união de valores simbólicos, cujos valores mudam
constantemente conforme a época e o povo que a consome. 
Figura 3 - Um prato de vegetais com vinagre balsâmico é exemplo de alimentação praticada em diversos lugares
do mundo, cujas raízes se encontram na cultura mediterrânea. Fonte: marco mayer, Shutterstock, 2018.
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1.2 A alimentação e a história das religiões
ocidentais
O termo “religiões ocidentais” se refere àquelas originadas na cultura do Ocidente: o
Cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo são exemplos que escolhemos para tratar neste
tópico.
De acordo com Franco (2001), em várias culturas tradicionais, o alimento-base da economia
e da nutrição costuma estar frequentemente associado à prática religiosa. As regras de
diferentes culturas religiosas são um importante alicerce de afirmação da identidade
cultural. 
Para as diversas religiões, cada alimento é visto e considerado como uma ligação direta
com o divino. Desse modo, a identidade religiosa pode ser traduzida por meio de uma
identidade alimentar, por exemplo: ser judeu ou muçulmano significa, dentre outras regras,
não comer carne de porco. Os alimentos e as bebidas adotados ou proibidos pelos
preceitos de uma religião refletem aspectos históricos, geográficos, políticos e culturais do
local onde ela se originou (CARNEIRO, 2003).
1.2.1 Cristianismo
O Cristianismo possui suas origens nas tradições do antigo Império Romano e, por isso,
recebeu forte influência das práticas alimentares da Antiguidade Clássica. Naquela época, a
alimentação tinha por base o pão, o vinho e o azeite, e esta religião os incorporou em seus
rituais, conferindo a eles um valor sagrado (FRANCO, 2001):
pão: reconhecido como um dos alimentosmais antigos, consumido desde a pré-
história e aprimorado provavelmente pelos egípcios, é símbolo de fartura e um dos
primeiros alimentos usados para simbolizar a partilha do alimento. No ritual da
eucaristia, o pão é simbolicamente transformado no corpo de Cristo;
vinho: sempre esteve associado à capacidade de aproximar o homem do divino e
representa o sangue de Jesus Cristo. Ao longo da sua história, o cultivo da uva fez
parte dos afazeres de diversas ordens religiosas, o que inegavelmente contribuiu para
que sua produção chegasse ao grau de aprimoramento dos dias atuais;
azeite: empregado na unção sagrada, sempre teve grande valor por desempenhar
funções importantes: cozinhar, servir de combustível para iluminação, ser aplicado na
limpeza, desempenhar finalidades cosméticas e terapêuticas, entre outras. A oliveira
é uma árvore que se destaca nas paisagens do Mediterrâneo, cresce em solo pobre e
arenoso e, associada a mitos e práticas religiosas, é símbolo de vitória, paz,
sabedoria, justiça, abundância e fertilidade. 
Além do trio pão, vinho e azeite, cabe destacarmos o valor simbólico atribuído ao sal. Nas
culturas antigas, ele gozava de grande prestígio, devido à sua importância para a
conservação dos alimentos. No Cristianismo, esse mineral é símbolo da renovação do
mundo e durante muito tempo foi empregado em cerimônias do batismo católico na Roma
Antiga (FRANCO, 2001).
Na prática atual, entre os católicos, é feito o jejum durante a Quaresma, período que se
inicia logo após a Quarta-feira de Cinzas e termina na sexta-feira que precede a Páscoa. Por
isso, é tradição entre esses religiosos não comer carne na Sexta-feira Santa.
1.2.2 Judaísmo
 Figura 4 - Durante quarenta séculos, o
trigo foi a principal fonte de energia para os seres humanos na área que hoje corresponde à Europa, a parte do
Oriente e ao Norte da África. Fonte: isak55, Shutterstock, 2018.
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Scolnicov (2013, p. 10) nos traz que essa religião "começa pelo Pentateuco (em hebraico:
Torá), os cinco livros tradicionalmente atribuídos a Moisés, e os demais livros da Bíblia (em
hebraico: Tanakh, acrônimo de Torá, Nevi’im, Ketuvim: Pentateuco, Profetas e Escritos)".
A compreensão dos preceitos da alimentação judaica está baseada no entendimento da
palavra kasher, que quer dizer correto, justo e bom (ENDE, 2006). Uma regra essencial diz
respeito ao tipo de carne que pode ou não ser consumida: dentre as permitidas, estão a
de vaca, carneiro, bode e cervo. A maioria das aves também é permitida, tais como frango,
peru, ganso, faisão e pato. No capítulo 11 do Levítico, está escrito: "Entre todos os animais
da terra, os que podereis comer: aqueles que têm os cascos fendidos e que ruminam"
(BÍBLIA SAGRADA, 2005).
Já no capítulo 14 do Deuteronômio, enfatizando o que não se deve comer, consta que
nenhum crustáceo é kasher: "Comereis de tudo que há nas águas: tudo que tem barbatanas
e escamas comereis; e tudo o que não tem barbatanas e escamas não comereis; é impuro
para vós" (BÍBLIA SAGRADA, 2005, grifos nossos).
Outra regra importante consiste em não preparar, armazenar nem consumir alimentos à
base de carnes com alimentos que contenham leite e derivados. No capítulo 19 do livro
do Êxodo, diz: "Não cozerás o cabrito no leite de sua mãe” (BÍBLIA SAGRADA, 2005). Por isso,
alimentos que contenham leite ou seus derivados, mesmo que presentes em pequena
quantidade, devem ser preparados e consumidos com um intervalo de seis horas em
relação ao consumo de preparações à base de carnes.
Na leitura que podemos fazer em Ende (2006), há uma série de leis e costumes judaicos, os
quais podemos elencar alguns:
é recomendado ter utensílios separados exclusivamente para o manuseio de
laticínios – inclusive os judeus mais rigorosos usam um forno separado para assar
alimentos lácteos;
frutas, vegetais, cereais e outros alimentos que crescem na terra podem ser
utilizados, incluindo os peixes e ovos, sendo que estes últimos podem ser
consumidos tanto com carne quanto com leite;
vinho e suco de uva representam a santidade do povo judeu. São usados para a
santificação do Shabat (dia do descanso semanal) e nas festas judaicas. Idealmente, o
vinho e o suco de uva devem ser produzidos por pessoas de fé judaica. No entanto,
na impossibilidade de se obtê-los, é recomendada a pasteurização por meio da
fervura branda, o que faz com que a bebida se torne kasher;
durante o processo de industrialização, para serem considerados kasher, os produtos
precisam ser supervisionados por autoridades religiosas, sendo identificados por
símbolos impressos em suas embalagens: em geral, um “U” ou um “K” dentro de
um círculo ou em uma moldura;
a lavagem das mãos, seguida de oração, é uma prática obrigatória antes de
preparar, cozinhar ou comer;
a alimentação judaica não trata de uma dieta específica, sendo que comidas típicas
de outras culturas podem ser consideradas kasher, desde que preparadas de
acordo com as leis judaicas.
O conjunto de normas alimentares judaicas tem garantido a higiene e a qualidade dos
alimentos entre os povos que compartilham a fé judaica. 
1.2.3 Islamismo
O Islã é uma religião que tem origem na Península Arábica, no século VII, e reconhece
Maomé como o legítimo profeta de seu único deus, chamado Alá. Seus ensinamentos
religiosos estão descritos na escritura sagrada do Alcorão. 
Dentre os aspectos importantes para a prática do islamismo, destacamos a valorização da
família e a ida à mesquita, local sagrado de oração. As práticas religiosas compreendem,
de acordo com Vernet (2004):
as cinco preces diárias a Alá;
o dever de ajudar os necessitados;
a obrigação de praticar o jejum durante o dia no período do Ramadan (nono mês do
calendário islâmico);
fazer uma peregrinação à cidade de Meca pelo menos uma vez na vida. 
Maomé foi o fundador do Islamismo, religião predominante no mundo árabe, da qual é considerado profeta. Além
do caráter religioso, a difusão do Islã pela Europa e pelo Norte da África influenciou não apenas a divisão
geográfica e política de várias regiões como deixou marcas nas artes, na arquitetura, nas ciências e na
alimentação.
Ainda segundo Vernet (2004), alguns dos alimentos considerados halal (permitidos), são:
leite de vacas, ovelhas, cabras ou camelas; mel; peixes; vegetais (frescos ou
congelados); frutas frescas ou secas; oleaginosas; grãos como trigo, arroz, painço,
VOCÊ O CONHECE?
milho e aveia. Já como  haram (proibidos) temos: suínos e seus derivados, répteis,
insetos, aves de rapina, animais que morrem naturalmente e bebidas alcoólicas.
Flandrin; Montanari (1998) e Vernet (2004) nos trazem complementos a esse respeito:
o porco vive na sujeira e se alimenta dela, tratando-se de uma carne impura;
o consumo de outras carnes depende do modo como o animal foi abatido;
o sangue de qualquer animal é proibido, e a carne mal passada que contenha muito
sangue é considerada haram;
o ritual do abatimento segue requisitos rigorosos: deve ser feito preferencialmente
por um muçulmano (mas pode ser feito por judeu ou cristão), o nome de Alá deve ser
pronunciado no momento do abate, o pescoço do animal deve ser cortado no ponto
abaixo da glote, de modo que ele tenha uma morte rápida;
frutos do mar em geral são permitidos, pois não requerem abate.
A cultura islâmica, com suas tradições religiosas e alimentares, influenciou outras partes do
mundo durante a expansão marítima europeia, e as negociações com o mundo islâmico
foram essenciais para a transformação dos hábitos alimentares no mundo ocidental. 
Figura 5 - Os livros considerados sagrados são instrumentos de conhecimento e neles se encontram as regras
alimentares que fazem parte da prática da maioria das religiões. Fonte: Africa Studio, Shutterstock, 2018.
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1.3 A alimentação e a história das religiões
orientais
A religião nas culturas orientais é um elemento que fundamenta vários preceitos da vida
cotidiana, sendo um fator de coesão das comunidades, tanto em núcleos humanos isolados
quanto nas grandescidades, funcionando como um sustentáculo cultural, um elo de
extraordinária força e influência em vários aspectos da vida social (CARNEIRO, 2003). 
O pensamento religioso, como mediação entre o mundo material e espiritual, dita e regula
os costumes, os rituais e as práticas de muitas comunidades orientais. O respeito e a
observância de certos preceitos marcados pela religião chegam também à mesa. Desde as
eras mais remotas, praticava-se o tabu ao consumo de certas espécies, consideradas
sagradas (GALVÃO, 2005). A abstinência e/ou a simples proibição de certos alimentos ou
bebidas são comuns. Por exemplo, tomar chá no Japão não é só beber um líquido
confortante: trata-se de uma prática ritual, uma verdadeira cerimônia (OKAKURA, 2008).
1.3.1 Aspectos alimentares das religiões orientais
As religiões orientais se desenvolveram no continente asiático, abrangendo países como
Índia, Japão e China. Os ocidentais sempre enxergaram os orientais como um povo
homogêneo, porém existe uma grande diversidade entre os asiáticos e suas culturas, em
um âmbito geográfico e demográfico imenso. Suas religiões têm como preceitos a oferta
do alimento e, por isso, respeitar os cultivos, preservar o solo e observar os fatores
climáticos são ações diretamente ligadas ao desenvolvimento demográfico e às
condições geográficas e ecológicas dessas regiões (GALVÃO, 2005).
O Budismo é uma filosofia de vida baseada nos ensinamento do Buda. Sua prática se
dedica a condicionar a mente para conduzi-la à serenidade, paz, alegria e liberdade. Nesta
religião, o sacrifício de animais não é permitido, pois o primeiro mandamento consiste
em não destruir a vida. Por isso, os budistas são vegetarianos. Eles também não devem
consumir álcool e nem se alimentar em horas proibidas (LANDAW; BODIAN, 2011).
Assim como no Hinduísmo, para os budistas o ato de jejuar envolve ao mesmo tempo
valores de culpabilidade e estratégia de um consumo mais parco. Trata-se da
conscientização do que, quanto e quando devemos comer. Esses valores e
comportamentos enaltecem a austeridade e fixam a atenção naqueles que não podem
obter e consumir alimentos da mesma maneira que seus semelhantes. O jejum permite
reconhecer a possibilidade de um dia passar por essa mesma dificuldade (YOGANANDA,
2006; GASPAR, 2011). 
Por englobar várias filosofias, ideias e costumes de várias origens, a gastronomia hindu é
marcada pela herança das várias correntes religiosas que convivem no seu vasto território.
Os que receberam influência budista são vegetarianos, mas algumas vertentes da
religião incluem o consumo de frango e peixe. A vaca é considerada um animal sagrado,
por isso não se faz o abate para o consumo de sua carne. No entanto, o leite, assim como
seus derivados, são largamente empregados na cozinha hindu. Para algumas correntes
hindus, os alimentos lácteos carregam consigo o potencial de reforçar a espiritualidade dos
indivíduos (YOGANANDA, 2006).
O filme O tempero da vida (NIKOLARIZI; ZERVOULAKOS; BOULMETIS, 2003) narra a formação de um cozinheiro que
é ensinado pelo avô, desde a infância, sobre os conceitos filosóficos do sabor, do significado da comida e do seu
profundo vínculo com a própria vida.
Na história da gastronomia e religião da China, a filosofia de que o alimento possui uma
natureza religiosa conduziu a um pensamento voltado para a busca do equilíbrio, que na
alimentação se revela pelos contrastes, também entendido como equilíbrio dinâmico.
Por isso, é frequente que as preparações culinárias façam uso das combinações doce-
salgado, frio-quente, macio-crocante. São os opostos yin e yang, base da macrobiótica
zen, simbolizado pela esfera de duas cores (branco e preto), nas quais cada uma contém
uma porção da outra, revelando uma coexistência harmoniosa (FRANCO, 2001). 
VOCÊ SABIA?
O arroz é um alimento de grande importância para a culinária chinesa. No entanto, em um
banquete chinês, não é costume servi-lo. A ausência desse ingrediente demonstra que o
anfitrião pode oferecer uma ampla variedade de alimentos, sendo dispensável servir o que é
cotidiano. Já no Japão, a importância cultural do arroz para a sociedade se reflete em nomes
de grandes indústrias da atualidade: por exemplo, Honda significa arrozal principal e Toyota,
arrozal fértil. O nome do principal aeroporto de Tóquio, Narita, quer dizer arrozal em formação
(FRANCO, 2001).
Na China, o arroz é um importante produto da agricultura e economia local, mas também é
símbolo de vida e fertilidade. Uma tradição no Ano Novo inclui a oferenda de uma tigela de
arroz no altar dedicado aos ancestrais como pedido de proteção. Outro ritual chinês
VOCÊ QUER VER?
determina que uma tigela de arroz seja colocada aos pés de um morto para que ele possa
se alimentar em sua viagem para outra vida (FRANCO, 2001). 
1.3.2 A alimentação do oriente
A China possui uma vasta literatura gastronômica. Ao longo de sua história, sábios, políticos
e filósofos escreveram sobre alimentação e receitas culinárias. Há aproximadamente mil
anos antes de Cristo, enquanto a Europa Ocidental vivenciava a Idade Média, na China
cozinhar já era considerado uma arte (FRANCO, 2001).
Duas influências marcaram a gastronomia chinesa:
confucionismo: estabeleceu várias regras para a preparação e apresentação dos
pratos, resultando em elegância e cerimônia;
taoísmo: enfatizou o retorno à natureza, buscando simplicidade e uso de
ingredientes sazonais.
No período da dinastia Tang, a China passou por uma grande expansão territorial e
influenciou todas as regiões ao seu redor. Além da religião, elementos culturais (como as
artes, a arquitetura, a escrita e a literatura) foram fortemente impactados – assim como a
gastronomia. Por isso, a alimentação de todos os países do Extremo Oriente possui herança
chinesa (FRANCO, 2001).
A cozinha chinesa é marcada pela escassez de recursos e, por isso, se apresenta mais
flexível e com uso de ingredientes variados. Tudo o que é comestível deve ser aproveitado,
evitando os desperdícios. Até a forma de cozinhar foi influenciada pela carência de lenha
como combustível para o fogo, resultando em preparações de cozimento rápido. O hábito
de cortar as carnes e os vegetais em pequenos pedaços também diminui o tempo de
cocção e ajuda a economizar combustível. Habitualmente, gasta-se mais tempo no pré-
preparo do que na cocção do prato.
A cozinha japonesa recebeu forte influência da tradição culinária chinesa. No entanto, a
partir do século X, o Budismo em ascensão no país estabeleceu proibição à morte de
animais, considerando a carne de gado imprópria para consumo. Tal fato levou seus
adeptos a uma dieta predominantemente vegetariana, com exceção para o consumo de
peixes, que ainda representam a base proteica da cozinha japonesa (FRANCO, 2001). 
A soja é um ingrediente de grande importância para a gastronomia nipônica, sendo que a
maioria das receitas faz uso de três importantes produtos derivados da soja: o missô (pasta
fermentada); o tofu (coágulo obtido do leite); o shoyo (molho salgado). O arroz se encontra
no mesmo nível de importância, preparado cozido no vapor ou sob a forma de bolinhos.
VOCÊ SABIA?
No Japão do século XV, o consumo do chá se disseminou e ganhou forma religiosa, com rituais
de concentração, meditação e harmonia, inspirados nas práticas contemplativas do zen-
budismo. A partir do século XVI, os japoneses desenvolveram o costume de construir o que
chamam de “casa do chá”. Trata-se de um local próximo à residência, destinado à cerimônia da
bebida, com objetivo de concentração favorável à meditação em busca da harmonia (FRANCO,
2001; OKAKURA, 2008).
A Índia, devido às relações comerciais com a China nos séculos V e VI, absorveu fortes
influências gastronômicas (GALVÃO, 2005). No entanto, a predominância da religião budista
e a convivência com os muçulmanos deixaram marcas importantes na cozinha indiana,
como a ausência da carne bovina e o amplo emprego de especiarias (YOGANANDA, 2006). 
1.4 A alimentação pré-histórica
É denominada pré-história o período que abrange a atividade humanadesde suas
origens até o aparecimento da escrita, no ano 4.000 a.C. A espécie Homo sapiens, da qual
somos parte, alcançou sua forma depois de um longo período de evolução de diversas
espécies do gênero Homo (LEAL, 1998; HARARI, 2016; FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
Determinar a dieta dos primeiros humanos não é tarefa fácil devido à falta de evidências
concretas para definir o que comiam há aproximadamente 5 milhões de anos.
Paleontólogos e antropólogos afirmam que nossos ancestrais mais antigos se locomoviam
apoiados nos quatro membros (dianteiros e traseiros) e, por isso, tinham uma visão de
mundo reduzida, que se limitava mais especificamente ao solo. Por isso, viviam como
coletores, alimentando-se do que encontravam pelo chão. A alimentação predominante era
herbívora, entendida como uma consequência natural da locomoção desses hominídeos
(LEAL, 1998; FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
Muitos cientistas afirmam que a adoção de uma dieta baseada em proteína animal teria
contribuído para a evolução dos seres humanos como resultado da criação de diversas
habilidades para conseguir esse tipo de alimento. Mesmo como forma de organização
social ainda rudimentar, a dieta carnívora deu um considerável impulso ao nosso
desenvolvimento como espécie (LEAL, 1998; HARARI, 2016; FLANDRIN; MONTANARI, 1998). 
1.4.1 A alimentação do Homo sapiens
A mudança de locomoção dos hominídeos, que se tornam bípedes, modificou
profundamente o modo de viver e, consequentemente, de se alimentar. Ter mãos livres
permitiu manusear tudo o que eles encontravam na natureza.
 Figura 6 - Na atualidade,
algumas sociedades indígenas, por não possuírem uma linguagem escrita, preservam características do homem
pré-histórico. Fonte: Marzolino, Shutterstock, 2018.
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Ao conseguir atribuir usos variados para tudo o que a natureza fornecia, foram adaptando
suas necessidades, resultando na construção das primeiras ferramentas. A alteração na
locomoção ampliou o alcance da visão, permitindo encarar os demais seres que
compartilhavam o mesmo espaço e promovendo uma melhor compreensão do mundo
(LEAL, 1998; FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
Essas alterações resultaram em novidades no cotidiano e nas relações entre os hominídeos
e o mundo que os cercava. A obtenção de alimento nunca foi tarefa simples e os ciclos de
fome não desapareceram em nenhum momento da história. Os homens pré-históricos
sempre foram obrigados a procurar alimentos nos diversos espaços pelos quais circulavam.
Sendo assim, não abandonaram o consumo de raízes, animais rasteiros, insetos, folhas
e frutos. No entanto, à medida que desenvolveram habilidades de caça, ocorreu, aos
poucos, um remanejamento de funções. O trabalho de coleta passou a ser,
predominantemente, atribuição das mulheres, cabendo aos homens a caça e a pesca
(HARARI, 2016).
A economia de subsistência sempre foi predominante e fortemente marcada pelas
condições climáticas. O nomadismo de pequenos grupos em busca de ambientes mais
prósperos em alimentos era constante. Formas de organização social, mesmo que muito
primitivas, começavam a surgir por meio desse ato cotidiano de busca, coleta e consumo de
alimentos. A distribuição de tarefas começou a delimitar as obrigações e funções que cada
um desempenhava dentro do grupo. Os homens cumpriam encargos mais pesados, com
grandes deslocamentos para caçar ou achar restos de animais que pudessem ser
aproveitados. As mulheres cuidavam dos filhos e mantinham o alimento sob custódia, ao
mesmo tempo em que aprendiam sobre seu preparo e sua conservação. A formação de
grupos para otimizar o ato de caçar e comer junto, partilhando o mesmo alimento, foi o
primeiro sinal de comensalidade (LEAL, 1998).
Estes acontecimentos se desenvolveram ao longo de milhares de anos e muitos deles
aconteceram simultaneamente em diversas partes do mundo. Cada nova alteração nos
hábitos dos homens pré-históricos se consolidou com a repetição dessas práticas ao longo
de muitas gerações. Aos poucos, em conjunto com vários aspectos evolutivos, surgiram
comunidades mais organizadas e desenvolvidas (FRANCO, 2001). 
1.4.2 Evolução na obtenção e no uso da carne
A obtenção de proteína animal era tarefa árdua e, ao mesmo tempo, muito necessária para
a sobrevivência dos primeiros humanos. O valor concedido aos animais se refletia inclusive
em formas de representação identificadas mais tarde como arte, mas que em seu momento
era, sobretudo, uma forma de demonstrar sua preocupação radical com a perspectiva de
caça.
A história descreve que a habilidade do homem em obter a carne e a forma de dilacerar a
carcaça dos animais sofreram alterações de forma gradativa, em um período de longa
duração e descrito em três etapas (FLANDRIN; MONTANARI, 1998):
Figura 7 - Pintura rupestre da época pré-histórica, representando animais e caçadores com lanças, arcos e
flechas. Fonte: Jannarong, Shutterstock, 2018.
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primeira etapa (meados de 2,6 milhões de anos atrás): chamado de Paleolítico ou
Idade da Pedra Lascada, esse período foi marcado pelo fato de os hominídeos terem
uma capacidade ainda reduzida de obter alimentos de origem animal, se
aproveitando de restos deixados pelos grandes predadores. Eles retiravam e
retalhavam a carne dos ossos das carcaças de animais (carnes normalmente já em
estado de decomposição) com algumas lascas de pedras afiadas ou instrumentos
feitos de pedra;
segunda etapa (aproximadamente 8.000 a.C.): chamado de Neolítico ou Idade da
Pedra Polida, esse período foi marcado por um procedimento mais comum de
manuseio da carne a ser ingerida. O desenvolvimento da habilidade de quebrar
ossos para também aproveitar o tutano de seu interior fez como que os homens
não abandonassem as carcaças de animais, ao contrário: elas eram transportadas
para lugares diferentes de onde o animal havia sido abatidos. Apesar disso, os
hominídeos já conseguiam obter suas próprias presas. Assim, a caça começava a
se destacar como importante atividade econômica e de sobrevivência para esses
grupos;
terceira etapa (em torno de 5.000 a.C.): chamado de Idade dos Metais, esse
período é marcado por uma grande evolução quanto ao tratamento que os
hominídeos davam à carne. Além de caçar suas próprias presas e assim obter
carcaças intactas, desenvolveram a capacidade de retalhar os restos de animais,
otimizando o aproveitamento das carnes. Essa evolução foi possível em
decorrência das novas habilidades para se apropriar das presas de outros
carnívoros e também em decorrência da prática da caça, que se tornava cada vez
mais rotineira e eficiente, imprescindíveis para a subsistência dos grupos.
O desenvolvimento da habilidade de caça causou uma diminuição no número de espécies
carnívoras. A inclusão e a entrada dos hominídeos no topo da cadeia alimentar carnívora,
somadas às alterações climáticas da época, causaram mudanças de forma drástica no
ecossistema de várias regiões do planeta (HARARI, 2016).
A descoberta e o domínio do fogo há aproximadamente 1,5 milhão de anos
proporcionaram mudanças muito além da cocção dos alimentos: ele aquecia o homem,
mantinha as feras afastadas, era usado como instrumento de dominação de animais e
servia para modificar o sabor das carnes, torrar os grãos e conservar os alimentos.
Os mais antigos fósseis humanos foram encontrados ao longo da África Oriental, onde
existe grande quantidade de gêiseres e fontes termais. Paleontólogos acreditam que,
mesmo antes de dominar o fogo, os primeiros hominídeos tenham usado a chama
proveniente dessas fontes para restaurar o calor e o sabor das carnes de presas
abatidas.  Segundo Franco (2001); Flandrin; Montanari (1998); Leal (1998), as ações de
cozimento se regularizaram após serem notórias as modificações que a ação e as técnicas
do fogo poderiam fazer com as carnes (dar mais maciez, deixar o sabor mais harmonizado e
torná-las mais fáceis de rasgar durante a mastigação).
A guerra do fogo (BRACH; ROSNY, 1981) é um filme que retrata os acontecimentos da pré-história e confronta o
modo devida de duas tribos: os Ulam, menos desenvolvidos, acreditavam que o fogo era algo sobrenatural; e os
Ivaka, grupo com hábitos avançados e comunicação mais complexa, que já dominavam a produção do fogo. O
filme mostra com detalhes esse importante momento da evolução do homem.
O ato de cozinhar, exclusivo na espécie humana, é elemento de distinção em relação aos
outros seres vivos. “O uso regular do fogo no universo doméstico modificou profundamente
a alimentação, assim como os comportamentos sociais a ela relacionados” (FLANDRIN;
MONTANARI, 1998, p. 44). O gosto pela carne cozida, consumida por animais carnívoros
depois de incêndios naturais, era corrente, todavia só o homem pôde fazer disso uma
prática regular. 
1.4.3 A revolução agrícola
Um evento importante que acompanhou a transição da alimentação herbívora para
carnívora foi a revolução agrícola, que colocou fim ao nomadismo e modificou
profundamente o modo de viver do homem pré-histórico (LEAL, 1998).
Dentre as características que marcaram tais mudanças, destacamos, de acordo com Harari
(2016):
domínio de técnicas de agricultura e cultivo dos primeiros cereais;
domesticação de animais, que permitiu o acesso regular ao alimento fonte de
proteína;
desenvolvimento da produção e utilização de objetos cerâmicos e de pedras
lapidáveis (polidas), enriquecendo as possibilidades de caçar e cozinhar;
uso da madeira para manter o fogo aceso e realizar o cozimento de alimentos;
desenvolvimento dos primeiros fornos, importantes para a produção de pães;
surgimento dos primeiros acampamentos fixos, que dariam origem às aldeias e
cidades.
VOCÊ QUER VER?
Ainda segundo Harari (2016), a revolução agrícola representou um grande salto para o
desenvolvimento da humanidade, marcando uma etapa histórica de progresso e evolução.
No entanto, alguns historiadores afirmam que, ao invés de inaugurar uma vida de
tranquilidade e abundância, o camponês-agricultor viu reduzir a variedade de espécies
vegetais existentes e se tornou escravo de um estilo de vida menos gratificante e com
opções alimentares menos diversificadas do que seus antecessores coletores-caçadores.
Síntese
Terminamos o capítulo da disciplina estudando alguns aspectos da história da humanidade
sob a ótica da alimentação. Por meio dessa reflexão, podemos afirmar que o alimento
possui significados amplos na vida dos seres humanos, ultrapassando o sentido biológico
da nutrição. Vimos como nossos ancestrais mais antigos deram os primeiros passos à
ciência da gastronomia e reconhecemos que o alimento deve ser tratado com respeito à
tradição, pois faz parte da nossa história e memória, tanto gustativa quanto identitária. 
Neste capítulo, você teve a oportunidade de:
compreender a influência da Antropologia e da Sociologia nas práticas alimentares;
identificar práticas alimentares presentes em algumas religiões ocidentais e orientais;
entender como funcionava a alimentação na pré-história.
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