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Direito Processual GRÃO-CHANCELER Dom Walmor Oliveira de Azevedo REITOR Prof. Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães DIRETORIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA • IEC PUC MINAS DIRETOR Prof. Alexandre Rezende Guimarães COORDENADOR DO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL Prof. João Antônio Lima Castro http://lattes.cnpq.br/3057169550902581 CONSELHO EDITORIAL Profa. Dayse Starling Lima Castro http://lattes.cnpq.br/8319912559762715 Prof. Fabrício Veiga Costa http://lattes.cnpq.br/7152642230889744 Profa. Isabela Dias Neves http://lattes.cnpq.br/9053854828646187 Prof. João Antônio Lima Castro http://lattes.cnpq.br/3057169550902581 Prof. Marcelo Cunha de Araújo http://lattes.cnpq.br/0639602557564194 Prof. Sérgio Henriques Zandona Freitas http://lattes.cnpq.br/2720114652322968 COORDENAÇÃO DA OBRA Prof. João Antônio Lima Castro PROJETO GRÁFICO Carla Clark (31) 3271.0589 9950.8157 carlaclark@imdp.com.br . http://lattes.cnpq.br/0975920324587658 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais D598 Direito Processual /Coordenador: João Antônio Lima Castro. Belo Horizonte: PUC Minas, Instituto de Educação Continuada, 2012. ISBN 978-85-98185-25-5 Coletânea de artigos dos especialistas em Direito Processual pelo IEC/PUC Mi- nas. Bibliografia. 1. Direito processual. I. Castro, João Antônio Lima. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Instituto de Educação Continuada. CDU 347.9 999 O DISCURSO PROCESSUAL DEMOCRÁTICO Dhenis Cruz Madeira1 Nos países que se auto-intitulam democráticos,2 o povo é visto como a única fonte de poder.3 Neste sentido, Gomes Canotilho afirma que o Estado Democrático de Direito deve ser visto “como uma ordem de domínio legitimada pelo povo.”4 Entretanto, para que se possa compreender o discurso processual democrático e o próprio Processo Constitucional, é necessário responder a uma pergunta fundamental, mas que, nem de longe, é nova: que povo seria este e qual o significado atribuído a tal expressão? Longe de sua concepção icônica,5 ao menos nesta pesquisa, povo não quer dizer o mesmo que malta,6 ou seja, não se pode usar a locução para designar uma massa abstrata, amorfa, ruidosa e impassível de identificação efetiva. Aliás, para que o tema fique mais claro, para saber o que vem a ser povo no Estado Democrático de Direito, é necessário, antes, fazer um brevíssimo esclarecimento sobre o que vem a significar a adjetivação icônico e o sentido, aqui empregado, da locução malta. De início, é preciso lembrar que Friedrich Müller, identificando uma ideologia impregnada no uso da palavra povo, escreveu obra, bem conhecida entre os juristas brasileiros, com o sugestivo título Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Nesta obra, Müller mostra que o termo povo é polissêmico e, dentre os significados que apresenta, oferta aquilo que compreendeu ser o povo como ícone. Tem-se aí uma idéia abstrata de povo, uma concepção de povo muito utilizada por governantes autocráticos que se interessam, justamente, em mitificar e sacralizar a expressão, invocando-a em discursos e textos. Fazem isto para, justamente, transformar o povo (real, e não o ícone) numa massa uniforme e indivisível, facilitando, assim, o propósito de dominação. O povo-ícone é carente de legitimação, pois não participa do espaço político de construção das decisões estatais. É um objeto na voz do governante autoritário, que sempre o invoca para justificar seus atos. Neste sentido, tal autocrata costuma dizer que fez isto ou aquilo em nome do povo. Que povo é este? Justamente, o povo-ícone, pois ele não existe, não se inclui no sistema e não possui vida política. O povo-ícone, na voz do déspota, passa a ser fonte de expressões como bem-comum, interesse público, finalidade social, etc, tudo isto, também, alimentando a idéia de que os agentes do Estado são capazes de captar uma, também icônica, vontade do povo. É aproximadamente neste sentido que caminha Fredrich Müller ao tratar do povo icônico, dizendo que esta idéia é defendida, justamente, para alienar os indivíduos, de modo que se tornem mais facilmente dominados e conduzidos pelo autocrata. Cada componente do povo (real) passa, então, a se anular como indivíduo, sendo sacralizado. Neste ponto, é possível transcrever um trecho das palavras de Müller: 1 Advogado. Doutor, Mestre e Especialista em Direito Processual pela PUC Minas. Coordenador do Curso de Direito da PUC Minas Contagem. Professor do curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Processual do Instituto de Educação Continuada da PUC Minas (IEC-PUC Minas). Professor Adjunto IV (concursado) de Teoria Geral do Processo, Direito Processual Civil e Prática Jurídica Cível do curso de graduação em Direito da PUC Minas. Professor convidado de diversos cursos de pós- graduação em Direito no país. E-mail: cruzmadeira@hotmail.com. 2 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 100. 3 No Brasil, como em muitos países, há previsão constitucional (parágrafo único do art. 1º) de que “todo poder emana do povo”. 4 Direito constitucional e teoria da constituição, p. 98. 5 Cf. DEL NEGRI, André. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional, p. 39. 6 Cf. CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 93; MADEIRA, Dhenis Cruz. Igualdade e Isonomia Processual, p. 437-438. 1 000 “O povo como ícone, erigido em sistema, induz a práticas extremadas. A iconização consiste em abandonar o povo a si mesmo; em ‘desrealizar’ [entrealisieren] a população, em mitificá-la (naturalmente já não se trata há muito tempo dessa população), em hipostasiá-la de forma pseudo-sacral e em instituí-la assim como padroeira tutelar abstrata, tornada inofensiva para o poder-violência (...).” 7 Como se vê, trata-se de idéia muito próxima de outras duas: a do homo sacer e a da malta. O homo sacer, que foi profundamente estudado por Giogio Agamben,8 é o homem sacralizado, que habita o espaço nu, o espaço não-normativo, sem lei. Trata-se de um homem dominado por alguém que o sacraliza. O homo sacer não se vê como indivíduo, não integra o Estado, está fora da sociedade civil9 e, em suma, não consegue participar do discurso processual. O camponês de Franz Kafka10 é, ao que tudo indica, um homo sacer. Trata-se da criação de uma exceptio, de uma suspensão de direitos civis, à semelhança da explanação de Agamben.11 Aliás, como bem explicou André Leal,12 a exceptio bülowiana do direito processual – que é nominada de pressuposto processual -, também permite ao magistrado suspender a aplicação da lei mediante uma filtragem solipsista. Pela análise solipsista dos pressupostos processuais, o juiz poderá dizer se a lei alegada pela parte deve ou não ser aplicada, se suspenderá sua aplicação ou não, bastando que diga que o mérito não poderá ser julgado pela via da exceptio. A sacralização a que se faz referência, tanto no povo icônico, quanto no homo sacer, refere-se a uma sacralização negativa, à semelhança da exceptio dos antigos romanos13 e que também foi abraçada por juristas de diferentes épocas, como Vico,14 Carl Schmitt15 e Bülow,16 todos eles, buscando transcender ao direito positivo e suspender sua aplicação - e talvez os gregos com seus não-cidadãos, com os escravos, mulheres, etc - faziam com aqueles que não tinham os chamados direitos civis. A expressão sociedade civil, largamente utilizada na atualidade, possui forte carga ideológica e é, para o espanto daqueles que a utilizam em freqüência, pelo menos em sua origem histórica, antidemocrática. Dizer sociedade civil é fazer referência a um conjunto de pessoas, também icônico, que já possuem direitos civis, ou seja, aqueles que jáestão na espacialidade jurídica, já efetivaram os direitos fundamentais básicos. Não integra a sociedade civil, por exemplo, os que estão fora do sistema, fora da espacialidade jurídica, ou melhor, aqueles que não conseguiram implementar os direitos fundamentais básicos (acesso à moradia, saúde, educação, segurança, etc). Estes últimos, que são o homo sacer, o camponês kafkiniano,17 etc, sem que saibam, também fazem parte do povo icônico bradado nos discursos dos ditadores. 7 MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia, p. 67. 8 Cf. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 9 Cf. LEAL, Rosemiro Pereira. Processo Civil e Sociedade Civil. 10 KAFKA, Franz. Diante da Lei, p. 71-2 11 Cf. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. 12 Conferir nota de rodapé número 7 da obra: LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, p. 40-41. 13 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 30; LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, p. 40-41. 14 Agamben (Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 25) chegou a dizer que “A oposição viqueana entre direito positivo (ius theticum) e a exceção exprime bem o estatuto particular da exceção. Esta é, no direito, um elemento que transcende o direito positivo, na forma da sua suspensão.” 15 Mais uma vez, é preciso lembrar que Agamben (Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 33), além de tratar da exceptio romana, liga-a a exceção defendida por Schmitt, dizendo que, “em Schmitt, a soberania se apresenta na forma de uma decisão sobre a exceção.” Schmitt, em teoria afeta ao nazismo, também defendia que o soberano suspenderia a aplicação da lei pela exceptio. 16 Cf. LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, p. 40-41. 17 Cf. KAFKA, Franz. Diante da Lei, p. 71-2. O próprio Agamben, que estudou o homo sacer, tratou do camponês kafkiniano: Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 57. 1 001 Fazem parte, do mesmo modo, da malta. Quanto à malta, imprescindível a referência ao escritor búlgaro Elias Canetti (1905- 1984), em especial, à sua obra Massa e Poder. Neste livro, Canetti procura desvendar as razões pelas quais grandes massas populares aderiam ao nazismo na Alemanha e na Áustria. Tratava-se de um movimento presenciado pelo então jovem Elias Canetti e que o acompanhou por três décadas de reflexão, cujo resultado foi a citada obra. Inquietava- lhe saber, sobretudo, como as grandes massas eram manipuladas e orientadas a obedecer, crescer, matar, sobreviver, etc. Numa difícil tentativa de síntese, pode-se dizer que a malta é a matriz da massa, mas, ontem e hoje, ambos os conceitos se confundem, pois, ao que parece, a malta forma a massa e a massa abriga a malta. Para melhor explicar o tema, parece ser importante transcrever um pequeno trecho da obra de Canetti: “Os cristais de massa e a própria massa, no sentido moderno da palavra, derivam ambos de uma unidade mais antiga, unidade esta na qual ainda coincidiam. Essa unidade mais antiga é a malta. Nas hordas de número reduzido, vagando em pequenos bandos de dez ou vinte homens, a malta é a forma que assume a excitação coletiva, visível em toda parte. Característico da malta é o fato de ela não poder crescer. No vazio que a circunda inexistem pessoas que possam juntar-se a ela. A malta consiste em um grupo de pessas excitadas que nada mais deseja tão veementemente do que ser mais. O que quer que façam em conjunto – quer partam para a caça ou para a guerra -, melhor seria para elas que fossem em maior número.” 18 Elias Canetti faz referência a um pequeno grupo de homens, grupos tribais, que, num estado de excitação coletiva,19 objetivam alcançar o mesmo objetivo, todos devem se voltar para um bem-comum, uma mesma meta, como por exemplo, um grande animal que querem matar,20 uma plantação que querem cultivar, uma festa que querem realizar ou uma tribo rival que querem massacrar. Se os indivíduos não estiverem imbuídos neste mesmo objetivo, todos iguais, a malta se desfaz e perde sua força, com prejuízo para todos que a integram. Por isto a malta procura sempre crescer, ter mais força, ter um número maior de componentes, para que se fique mais robusta, torne-se indestrutível. Como já dito, um grande animal – Canetti dá o exemplo da baleia e do elefante -, para ser abatido, captura e partilhado, precisa de uma reunião de pessoas dirigidas ao objetivo comum. Um homem sozinho, longe da malta, não conseguirá abater uma grande presa, mas se estiver disposto a viver dentro da malta, abrir mão de sua individualidade e de seus objetivos pessoais para abraçar a causa comum, neste caso, conseguirá se alimentar e alimentar a todos. Esta seria uma malta de caça,21 criada a partir da observação do comportamento dos lobos enquanto caçavam, daí porque, na fundação de Roma, os antigos darem importância para a lenda das crianças (Rômulo e Remo) alimentas por uma loba.22 18 Cf. CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 93. 19 Repare-se que Francisco Campos, ao justificar como o povo (icônico) do ditatorial Estado Novo deveria ser tratado, ressaltou que a população deveria ser mantida num estado de constante excitação coletiva, todos caminhando em busca de um ideal comum. Na tentativa de implantar um regime totalitário no Brasil, em que o líder seria Getúlio Vargas, dizia que havia uma “ necessidade de trazer as massas em estado permanente de excitação, de maneira a tornar possível, a todo momento, a sua passagem do estado latente de violência ao emprego efetivo da força contra as tentativas de quebrar a unidade do comando político.” Cf. CAMPOS, Francisco. O Estado nacional, p. 36. 20 Cf. Massa e poder, p. 94. 21 Cf. CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 95-96. 22 Elias Canetti (Massa e poder, p. 96) faz a ligação: “A escolha do termo malta para designar essa forma mais antiga e limitada da massa pretende lembrar que também ela deve seu surgimento entre os homens a um modelo animal: aos bandos de animais caçando em conjunto. Os lobos, que o homem conhecia bem e educou ao longo de milêncios, transformando-os em cães, impressionaram- 1 002 Outro exemplo seria a malta de guerra, em que todos os soldados estariam dispostos a atacar e abater uma segunda malta, à semelhança da malta de caça. Há ainda a malta da lamentação, em que o grupo se reúne em torno de um membro que morreu, justamente, lamentando esta perda para o conjunto, assim como a malta da multiplicação,23 em que os indivíduos se reúnem, em festas, danças, cerimônias e ritos para forçar um crescimento, para que pudessem ser maiores para, enfim, tornar-se uma grande massa. Há quatro características24 que estão presentes tanto na massa como na malta, contudo, na malta, duas destas características estão presentes apenas como um desejo comum, uma representação, ao passo que as outras duas já estão, efetivamente, presentes no grupo. As representadas são o crescimento e a densidade, pois, como se disse, a malta quer crescer e se tornar uma massa, enquanto as presentes são a igualdade25 e o direcionamento, pois os homens que integram a malta devem possuir uma única meta (abrindo mão de projetos pessoais e da individualidade) e se dirigirem para este mesmo objetivo. Pois bem, após esta breve explicação, é possível perceber que tanto o povo ícone de Müller, o homo sacer de Agamben, o camponês de Kafka e a malta de Canetti tratam, mais ou menos, do mesmo tema, qual seja, como se dá a dominação autoritária pela via da supressão de direitos, a anulação do indivíduo e formação de uma massa. Repare-se que os líderes totalitários, todos eles, baseiam sua dominação na formação de uma massa, no discurso retórico ou erístico apoiado na idéia de que todos devem se unir em torno de um objetivo comum, que há um interesse público que deve ser abraçado portodos e que há uma supremacia deste interesse público sobre o interesse particular. O indivíduo, nas ditaduras, deve ser anulado em prol de um ideal comum a todos e, caso alguém resolva pensar e atuar de forma diferente, deve ser excluído da massa, ou, como na prática ocorre, deve ser perseguido, preso, morto ou extraditado. Há, em todos os casos, uma oratória enérgica do ditador que faz com que o auditório vibre e se emocionar, multidões empunhando bandeiras, vestidas com roupas com cores semelhantes, e, como sempre, um governante carismático que se diz tradutor desta vontade popular. Os ruídos26 também estão presentes nas maltas. Perceba-se que o crescimento, a densidade, a igualdade e o direcionamento, que são qualidades da malta, estão, todos elas, também presentes nas massas dominadas por governantes autoritários, aliás, em qualquer país do mundo. É curioso perceber que também estão presentes nas torcidas organizadas de futebol (todos iguais, vestidos com as mesmas cores, com bandeiras, excitação coletiva, ruídos, todos dirigidos para um objetivo comum e se posicionando contra a torcida rival, etc), nos comícios eleitorais (todos vestidos com cores do partido, bandeiras, ruídos, excitação coletiva, o candidato como um líder capaz de conduzir a todos em direção de um bem- comum, postura agressiva contra o candidato rival, todos voltados para o mesmo objetivo, qual seja, eleger o candidato de preferência, etc), mesmo nos shows de cantores famosos (fãs reunidos para cultuar o artista comum, atração pelo carisma do cantor, ruídos, excitação coletiva, disputa entre estilos de música diferentes, etc.), grandes reuniões sindicais realizadas em pátios, galpões e ruas (presidente do sindicato como líder e locutor privilegiado da no desde cedo. Sua presença como animal mítico entre tanos povos; as diversas concepções do lobisomem; as histórias versando sobre homens que, disfrarçados de lobos, assaltam e dialceram outros homens; as lendas sobre a origem de crianças criadas por lobos – tudo isso, e muito mais, demonstra quão próximos o lobo estava do homen.” 23 Cf. CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 95-96. 24 Cf. CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 94. 25 No significado canettiano, e não no conceito de igualdade jurídica que defendemos, como paridade de implementação nos direitos fundamentais. Cf. MADEIRA, Dhenis Cruz. Igualdade e Isonomia Processual, p. 420. 26 Cf. CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 96-97. 1 003 massa de trabalhadores, excitação coletiva, despertar da emoção e da ira do auditório contra os empregadores, todos voltados para o mesmo objetivo, ruídos, bandeiras, mesmas cores, etc), em algumas marchas militares (líder que deve ser reverenciado pela massa de militares, uniformes com as mesmas cores, igualdade de pensar e agir, hinos, ruídos, todos unidos para o mesmo objetivo, etc). Há inúmeras outras maltas existentes na atualidade e que poderiam ser mais profundamente analisadas. Existe, na malta, sempre uma relação entre governante e governados, dominador e dominados, onde prevalece a idéia de que a maioria é quem manda. Sempre há alguém que se apresenta como um líder capaz de ser o locutor autorizado de todos, alguém que se diz capaz de representar a todos os demais, de lutar pelos seus direitos, de interpretar a vontade comum, de buscar o interesse público (bem-comum), etc. Trata-se, justamente, de alguém que costuma se aproveitar da fragilidade e da inexistência de respeito à individualidade da malta para que possa dominar a todos pela via autocrática. Nestes casos, há a utilização de discursos retóricos e erísticos que procuram, justamente, tentar encontrar um topos (lugar-comum) de todos os integrantes da malta para iludir o auditório. Isto ocorre porque, se o indivíduo é anulado na malta e todos devem pensar e atuar da mesma forma - tudo em nome de um bem-comum - bastará ao déspota utilizar estes topoi para que, mais facilmente, possa agradar a todo o auditório e, assim, despertando a emoção, dominar a todos. Algo que costuma ser usado nestes discursos retóricos de dominação e que funcionada como verdadeiro topos retórico é o argumento da perseguição ou injustiça cometida por um inimigo. Este inimigo pode ser, por exemplo, o candidato adversário na eleição, o empregador (o patrão), o exército adversário, a torcida de futebol do time rival, etc. Sempre há um dominador que utiliza este discurso perante uma massa alienada de pessoas, insuflando o ódio, a ira a um adversário que o próprio dominador escolhe como um alvo comum a todos, fazendo com que, mais facilmente, consiga excitar a malta e dominá-los. Neste caso, como explica Canetti, o orador se aproveita da fragilidade psicológica dos membros da malta e, o que quer que o suposto inimigo faça – e ele pode até se comportar bem com eles, por exemplo, um candidato tratar bem ao outro, o patrão tratar bem o empregado, um exército não atacar o outro – tudo será visto como uma ameaça, uma provocação: “Dentre os traços mais notáveis na vida da massa encontra-se algo que se poderia denominar um sentimento de perseguição, uma particular e irada suscetibilidade e irritabilidade em relação àqueles que ela caracteriza definitivamente como inimigos. Façam estes o que quer que façam – comportem-se eles com rispidez ou simpatia, sejam solidários ou frios, duros ou brandos -, tudo é interpretado como proveniente de uma inabalável malevolência, de uma disposição hostil à massa: um propósito já firmado de, aberta ou dissimuladamente, destruí-la.” 27 A malta adota um discurso de ódio28 que sempre elege um inimigo, que despreza a opinião daqueles que pensam ou atuam de forma diferente da maioria. Neste sentido, o discurso tópico, diferentemente do discurso processual democrático, acaba homologando este mesmo discurso de ódio. Isto ocorre porque a tópica se apóia na endoxa, que, como se sabe, é formada pela opinião de todos, da maioria ou dos mais sábios e renomados.29 Esta ligação da endoxa com a opinião de todos ou da maioria, onde a opinião da 27 CANETTI, Elias. Massa e poder, p. 21. 28 Sobre o discurso de ódio, recomenda-se: OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de expressão e discurso de ódio na Constituição de 1988. 29 Para formular sua tópica, Aristóteles se apóia em dois elementos básicos: um deles é o silogismo, o outro, a endoxa.Não se pode dizer, portanto, que o filósofo grego abandona a lógica formal na dialética e, por conseqüência, na tópica, já que continua utilizando a relação entre premissas. Contudo, tais premissas são compostas, nestes casos, por opiniões aceitáveis. Mas o que representam, no conceito aristotélico, tais opiniões? O próprio Aristóteles define como “aquelas que se baseiam no que pensam todos, a maioria ou os sábios, isto é, a totalidade dos sábios, ou a maioria deles, ou os mais renomados 1 004 minoria é desprovida de valor, acaba imprimindo à tópica jurídica uma ligação com a idéia de malta. Uma opinião contrária à opinião da maioria ou dos considerados mais sábios chegou a ser vista como uma heresia,30 ganhando, até mesmo, contornos religiosos. Trata-se de uma forma de dominação pela excitação coletiva e pelo desprezo da minoria, o que constitui uma atitude antidemocrática. A malta - e a massa, claro – é incompatível com o discurso processual democrático, haja vista que, como dito, despreza a individualidade e, nas assembléias realizadas perante multidões (ruidosas, emocionadas, submetidas a um líder), não há demarcação normativa do discurso e as pretensões são encaminhadas em meio a um estado de excitação coletiva, alijando-se do discurso aqueles que pensam de modo diferente. Por tudo o que foi dito, quando, no Estado Democrático de Direito, faz-se referência ao povo, não se pode compreender que este povo é o povo icônico, a malta ou a massa, já que, na Democracia contemporânea,mostra-se imprescindível respeitar e cultivar as individualidades, e não se pode, sob o argumento da busca de um bem-comum ou de um interesse público, desrespeitar as diferenças. Por sua vez, a malta não é capaz de ser uma co-construtora das decisões estatais, pois todas as decisões são emanadas por um líder que, pela via da dominação,31 as representa. Do mesmo modo, a Democracia não aceita que uma autoridade imponha, de forma solipsista, sua vontade aos demais. Nela não há, portanto, um locutor autorizado32 da lei. O povo a que se faz referência neste trabalho é aquele que argumenta num espaço discursivo demarcado normativamente e institucionalizado pelo Devido Processo. Este povo, portanto, não argumenta no espaço nu,33 no espaço em que não há nenhuma demarcação normativa e nenhuma fiscalização dos atos da autoridade. No discurso processual democrático, a autoridade não só fiscaliza, mas é também fiscalizada por aqueles que sofrerão os efeitos de suas decisões. Não há margem, no discurso processual, para o aparecimento do espaço do soberano,34 em que o agente governativo, legislativo e judiciário se apresenta como o único mestre capaz de enunciar as verdades da lei,35 o único capaz de dizer como a lei deve ser formulada, interpretada e aplicada. Na democracia, o locutor autorizado da lei36 é destronado, abrindo caminho para que os destinatários da norma jurídica também sejam capazes de dizer qual é a melhor interpretação. Por isto, o atual paradigma constitucional exige que a decisão judicial seja construída de forma compartilhada, e não mais solitariamente pelo juiz. O julgador, na Democracia, não julga sozinho, não é uma supra-parte, não pode ser um sujeito solipsista que impõe sua posição e ilustres entre eles.” (Cf. ARISTÓTELES, Órganon, p. 348) São justamente estas opiniões que parecem verdadeiras a todos, à maior parte ou aos mais sábios que são chamadas de endoxa. (Cf. VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência, p. 25). O termo endoxa deriva da locução, também grega, doxa, que quer dizer crença ou opinião mantida popularmente. A endoxa seria mais estável que a doxa, pois, em Aristóteles, a endoxa teria sido submetida às discussões na pólis e seria formada, não por opiniões populares (como ocorre na doxa), mas pela opinião dos mais velhos e sábios, ou mesmo, pela opinião dominante do grupo que exercia a cidadania grega (Cf. HEGENBERG, Leônidas; HEGENBERG, Flávio E. Novaes. Argumentar, p. 132). As opiniões que formam a doxa são, portanto, mais amplas e irrestritas do que as que formam a endoxa, porquanto, nesta última, há uma maior restrição dos emissores de opinião. A endoxa é formada, pois, por opiniões emitidas por aqueles que possuem fama, reputação, glória, notabilidade, eminência, e não por uma opinião qualquer, emitida por uma pessoa qualquer (Cf. BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Curso de filosofia aristotélica, p. 38). 30 Cf. HOBBES, Thomas. Diálogo entre um filósofo e um jurista, p. 118-122. 31 Cf. WEBER, Max. Três tipos puros de dominação legítima. 32 No sentido de Francis Wolff. Cf. Nascimento da razão, origem da crise, p. 67-82. 33 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 90-1; WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise, p. 75. 34 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 23; MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição, p. 22-5. 35 Cf. WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise, p. 71. 36 Cf. WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise, p. 74. 1 005 subjetiva aos demais. O modelo cartesiano de julgamento e o positivismo jurídico exegético, de fato – e nisto é possível concordar com Viehweg, apesar de se discordar da solução dada por ele a tal problema – ruiu, não mais se aceitando a idéia de que o juiz (ou qualquer outro agente público-governativo) seja um locutor autorizado da lei ou seu único intérprete. Foi neste rumo que caminhou Calmon de Passos ao correlacionar o Direito, o Processo e o Estado de Direito Democrático: “Os agentes políticos e o processo político permanecem como únicos autorizados a formalizar decisões de natureza política fundamental. Os agentes administrativos e jurisdicionais, bem como o processo administrativo e o jurisdicional carecem de legitimidade e adequação para formalizar decisões políticas básicas, só lhes cabendo as tarefas implicadas com aquela segunda redução de complexidade antes referida. Nenhuma das três, entretanto, e em nenhuma hipótese, é livre e soberana, autorizada a sobrepor-se à única soberania reconhecível num sistema democrático – a vontade popular, exercitável segundo o processo político constitucionalmente instituído. Conseqüentemente, a validez das decisões dos agentes das funções enumeradas só ocorre se forem produto de um devido processo constitucionalmente institucionalizado, seja do devido processo legal legislativo, seja do devido processo legal administrativo ou jurisdicional. Democracia e arbítrio são incompatíveis e a própria discricionariedade se faz cada vez mais prisioneira de pressupostos legais.”37 Neste sentido, o discurso processual rejeita a idéia de que alguém seja capaz de dizer, sozinho, qual é a melhor dicção da lei e qual seria a vontade do legislador. No Estado Democrático de Direito, o destinatário da lei possui o direito de trazer, num espaço discursivo não-violento e livre, seus argumentos e sua visão sobre como a norma jurídica deve ser aplicada ao seu caso. É por isto que José Joaquim Gomes Canotilho, com razão, ensinou que, para se ter democracia, não basta se assegurar a existência de um Estado de Direito. Há que se ter um Estado Constitucional vinculado à busca de legitimação por aquele que emana o próprio poder estatal, que é, em última palavra, o povo (não-icônico, frise-se). Para o constitucionalista português, não basta, nem mesmo, a existência de uma Constituição. Por sua precisão, transcreve-se suas palavras: “O Estado constitucional não é nem deve ser apenas um Estado de direito. Se o princípio do estado de Direito se revelou como uma ‘linha Maginot’ entre ‘Estados que têm uma constituição’ e ‘Estados que não têm uma constituição’, isso não significa que o Estado Constitucional moderno possa limitar-se a ser apenas um Estado de direito. Ele tem de estruturar-se commo Estado de direito democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do ‘direito’ e do ‘poder’ no Estado constitucional significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termos democráticos. O princípio da soberania popular é, pois, uma das traves mestras do Estado constitucional. O poder político deriva do ‘poder dos cidadãos’.”38 As palavras de Gomes Canotilho trazem uma reflexão útil ao Direito Processual: se o Estado Democrático de Direito se baseia na efetiva participação do povo e este, povo, é a fonte de todo poder estatal, inclusive o que resulta na função legislativa, chega-se à conclusão de que o discurso processual deve permitir que as partes participem, livre e plenamente, da aplicação deste direito legislado. Deve o juiz atuar nos limites da normatividade jurídica e permitir esta participação popular pela via do devido processo legal e constitucional. Isto não quer dizer, como óbvio, que a autoridade encarregada pela aplicação da lei (v.g. o juiz) tenha que concordar com todos os argumentos apresentados pelos destinatários do provimento legislativo (v.g. as partes), mas lhe é vedado decidir sem passar pelos 37 CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo, p. 91. 38 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 97-98. 1 006 argumentos dos destinatários e sem explicitar o porquê de acolher ou rejeitar os argumentos apresentados. A fundamentação racional e jurídica das decisões passa aganhar ainda maior importância, na medida em que reduz o espaço de arbítrio da autoridade e evita que o destinatário da decisão se transforme num homo sacer, para quem a lei civil é suspensa por um estado de exceção o que lhe faz viver uma vida nua.39 O homo sacer é, em última palavra e como sobredito, também reconhecido como um excluído social, desprovido de direitos fundamentais e incapaz de integrar a sociedade civil.40 Ele habita, portanto, fora do espaço jurídico, está fora do Direito, é um fora-da-lei, incapaz de se auto-incluir nos espaços de discursividade estatais – ou seja, não é cidadão, no sentido democrático do termo – e, quando muito, vê restringido seu exercício político ao direito de voto voto, esperando, eternamente, tal como o camponês kafkiano, que a autoridade seja sensível às suas súplicas e lhe permita entrar na lei. Talvez, para melhor situar o leitor, seja importante transcrever trecho do conto de Kafka e que traduz muito bem a situação descrita: “Diante da Lei há um guarda. Um camponês apresenta-se diante deste guarda e solicita que lhe permita entrar na Lei. Mas o guarda responde que por enquanto não pode deixá-lo entrar. O homem reflete, e pergunta se mais tarde o deixarão entrar. - É possível – disse o porteiro – mas não agora. A porta que dá para a Lei está aberta, como de costume; quando o guarda se põe de lado, o homem inclina-se para espiar. O guarda vê isso, ri-se e lhe diz: - Se tão grande é o teu desejo, experimenta entrar apesar de minha proibição. Mas lembra-te de que sou poderoso. E sou somente o último dos guardas, cada qual mais poderoso do que o outro. Já o terceiro guarda é tão terrível que não posso suportar seu aspecto. O camponês não havia previsto estas dificuldades; a Lei deveria ser sempre acessível para todos, pensa ele, mas ao observar o guarda, com seu abrigo de peles, seu nariz grande e como de águia, sua barba longa de tártaro, rala e negra, resolve que mais lhe convém esperar. O guarda dá-lhe um banquinho, e permite-lhe sentar-se a um lado da porta. Ali espera dias e anos. Tenta infinitas vezes entrar, e cansa ao guarda com suas súplicas. Com freqüência o guarda mantém com ele breves palestras, faz-lhe perguntas sobre seu país, e para terminar, sempre lhe repete que ainda não pode deixá-lo entrar. O homem, que se abasteceu de muitas coisas para a viagem, sacrifica tudo, por mais valioso que seja, para subornar o guarda. Este aceita tudo, com efeito, mas lhe diz: - Aceito-o para que não julgues que tenhas omitido algum esforço. Durante esses longos anos, o homem observa quase continuamente o guarda: esquece- se dos outros, e parece-lhe que este é o único obstáculo que o separa da Lei. (...)”41 Vê-se que o camponês (que pode ser reconhecido como o destinatário das decisões estatais) fica diante do guarda (que pode ser um policial, um governante, um juiz, etc) e, apesar de perceber que a porta da lei está supostamente aberta (algo como a difundida idéia do amplo acesso à justiça – leia-se jurisdição - mencionada por Cappelletti e Garth),42 não consegue entrar nela. O guarda, sem que dê qualquer fundamentação para tanto, deixa o camponês numa espera eterna, sendo ele próprio o obstáculo que separa a lei de seu destinatário. 39 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 90. Também, sobre o estado de exceção aqui descrito e sua relação com o Direito Processual, indica-se trecho da obra de André Cordeiro Leal: Instrumentalidade do processo em crise, p. 40. 40 Em crítica ao conceito de sociedade civil, conferir texto da lavra de Rosemiro Pereira Leal: Processo Civil e Sociedade Civil; MADEIRA, Dhenis Cruz. Igualdade e Isonomia Processual, p. 426-427. 41 KAFKA, Franz. Diante da Lei, p. 71-2. 42 Cf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça, p. 09-13. 1 007 Porém, é preciso lembrar que, no atual estágio dos estudos jurídicos, já não é um problema saber que se a decisão judicial deve ou não ser fundamentada. Este problema já foi superado pelas normas constitucionais dos países democráticos.43 Hoje, mais do que questionar se a decisão judicial deve ou não ser fundamentada, é preciso indagar quais os argumentos ou fundamentos passíveis de utilização nos provimentos, já que o discurso processual não lida com qualquer argumento. Neste ponto, é possível recordar da proposta de Karl Popper,44 para quem a eliminação de um problema por meio da eleição de uma teoria adequada à sua resolução e a eliminação do erro faz surgir um outro, mas profundo, sendo esta uma fórmula para o desenvolvimento científico e político. É por isto que o gráfico popperiano pode ser representado da seguinte forma: P1 (problema inicial)→ TT (teoria tentativa)→ EE (eliminação de erro) → P2 (problema posterior). O P1 é o problema do qual se parte, a TT é a teoria experimental - ou seja, a solução conjectural que, segundo se imagina, é apta a solucionar o P1 -, a EE é a eliminação do erro mediante um rigoroso exame crítico da conjectura que se apresentou na TT. Após este método, surge o P2, que exigirá a apresentação de TT2, a prática do EE2 e assim por diante, até se chegar no P3, quando então este raciocínio continua. 45 Deste modo, como mencionado, o problema inicial da necessidade ou não de fundamentação das decisões judiciais já foi superado nas democracias – que exigem a fundamentação -, mas, em seu lugar, surgiu outro problema, mais profundo, acerca da natureza dos argumentos que podem ser utilizados, tanto pelas partes, quanto pelos julgadores. Por isto é que o aplicador da lei não pode se portar como o guarda soberano de Kafka diante do camponês suplicante, pois à autoridade governativa não é dado dizer o que pode e o que não pode sem ofertar os fundamentos jurídicos de suas decisões, haja vista o princípio da legalidade ou reserva legal, que determina que ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.46 Neste sentido, é importante superar o paradoxo da soberania, no qual o soberano estaria, concomitantemente, dentro e fora do Direito. Trata-se de uma idéia defendida, dentre outros, por Carl Schmitt, conforme bem apresenta e critica Agamben.47 Sendo assim, nenhum agente governativo – e o magistrado é apenas um dentre eles – não poderá se valer de técnicas argumentativas que o fazem interpretar o texto legal fora do ordenamento jurídico, de forma assistemática e solipsista. Ocorre que a tópica jurídica,48 não raro serve ao propósito de tornar o juiz um soberano, fazendo que esteja, ao mesmo tempo, tal como enunciou Agamben e defendeu Schmitt, dentro e fora do Direito. Sendo assim, no Estado Democrático de Direito, não é mais possível afirmar que o agente governativo pode, diante de uma suposta lacuna da lei, preenchê-la por meio de suas preferências subjetivas. Nenhuma autoridade, na Democracia, pode argumentar ou decidir fora da espacialidade jurídica. Note-se que, mesmo Eduardo Couture, que viveu num período em que não existiam as atuais teorias democráticas do Direito Constitucional e Processual, chegou a desconfiar da proibição do non liquet. É claro que o processualista uruguaio, aos olhos atuais, defendeu 43 Por exemplo, o texto constitucional brasileiro prescreve, em seu art. 93, inc. IX que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;”. 44 Cf. Conhecimento objetivo, p. 120-123, 160; NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 99-100. 45 Cf. POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo, p. 160. 46 Como está, dentre outras Constituições, noart. 5º, inc. II do texto constitucional brasileiro. Sobre o tema, no mesmo sentido defendido nesta pesquisa, conferir: DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito, p. 118-123. 47 AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 23. 48 Como exposto em: MADEIRA, Dhenis Cruz. Tópica e Processo: rumo a Teoria Processual da Argumentação Jurídica. 1 008 idéias incompatíveis com o Direito Democrático, porém, não se pode retirar dele o grande mérito de iniciar ou, no mínimo, avançar a correlação entre Processo e Constituição.49 Numa conferência pronunciada na Escola Nacional de Jurisprudência do México, hoje chamada Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México, no ano de 1947, Eduardo J. Couture, contando com a presença, dentre outros, de Niceto Alcalá-Zamora y Castillo e Luís Recaséns Siches – apenas para citar dois nomes entre outros expressivos, sendo que o primeiro deles, junto com o processualista uruguaio, foi um dos pioneiros do Processo Constitucional – chegou a afirmar em tom de desconfiança: “Não é, finalmente, prudente, por motivo de rigor científico, recorrer ao uso de uma metáfora como a das lacunas do direito, para nos referirmos aos casos concretos que hajam escapado às previsões do legislador. A atitude do intérprete, em face da situação não prevista, é apontada pelo próprio direito, quando dispõe que tais casos se resolvem por aplicação de leis análogas, das doutrinas mais aceitas ou dos princípios gerais do direito.”50 É claro que Couture, como dito, pronunciou tais conferências logo após a Segunda Grande Guerra, longe dos avanços atuais da Teoria do Processo e Teoria da Constituição. Talvez por isto, ainda tenha defendido o uso da analogia, de doutrinas mais aceitas, etc, algo que, como se sabe, atualmente, já vem sendo objetivo de duras críticas.51 De todo modo, o processualista uruguaio, que já iniciava um estudo pioneiro sobre o Processo Constitucional ainda na década de 40, externava sua desconfiança sobre os métodos interpretativos que insistem em alçar o juiz para fora do Direito. Neste mesmo texto, Couture chegou a negar a existência de lacunas do direito, afirmando que, quando muito, haveria omissões legislativas. Além disto, em curiosa observação, o jurista uruguaio defendeu o direito como integridade – expressão que chega a lembrar os estudos de Ronald Dworkin e seus seguidores, mas que, obviamente, não tinha a dimensão atual dada à expressão. No parágrafo seguinte ao que foi transcrito anteriormente, o jurista uruguaio segue dizendo: “Esses conceitos são, por certo, necessariamente imprecisos. Significam muito mais ou muito menos do que aquilo que se pretendeu dizer. Em todo caso, porém, o que fica em destaque é que a lei contém em si mesma toda a ordem jurídica, em sua integridade. Quando seu texto o reflete, sem margem para dúvidas, o caso será resolvido por ele; quando não tiver sido prevista, de maneira expressa, a sitaução de fato apresentada pela vida, será todo o ordenamenteo jurídico, em sua integridade, que estará presente para decidir a questão. Não existem, aqui, consequentemente, lacunas do direito. Haverá, quando muito, omissões de previsão expressa. E são essas omissões de previsão expressa, justamente, as que nos impulsionam a levar adiante esta reflexão no campo das leis processuais.”52 Vale recordar que Couture era um profundo estudioso e conhecer do direito anglo- saxão (notadamente do inglês, do norte-americano e até do japonês), tendo pronunciado, mesmo naquele tempo, inúmeras conferências em solo americano. Talvez fosse justamente esta aproximação e familiaridade com o direito norte-americano e suas tradições que fez com que Couture – ele fazia inúmeras referências a isto – procurasse compreender o Processo 49 Cf. MADEIRA, Dhenis Cruz. Tópica e Processo. 50 COUTURE, Eduardo J., Interpretação das leis processuais, p. 33. 51 Como as realizadas por: BARROSO, Lucas Abreu. Situação atual do art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil; DEL NEGRI, André. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 377-386; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Processual da Decisão Jurídica, p. 37-39. 52 COUTURE, Eduardo J., Interpretação das leis processuais, p. 33. 1 009 junto à Constituição, haja vista que era um tema, naquela época, mais afeto à jurisprudência anglo-saxã. Não se sabe se a integridade jurídica mencionada por Couture inspirou ou não Dworkin e não se tem notícia de que tal estudo já foi realizado por algum jurista. Por este motivo, talvez, um estudo comparativo entre as duas concepções (integridade couturiana e dworkiniana) mereça ser futuramente realizado.53 Este sincretismo entre Direito Processual e Constitucional vê em Couture um grande credor, não obstante ser esquecido em várias obras de Processo Constitucional que preferem, mesmo nas remissões históricas, bem ao gosto do eurocentrismo citado por Weber,54 realizar citações de autores europeus. Por isto é que, continuando a reflexão, o julgador não pode ser visto como um ser fora do Direito e que possa interpretar a lei subjetivamente ou fora do ordenamento jurídico. Do mesmo modo, no Estado Democrático de Direito, o povo não é aquele que marcha pelas ruas – espaço sem regras jurídicas de argumentação, indemarcado, agórico, nu55 e no qual se encontra a malta - gritando palavras de ordem ou reivindicando direitos subjetivos,56 mas aquele que está inserido no espaço discursivo processual, em que há uma demarcação normativa de argumentação e o exercício da fiscalização recíproca entre os participantes do discurso jurídico. Nas democracias, mais importante do que indagar quem será o governante é saber como fiscalizá-lo.57 O Estado Democrático de Direito e o discurso processual nele utilizado também se apóia na idéia58 de poder (indagando sobre quem o emana), responsabilidade (de quem o exerce, diretamente ou por delegação) e controle (fiscalização dos atos praticados pelos agentes públicos). Este é um dos motivos pelos quais muitos processualistas,59 de diferentes linhas, têm rejeitado a discricionariedade do juiz. A democracia se baseia, sobretudo, na fiscalização dos atos dos agentes públicos na estrita vinculação jurídico-normativa, soando como algo envelhecido expressões legais do tipo “é facultado ao juiz”, “o juiz decidirá por eqüidade”, “o juiz aplicará a analogia”, “o juiz aplicará os costumes”, “o juiz poderá”, quando se sabe que nenhum agente público possui faculdades ou ônus, mas sim deveres. Quando a lei diz “o juiz poderá”, deve-se interpretar como “o juiz deverá”. Nenhum agente público possui liberdade irrestrita para atuar de uma forma ou de outra, mas deve se ater à legalidade de seus atos, evitando cair em espaços de subjetividade, a não ser que queira prolatar uma decisão de forma solipsista o que, por impedir a participação dos destinatários do provimento, carece de legitimidade jurídico-democrática. Assim, soa antiquado afirmar que o juiz está acima e fora do direito60 ou que existe 53 Algo que será objeto de futura pesquisa. 54 Cf. BORRADORI, Giovanna. Filosofia em tempo de terror, p. 88. 55 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, p. 90-1; WOLFF, Francis. Nascimento da razão, origem da crise, p. 75. 56 A idéia de direito subjetivo como poder de alguém subordinar o outro à sua vontade é rejeitado nesta tese de doutorado, porquanto, no Direito Democrático, ninguém tem poder para exigir conduta de outrem. O que há nas democracias é uma subordinação entre pessoa e norma jurídica, e não uma subordinação entre pessoas. Em crítica sobre o tema, repudiando a visão tradicional de direito subjetivo, conferir: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo, p. 91-6; MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoriadas ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas, p. 69-116; MADEIRA, Dhenis Cruz. Medida cautelar ex officio e legitimidade decisória, p. 63; ORESTANO, Riccardo. Azione, diritti soggettivi, persone giuridiche. 57 É o que está em: POPPER, Karl Raimund. A sociedade aberta e seus inimigos. Também se valendo do mencionado trecho de Popper: DEL NEGRI, André. Teoria da Constituição e do Direito Constitucional, p. 70-71. 58 Cf. ANDOLINA, Ítalo Augusto. O papel do processo na atuação do ordenamento constitucional e transnacional. 59 Dentre outros: AMADO, Juan Antonio García. ¿Existe discrecionalidad en la decisión judicial?, p. 151-172; CALMON DE PASSOS, José Joaquim. Direito, poder, justiça e processo, p. 91; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. A desvinculação da idéia de discricionariedade administrativa e liberdade do juiz, p. 947-960. 60 Cf. GOLDSCHMIDT, James. Problemas generales del derecho, p.134. 1 01 0 um livre arbítrio do juiz,61 pois todo agente público, mesmo o legislador ao criar a lei, na Democracia, submete-se à norma jurídica. Aqueles que defendem a tese de que a autoridade pública está além ou fora do Direito, ainda que não percebam isto, amparam propostas autocráticas, e não democráticas. Mesmo que o povo expresse sua vontade por meio da eleição de representantes, há que se assegurar, durante todo o mandato eletivo, o direito de fiscalização daquele que foi eleito. No caso dos cargos ocupados mediante concurso público ou nomeações diretas, também deve ser garantido o direito à fiscalização, porquanto ditos agentes públicos também exercem uma função estatal em nome do povo, sendo, inclusive, pagos com o dinheiro público. Assim como um advogado (mandatário) pode ser fiscalizado por seu cliente (mandante), todo aquele que exerce uma função pública ou presta um serviço público pode ser fiscalizado por aqueles que são destinatários de suas decisões, devendo dita fiscalização ser realizada em espaços procedimentais62 de argumentação. Este espaço procedimental deve ser regido por princípios jurídicos que garantam a existência de um espaço discursivo livre, demarcado, isonômico e não-arbitrário. Como bem disse Jürgen Habermas em entrevista logo após o atentado terrorista do 11 de setembro: “No interior de uma comunidade democrática, cujos cidadãos concebem reciprocamente direitos iguais uns aos outros, não sobra espaço para que uma autoridade determine unilateralmente as fronteiras do que deve ser tolerado.” 63 Por tudo isto, é possível perceber que o discurso processual que se defende neste trabalho não é solipsista, não se baseia no protagonismo do juiz e nem na difundida idéia da instrumentalidade do processo. Quando se menciona, aqui, instrumentalidade do processo, não se faz menção à instrumentalidade técnica,64 mas a uma instrumentalidade que sobrecarrega eticamente o discurso jurídico, isto é, a uma idéia - muito difundida pelo Estado Social, mas também presente no Estado Liberal - de que o judiciário é um intérprete privilegiado e o único guardião da Constituição,65 devendo o juiz buscar os escopos metajurídicos do processo,66 61 Cf. GOLDSCHMIDT, James. Teoría general del proceso, p. 71. 62 Quando se diz espaços procedimentais, faz-se referência direta ao conceito de procedimento de matriz fazzalariana, no qual há normas jurídicas que descrevem as condutas que devem ser seguidas pelas partes e julgador. Trata-se de um procedimento “como uma seqüência de ‘atos’ previstos e avaliados pelas normas” (tradução livre da frase de Fazzalari: “come uma sequenza di ‘atti’ quali previsti e valutati dalle norme”). Cf. FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, p. 77-78; MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição, p. 193-196. 63 HABERMAS, Jürgen. Fundamentalismo e terror - Um diálogo com Jürgen Habermas, p. 53. 64 Sobre a instrumentalidade técnica do processo e rejeitando a instrumentalidade metajurídico, sugere-se: GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo, p.168-188 65 Vale lembrar que na famosa obra de Carl Schmitt intitulada O guardião da Constituição (Der Hüter der Verfassung) – publicada, com outro título, em 1929, e depois, em 1931, com este nome e em versão ampliada -, dando suporte teórico-jurídico ao nazismo, este autor refutou a tese de que o judiciário seria o guardião da Constituição, mas, em compensação, depositou tal encargo no Presidente do Reich que, em última palavra, era o próprio Führer (líder) nacional-socialista. Não é preciso esforço para saber que o Führer foi personificado em Adolf Hitler. Em 1934, Schmitt publicou outro texto, intitulado O Führer protege o Direito (Der Führer schutz das Recht), no qual apontou o papel do Führer na manutenção das instituições e da ordem em prejuízo da proposta liberal da tripartição das funções de Montesquieu. Aliás, Schmitt atacou fortemente o liberalismo e o positivismo jurídico. Neste texto, Carl Schmitt ressalta que o governante (in casu, Hitler) encarnaria a natureza de um homem virtuoso, moderado e equilibrado. Foi Kelsen que, em 1931, cuidou de responder diretamente Schmitt por meio da publicação do texto Quem deve ser o guardião da Constituição? (Wer soll der Hüter der Verfassung sein?), defendendo a tese de que o Tribunal Constitucional é que deveria exercer esta função de guardião. Sobre o tema, conferir: MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito, p. 55; MENDES, Gilmar Ferreira. Apresentação, p. IX-XV. Também, dentre várias passagens do texto de Carl Schmitt: O guardião da Constituição, p. 56-57. 66 Em sentido distinto ao proposto nesta pesquisa, defendendo a instrumentalidade e os escopos metajurídicos do processo, encontra-se: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo, p. 1 01 1 julgando conforme a sua consciência,67 sem ao menos explicitar o que compreendem por consciência. Vale recordar que a concepção de Estado Social pressupõe um projeto comum da sociedade ligado por um gigantesco consenso ético-político. Haveria, no Estado Social (também chamado por alguns de republicano68 ou Welfare State69), um bem-comum a ser coletivamente buscado e interpretado (por uma autoridade justa), porquanto a sociedade que a integra seria homogênea culturalmente, ainda que, para que se alcance tal homogeneidade, seja necessário implementar uma educação cívica idônea a formar cidadãos vocacionados para essa tarefa. Nessa concepção, que é considerada ultrapassada pelo Estado Democrático de Direito, o texto constitucional seria um repositório de valores (éticos) comuns, e não uma base do discurso jurídico-processual. Por isso, com Habermas, mostra-se adequado o emprego da locução sobrecarga ética70 para designar a fragilidade de tais características do Estado Social. Por rejeitar o protagonismo judicial, o discurso processual aqui apresentado não deita suas raízes sobre as propostas de Bülow, Wach, Chiovenda, Carnelutti, Goldschmidt,71 Calamandrei, Liebman72 e seus seguidores, pois, apesar do esforço destes processualistas, eles ainda centralizavam suas teorias no solipsismo judicial, confiando que o juiz, por uma sensibilidade social imanente – uma idéia de justiça salomônica73 -, seja capaz de dizer o que é bom, justo, certo e verdadeiro para o restante da sociedade. Trata-se de uma sacralização da atividade judicante, como se cada juiz tivesse, assim como na passagem bíblica, recebido de Deus um dom especial de fazer justiça, transformando-se em um ser superior e privilegiado se comparado ao restante da população. Nesta concepção, só o juiz poderia ser justo ou distribuir justiça e paz social. Trata-se, como facilmente se vê, num mito, ou melhor, na mitificação da autoridade. Esta postura é freqüentemente adotada no ambiente forense, quando o julgador formula frases do tipo “na minha compreensão”, “não compreendo assim”,decido “com tranqüilidade de consciência”,74 conforme “minha convicção inabalável”,75 tudo isto com um tratamento até inferior à subjetividade cartesiana do cogito ergo sum (penso, logo existo), dada a falta de rigor metodológico de muitas destas afirmações. Por rejeitar o solipsismo, o discurso processual não pode esconder os argumentos da crítica irrestrita, sob pena de não poder ser adjetivado como democrático. Isto ocorre porque não é possível exercer o contraditório – princípio basilar da democracia - sob um argumento 181-8. 67 Como nos vários exemplos citados em: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?, p. 26-27. 68 Na tradução de um dos escritos de Habermas, empregou-se o termo Estado Republicano para fazer referência ao Estado Social. Cf. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. 69 Ou, ainda, Estado-Providência. Sobre o significado do Welfare State, sugere-se: SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o direito constitucional, p. 293-8. 70 Cf. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia, p. 107-121. Também: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo, p. 69-74. 71 A crítica aqui é feita a Goldschmidt especialmente pelo fato de que o autor alemão, ao formular sua teoria da situação jurídica, defende a tese de que o juiz não tem a obrigação de se vincular ao argumento das partes e aos instrumentos de prova. Cf. MADEIRA, Dhenis Cruz; VELLOSO, Flávia Dolabella; MAIA JÚNIOR, Helvécio Franco; NEVES, Isabela Dias. Processo, Jurisdição e Ação em James Goldschmidt, p. 116. 72 Sobre o solipsismo identificado em, dentre outros, Bülow, Chiovenda, Carnelutti e Liebman, conferir: LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise, p. 37-127. 73 Neste sentido, rejeitando a idéia salomônica de justiça na atual prática judiciária, aponta- se: DIAS, Ronaldo Brêtas de Carvalho. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional, p. 142; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo, p. 177; MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição, p. 116-117. 74 Esta expressão retirada do acórdão do Agravo de Instrumento n. 7256094200/SP, DJ 31/07/2008, conforme apontamento feito em: STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência?, p. 27 75 Extraído dos autos n. 070.04.002774-0, TJAC, decisão prolatada em 14/12/2006. Disponível em: <http:// www2.tjac.jus.br/display.php?Diario=1145&Secao=82> Acesso em: 21/11/2011. 1 01 2 que supostamente reside na consciência, na moral e na compreensão metajurídica dos interlocutores. Sair do Direito para argumentar blinda o discurso processual da fiscalização, retirando dele sua legitimidade democrática, afinal, é impossível fiscalizar um argumento extraído do juízo subjetivo. Já se disse que o discurso processual democrático não se apóia no mito da lei do Estado Liberal, nem no mito da autoridade do Estado Social, porquanto o primeiro se baseia na idéia de que o legislador racional captou uma verdade e que soube refleti-la na lei, ao passo que o segundo deixa o aplicador da lei totalmente livre para afastar a norma jurídica se compreender que esta agride o interesse público por ele exclusivamente captado. Tanto o mito da lei, quanto o mito da autoridade são solipsistas, primeiro, por impedir o (princípio processual do) contraditório pleno, segundo, por criar um espaço de arbítrio totalmente infiscalizável, daí porque não possuem legitimidade democrática. Cumpre ressaltar, porém, que o discurso processual do Estado Democrático de Direito não descarta os direitos individuais do Estado Liberal, nem os direitos sociais do Estado Social, acolhendo ambos, porém, faz isto sem que tenha que, como dito, cair no mito da lei e no mito da autoridade, tão defendidos pelos modelos, respectivamente, privatísticos e socializantes do processo. No Estado Liberal, o juiz seria um mero expectador, mera boca da lei (bouche de la loi),76 enquanto que no Estado Social seria uma espécie de justiceiro, podendo, em nome de seu senso de justiça, atuar até mesmo contra a lei. O que se percebe é que o discurso processual democrático repele os dois extremos apresentados, não crendo em mitos. Justamente por não se basear em mitos, o discurso processual pauta-se, como mencionado, na fiscalização recíproca dos participantes discursivos, sendo incompatível com extremismos ideológicos de esquerda ou direita,77 pois ambos incompatíveis com a democracia. Aqueles que participam do discurso processual não devem acreditar cegamente na lei ou na autoridade, devendo falsear uma e outra, dentro de um espaço procedimental78 que permita o livre exercício do contraditório. Pode-se até dizer que, do ponto de vista das partes, o discurso processual também é persuasivo, pois autor e réu visam a, no aspecto prático, convencer o julgador de que seus argumentos são mais fortes do que os utilizados pela contraparte. Porém, não é possível afirmar que a técnica discursiva, por ser persuasiva, seja idêntica à retórica aristotélica – e mesmo ciceroniana, viquiniana e viehweguiana -,79 porquanto o compromisso ético ajustado entre as partes não existe do mesmo modo e tampouco se aceita o uso de qualquer argumento no discurso processual. Por este último motivo, também é possível dizer que o discurso processual não é erístico,80 pois não se pode usar impunemente, do ponto de vista normativo, um argumento sabidamente falso, já que há sanções para a chamada litigância de má-fé. Outra diferença entre o discurso processual e os discursos dialético e retórico é que o primeiro não se baseia na endoxa, ao menos, se quiser ganhar o adjetivo democrático, não 76 Cf. CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos de interpretação jurídica sob o paradigma do Estado democrático de direito, p. 479. 77 O repúdio ao extremismo ideológico representado pelo historicismo de esquerda e direita representa uma das propostas de Karl Popper., para quem os dois movimentos assumem uma inversão simétrica na qual a história estaria num dos lados. Cf. NEIVA, Eduardo. O racionalismo crítico de Popper, p. 223. 78 Sobre o espaço procedimental no sentido utilizado nesta pesquisa, conferir: FAZZALARI, Elio. Istituzioni di diritto processuale, p. 77-9; GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo, p. 68; 195; LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo, p. 92-4; MADEIRA, Dhenis Cruz. Processo de conhecimento & cognição, p.187-196; NUNES, Dierle José Coelho. Processo jurisdicional democrático, p. 203-208; TAVARES, Fernando Horta; CUNHA, Maurício Ferreira. O direito fundamental à prova e a legitimidade dos provimentos sob a perspectiva do direito democrático, p. 125. 79 Sobre as propostas discursivas de Aristóteles, Cícero, Vico e Viehweg, mais uma vez, conferir: MADEIRA, Dhenis Cruz. Tópica e Processo: rumo a Teoria Processual da Argumentação Jurídica. 80 Aqui lembrando da erística presente em: SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ter razão. 1 01 3 deve se basear, tão-somente, nas opiniões de todos, da maioria ou dos mais sábios e ilustres. A endoxa, em si, não confere a legitimidade necessária ao discurso processual. Esta legitimidade decisional só é conseguida, como já dito, pela efetiva participação argumentativa daqueles que sofrerão os efeitos do provimento (decisão). Por isto é que os princípios jurídicos do discurso processual – formalização argumentativa, objetividade argumentativa, correlação lógica dos argumentos e lealdade processual - são pautados, sobretudo, nesta concepção de legitimidade democrática, almejando propiciar um espaço discursivo compartilhado. Por tudo que se apresentou nestas breves linhas, o discurso processual democrático, por se basear no devido processo (legale constitucional), no respeito à opinião das minorias, assim como na construção compartilhada dos provimentos jurisdicionais, é sui generis, já que não possui as mesmas características dos discursos dialético, retórico, erístico, apodítico, erístico ou poético,81 ao menos, em seus moldes clássicos. Todo discurso abriga um movimento,82 quer-se dizer, todo discurso possui um termo inicial e um termo final, um deslocamento de um ponto a outro, de uma proposição a outra, passando por premissas até se chegar a uma conclusão. É preciso perceber, também, que todo orador, independentemente da modalidade discursiva que utilize, dirige seu discurso a alguém, a quem se costuma chamar de ouvinte, auditório ou interlocutor. Em todos os tipos de discurso, o orador sempre objetiva modificar o ouvinte, o auditório ou o interlocutor de algum modo,83 quer seja lhe passando alguma informação, aumentando seu conhecimento, alterando sua opinião, fazendo-o sentir alguma emoção, etc. Em alguns discursos, o ouvinte ou o auditório possuem uma participação mínima, adotam uma posição mais passiva, recebendo do orador as orações, as premissas e, até mesmo, as conclusões, cabendo ao auditório simplesmente aderir ou não às propostas do orador. É o que ocorre, por exemplo, numa grande palestra, em congressos, em discursos proferidos na TV, etc. Nestes casos, tem-se a figura do orador, que é o emanante do discurso, competindo ao ouvinte ou auditório simplesmente concordar ou não, sem que tenha nenhuma participação ativa no estabelecimento de premissas, refutação de argumentos ou questionamento da conclusão. Estes discursos se aproximam mais da unilateralidade do que da bilateralidade. Em outros casos, ter-se-á uma interlocução plena, com a efetiva contribuição de todos os participantes do discurso. Isto ocorre quando todos debatem o propósito do discurso, as premissas de apoio, os critérios a serem utilizados, o caminho a seguir e o (des)acerto da conclusão. Nestes discursos, há uma bilateralidade plena, uma efetiva participação de todos, quando então o ouvinte e o auditório assumem verdadeira função de interlocutores. Nesta pesquisa, adota-se as expressões ouvinte, auditório e interlocutor de forma indistinta, sem diferenciação semântica, pois em todo discurso há, de um lado, um orador que o inicia, de outro, um ou mais ouvintes, que participam ativamente do mesmo ou não, conforme seja sua natureza. Seguindo este raciocínio e como forma de conclusão, é preciso dizer que o discurso processual democrático possui um objetivo bem claro: contribuir argumentativamente para a construção compartilhada do provimento (decisão) jurisdicional. Tal discurso, para ser democrático, precisa que os argumentos sejam encaminhados de forma livre, isonômica e sob a regência do devido processo legal e constitucional. Trata-se não propriamente de um discurso em que figuram, de um lado, o orador, e de outro, o ouvinte, mas, diferentemente, um discurso onde só existem interlocutores, todos eles, situados no mesmo plano de argumentação. O discurso processual é, portanto, dialogal, sem ser, ao contrário do que se costuma dizer, dialético. 81 Sobre as características de cada um destes discursos, para aprofundamento, mais uma vez, remete-se: MADEIRA, Dhenis Cruz. Tópica e Process. 82 CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em nova perspectiva, p. 74. 83 CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em nova perspectiva, p. 75. 1 01 4 REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2002. AMADO, Juan Antonio García. ¿Existe discrecionalidad en la decisión judicial? - Isegoría, nº 35, vol. 35, 2006. ANDOLINA, Ítalo Augusto. O papel do processo na atuação do ordenamento constitucional e transnacional. Tradução de Oreste Nestor de Souza Laspro. Revista de Processo, a. 22, n. 87, p. 63-9. São Paulo: Revista dos Tribunais, a. 22, p. 63, jul./set. 1997. ARISTÓTELES. 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