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TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA Eduardo Pacheco Freitas História e representações Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Identificar a função da imaginação do sujeito no exercício historiográfico. Analisar a representação histórica na construção do objeto e do texto histórico. Explicar a relação entre o texto histórico e o seu leitor. Introdução Atualmente, nos estudos históricos, a imaginação se configura como um importante objeto de estudo, tanto quando se refere à imaginação do historiador na sua escrita quanto no fenômeno social que ela representa. A questão da imaginação insere-se em um debate maior acerca das distinções entre o texto ficcional e o texto histórico, problemática que se revela fundamental na definição do que é e do que não é o trabalho do historiador. Da mesma maneira, o conceito de representação histórica se tornou muito importante para o recorte do objeto e para a produção das nar- rativas históricas. Ao mesmo tempo, as representações sociais e coleti- vas, advindas do campo sociológico, revelam uma interface necessária para o desenvolvimento da ciência histórica. Representações, práticas e imaginação ajudam a explicar as relações existentes entre o leitor e o texto histórico. Na diferenciação necessária entre este último e o texto literário é que se encontra a chave para a correta compreensão dos limites e liberdades impostos por ambos os gênero para as perspectivas interpretativas do leitor e sua relação com os elementos extratextuais. Neste capítulo, você vai aprender a identificar as funções que a ima- ginação exerce sobre o sujeito no exercício historiográfico. Você também vai analisar a contribuição das representações em geral e da representa- ção histórica na construção do objeto histórico, bem como explicar as conexões existentes entre o texto de história e seu leitor. Imaginação e exercício historiográfico A partir de maio de 68 (marcado por uma série de protestos, inicialmente estudantis, que levaram a uma grande greve geral na França), a questão da imaginação revelou-se com força no âmbito das ciências humanas. Com seus slogans que exigiam a imaginação no poder, os jovens franceses estabeleceram em seus discursos contestatórios que os líderes políticos deveriam ser julgados não somente pelas suas capacidades, mas também por sua imaginação nos níveis políticos e sociais. A falta de imaginação é tida então como prova de mediocridade, sendo esse aspecto infl ado pelos meios de comunicação de massa, no sentido de que a imaginação é con- dição fundamental para o enfrentamento dos problemas sociais inéditos surgidos no pós-guerra. Dessa forma, foi estabelecida a associação entre imaginação e poder, com o termo deslocando-se do mundo das artes para o das decisões práticas da vida política e social (BACZKO, 1985). Em contrapartida, ao nos voltarmos para a história, descobrimos que a imaginação, quando caracterizada como social ou coletiva, tornou-se um importante objeto de análise por parte dos historiadores. Ao contrário dos manifestantes de maio de 68, que exigiam a imaginação no poder, os historiadores demonstraram que uma sempre esteve atrelada ao outro. Isso ocorre porque os primeiros entendiam a imaginação unicamente pela via da criatividade, tendo em vista a criação de uma sociedade diferente, enquanto os historiadores e outros cientistas sociais: [...] começaram a reconhecer, senão a descobrir, as funções múltiplas e complexas que competem ao imaginário na vida coletiva e, em especial, no exercício do poder. As ciências humanas punham em destaque o fato de qualquer poder, designadamente o poder político, se rodear de represen- tações coletivas. Para tal poder, o domínio do imaginário e do simbólico é um importante lugar estratégico (BACZKO, 1985, p. 297). História e representações2 Figura 1. Pichação em muro de Paris durante os protestos de maio de 68: “Sejamos realistas, exijamos o impossível”. Fonte: Soyez... (2014, documento on-line). “Sejamos realistas, exijamos o impossível” foi um dos slogans mais emblemáticos das manifestações de maio de 1968 na França. Os jovens estudantes exigiam que a imaginação fizesse parte da política, atribuindo um importante papel às representações que os jovens faziam de si mesmos. Os imaginários e as representações individuais, coletivas e sociais entravam de vez no radar dos historiadores e das ciências humanas e sociais em geral. Diferentemente da tradição marxista — que acredita na impossibilidade da história ser feita pelas ideias, já que para ela os homens não vislumbram a realidade social através das representações que fazem de si próprios—, os historiadores culturais que se valem do conceito de representação em seus trabalhos conferem grande importância às ideias e à imaginação no devir histórico. Da mesma forma, consideram que o próprio exercício historiográfico está eivado de representações, sendo o texto histórico em si uma representação do passado. A função da imaginação do sujeito no exercício historiográfico ocupa papel importante nos debates teóricos atuais dos estudiosos da historiografia. Dessa forma, é preciso estabelecer que existem diferenças cruciais entre a imaginação do leitor literário e a imaginação do leitor do texto histórico. 3História e representações No texto “Reflexões em torno da relação entre história e literatura”, disponível no link a seguir, você encontrará uma discussão muito relevante a partir das conexões existentes entre as formas narrativas correspondentes às duas áreas, história e literatura. No artigo, são abordadas as semelhanças e as diferenças entre a narrativa literária e a narrativa histórica, bem como as relações de ambas com o real enquanto representação social. https://qrgo.page.link/Fms4B O objeto da história é constituído simultaneamente ao conhecimento que é produzido sobre ele no texto histórico; portanto, os componentes cons- titutivos desse conhecimento se relacionam à experiência histórica, às re- gras que validam a produção deste conhecimento e, por fim, à imaginação. A imaginação, contudo, está submetida a regras que legitimam a construção do objeto e, consequentemente, à escrita histórica. É a partir dessas regras intersubjetivas que são viabilizadas as estratégias que permitem a construção de um objeto unificado. O papel das regras limita-se a emoldurar o campo em que se dá o jogo da imaginação. Não é o caso de uma atuação da imaginação tal qual se dá no juízo estético, pois não é a indeterminação de uma regra geral o que propicia, no caso da representação histórica, liberdade ao papel da imaginação, mas essa liberdade tem lugar dentro de princípios determinados de conhecimento (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008, documento on-line). Portando, ficam assim delimitadas as possibilidades e diferenças entre o texto ficcional e o texto histórico em suas relações com a imaginação. Na narrativa ficcional, o objeto, que é por definição estético, situa-se unicamente na relação estabelecida entre o texto, o leitor e sua imaginação. Sendo assim, não existe uma ligação com o real, ao contrário do que deve ocorrer, por definição, no texto de história. O discurso histórico, e sua manifestação textual, tem por obrigação garantir sua ligação com a rea- lidade, já suposta na construção do objeto. Em outras palavras, embora o exercício historiográfico, assim como a literatura, assegure a relação entre texto e imaginação, ele tem como um dos seus objetivos a adequação de sua estrutura narrativa à realidade. Dessa maneira, “[...] o historiador irá articular os vestígios do real, os quais tendem a ser organizados segundo História e representações4 os parâmetros de tais protocolos” e possibilitar que a imaginação adquira “um papel constitutivo junto ao objeto histórico” (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008, documento on-line). Assim, com todas as diferenças no âmbito da imaginação entre as narrativas históricas e ficcionais,é importante destacar que, em última análise, é ela que dá forma o objeto. Contudo, o objeto histórico não apresenta suas diferenças em relação ao objeto ficcional apenas pela presença de vestígios reais no primeiro e a ausência destes no segundo. É necessário que tais vestígios sejam organizados levando em conta determinados parâmetros, mesmo que ambas narrativas tenham como ponto em comum serem estruturas formadoras de sentido. Na ficção, existem pontos de vista que se relacionam entre si, sem a necessidade do elemento exterior. Na narrativa histórica, por sua vez, há a necessidade de conexão com o real. Na primeira, existem vazios, os quais são preenchidos pela imaginação do leitor. Na segunda, por sua ancoragem no real, a imaginação do leitor está conectada às relações que o texto estabelece com o mundo ao redor. Nesse ponto é que ganha relevância a capacidade retórica do historiador, de forma que ele seja capaz de eliminar os vazios entre os elementos constitutivos de seu texto, em uma tentativa de fazer coincidir sua perspectiva e a do leitor (WELLBERY; BENDER, 1998). É nesse sentido que Hartog (1998, p. 197) afirma: “[...] é evidente que o trabalho do historiador, seu talento, sua originalidade com relação a seus predecessores, em resumo, tudo aquilo em função do que um príncipe a ele recorreria decorre de seu domínio da arte da exposição”. Isto é, a imaginação e a capacidade de expor seu objeto de maneira conectada com o real e ao mesmo tempo criativa é uma condição imprescindível para o exercício historiográfico. Representação histórica e construção do objeto O conceito de representação — utilizado, embora de forma diversa, desde a antiguidade — tem, como qualquer outro conceito usado pelas ciências humanas, a sua própria historicidade. Ao longo do tempo, seus usos e desusos sofreram alterações, algumas mais signifi cativas, outras menos. Durante esse processo evolutivo, chegamos — sobretudo com as contribuições da ciência sociológica, desenvolvida a partir do século XIX — aos conceitos de representações coletivas e de representações sociais, que podem e devem fazer parte da “caixa de ferramentas” dos historiadores, ajudando desta forma no aprimoramento de seu ofício e na elaboração da representação histórica. 5História e representações Primórdios do conceito de representação Os gregos antigos não tinham em sua sociedade a ideia de representação. Nem mesmo em sua língua havia um termo que designasse tal conceito. Foi somente pelos romanos que a ideia de representação passou a existir e estar historicamente vinculada à atual concepção que temos do termo. De acordo com Pitkin (1979, p. 8), “[...] no latim clássico repraesentare signi- fi cava simplesmente fazer presente, manifestar ou apresentar pela segunda vez, e se referia quase que exclusivamente a objetos inanimados”. Ou seja, durante o período romano, a ideia de representação ainda não tinha relação com a noção de “pessoas representarem outras pessoas”, ideia que, por sua vez, viria a surgir somente mais tarde, na Idade Média. É durante a época medieval que os papas e os cardeais serão identifi cados como representantes de Cristo e dos Apóstolos, evoluindo — após juristas medievais entenderem que a representação tinha relação com as coletividades — para que os reis passassem a ser porta-vozes das comunidades, agora corporifi cadas na fi gura do monarca, que as representava. Ainda de acordo com Pitkin (1979, p. 10): “[...] o passo final em direção ao nascimento da ideia moderna de representação [...] foi dado no século XIX”, quando o conceito se aproximou da ideia de que a representação se dá através de um agente, que age por outros, desta forma “[...] ligando as instituições à democracia e às questões de Direito”. Assim, temos uma evolução do conceito ao longo do tempo: inexistente entre os gregos; passando a ideia de tornar presente um objeto ausente, sem relação com instituições, entre os romanos; relacionado à religião católica, em um primeiro momento, chegando na relação entre reis e súditos, na Idade Média; e finalmente, no século XIX, vinculando-se à ideia de representativi- dade política. Contudo, em última análise, o sentido básico que permeia esses diferentes momentos da evolução do conceito de representação é o de tonar presente algo que está ausente. As representações coletivas em Émile Durkheim Quando Émile Durkheim (1858–1917) inicia seus estudos sobre as represen- tações coletivas, mediante a análise da “[...] religião mais primitiva e mais simples” com o objetivo de, sociologicamente, “[...] entender a natureza religiosa do homem”, buscando assim “[...] revelar um aspecto essencial e permanente da humanidade” (DURKHEIM, 2000, p. 5–6), ele está dando os primeiros passos daquilo que se chama de sociologia do conhecimento. História e representações6 Esse período, que é a última fase metodológica do sociólogo francês, tem como seu maior expoente a obra As formas elementares da vida religiosa, na qual a análise referida acima busca demonstrar como os homens “[...] encaram a realidade e constroem uma certa concepção do mundo e, mais ainda, como eles próprios se organizam hierarquicamente, informados por tal concepção” (RODRIGUES, 2000, p. 21). Sendo assim, é possível afirmar que, para Durkheim, não é apenas através da verbalização — ou da escrita, ou da arte, ou de qualquer outro modo de expressão — que o homem busca representar a realidade. Ela é representada até mesmo pela forma como uma sociedade se dispõe territorialmente. Outro aspecto relevante do pensamento de Durkheim é que, sendo as representações coletivas também representações mentais — e, portanto, sim- bólicas —, elas seriam então imagens da realidade empírica. Para chegar a essa concepção a respeito das representações coletivas, Durkheim critica as duas concepções que há séculos se digladiavam sobre a razão e sobre a origem das categorias de entendimento. A primeira, de que a razão seria uma forma de experiência pessoal, é criticada por Durkheim (2000) nos seguintes termos: se a razão depende da experiência, logo ela não existe. Já a segunda concepção, de que a razão está fora da natureza e da ciência, é criticada sob o argumento de que “[...] se reconhecemos os poderes que ela se atribui, mas sem justificá- -los, parece que a colocamos fora da natureza e da ciência” (DURKHEIM, 2000, p. 22). Como forma de superar este impasse, Durkheim (2000) propõe que admitamos a origem social das categorias de entendimento, pois ele as considera como representações essencialmente coletivas e que, por isto mesmo, significam estados da coletividade. Em oposição, o conhecimento empírico é um estado individual. É interessante observar que, durante a análise da religião totêmica, Durkheim (2000) vai demonstrar que as categorias religiosas (entendidas como formas de conhecimento do mundo, de categorizações, presentes na diferenciação entre o que é profano e o que é sagrado) são socialmente pro- duzidas, da mesma maneira que as representações coletivas. Ou seja, há uma aproximação entre estas e as representações religiosas: [...] estabelecemos que as categorias fundamentais do pensamento, logo a ciência, têm origens religiosas [...] pode-se, portanto, dizer, em resumo, que quase todas as grandes instituições sociais nasceram da religião [...] se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é que a ideia da sociedade é alma da religião (DURKHEIM, 2000, p. 462). 7História e representações Assim, Durkheim consegue, a partir do conceito de representações coleti- vas, mostrar as dimensões coletivas e até mesmo científicas dos conhecimentos produzidos pela vida religiosa, mas não somente isso, estendendo o conceito à vida social como um todo. Neste sentido, Durkheim (2000, p. 23) afirma: As representações coletivas são o produto de uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço, mas no tempo; para criá-las, uma multidão de espíritos diversos associou,misturou, combinou suas ideias e seus senti- mentos; longas séries de gerações nelas acumularam sua experiência e seu saber. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente mais rica e mais complexa que a do indivíduo, encontra-se, portanto, como que concentrada aí. A razão, portanto, vai além do alcance dos conhecimentos empíricos, que para o autor são inerentemente individuais. Dessa forma, podemos concluir que para este sociólogo, as representações religiosas constituíram a primeira forma de classificação lógica da realidade, permitindo assim a organização das práticas sociais específicas a cada forma da vida coletiva. Desse modo, as representações coletivas se apresentam como uma forma de conhecimento acumulado, construído coletivamente ao longo do tempo, entendimento im- prescindível para o historiador ao analisar o desenvolvimento histórico de determinada sociedade. Representação social em Bourdieu Para Pierre Bourdieu (1930–2002), a representação social está associada a dois conceitos principais: campo e habitus. O campo, de acordo com o autor, é: [...] um microcosmo que tem leis próprias e que é definido por sua posição no mundo global e pelas atrações e repulsões que sofre da parte dos outros microcosmos. Dizer que ele é autônomo, que tem sua própria lei, significa dizer que o que nele se passa não pode ser compreendido de maneira direta a partir de fatores externos (BOURDIEU, 1997, p. 55). Portando, de acordo com o sociólogo francês, vivemos atualmente em sociedades altamente complexas e especializadas, com relevante grau de auto- nomia. É nesse contexto que se pode falar em campos de produção ideológica, que necessitam dos seus produtos culturais para existir. Como exemplo, podemos destacar que, mesmo não sendo intrínseco ao ser humano o ato de consumir notícias de jornais ou outras fontes, por trás disso há um campo jornalístico em peso sendo construído culturalmente e História e representações8 justificando a necessidade dos bens simbólicos que produz. Cabe ressaltar, ademais, que todo e qualquer campo tem regras de funcionamento e regras de produção dos bens simbólicos, regras estas que são institucionalizadas e passam pelas regras de sagração. Você pode pensar no exemplo de um acadêmico que possui título de doutor, por exemplo. Isso significa que ele possui o reconhecimento no seu campo de atuação e entre seus pares. Em outra palavras: ele possui capital simbólico maior do que um graduado ou um mestre. Trata-se de uma hierarquia simbólica, que Bourdieu chama de "distinção". Outro conceito caro para Bourdieu é o habitus, o qual podemos dizer que se trata de uma série de “disposições adquiridas a partir da experiência”. Segundo o autor, o habitus é uma forma de segunda natureza, que cria as formas de agir. O habitus serve como orientação e significação das ações dos indivíduos, bem como as representações dos agentes sociais. É dessa forma que acontece a relação do habitus com o campo, pois estes esquemas geradores de ação inerentes ao habitus são adaptados a um campo específico. Portanto, a representação social, em Bourdieu, está associada às noções de habitus e de campo, pois, a partir de uma perspectiva construtivista do autor, há o entendimento de que existe “[...] de um lado, uma gênese social dos esquemas de percepção, pensamento e ação, que são constitutivos do habitus e, de outro, das estruturas sociais em particular dos campos e grupos” (BOURDIEU, 1990, p. 149). Representações sociais em Chartier Na obra do historiador Roger Chartier (1945–), a questão da representação também é discutida. O autor evoca defi nições antigas do termo: Nas definições antigas (por exemplo, aquela do Dictionnaire universel de Furetière em sua edição de 1772), as entradas da palavra “representação” atestam duas famílias de sentido aparentemente contraditórias: de um lado, a representação manifesta uma ausência, o que supõe uma clara distinção entre o que representa e o que é representado; de outro, a representação é a exibição de uma presença, a apresentação pública de uma coisa ou de uma pessoa (CHARTIER, 2002, p. 74). Está presente, portanto, nas relações entre os conceitos de representação a dicotomia entre ausência e presença. Chartier também enceta uma discussão a respeito do conceito de “aparelhagem mental”, presente em Febvre, e de “hábi- tos mentais”, de Panofsky. Este último está relacionado ao conceito posterior 9História e representações de habitus, desenvolvido por Bourdieu. Os “hábitos mentais” e a “aparelhagem mental” seriam relacionados à prática, assim como o habitus, aproximando-se do que comumente chamamos de “visões de mundo”. Nesse âmbito, Chartier critica aquilo que chama de “tirania do social”, (CHARTIER, 2002), que seria uma visão redutora da realidade, já que aceitaria que, por exemplo, as categorias socioprofissionais determinam a apropriação dos bens culturais. Para superar essa concepção, Chartier propõe que se parta dos códigos e não das classes sociais para apreender a forma de apropriação desses códigos. Contudo, conforme visto, o conceito de representações para Chartier advém do acúmulo de trabalhos de diversos autores, entendendo-as o autor como “[...] classificações e divisões que organizam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do real” (CARVALHO, 2005, documento on-line). A representação histórica Para Michel de Certeau, o problema da representação histórica é central nas discussões teóricas sobre “[...] o que fabrica o historiador quando faz história” (CERTEAU, 2000, p. 65). Contudo, nem sempre os historiadores dão a devida atenção a essa problemática, que gira em torno de alguns aspectos principais, todos relacionados à contraposição entre o entendimento de que o texto histórico é uma representação ou de que se trata de uma simples apresentação do tema em análise. Atualmente, a maior parte dos historiadores não considera a hipótese de escrita de uma “história total”, como queriam os discípulos de Ranke e da chamada histórica científi ca do século XIX (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008). O construcionismo é uma das mais importantes concepções sobre a opera- ção historiográfica, considerando que esta não se trata de uma representação do passado em suas razões e motivos, mas uma apresentação textual que nada mais é do que uma construção do passado. Dessa forma, a visão construcionista não crê na representação como parte constituinte do processo de construção do objeto histórico. O construcionismo pode se apresentar de três formas (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008): o texto histórico advém de uma relação livre entre sujeito e objeto, não sendo, portanto, uma construção condicionada senão pela imaginação; o texto histórico é uma apresentação dos lugares e práticas sociais, sendo determinado pelo poder de fala destes; o texto histórico apresenta-se como uma narrativa da realidade. História e representações10 Todas essas características têm em comum o fato de desconsiderarem a produção historiográfica como uma representação histórica. Por outro lado, existem as concepções que defendem o protagonismo da representação nos trabalhos históricos. Isso ocorre, geralmente, entre os historiadores que ques- tionam a ideia de “verdade histórica”. A mais relevante delas é denominada documentalista, que possui “[...] um sentido menos ambicioso de verdade, distanciado tanto do princípio rankeano de representar o passado ‘como efe- tivamente aconteceu’ quanto da proposta de uma ‘apreensão do vivido’, tal qual defendida por Marc Bloch” (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008, documento on-line). Nesse sentido, a representação histórica é vista como elemento es- truturante da narrativa histórica. Portanto, cabe lembrar que a representação é enfatizada nas atuais histórias social, política e cultural. De acordo com Ginzburg (2001, p. 85) a representação “[...] faz as vezes da realidade repre- sentada e, portanto, evoca a ausência; por outro, torna visível a realidade representadae, portanto, sugere a presença”. Isso tem a ver com aquilo que Chartier (2002, p. 10) sintetizou como “[...] a imagem que uma comunidade dá a si mesma”, algo que faz com que a historiografia contemporânea valorize as representações coletivas e individuais. Esses autores compreendem o texto histórico em suas relações com o real, encarando-o, portanto, como uma representação. Assim, se estabelece um diálogo da história com a filosofia da linguagem, que se revela mais útil para o devido entendimento acerca das formas de escrever a história do que a teoria literária. Essa concepção se estrutura sobre a ideia de que, embora seja uma narrativa, a história não se trata apenas disso. Portanto, no momento de escrita da história o historiador está organizando o conhecimento adquirido sobre o passado, possibilitando assim, através da representação que produz, uma ligação com o real e o acesso a este pela construção do objeto (ANKER- SMIT, 2012). Relações entre o texto histórico e o leitor Nas últimas décadas, sobretudo no campo da história cultural, foram realizadas aproximações entre o texto histórico e o texto literário. Buscou-se, dessa forma, uma ampliação da abordagem epistemológica sobre as conexões entre ambos os gêneros e suas representações do conhecimento humano. Por outro lado, a literatura passou a ser discutida seriamente como uma fonte histórica. Nesse debate, que procura distinguir o que é fi cção e o que são os aspectos que apontam para a veracidade ou para a verossimilhança nesse tipo de construção narrativa, 11História e representações são postas as condições para que a literatura também seja um elemento do qual a história se valha como fonte. Essas novas tendências são fundamentais para as refl exões sobre as relações possíveis entre o texto histórico e o seu leitor. Em primeiro lugar, é preciso dar atenção à especificidade da narrativa histórica. A escrita da história, isto é, o exercício historiográfico, é calcada sobre alguns pilares que não podem ser desconsiderados. O primeiro deles diz respeito ao fato de que o historiador, ao elaborar sua narrativa, não trabalha somente com os elementos presentes (fatos, datas, nomes, fontes preservadas etc.), mas, pelo contrário, se vale o tempo todo das ausências quando executa a sua construção narrativa. Isso significa que o silêncio das fontes sobre determinado acontecimento ou tema — aquilo que não foi dito, ou que foi recalcado — assume tanta importância quanto os elementos presentes. E por que isso? Porque é por meio desses “vazios” que o historiador poderá elaborar hipóteses e chegar a conclusões mais precisas sobre seu objeto, algo que não poderia ocorrer caso as ausências fossem desconsideradas como importantes mensagens do passado que são. A discussão sobre essa problemática está relacionada precisamente ao simbólico, ao imaginário e às conexões entre o texto ficcional e histórico (CARDOSO, 2000). Dessa forma, ao produzir um texto histórico, o historiador fornece ao seu leitor a “[...] presentificação de uma ausência” (PESAVENTO, 2003, documento on-line). Portanto, a história está relacionada ao conceito de representação, significando com isto que a história, recorrendo aos imaginários, sempre possui um ligação profunda com o real. “Mimese” é uma palavra com origem no grego (mímesis), costumeiramente traduzida como “imitação”. No entanto, a palavra adquiriu com o tempo significados polissêmicos que ultrapassaram sua tradução mais comum. O termo costuma ser utilizado no âmbito das ciências humanas, da retórica, da estética e dos estudos literários como sinônimo de representação. Portanto, quando afirmamos que um historiador está fazendo mimese, isso pode ser entendido como a influência do período sobre o qual escreve em seu texto (CARVALHO, 2019). Outro fator de suma relevância quando da análise das formas de escrita da história e da sua recepção pelo leitor reside no entendimento de que “[...] a forma de escrever a história não é indiferente aos modos de percepção dos tempos históricos das sociedades, mesmo quando estes não sejam colocados História e representações12 em evidência por aqueles que realizam o trabalho da sua escrita” (CARDOSO, 2000, documento on-line). Portanto, a produção histórica sempre estará situada em um determinado contexto social, imersa em maior ou menor grau em suas práticas e representações. Certeau (2000) já destacava que tanto a disciplina quanto a escrita da história não podem ser compreendidas sem se levar em conta que estão situadas em um determinado contexto, sob três aspectos principais: a instituição onde são produzidas, o lugar social e suas práticas sociais. Assim, torna-se perceptível uma primeira relação entre leitor e texto histórico, já que este é produzido em situações condicionadas semelhantes às quais o leitor encontra-se inserido. Contudo, há que se destacar o risco de que o historiador possa praticar a mimese na sua produção. Como seu trabalho opera no sentido de reconstituir o passado, há a possibilidade de o historiador ser influenciado pelo tempo, bem como pelo lugar social, do qual se ocupa em sua escrita. Este, sem dúvida, é um fator que pode tornar um pouco mais difusas as fronteiras entre narrativa histórica e a literária (LIMA, 2006). No entanto, a questão mais importante está nos efeitos que o texto histórico provoca no seu leitor. Ao contrário do texto de ficção, em que o leitor encontra efeitos sobre si de maneira quase que inerente em sua relação com tal narrativa, no trabalho de história as coisas ocorrem de maneira diversa. Para conhecer mais sobre as possíveis relações entre textos históricos e textos ficcionais, você pode ler a obra História. Ficção. Literatura. (Cia. das Letras, 2006), de Luiz Costa Lima. Neste livro, o autor dialoga com historiadores como Carlos Ginzburg e com o polêmico Hayden White, historiador americano que estremeceu o campo da história ao defender a tese de que a escrita histórica e a literária não possuem diferenças significativas (LIMA, 2006). A questão dos efeitos do texto histórico sobre o leitor permeia toda a obra, já que o autor dedica seus esforços a distinguir história e ficção, chamando a atenção para as diferentes metas discursivas de cada gênero. As narrativas históricas e literárias se entrelaçam e podem ser entendidas como respostas em forma de discurso sobre os questionamentos humanos frente ao mundo. Esse fenômeno não se restringe a um período específico da história, sendo recorrente em todas as épocas. Portanto, cada produção textual 13História e representações sempre encontra correspondência nos valores da época na qual é produzida, decorrendo desse fato que os seres humanos de cada época percebem e são afetados pelos textos de maneira diferente. Podemos afirmar que assim formam leituras de mundo diferentes em períodos diferentes, naquilo que Pesavento (2003, documento on-line) chamou de “o mundo como texto”. A história entendida como narrativa sobre acontecimentos que já se passaram, em maior ou menor escala de tempo, torna-se, dessa forma, uma representação do passado. O material de trabalho do historiador já deixou de existir, sendo acessível somente por vestígios que resistiram ao tempo e chegaram até o instante em que o pesquisador trabalha. Nesse sentido, ocorre uma substituição de eventos pretéritos que acaba servindo para atribuir sen- tidos ao mundo (PESAVENTO, 2003). O leitor do texto histórico, ao tomar contato com essas representações e substituições, forma imagens mentais a respeito do passado que não são de um todo livres e criativas (como pode acontecer em suas leituras ficcionais), pois a narrativa histórica sempre estará ancorada no real, no que de fato ocorreu, estabelecendo assim limites até onde a imaginação do leitor pode agir. [...] na impossibilidade da repetição da experiência da História, pois aquilo que se passou não volta mais, é como se o historiador desafiasse seu leitor a repetir seus passos,para chegar às mesmas conclusões. Na prática, o leitor não refaz o caminho de arquivo e de fontes, percorrido pelo historiador, e se deixa convencer pelos procedimentos retóricos (PESAVENTO, 2003, documento on-line). Todavia, o problema se torna mais complexo quando confrontamos visões distintas a respeito da natureza do texto histórico. Alguns autores, como Paul Ricoeur (1913–2005), consideram que a história possui um caráter ficcional, por se encontrar, em sua opinião, nos domínios do não verificável. Dessa forma, o historiador faria uma construção imaginária daquilo que teria sido, induzindo o leitor a aceitar a narrativa do passado como o próprio passado. Roland Barthes (1915–1980), por exemplo, defendia que nada existe fora do discurso, situando-se dentro dessa concepção também o texto histórico. Entendimento semelhante foi sustentado por Hans Robert Jauss (1921–1997), para o qual a história é apenas uma representação narrativa do passado. Já para autores como Krzysztof Pomian (1934–), a narrativa histórica conduz o leitor a elementos extratextuais, possibilitando que ele refaça os passos do historiador através das citações e das referências bibliográficas e/ou documentais. É como se o autor estabelecesse que, caso o leitor não se convença de sua retórica, ele História e representações14 poderá refazer o caminho que o historiador percorreu e chegar às mesmas conclusões (PESAVENTO, 2003). Por fim, um último problema importante: o efeito que o texto histórico pode causar sobre o leitor. Este tema é relevante na medida em que, diferentemente do texto de ficção, cuja relação texto/leitor ocorre internamente, a relação dia- lógica entre o leitor e o texto histórico se dá, em grande parte, na exterioridade. Azevedo e Teixeira (2008, documento on-line) fazem uma pergunta crucial: “É possível, entretanto, conceber uma escrita da história que abra espaço a um leitor que não se apresente como polo passivo, receptor de um sentido e de uma síntese que já se pretendem determinados?”. Os autores respondem afirmativamente e justificam: o historiador, ao elaborar sua narrativa, recorre à imaginação para que ela produza sentido. Portanto, isso abre caminho para diversas possibilidades interpretativas por parte do leitor. Nesse sentido, se faz importante que o historiador adote uma posição crítica em relação ao seu próprio texto, já que ele, ao conter o fator imaginativo em si, pode abrir diver- sas perspectivas possíveis, embora isso não autorize a comparação imediata ao texto de ficção. Contudo, mesmo que a ancoragem do texto histórico no real seja um fato, o leitor, em contato com a narrativa histórica, encontrará o ponto de vista do narrador, o que não o isenta de experimentar diversas outras possibilidades de compreensão acerca dos vestígios do passado presentes na leitura (AZEVEDO; TEIXEIRA, 2008). ANKERSMIT, F. R. (org.). A escrita da história: a natureza da representação histórica. Londrina: Eduel, 2012. AZEVEDO, D. F.; TEIXEIRA, F. C. Escrita da história e representação: sobre o papel da imaginação do sujeito na operação historiográfica. Topoi, v. 9, n. 16, p. 68–90, 2008. 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