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BIOÉTICA AULA 5 Profª Geni Maria Hoss A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 CONVERSA INICIAL Indagações e responsabilidade ética pela própria vida Este tema é convite para um debate sobre atitudes e cuidados em relação à própria saúde e bem-estar. Abordamos nesse contexto situações complexas que exigem decisões nem sempre fáceis. O foco é a vida no conjunto do cuidado da saúde, seja institucionalizada para recuperar a saúde, seja pela opção de determinado estilo de vida. A vulnerabilidade humana na doença e as condições de riscos, somadas à falta de conhecimento e certezas acerca dos resultados geram certo grau de angústia. Olhar para a própria vida, mas com a ajuda do olhar de quem entende do assunto, confere mais segurança e tranquilidade. Outro aspecto em saúde que, dentro do possível, alimenta a esperança e a segurança diz respeito aos protocolos estabelecidos visando ao bem-estar e segurança do paciente. Tudo tem mais valor no ambiente de diálogo, de informações claras, compreensão do contexto e expectativas dele. Mesmo quando a situação é crítica, prevalece a verdade. Não é suprimindo verdades que o paciente é poupado de sofrimentos, e sim quando a informação é transmitida em ambiente de confiança, verdade e respeito. Os temas desta aula estão estruturados da seguinte forma: 1. Uma urgência atual: o cuidado com a própria vida. 2. Relação médico-paciente: aliança pela saúde. 3. Doação de órgãos: solidariedade e desafios éticos. 4. Saúde e dependência química (álcool e outras drogas). 5. Violências: agressões à integridade da pessoa. Esses temas dizem respeito a cada um de nós, e temos vasto material disponível. Como se trata de assuntos em que decisões pessoais e cuidados coletivos de saúde e bem-estar se entrecruzam, buscamos também estudos e espaços e conteúdos dos cuidados em saúde acessíveis por meio da saúde pública. TEMA 1 – UMA URGÊNCIA ATUAL: O CUIDADO COM A PRÓPRIA VIDA A autopreservação é uma dimensão inerente ao ser humano. Diante de qualquer ameaça, há uma reação espontânea de proteção da pessoa, por vezes tão rápida e impensada que ela própria coloca a vida em risco justamente por A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 não conseguir calcular as consequências. Nesse campo, pensamos tanto na responsabilidade ética quanto na imagem de cada sujeito. Dois elementos são importantes para se considerar: a imagem do super-homem, situação em que a pessoa geralmente descuida de si própria e mantém uma fortaleza artificial; e a imagem da falta de sentido, o que torna a pessoa vulnerável particularmente diante de dificuldades, uma vez que falta força impulsora, além dos desafios a serem enfrentados. Embora pareça uma abordagem recente, Fritz Jahr, o pioneiro do neologismo bioética, afirma no contexto da preservação da própria vida: Quem cumpre seus próprios deveres consigo mesmo evita muitas maneiras de prejudicar outras pessoas. [...] Como as obrigações éticas dadas pelo quinto mandamento se apresentam, na prática, em relação à própria vida? No fato de não se suicidar e não abreviar, prejudicar ou colocar em risco a própria vida. (Jahr, 2012, p. 63, tradução nossa) Lembramos que o autor, que tem trânsito na teologia cristã católica e luterana, bem como em expressões religiosas e filosóficas orientais, deduz o dever de autopreservação do quinto mandamento da lei de Deus: “Não matarás!”. Nesse contexto, é necessário mencionar também o problema global do suicídio. Particularmente os grupos cristãos acentuaram-no como pecado grave, com consequências nefastas à pessoa. Também essa forma de ver o problema contribuiu para que se afirmasse um tabu social e moral na sociedade. Nesse sentido, Pessini (2009, p. 200) afirma: Os mitos, frequentemente, julgam as pessoas suicidas como loucas, os que sobrevivem às tentativas de suicídio como manipuladoras e o ato de suicidar-se como algo inevitável. Os mitos criam atitudes disfuncionais, alimentando culpas desnecessárias, e são os maiores obstáculos para mudanças de atitudes pessoais, comunitárias e públicas para ver o suicídio como um problema crítico de saúde pública, que pode ser, em parte, prevenido. A sociedade demorou a criar espaços de ajuda à pessoa e seus familiares, seja na própria família, seja na estrutura de assistência médica. Em grande parte, a dificuldade de antecipar o cuidado ao ato reside na inabilidade dos que estão no entorno em identificar o problema a fim de oferecer apoio e, sobretudo, encaminhar à pessoa para cuidados especializados. Outras condições que conflitam com o impulso pela vida são, entre outras: exposição voluntária a riscos previsíveis, particularmente em aventuras inseguras e trânsito; um estilo de vida inadequado para a saúde e bem-estar; impactos do meio ambiente; recusa de equipamentos de segurança individual A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 etc. O cuidado de si próprio também implica usar e desenvolver forças interiores com vistas a superar os obstáculos. Aquelas pessoas que cultivam a resiliência diante dos desafios que a vida apresenta são menos vulneráveis não somente a problemas de ordem psicológica, mas criam igualmente uma condição favorável à saúde física, dada a interdependência de ambas. Todos estão expostos a dificuldades, mas o que garante qualidade de vida e o bem-estar é a forma como são encaradas e superadas. Amorim (2014, p. 281) ensina: O cuidado de si não pode simplesmente deixar de lado as dificuldades, mas não deve sucumbir a elas. Trata-se de encarar a vida com criatividade e estilo, pensando que uma travessia poderá ser mais feliz e tranquila com sensibilidade, leveza e beleza, compartilhando os desafios e as alegrias e convivendo de forma respeitosa e solidária com o outro, num contínuo processo de descobrimento e aprendizado. O debate bioético, mesmo aquele promovido em grupos religiosos e filosóficos, precisa abraçar a causa do cuidado de si próprio de forma objetiva e humanitária, sem pressões e julgamentos desses grupos. A responsabilidade pela vida, sua preservação e qualidade constituem o horizonte maior do debate. Também aqui é preciso salientar o caráter preventivo e de apoio a decisões difíceis e eliminar qualquer tendência de colocar a bioética na posição de julgador. Tanto para a vida pessoal quanto a do semelhante dentro de uma espécie é mais comum esse ímpeto de proteção. O inverso geralmente está acompanhado de um complexo de fatores causais e motivacionais, objeto de diversas ciências humanas. TEMA 2 – RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE: ALIANÇA PELA SAÚDE O foco deste tema é a relação médico-paciente, tanto em instituição de saúde como na assistência domiciliar. Acrescentamos que também é imprescindível valorizar as boas relações dos demais profissionais de saúde e afins dentro das respectivas competências. A busca por um profissional de saúde por si mesmo indica uma condição díspar entre os interlocutores. Não se trata de relação de amizade na qual o querer agradar reciprocamente define grande parte das relações. Ela é definida por uma espécie de aliança em prol da saúde. O médico explicita e sugere tratamentos que possam levar ao resultado desejado da saúde ou cuidados paliativos mais adequados, e o paciente, que busca uma solução para seu caso, adere (ou não) a eles. Cada qual tem sua parcela de A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 responsabilidade, que inclui escolha do tratamento e execução conforme o combinado. A disparidade de conhecimento e práticas de sucesso em saúde deve ser superada por uma adequada comunicaçãoe diálogo entre médico e paciente, de forma que este último possa efetivamente optar, com liberdade, autonomia e responsabilidade, pelo tratamento a ser feito. Nesse sentido, convém salientar a importância do conhecimento do contexto sociocultural e de crenças do paciente, pois impactam as decisões relacionadas à vida e à saúde da pessoa. Uma das zonas de conflito na relação médico-paciente se instala quando, no uso de seu direito de autonomia, há recusa terapêutica por parte do paciente, e o médico, dentro de sua área de conhecimento e experiência, só pode responder pelo tratamento indicado. Tal recusa tem respaldo legal, conforme dispõe o art. 1º da Resolução n. 2.232, de 17 de julho de 2019: “A recusa terapêutica é, nos termos da legislação vigente e na forma desta Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que este o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão” (Brasil, 2019). Em princípio, cumpridas as condições desse artigo, o caso poderia estar resolvido – e está mesmo na maioria dos casos em situação de assistência à saúde primária regular. Nesse caso, em não se chegando a um acordo, a solução pode estar na orientação para que o paciente busque outro profissional de saúde. Mesmo que não se apresente outra alternativa, a proposta indicada ganha em credibilidade. Há, no entanto, situações em que a recusa terapêutica é considerada abuso de direitos, tanto em decorrência da condição do paciente quanto das consequências pelas quais o médico não pode ser obrigado a responder. Lembramos aqui algumas situações críticas contempladas pela citada resolução: a recusa que põe em risco terceiros; doença contagiosa que impacta a coletividade; gestantes (a vida de ambos, mãe-feto, conta); objeção de consciência do médico (direito do médico mesmo em situações legais); em emergências, o médico pode contrariar a recusa terapêutica e empenhar todos os esforços para salvar a vida; a recusa não deve ser aceita em caso de menores e adultos sem pleno uso das faculdades mentais. O documento ainda recomenda que a renúncia terapêutica seja feita por escrito, com duas testemunhas, especialmente quando as consequências que o paciente assume podem ser graves. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 Outro aspecto essencial da relação médico-paciente para um bom resultado clínico é a comunicação. O médico, no âmbito de sua competência, é detentor de conhecimentos que o paciente não tem. Hoje, acrescenta-se o impacto das informações obtidas pelas redes sociais. De um lado, o paciente pode estar bem atualizado sobre determinado assunto, o que exige também do médico agilidade na sua atualização profissional; de outro, pode estar informado erroneamente e esperar do médico apenas uma confirmação de suas convicções ou autodiagnóstico, o que é impossível na prática médica. De qualquer forma, a comunicação exige elevado grau de sensibilidade humana e respeito recíproco. Nesse sentido, em referência à comunicação de más notícias, Bertachini (2011, p. 109) afirma: “As competências do médico e da equipe de saúde são fundamentais em termos de sensibilidade e comprometimento na comunicação das informações com transparência, atenção e tempo, utilizando linguagem clara e compreensível”. A comunicação sobre detalhes do estado e tratamento do paciente a ele próprio, familiar ou representante legal, particularmente quando se trata de más notícias, é dever do médico e direito do paciente. O Código de Ética Médica (capítulo V, art. 34) veda qualquer retenção de informações nesse sentido. Em suma, também na comunicação, a relação médico-paciente é uma relação sujeito-sujeito, com distintas posições e conhecimentos na aliança pela saúde. A relação médico-paciente harmoniosa já faz parte do tratamento. Existem competências e responsabilidades mútuas. De um lado, o paciente tem direito à informação correta sobre as possibilidades terapêuticas, e, do outro, uma vez acordado determinado tratamento, é preciso segui-lo. O exercício da autonomia do paciente precisa conciliar-se com um tratamento terapêutico pelo qual o médico pode responder dentro de seus conhecimentos e experiências clínicas. Isso significa que a autonomia do paciente não pode entrar em colisão com a do médico, daí a importância do diálogo franco e esclarecedor. TEMA 3 – DOAÇÃO DE ORGÃOS: SOLIDARIEDADE E DESAFIOS ÉTICOS A doação de órgãos já não é tema desconhecido, porém ainda existem muitas dúvidas e incertezas a seu respeito. Saber sobre os programas e protocolos de transplantes permite maior segurança e tranquilidade desse ato humanitário e solidário tão relevante para o mundo da saúde. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 Quando, em 1954, em Boston (Estados Unidos), o médico Joseph Murray fez o primeiro transplante de órgãos (rins) entre gêmeos no Brigham and Women’s Hospital, não se podia vislumbrar seus desdobramentos até se chegar ao complexo sistema de transplantes atualmente consolidado mundo afora. Nesse sentido, salientamos também as possibilidades criadas pelo banco internacional de medula óssea. À época, só se podia prever um longo caminho pela frente até chegarmos à segurança clínica e à incorporação da doação como um processo consolidado da área da saúde. O que sobra ainda hoje é a insegurança e desconfiança de origem diversa, geralmente pelo desconhecimento dos processos de transplantes. As controvérsias nesse campo são muitas, e, por isso, as tentativas de uma lei segura também. Referência na área é a Lei de Transplantes (Lei n. 9.434/1997), que afirma a legalidade e estabelece os correspondentes protocolos e direitos. O Capítulo I, art. 1º, além dos aspectos legais, estabelece a gratuidade da doação de órgãos. Com isso, a doação de órgãos se torna um ato humanitário e solidário, sendo vedada qualquer forma de comercialização ou compensação. O capítulo II dispõe sobre os procedimentos, conforme destacamos: Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. [...] § 3º Será admitida a presença de médico de confiança da família do falecido no ato da comprovação e atestação da morte encefálica. (Brasil, 1997) Importante não é somente existir um protocolo seguro para constatação da morte encefálica, mas também a possibilidade de membro da família ou responsável legal indicar médico de confiança para acompanhar esse momento. A redação relativa à doação de órgãos gerou muitas polêmicas, pois legalizava a doação presumida. Levantou-se então o questionamento ético: pode alguém (inclusive instituição, Estado) dispor do corpo de uma pessoa sem sua autorização? Por este motivo, a redação foi alterada pela Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001, capítulo 2: Art. 4.º A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (Brasil, 2001) O sistema de transplantes é complexo e constitui uma área sensível da saúde, uma vez que envolve diversos atores sob forte impacto emocional. Para dar transparência, segurança e agilidade a todas as fasesdo processo de transplantes, foi criado o Sistema Nacional de Transplantes (SNT) e confirmados critérios imprescindíveis para a realização deles, como constatação da morte encefálica e garantia da presença de médico indicado pela família, se ela manifestar esse desejo. O Decreto n. 9.175, de 18 de outubro de 2017, que instituiu o SNT, assim dispõe no Capítulo I, art. 2º: “Fica instituído o Sistema Nacional de Transplantes – SNT, no qual se desenvolverá o processo de doação, retirada, distribuição e transplante de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano, para finalidades terapêuticas” (Brasil, 2017). O SNT se ramifica nas Centrais Estaduais de Transplantes (CET), responsáveis pela estruturação do sistema de transplantes no âmbito de sua competência, ou seja, na respectiva unidade da Federação. Formadas as equipes especializadas de transplantes, elas atuam em rede com as equipes de assistência para tornar possível a efetivação do transplante e garantir segurança e transparência em todos os procedimentos. Trata-se de um processo que deve estar sempre em prontidão com todo o aparato disposto para ação, uma vez que o tempo é um dos fatores decisivos para o sucesso do transplante. Particularmente o ponto de partida do processo é complexo e desafiante. Após a difícil abordagem à família, as notificações devem funcionar rapidamente. Nesse momento, o desejo manifesto em vida faz a diferença, pois os familiares, embora emocionalmente vulneráveis, tendem a atender aos desejos do membro que acaba de morrer. Embora boa parte da sociedade e a maioria dos grupos religiosos apóie e motive a doação de órgãos como ato de autêntica solidariedade, nem todas as pessoas resolvem essa questão em vida. Existe um forte componente cultural nesse contexto, pois doar órgãos supõe mudança de paradigma sobre a morte. O pulsar do coração sempre foi tido como sinal vital, e a morte detectada e afirmada quando esse sinal ainda é perceptível deixa os familiares em dúvida. Enquanto os profissionais de saúde falam objetivamente da morte com linguagem técnica, a família entende, sobretudo nessa hora, a linguagem subjetiva do coração. O conhecimento dos protocolos e procedimentos desde o A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 início até a finalização é crucial para a adesão à doação de órgãos. Além disso, reiteramos a importância de explicitar o desejo de doação junto aos familiares. No momento de dor e fragilidade, os desejos de quem morreu geralmente são prontamente atendidos sem que acresçam sofrimento aos que ficam. TEMA 4 – SAÚDE E DEPENDÊNCIA QUÍMICA (ÁLCOOL E OUTRAS DROGAS) A partir do momento em que a sociedade se conscientiza da complexidade do problema da dependência química e que esta passou a ser uma questão de saúde pública, cabe à bioética abrir espaço para o debate construtivo e colaborativo sobre o assunto. Segundo ressalta Sgreccia (1997, p. 149), “o impacto destrutivo sobre a vida e a saúde deve ser avaliado não apenas com base nas cifras dos que morrem por overdose, mas vinculado a todas as mortes lentas devidas inclusive a causas concomitantes e a todo o volume de violências e crimes ligados ao uso da droga”. Entendemos que a dependência química não pode ser tratada isoladamente de suas condicionantes e consequências individuais e coletivas, bem como, em algumas situações, suas múltiplas interconexões com complexas redes globais de tráfico e de violência. O álcool e outras drogas também devem ser considerados fatores causais de inúmeras patologias. Não há consenso sobre o conceito de dependência química, drogadição ou toxicomania (OMS) nem a respeito da delimitação de abrangência. Se, de um lado, fica clara a dependência de algumas substâncias, é menos aceita a dependência química de remédios, por exemplo. Outro debate acirrado gira em torno das drogas legais e ilegais. A Organização Mundial da Saúde fala em toxicomania, ou seja, intoxicação que resulta do uso contínuo de drogas. No Brasil, o termo amplamente usado e mais popular é dependência química. Não entramos nas nuances de cada termo, pois diferem conforme a região. Ao oferecer uma rede ampla de assistência por meio dos Centros de Assistência Psicossocial (CAPS), usa-se como acréscimo AD (referindo-se a álcool e outras drogas), portanto, CAPS-AD. Embora seja uma forma generalizada de tratar o tema, fazer distinções regionais e históricas requer uma abordagem mais ampla. Em que consiste a dependência? Adotamos aqui a explicação de Sgreccia (1997, p. 152): A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 • estado de intoxicação produzido pelo uso repetido da substância; • desejo compulsivo de repetidas doses e de consegui-las por qualquer meio; • tendência induzida de aumentar a dose para obter o mesmo efeito; • dependência não somente psíquica, mas também física, com consequentes crises de abstinência (cãibras, náusea, diarreia, convulsões e coma em certos casos); • efeitos nocivos não apenas para o consumidor, mas também para a sociedade, por causa da cadeia de delitos e consequências a que dá origem a dependência por falta de controle do comportamento dos sujeitos. Acrescentamos aqui – tal qual ocorre com outras doenças evitáveis, como traumas de acidentes de trânsito e dengue, por falta de cuidados – que a grande demanda no campo da dependência química pode superlotar as poucas instituições e ofertas de assistência à saúde adequadas para esse tipo de situação. Além disso, a dependência química, incluindo aquela de drogas legais (tabagismo e alcoolismo), pode causar e agravar outras doenças. Também aqui se aplica: o cuidado da saúde na vida pessoal é ao mesmo tempo cuidado pela saúde e bem-estar coletivo. A abordagem do tema no Brasil deu um salto qualitativo com a instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), por meio da Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006. O Sisnad atua em articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (Suas). Com isso, a dependência química, até então tratada com peso na repressão, passou a reorganizar sua forma de abordagem, a saber: prevenção, reinserção social e normas de repressão. Estas sofreram mudanças substanciais: as grandes redes de tráfico continuam com normas de repressão tradicionalmente adotadas segundo o caso, e para quantidades de drogas de uso pessoal são adotadas advertências, medidas socioeducativas, prestação de serviços etc. O que era uma questão preponderantemente de segurança pública se tornou também de saúde pública. A complexidade e a extensão dos desafios nessa área específica da saúde e segurança requerem atenção especial tanto do Estado quanto de toda a sociedade. Para esse fim, há vários serviços e grupos de apoio oferecidos por organizações não governamentais e igrejas – por exemplo, Alcoólicos Anônimos (AA) ou Narcóticos Anônimos (NA) –, que podem auxiliar na superação do problema. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 TEMA 5 – VIOLÊNCIAS: AGRESSÕES À INTEGRIDADE DA PESSOA Toda forma de agressão à pessoa – física, psíquica e moral – é uma violência contra a dignidade da pessoa. Quando o assunto é violência, a questão que se levanta é: ela aumentou efetivamente conforme é apontado em diversas estatísticas ou ela está tendo maior visibilidade? A produção acadêmica sobre o tema começou a crescer nos anos de 1980 e se elevou significativamente nos anos de 1990. Na bioética, a temática passou a ocupar um relevante espaço quando as abordagens incorporaram as condicionantes da saúde. Há um forte impacto das diversas formas de violência na saúde integral da pessoa. Por isso, também a assistênciaàs vítimas é complexa e deve ser feita por equipe multidisciplinar de maneira preventiva, terapêutica e acompanhamento, de acordo com o caso. O que é violência? Oliveira (2016, p. 142) explica: “Identifica-se como violentos aqueles que utilizam meios que limitam a capacidade de defesa do indivíduo ou que se aproveitam de suas limitações para forçar um tratamento não consentido, causando lesões físicas, psíquicas, morais ou até mesmo a morte do paciente”. Não é possível incluir todas as formas de violência numa só abordagem específica, mas precisamos lembrar aqui. Carvalho (2016, p. 137) aponta para os “diversos tipos de grosserias e distintos tipos de violência: intolerância religiosa, preconceito étnico-racial, discursos xenofóbicos” que permeiam a enxurrada de informações nos meios de comunicação e redes sociais. Acrescentamos violências no trânsito e violências com armas, que geralmente lotam as emergências de hospitais de traumas. Na assistência médica, não cabe avaliar moralmente a causa, mas deve concentrar-se no esforço de salvar vidas e cuidados humanizados do paciente. Mas é preciso trazê-los para o debate bioético com o intuito de auxiliar a sociedade em ações preventivas. De amplitude global, temos as violências das guerras, tráfico, ditaduras, conflitos religiosos etc. De todas as formas pelas quais elas se manifestam, seguimos abordando alguns tópicos a seu respeito que tocam o cotidiano das pessoas e ao mesmo tempo devem estar no debate bioético. Um dos grandes focos de violência é a intrafamiliar. Para muitos, é nesse ambiente que ela ocorre pela primeira vez e atinge, na maioria dos casos, A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 mulheres e crianças. Sua manifestação é diversa (agressões físicas e psíquicas, privação de liberdade, violência sexual, assassinato de crianças, feminicídio e outras). Por uma questão cultural, a violência nesse contexto, que por natureza já é de difícil acesso, muitas vezes permanecia oculta sob o pretexto de ser esse um espaço privativo dos moradores. Uma importante guinada se deu, de modo especial, por meio da Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, e da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Além da conscientização das vítimas sobre seus direitos e espaços de apoio, toda a sociedade começou a se conscientizar de que precisa denunciar qualquer tipo de sinal de violência, seja a que ocorre em espaço público, seja em espaço privado. Longe da solução do problema, houve um avanço significativo com a disponibilização de disque-denúncia (100 e 180) – em 2020, foram 105 mil denúncias de violência contra a mulher. Também casas de acolhida, como a Casa da Mulher Brasileira, e os Conselhos Tutelares são importantes vias de assistência e encaminhamentos. Salientamos aqui um tipo de violência silenciosa no âmbito da assistência à saúde e praticada por diversos atores: a obstétrica. Trata-se da negligência, violência física, verbal e psicológica durante todo o processo de assistência obstétrica praticadas por profissionais de saúde ou acompanhantes e familiares. Acrescentamos também a violência moral, um comportamento de desrespeito à mulher, geralmente pelo companheiro, por desconfiança em relação à paternidade da criança. Essa violência muitas vezes é agravada por ameaças e abandono, deixando a mulher e, consequentemente, o recém-nascido em situação de vulnerabilidade extrema. As violências praticadas no campo da saúde requerem formação adequada, por isso a sociedade precisa responder algumas questões: como tornar os ambientes de assistência à gestante mais seguros (vale também para a segurança do profissional)? Como preparar melhor os profissionais de saúde visando à assistência humanizada e eticamente correta? Soluções para as múltiplas violências na sociedade vão além de campanhas pontuais, sem desmerecer sua importância, pois se trata de um problema complexo de ordem social, econômica e cultural. Mudanças efetivas são de médio e longo prazo, pois implicam processo de educação permanente. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 NA PRÁTICA Nesse contexto, vale uma análise sobre o próprio estilo de vida: qual o sentido de vida? O que fazemos para termos bem-estar (mesmo na doença)? Vemos muitas pessoas incluírem alguns aspectos importantes da qualidade de vida e saúde nas promessas da virada do ano, mas por que fracassam tantas vezes? O cuidado da vida requer um projeto bem definido e contínuo, ou seja, um estilo, e não fragmentos que dependem da empolgação e da capacidade de resistência. A doação de órgãos é um ato voluntário do doador. São os familiares que vão decidir sobre o cumprimento desse desejo. Se você é doador, já conversou com sua família a respeito do assunto? FINALIZANDO Esta série de temas aqui explorados é um convite para refletirmos sobre nosso estilo de vida, a responsabilidade que temos diante da vida, nossa autonomia e liberdade nesse campo. O bem-estar integral é um direito fundamental. Aqui, cabe lembrar uma mudança de paradigma da saúde como um todo: a prevenção, incluindo atendimento multiprofissional, ou seja, contar com a ajuda especializada para a saúde global, deve se tornar rotina. Ainda perdura a busca por ajuda apenas em necessidades extremas, por isso muitas vezes tarde demais. O sentido de vida em todas as situações é essencial para que também tenhamos um sentido humanitário e solidário no fim da vida. Decidir em vida, com conhecimento de familiares, acerca da doação de órgãos não apenas deixa a própria pessoa mais tranquila em relação ao cumprimento desse seu desejo, como também contribui para a agilidade do processo de doação. Cuidar de si e do coletivo requer engajamento pela superação da violência a partir de suas causas. A responsabilidade pela própria vida parece ser um tema que vai tratar de questões intimistas, mas, como vimos, é preciso olhar para um amplo horizonte de situações que se interconectam e, portanto, impactam de forma positiva ou negativa, conforme o caso. As decisões pessoais por um estilo de vida saudável e seguro e o envolvimento em questões políticas e sociais que visem a melhores condições de vida são cruciais no cuidado de si próprio. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 REFERÊNCIAS AMORIM, K. P. C. O cuidado de si para o cuidado do outro. In: PESSINI, L.; BERTACHINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. P. (org.). Bioética, cuidado e humanização. São Paulo: Centro Universitário São Camilo / Loyola / IBCC Centro de Estudos, 2014. p. 275-282. v. 2. BERTACHINI, L. Comunicação de más notícias no processo terapêutico. In: BERTACHINI, L.; PESSINI, L. Encanto e responsabilidade no cuidado da vida: lidando com desafios éticos em situações críticas e de final de vida. São Paulo: Paulus, 2011. p. 103-126. BRASIL. Decreto n. 9.175, de 18 de outubro de 2017. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, 19 out. 2017. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015- 2018/2017/decreto/d9175.htm>. Acesso em: 18 abr. 2021. _____. Lei n. 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, 5 fev. 1997. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm>. Acesso em: 25 abr. 2021. _____. Lei n. 10.211, de 23 de março de 2001. Diário Oficial da União, Poder Legislativo, Brasília, 24 mar. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10211.htm>. Acesso em: 20 abr. 2021. _____. Resolução n. 2.232, de 17 de julho de 2019. Diário Oficial da União, Brasília, 16 set. 2019. Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-n-2.232-de-17-de-julho-de-2019-216318370>. Acesso em: 25 abr. 2021. CARVALHO, A. S. Violência e agressividade. In: MODENA, M. R. (org.). Conceitos e formas de violência. Caxias do Sul: Educs, 2016. p. 135-140. E- book. Disponível em: <https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-conceitos- formas_2.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2021. JAHR, F. Drei Studien zum 5. Gebot. 1934. In: MAY, A. T.; SASS, H-M. Aufsätze zur Bioethik 1927-1947. Münster: Lit Verlag, 2012. OLIVEIRA, G. G. Ética, violência e saúde. In: MODENA, M. R. (org.). Conceitos e formas de violência. Caxias do Sul: Educs, 2016. p. 141-156. E-book. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com 3 Disponível em: <https://www.ucs.br/site/midia/arquivos/ebook-conceitos- formas_2.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2021. PESSINI, L. Bioética: um grito por dignidade de viver. São Paulo: Paulinas / Centro Universitário São Camilo, 2009. SGRECCIA, E. Manual de bioética. Tradução de Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 1997. v. 2. A luno: JE F F E R S O N G O N Ç A LV E S LO P E S E m ail: jefferson.g.lopes@ gm ail.com
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